joe biden

Marcus André Melo: Na eleição norte-americana, o ganhador leva tudo

EUA: polarização nacional, eleições locais

A campanha presidencial nos EUA virou um jogo de apostas altíssimas agora que Trump poderá ter maioria estável na Suprema Corte, em um pleito que provavelmente será judicializado. Mas, se o pleito é nacional, de importância inédita, a disputa é fragmentada, estadualizada.

Isso se deve à importância no colégio eleitoral dos "swing states" —estados com muitos delegados e onde há equilíbrio de forças. Espécie de relíquia institucional, tem sobrevivido a 700 emendas constitucionais apresentadas para sua eliminação, que tiveram apoio massivo, como discuti neste espaço.

Países que copiaram os EUA nas suas constituições eliminaram o colégio já no século 19, e outros no século 20, como a Argentina (1995) e o Chile (1920).

A instituição é exemplo de regra majoritária ("winner takes all") aplicada a eleições presidenciais, mas o raciocínio vale para as legislativas.

As chances de vitória no colégio e derrota no voto popular têm origem dupla: a) o ganhador no estado escolhe todos os delegados da jurisdição: uma vitória por uma margem de 1% produz um ganho de 100%; b) o número de delegados em cada estado é a soma do número de deputados federais e senadores, o que favorece os de menor população.

Entre nós, na República Velha, valia a mesma lógica, mas para as eleições legislativas: o mais votado em cada distrito levava a totalidade das vagas em disputa (que variava de 1 a 4). Utilizamos também no Segundo Reinado distritos de um representante, como nos EUA hoje. O impacto da regra fica claro no resultado final. No limite, um partido que obtiver um terço dos votos nacionalmente, mas não for o mais votado em nenhum distrito, não obterá nenhuma cadeira.

A regra majoritária cria uma estrutura de incentivos pela qual, durante as eleições, a campanha ocorre apenas nos poucos distritos onde há equilíbrio na disputa (também chamados de "marginal districts"). Caso contrário, é como se não houvesse eleição (caso dos "safe districts"). Aos simpatizantes de partidos minoritários resta não votar ou votar no candidato que rejeite menos.

Em contraste, sob a representação proporcional, os partidos minoritários têm incentivos para disputar o voto porque conseguem obter cadeiras mesmo não sendo os mais votados. Quanto maior a magnitude do distrito eleitoral, maiores as chances de representação (desconsiderando efeitos de cláusulas de barreira e a existência de segundo turno). Por isso o comparecimento às urnas também aumenta.

Assim as regras importam e têm enorme resiliência. O localismo na eleição americana tem raízes institucionais e se insere paradoxalmente em um ambiente "desespacializado" e polarizado das redes.

*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).


RPD || Nelson Tavares Filho: Perspectivas da economia brasileira

Provável vitória dos democratas nas eleições norte-americanas, ausência de uma política ambiental e investimentos baseados em aumento da dívida pelo governo Bolsonaro são fatores que podem influenciar a economia do país, levando a uma alta da inflação e dos juros

A PwC, companhia de assessoramento contábil e financeiro, com filiais em inúmeros países, atualiza, todos os anos, cenário da economia mundial para o ano 2050.

Seu último estudo estima que a economia brasileira será a sexta do mundo naquele ano, com um PIB, a preços correntes, de US$ 6,5 trilhões. O PIB per capita seria cerca de US$ 28 mil.

As estimativas realizadas por institutos e órgãos de pesquisa indicam que, em 2020, o PIB do país deve apresentar queda de 5%, em termos reais.

O traçado de um cenário de curto prazo, para os anos 2021/2, envolveria avaliação qualitativa de variáveis, consideradas determinantes, do comportamento da economia nesse período.

A primeira delas diz respeito não à ciência econômica, mas à questão da tecnologia na área de saúde. A presente pandemia tem apresentado interferência direta no desempenho econômico. Aguarda-se a existência de uma vacina para o segundo trimestre de 2021, quando se retornaria a uma certa “normalidade”. Não se prevê uma “segunda onda”, de acordo com diversos cientistas.

Estimar o desempenho futuro da dívida pública é da maior importância. A esse respeito, economistas debatem a possibilidade de haver emissão monetária para, de maneira responsável, fazer investimentos. Difícil é encontrar na história do Brasil quem tenha tido esse comportamento perante os gastos públicos. Esse governo atual não difere da maioria dos anteriores. Pesa mais o fato de que, no período de pouco mais de dois anos, teremos duas importantes eleições. As eleições municipais, em 90 dias, ressaltam que, para melhor desempenho, é necessário investir em obras no município.

