Paulo Fábio Dantas Neto: A República na América

É paradoxal que a traumática experiência dos quatro anos de agressiva passagem de Donald Trump pela Presidência dos Estados Unidos tenha feito com que o destino daquele país passasse a importar mais ao mundo do que já importava antes.
Foto: Andrea Hanks/White House
Foto: Andrea Hanks/White House

“(…) Pois os fatos são renitentes; não desaparecem quando os historiadores ou sociólogos se recusam a tirar algum ensinamento deles, embora isso possa ocorrer quando todos os esquecem(…)”. (Hannah Arendt, “Da Revolução”)

É paradoxal que a traumática experiência dos quatro anos de agressiva passagem de Donald Trump pela Presidência dos Estados Unidos tenha feito com que o destino daquele país passasse a importar mais ao mundo do que já importava antes. Assim como tornou os EUA menos auto centrados e mais permeáveis e sensíveis ao que acontece fora dele. A pretensão isolacionista de Trump produziu efeito oposto. Ele não entregou o muro que prometeu, contra o México e o mundo. Contra o seu muro, construíram-se pontes e pistas que atravessaram continentes para ajudar a república norte-americana a se defender.

Uso de propósito o termo república e não democracia – embora esteja entre os que não conseguem pensar uma instituição sem a outra – porque vejo na instituição republicana, tal como se firmou nos EUA, a fonte principal da empatia que a fórmula norte-americana suscita, mesmo em presença de crise em vários aspectos de sua democracia e de tantos motivos de antipatia historicamente enraizados por ações da política externa de seu Estado.  Hannah Arendt, cujo pensamento serve não só de epígrafe como de inspiração para este breve texto, frisou a originalidade da experiência fundacional norte-americana, a um só tempo revolucionária e criadora de um tipo de governo fiel ao espirito da revolução da qual partiu, isto é, governo limitado pela lei. A proteção de direitos de cidadãos contra a opressão do poder político institucionaliza a liberdade, causa da revolução.

Contraste significativo, mostra Arendt, com rebeliões modernas que libertaram povos de opressões – como a do Antigo Regime da bastilha e a da grande Rússia dos czares (e às quais podemos acrescentar a de títeres cubanos de plutocratas e mafiosos e tantos outros exemplos) – mas após as quais o sentido de revolução foi perdido quando seus processos políticos não construíram a liberdade, seu fundamento. Cair sob o jugo de algum tipo de “Conquistador” seria a sina de rebeliões que não se fazem acompanhar de uma revolução, no sentido político de restauração/recriação da liberdade como experiência e/ou razão.

Em contraste com tais experiências agonísticas esteve sempre a realidade de contra revoluções que, sobre o fogo fátuo das insurreições desacompanhadas de política positiva, viabilizaram governos limitados como opções pacificadoras da violência de revoluções refratadas. Nesses casos, pontua Arendt, constituições levam a governos limitados que não são sinais de vitória moderada de aspirações revolucionárias, mas da sua derrota.   

Como coisa distinta de ambas as situações sumariadas, levanta-se o caso singular da República norte-americana. A forte conexão de sentido, tanto no campo dos argumentos racionais, quanto no da análise histórica, entre o momento-libertação (a guerra da Independência) e o da construção da liberdade (da Declaração da Independência à Constituição, passando pelo amplo debate popular da questão federativa) deixa claro, para nossa autora inspiradora, que os fundadores da República americana não cometeram o equívoco de imaginar que poder e lei poderiam emanar da mesma fonte. O poder popular concilia-se com a liberdade política quando a lei – sua elaboração, aplicação e guardiania – provém de diferentes poderes derivados de uma autoridade política constituída e fundada no princípio representativo. Autoridade cujo mister é proteger o cidadão da opressão do poder, inclusive do poder que emana direto da fonte legitimadora da própria República.   Numa palavra, na República norte-americana não há poder soberano, nem o do povo, pois a premissa é que a liberdade requer governo e governo legítimo é governo limitado.

É sobre esse estuário institucional (governo da lei, não de pessoas), compactado como tradição por uma cultura política associativa, que a democracia americana trafega como presente continuo, entre avanços e recuos, tendo como resultante um processo cumulativo de inclusão política.  A violência, que todos apontam (alguns com desagrado, outros com admiração) como marca de um modus operandi da história daquele país, comparece nos vários momentos dessa construção democrática bissecular, mas encontra no estuário republicano uma força de atenuação, que é civilizatória. Sua eficácia pode ser percebida quando se compara a violência em estado bruto, de guerra, que marcou o fim da escravidão, há um século e meio, com enfrentamentos de uma década de conquista de direitos civis, há meio século, daí com lutas que permitiram a significativa eleição de Barack Obama há uma década e com vitoriosas frentes políticas de agora, pacientemente construídas para enfrentar o trumpismo, impulsionadas por gigantescas manifestações de protesto pelo assassinato de George Floyd.  A visão dessa floresta é a da República como hardware seguro ao qual de acopla a democracia como software em constante atualização.