Portanto, embora considere de fundamental importância a Lei do “Teto dos Gastos”, reputo ser baixa a probabilidade de que seja respeitada. Isso poderá aumentar o investimento em 2021. Nada significativo, para quem já investiu, em décadas anteriores, 13% e hoje investe 1,35%. Será um aumento de investimento baseado em aumento da dívida. O que significa dizer que, no longo prazo, poderá ocorrer pressão altista na inflação e no aumento dos juros, internos e externos.

Haverá influência da (ausência de) política ambiental deste governo no desempenho de curto e médio prazos. Os fundos de investimentos estrangeiros não estão dispostos a financiar governos que não respeitam os acordos ambientais, em especial o Acordo de Paris. Nem a União Europeia irá assinar acordos com estes governos. As repercussões internas são: pouco crescimento em exportações, na geração de empregos daí decorrente e na atração de investimentos desses países.

Por último, mas não menos importante, eventual vitória democrata nas eleições americanas aumentará o isolamento do governo brasileiro. Democratas, em discursos no Congresso americano, já elencaram questões sobre as quais pretendem pressionar o governo brasileiro, com destaque para questões ambientais.

Dadas as limitações acima anotadas, qual é o cenário possível para 2021/2? O governo montou recentemente base congressual para evitar futuros questionamentos legais de seus atos. A base é composta, em sua imensa maioria, por deputados do Centrão, que, desde a promulgação da Constituição, participaram de todos os governos em troca de distribuição de verbas. A ameaça de impeachment e a realização das eleições de 2020 e 2022 justificam supor uma “abertura do cofre”, independente da vontade do atual ministro da Fazenda.

A pandemia exigiu, corretamente, gastos além dos orçamentários, o chamado “orçamento de guerra”. Estes gastos foram usados, inclusive, para manter a renda da parcela mais pobre da população e financiar micro e pequenas empresas. Mas agora chegou a hora de pagar esta conta – a dívida do governo já se aproxima de 100% do PIB.

A economia brasileira vem apresentando taxas medíocres de investimento, 1,35% do PIB. Isto acontece porque os gastos correntes inadiáveis vêm ocupando o espaço no orçamento. Inúmeras estatais estão dependendo do orçamento público para pagar suas folhas salariais, sem contrapartida de ofertar um bom serviço público. Mas fechar uma estatal hoje significa subtrair “poder” de um congressista. A base formada pelo governo Bolsonaro irá dificultar muito o ajuste necessário ao Estado brasileiro.

Apesar de todas as restrições mencionadas, há um detalhe importante que poderá favorecer a apresentação de taxas de crescimento positivas em 2021: o efeito estatístico causado pela diminuição do PIB em 2020. Outra questão que poderá influir no crescimento é o auxílio a ser pago a camadas mais pobres da população: 65% do crescimento é ocasionado pelos gastos familiares e este auxílio aumenta o poder de compra dessa população integralmente, pois não tem condições de poupar.

No início deste artigo, citei o cenário de longo prazo feito por uma multinacional. Pelo valor estimado para nosso PIB (US$ 6,5 trilhões) e o PIB per capita (US$ 28 mil), é fácil deduzir que a empresa aguarda desenvolvimento significativo no longo prazo.

No cenário de curto prazo, com as variáveis mencionadas, o crescimento ocorrerá mais por efeito estatístico e/ou desrespeitando normas e leis que constituem base para um crescimento de longo prazo.

Não são dois cenários excludentes. Mas a prevalecer no curto prazo crescimento nas condições explicitadas, mais difícil será a realização do cenário de longo prazo traçado pela empresa.

*Nelson Tavares Filho é economista, especialista em planejamento estratégico


RPD || Marcos Sorrilha Pinheiro: O sistema eleitoral norte-americano e as eleições de 2020

No Brasil, quem tiver mais de 50% dos votos válidos vence a eleição e leva a Presidência. Nos Estados Unidos, vence quem alcançar a maioria absoluta no colégio eleitoral

Para o brasileiro, é difícil entender o sistema eleitoral dos Estados Unidos, porque lá a escolha do presidente não se dá pelo voto direto, mas pelo colégio eleitoral.

A origem data da Constituição de 1787, quando o país ainda não era uma nação, ao reunir treze Estados organizados em uma confederação destituída de um poder central. Foi justamente durante a Assembleia Constituinte que o modelo federativo foi desenhado e, com ele, a maneira pela qual o chefe do Executivo seria escolhido.

A elaboração do sistema de escolha do mandatário atendeu a alguns interesses que estavam em jogo naquele evento, como, por exemplo, a necessidade de se estabelecer um mecanismo de mediação que pudesse deliberar sobre os votos populares, impedindo que a escolha da maioria fosse motivada por paixões momentâneas capitaneadas por líderes demagogos. Vale dizer: o sistema eleitoral da maior democracia do mundo foi elaborado para impor limites à democracia, reduzindo a participação da população na escolha direta de seu presidente.

Outro interesse em pauta dizia respeito à autonomia dos Estados que se congraçariam em uma nação. Temia-se que o voto direto beneficiasse os Estados mais populosos, ao passo que os Estados do Sul contavam com número maior de pessoas escravizadas, ou seja, menos eleitores. Um candidato que representasse os interesses da porção Norte do país ou concentrasse sua campanha nos Estados mais populosos, poderia, assim, sagrar-se vitorioso e pôr em risco a capacidade de representação das demais unidades da Federação.

O colégio eleitoral apresentou-se, portanto, como uma solução capaz de atribuir maior representatividade aos Estados menores, uma vez que a vitória nas eleições já não seria daquele que obtivesse um número maior de votos, mas de quem conseguisse garantir a maioria dos delegados no colégio eleitoral.

O colégio eleitoral, por sua vez, é formado por delegados indicados pelos partidos e escolhidos pelos eleitores no dia da eleição. No modelo atual, ele é composto por 538 delegados, número equivalente ao total de assentos no Congresso americano (100 senadores e 435 deputados), mais 3 delegados advindos do Distrito de Colúmbia. A distribuição dos delegados entre os Estados se dá de acordo com sua densidade demográfica. Daí porque a Califórnia possui o maior número de delegados, 55.

De tal maneira, seguindo o modelo estabelecido, o candidato que vence em um Estado, mesmo que seja por diferença mínima de votos, leva para sua conta todos os delegados que estavam em disputa, tendo ou não votado nele. Isto é: o vencedor leva tudo.

Esse formato permite algumas anomalias. Poe exemplo: um candidato pode ser eleito sem que obtenha um único voto em 39 Estados da Federação, desde que vença, mesmo que pela margem mínima de votos, em pelo menos 11 desses 12 Estados: Califórnia, Nova York, Texas, Flórida, Pensilvânia, Illinois, Ohio, Michigan, Nova Jersey, Carolina do Norte, Geórgia ou Virgínia.

Existem algumas barreiras para impedir o êxito dessa estratégia de privilegiar os Estados populosos, com vistas à construção da maioria no colégio eleitoral. Por conta de peculiaridades em sua cultura política, algumas unidades da Federação se consolidaram como eleitoras históricas de um dos dois grandes partidos nos EUA. São os chamados Safe States. Existem, também, aqueles Estados que não possuem seus votos consolidados e que mudam de lado a cada uma ou duas eleições. São os chamados Swing States. Esta característica pendular faz com que seja justamente nesses locais onde a eleição “realmente acontece”, conhecidos pela alcunha de “Campos de Batalha”.

Nas eleições deste ano, ao menos três dos chamados Swing States aparecem como campos de batalhas: Wisconsin, Flórida e Pensilvânia. A novidade são os Estados que historicamente votam com os republicanos e que, agora, aparecem em disputa: Georgia, Arizona e Carolina do Norte. Desses, o Arizona é aquele em que Joe Biden aparece com melhor chance de vitória.

Neste exato momento, a corrida eleitoral ganha contornos de indecisão. Após três meses de muitos tumultos em torno da figura de Donald Trump – causados pela derrubada do PIB, pelas mortes causadas pela Covid-19 e pelas manifestações antirracistas –, em que uma vitória esmagadora de Biden parecia se desenhar, o atual presidente se recuperou nas pesquisas, aumentando sua vantagem em Estados ameaçados, como o Texas, e aproximando-se de seu opositor em dois campos de batalha: Flórida e Pensilvânia.