Foi contra esse edifício monumental, sediado na história e na cultura política de seu país, que Donald Trump jogou seus apoiadores no último dia 6.  O Capitólio é o edifício símbolo do hardware que os norte-americanos construíram para se fazerem representar e serem protegidos de efeitos malévolos de dissensões sempre presentes entre eles. Ao arremessar contra o Capitólio uma parcela radicalizada de pessoas desatentas à dimensão protetiva do edifício, quis induzi-las a destruir/desmoralizar um hardware sem o qual eles próprios seriam inimigos vencidos e destituídos de qualquer direito. E como poderiam, de algum modo, na ausência desse hardware, tentar introduzir seu software extremista? Contra quem e contra o que poderiam mobilizar seu pathos destrutivo? Se por acaso não fossem tão fragorosamente fracassados, como foram, ficariam parados no ar, rebelião seguida de anomia, não de novo poder. Agora que a República prevaleceu, eles continuarão tendo a chance de tentar, desde que respeitem o hardware. Chance condicional, não excluindo que insuflador e insuflados respondam pelo atentado, já que o governo é da lei.

Mas eles quem? Todos os cara-pálida? É outra pergunta pertinente depois desses eventos. Prever o que será e como se comportará o trumpismo findo o governo Trump é, ainda, um exercício para videntes e dele me pouparei porque me falta esse talento. Entretanto, há uma questão correlata que pode ser aqui arranhada por uma evidência que salta aos olhos. Já começou a disputa de narrativas no campo oposto ao de Trump. O desfecho que o isola (ao menos momentaneamente) significa, para certos analistas politicamente engajados, a implosão do Partido Republicano ou o seu enfraquecimento a ponto de perder capacidade de polarizar com os Democratas, que tenderiam a ocupar bases do rival desorientado. Como não há ambiente propicio a partido único e atribui-se a Trump uma atitude anti-sistêmica cada vez mais ostensiva, vislumbra-se, à esquerda, a chance (ou o desejo) de que o Partido Democrata venha a ser a nova força conservadora na política norte-americana, abrindo espaço, a médio prazo, para-o surgimento de uma “nova” esquerda.  Até porque, conforme essa narrativa, a nova polarização política tende a estar impregnada pela questão racial e a noção de pluralismo – caríssima à tradição política do país – passa a assumir, nesse registro, uma conotação mais societal, enfatizando clivagens. A tese parece ser que hoje saem derrotados o trumpismo e o supremacismo radical. Amanhã será a banda moderada com a qual se identifica Biden e que será chamada a defender a herança da “sua” democracia branca. Não se distingue, no discurso, lugar para a “nossa” República. Deve-se assinalar que boa parte do movimento político anti racista parece estar evitando esse consequencialismo identitário e tem apostado firme na via eleitoral, formando frentes amplíssimas. A ver se é uma atitude política sustentável ou mais uma tática defensiva motivada pelo fator Trump. 

Para outros analistas, o isolamento de Trump conduziria a uma retomada, pelo seu partido, agora na oposição, do lugar de direita democrática que lhe cabe. Até porque a tendência da política de Biden, tendo ao lado a vice Kamala Harris, seria reforçar uma inflexão “à esquerda”, justamente para evitar que, nesse quadrante político, algo de relevante se descole do partido e passe a querer polarizar com ele. É jogo futuro, mas essa segunda hipótese guarda maior sintonia com a interpretação de que quem derrotou Trump foi o instinto de República e não o clamor por uma democracia de novo tipo. Em vez de uma “nova democracia”, uma democracia que se renova graças à robustez da República. Quanto mais atores políticos relevantes – no Capitólio, na Casa Branca, em Wall Street e na malha associativa de movimentos sociais em geral e de movimentos políticos anti-racistas  se deixarem persuadir por esse segundo caminho, mais laços haverá com o mundo exterior, para o qual a República que há na América segue sendo referência.   

Desdobramento lógico e prático dessa discussão é perguntar o que tudo isso tem de fato a ver com o mundo externo aos EUA, Brasil incluído. Tema de outra coluna, provavelmente a da próxima semana, se fatos do nosso próprio país não furarem a fila. Como gancho, deixo a sugestão de reflexão sobre se o fim da aventura trumpista inspira mais dúvida ou mais confiança na hipótese de que instituições robustas e atitude política republicana possam domar um populista de extrema-direita no poder e o impeçam de detonar o edifício.

*Cientista político e professor da UFBa.

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