De certa maneira, a economia começa a dar sinais de recuperação e isso pode ser bom para Trump. Além disso, o aumento das tensões em torno das manifestações étnicas é uma carta que ele mobiliza com frequência, tentando plantar o medo, vendendo a imagem de Biden como se fora a marionete da ala radical do partido, atrelada àqueles movimentos. Por outro lado, o candidato democrata sai-se bem em temas que são tidos como muito importantes entre os eleitores independentes – a questão climática e a crise do coronavírus – com as quais, estimam, Biden saberá lidar com mais competência.

Hoje, dos temas centrais que norteiam a escolha do próximo presidente, cinco despontam com particular importância: pauta étnica, economia, relações com a China, coronavírus e questão climática. Biden parece ter dois pontos seguros a seu favor, ao passo que Trump luta para consolidar seu posicionamento em ao menos dois deles também. Apenas a China está em aberto. Ambos os candidatos coincidem em que a China é um problema para a América.

Trump tem acrescentado pauta própria e muito sensível ao eleitor de direita do país, a ênfase na lei e na ordem, sua plataforma preferida na tentativa de alertar a população do país contra os efeitos da campanha de Biden, de maior aproximação com as minorias étnicas. Que, para o candidato republicano, são precisamente os agentes principais das ameaças à segurança interna dos Estados Unidos. O dia das eleições dirá de que lado se alinhará o eleitorado do país.

*Marcos Sorrilha é professor Doutor do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista, Campus de Franca.


Yascha Mounk: Força de Biden é ter afiado instintos políticos por muitas décadas

Ao evitar cair na armadilha de Trump, democrata vem sendo mais inteligente do que seus colegas

Ao longo das primárias Joe Biden foi retratado como um anacronismo, um homem cujo melhor momento ficara uma década ou três no passado. Ao mesmo tempo em que os veículos da grande imprensa publicavam perfis bajuladores de seus principais rivais, descartavam as chances de sucesso dele.

Mas Biden não apenas derrotou uma dúzia de concorrentes para se tornar o candidato indicado do Partido Democrata como também está persistentemente à frente de Donald Trump nas pesquisas de intenção de voto, lidando habilmente com a política extraordinariamente turbulenta de 2020.

A explicação mais simples é que as pessoas gostam de Joe Biden, e gostam dele por uma razão: diferentemente de Trump e de alguns setores do Partido Democrata, Biden de fato expressa o ponto de vista da maioria dos americanos.

Quando protestos de massa desencadeados pelo assassinato de George Floyd se alastraram pelos Estados Unidos, o público americano reagiu de modo muito menos dividido do que talvez sugira um olhar rápido para a paisagem da mídia polarizada.

De acordo com as pesquisas, a maioria dos americanos encara a brutalidade policial como um problema grave e pensa que precisamos fazer mais para combater o racismo. Segundo as mesmas pesquisas, a maioria dos americanos também considera que protestos violentos são ilegítimos e que “desfinanciar a polícia” é má ideia.

Mas esse consenso passou despercebido por muitas elites políticas e da mídia. O pior ofensor é, como sempre, Donald Trump, que parece ser incapaz de exprimir empatia por aqueles que sofrem com a injustiça e ainda parece pensar que pode fortalecer sua posição inflamando as tensões raciais no país.

Algumas pessoas da esquerda, porém, também se desviaram em direção aos extremos. Políticos progressistas abraçaram mensagens profundamente impopulares como “desfinanciar a polícia”. Alguns jornalistas conhecidos fizeram de conta que a turbulência e as depredações não estão ocorrendo em grande escala e que de qualquer jeito, se isso acontecesse, seria perfeitamente justificável. O senador democrata Chris Murphy, de Connecticut, chegou a ir ao Twitter para se desculpar por ter criticado a violência política.

Essas omissões vêm tendo consequências sérias em campo. Em todos menos os casos mais flagrantes, as autoridades de Portland têm se negado a processar manifestantes violentos. Um homem que se beneficiou dessa política é Michael Reinoehl, extremista branco que escreveu nas redes sociais que “toda Revolução precisa de pessoas dispostas e preparadas para lutar… Eu sou 100% ANTIFA até o fim!”

Reinoehl foi detido em um protesto local em julho por portar uma arma carregada e resistir à prisão. Mas foi solto em pouco tempo. Algumas semanas mais tarde, as acusações contra ele foram arquivadas. Então ele disparou contra um partidário de Trump, matando-o, em um protesto no centro de Portland.

Felizmente, a maioria dos líderes comunitários e políticos negros têm ignorado as expressões de angústia online sobre os perigos de criticar atitudes que desrespeitam as leis. Eles abraçaram plenamente o movimento de massa por justiça racial –e condenaram inequivocamente os extremistas e oportunistas que saqueiam lojas, incendeiam bairros ou se entregam a fantasias juvenis sobre revolução política.

Mais importante ainda, o candidato presidencial do Partido Democrata também tem condenado a violência, coisa que fez desde o início, com frequência e de modo inequívoco. Como Biden disse em um discurso recente: “Promover baderna nas ruas não é protestar. Saquear não é protestar. Atear incêndios não é protestar, é ilegalidade pura e simples. E quem pratica esses atos deve ser processado”.

Assim, se há poucos indícios de que os americanos estejam se voltando contra Biden em resposta à turbulência, é em grande parte porque Biden vem sendo muito mais inteligente do que muitos de seus colegas, ao evitar cair na armadilha de Trump. Diferentemente dos jovens e dos que vivem online, ele não aderiu à lição absurda de que criticar tumultos e depredações significa trair o movimento por justiça racial.

Longe de ser fonte de fraqueza, portanto, o fato de Biden ter afiado seus instintos políticos ao longo de muitas décadas é uma fonte de força eleitoral. Se ele conseguir tornar-se o 46º presidente dos Estados Unidos, não será apesar de sua falha em compreender o que muitos jornalistas e políticos acreditam ser o espírito do momento –será porque possui o bom-senso político para rejeitá-lo. (Tradução de Clara Allain)

*Yascha Mounk cientista social é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de "O Povo contra a Democracia".


Eliane Cantanhêde: E se Joe Biden vencer?

Na ONU, Bolsonaro vai fazer dobradinha com Trump e listar os ‘sucessos’ do Brasil

O que pretende o presidente Jair Bolsonaro ao abrir, na próxima terça-feira, por videoconferência, a Assembleia-Geral da ONU? Defender os interesses nacionais, ou fazer o jogo dos Estados Unidos? Seguir a regra internacional de não ingerência em assuntos políticos de outros países, ou reforçar nas entrelinhas a campanha à reeleição de Donald Trump? Badalar o Brasil e seu enorme potencial, ou o seu governo e ele próprio?

Essas perguntas podem parecer sem sentido, pois os presidentes de todas as democracias usam os palcos internacionais para defender os interesses dos seus países. Mas tudo é peculiar com Bolsonaro, inclusive na política externa. Para piorar as coisas – e as expectativas – Trump falará logo depois do “amigo” brasileiro. Ora, ora, se não vai pintar uma dobradinha entre os dois, a um mês e meio da eleição americana…

O tema da assembleia-geral deste ano é multilateralismo, o que ajuda o pas-de-deux, com Trump e Bolsonaro metendo o sarrafo em organizações internacionais fundamentais para reduzir a desigualdade, ainda mais aguda na pandemia, entre regiões, entre países e nos próprios países. Ambos tendem a criticar a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e, por que não?, a própria ONU e seus organismos de direitos humanos e meio ambiente.

Se é para apostar, o presidente também vai entrar em questões internas, para dizer ao mundo, via ONU, que o Brasil é um sucesso no combate à pandemia, no controle das queimadas e na recuperação econômica. A covid-19 já praticamente acabou, ok? E é mentira o que os brasileiros, os EUA, a Europa e o planeta sabem e os satélites confirmam: que as queimadas cresceram mês a mês na Amazônia e estão dizimando a fauna do Pantanal.

O mundo poderá, assim, assistir ao vivo e em cores a aliança entre Bolsonaro e Trump, inclusive contra a realidade. O último lance foi o Planalto ceder à Casa Branca e manter por mais três meses a isenção de tarifas para o etanol americano, prejudicando os produtores brasileiros, mas ajudando o apoio dos americanos a Trump em 3 de novembro. Indiretamente, sem saber ou querer, o setor de etanol do Brasil está pagando um preço para reeleger o republicano.

E a lista de favores de Bolsonaro a Trump, contra o Brasil, não para aí. Essa decisão, contrária aos interesses nacionais e ao Ministério da Agricultura, não foi pragmática, foi ideológica, e não é nova nem única. O Brasil já tinha aceitado também uma cota de 750 mil toneladas de trigo americano sem Tarifa Externa Comum (TEC) do Mercosul.

Mais: o ministro Paulo Guedes havia lançado o brasileiro Rodrigo Xavier para disputar a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), mas foi surpreendido duplamente: quando Trump anunciou candidato próprio, seu assessor Mauricio Claver-Carone, e quando o Planalto e o Itamaraty passaram a trabalhar pela candidatura americana e contra o adiamento da decisão para depois da eleição à Casa Branca.

Além de ser mais uma derrota de Guedes, o que é só detalhe, essa manobra tem potencial explosivo. Rompe a tradição de que os EUA não entram no rodízio para a vaga, promove um assessor de Trump sem saber se ele fica ou não na Casa Branca. E o grande temor é de que os EUA, com ajuda do Brasil, usem o BID como instrumento de pressão para jogar os países da América Latina contra a China.

E o que dizer de Bolsonaro seguindo Trump, passo a passo, na pandemia? É uma “gripezinha”, não precisa máscara, não ao isolamento social, está “no fim” (quando nem tinha chegado à metade), a culpa é dos governadores e a cloroquina é a salvação da lavoura. Tudo errado, tudo copiado, e deixa não uma interrogação, mas um grito no ar: e se Joe Biden vencer.


Oliver Stuenkel: Vitória de Biden nos EUA deixaria Brasil isolado no Ocidente

Pragmatismo do candidato democrata não seria suficiente para evitar uma ruptura na relação entre Washington e Brasília

Com menos de cinquenta dias até o pleito presidencial nos Estados Unidos, fica cada vez mais evidente que a reeleição do presidente Trump está em perigo. A reviravolta de 2016, quando Trump superou Hillary Clinton de última hora, sugere que é preciso ter cautela, mas a vantagem de Biden na maioria dos estados decisivos indica que o cenário mais provável hoje é uma vitória do candidato democrata. O Brasil, cujo presidente apostou todas as suas fichas na aproximação com Trump, seria um dos países mais afetados pela vitória de Biden. A parceria entre Bolsonaro e Trump pode não ter gerado frutos tangíveis para o Brasil, mas, ainda assim, o capitão perderia o líder que norteou a atuação externa do Brasil de Bolsonaro.

Vários especialistas acreditam que uma vitória de Joe Biden não necessariamente causaria uma ruptura nas relações entre os Estados Unidos e o Brasil. Roberto Simon, colunista da Folha de S. Paulo, recentemente escreveu que “um antagonismo profundo parece improvável”, afirmando que Biden seria “um pragmático convencido da importância da relação com o Brasil.” Não há dúvida de que o democrata teria pouco interesse em isolar o Brasil e empurrá-lo para os braços da China ― afinal, espera-se que Biden mantenha a atual estratégia de Trump em relação ao país asiático.

Porém, a avaliação dos otimistas tacitamente presume uma forte dose de pragmatismo do lado de Bolsonaro, e pouco na sua atuação externa até hoje sugere que tenha interesse ou capacidade para tal. O caso da derrota de Maurício Macri na Argentina no fim de 2019 serve como exemplo preocupante. A maioria dos analistas esperava que Bolsonaro adotasse uma postura pragmática quando ficou claro que Alberto Fernández, aliado de Cristina Kirchner, grande inimiga do bolsonarismo, se tornaria presidente. Deu-se o oposto. Bolsonaro disse que “bandidos de esquerda” estavam de volta ao poder em Buenos Aires e alertou que o Rio Grande do Sul teria que se preparar para a chegada de refugiados argentinos. Até hoje, Bolsonaro nunca falou com Alberto Fernández. A relação bilateral entre os dois maiores países da América do Sul está na sua pior crise desde os anos 1980.

O exemplo da relação bilateral com a China tampouco inspira otimismo. Muitos esperavam que Bolsonaro abraçaria o pragmatismo depois de ter atacado a China durante a campanha presidencial. Uma vez eleito, porém, pouco mudou. Enquanto o vice-presidente Mourão atuou como bombeiro em várias ocasiões e apagou incêndios, Eduardo Bolsonaro e o então Ministro de Educação, Abraham Weintraub, voltaram a atacar o Governo chinês neste ano, levando a um bate-boca público inédito, envolvendo o cônsul-geral chinês no Rio de Janeiro. A relação do Brasil com a China hoje está marcada pela desconfiança, longe daquilo que era poucos anos atrás.

No caso americano, portanto, não podemos ter a certeza de que o Governo Bolsonaro atuará de maneira diferente ― afinal, para Bolsonaro, a política externa é uma ferramenta chave para animar a base mais radical, e é utilizada para que o presidente possa se projetar como protetor do Brasil contra as numerosas ameaças internacionais. Mesmo com Biden liderando com folga, Eduardo Bolsonaro decidiu compartilhar, nas redes sociais, um vídeo pró-Trump, que levou o presidente da Comissão de Relações Exteriores do Congresso Americano, controlado pelo Partido Democrata, a soltar uma nota de protesto.

Como o brasilianista americano Brian Winter apontou em um debate recente, para manter uma relação bilateral construtiva sob Bolsonaro e Biden, será preciso manter o presidente brasileiro longe do debate público americano. À primeira vista, parece viável ― afinal, o Brasil não é e nunca foi uma prioridade da política externa americana. Porém, três fatores sugerem que o plano de manter Bolsonaro longe dos holofotes nos EUA pode fracassar.

Em primeiro lugar, para pensar sobre a reação de Bolsonaro a uma possível vitória de Biden, é preciso lembrar que Trump dificilmente aceitaria o resultado ― afinal, mesmo em 2016, quando ganhou, insistiu, sem apresentar nenhuma evidência, que milhares de “imigrantes ilegais” teriam votado nos democratas. Agora, diz frequentemente que as eleições de 2020 serão as “mais corruptas da história”, outra vez sem apresentar nenhuma evidência para tal afirmação. Devido ao elevado número de eleitores que votarão por correio, serão dias ou semanas até que se finalize a contagem dos votos. Uma pesquisa recente da NBC News / Wall Street Journal mostrou que quase metade dos apoiadores de Biden planeja votar pelo correio, em comparação com apenas 10% dos apoiadores de Trump. Esse cenário aumenta a probabilidade de que Trump apareça como favorito nas primeiras pesquisas de boca de urna, uma vez que muitos democratas já terão votado. Não requer muita criatividade para imaginar que Trump poderia se aproveitar dessa situação para declarar vitória antes de a contagem dos votos enviados por correio começar.

Durante semanas ou meses de incerteza, em que Trump se recusasse a ceder e frequentemente apresentasse supostas evidências por fraudes, como reagiria Bolsonaro e sua família? Para um anti-globalista pró-Trump, como Olavo de Carvalho ou Ernesto Araújo, a teoria da conspiração que globalistas, comunistas, Biden, Maduro, o PT, George Soros e ateus e chineses se uniram para roubar a eleição de Trump poderia ser irresistível. Se Bolsonaro ou seus familiares optarem por defender publicamente Trump durante o impasse, haverá pouco espaço para pragmatismo quando Biden se tornar presidente.

Em segundo, o desmatamento e o aquecimento global tornaram-se, há tempos, uma preocupação não apenas do mainstream político no Ocidente, mas também são vistos, hoje, como uma ameaça de segurança por Forças Armadas ao redor do mundo. Presumindo-se que Bolsonaro continuará sua postura ambiental atual, seria ingênuo acreditar que Biden conseguiria ficar calado diante do tema ― e a crise diplomática causada pelos incêndios de 2019 nos dá pistas sobre como Bolsonaro responde a críticas internacionais.

Por fim, seria um erro acreditar que o trumpismo como movimento acabaria com a derrota de Trump. Mesmo fora da Casa Branca, Trump estará no controle do Partido Republicano e tentará emplacar sua filha Ivanka como candidata a presidente em 2024. Steve Bannon e outros estrategistas buscarão se reagrupar para atacar nas eleições parlamentares já em 2022. É evidente que Eduardo Bolsonaro manteria contato com redes de extrema-direita nos EUA. Defender uma abordagem pragmática em tais circunstâncias seria um desafio enorme para Biden.

Se a política brasileira dos últimos dois anos nos ensinou alguma coisa é que nunca podemos subestimar o presidente da República. Seria uma excelente notícia se ele conseguisse adotar uma postura pragmática caso, de fato, Biden saia vitorioso. Porém, diante do histórico da política externa bolsonarista até agora, é preciso se preparar para uma crise na relação com os EUA ― e o crescente isolamento do Brasil no Ocidente.


Dorrit Harazim: Trump coroado

O país real ficou de fora do seu discurso e do Jardim da Casa Branca

Leonard Cohen fez bem em morrer na véspera da eleição de Donald Trump em 2016. Deixou um vasto tesouro feito de palavras e música, entre elas a sublime “Aleluia”, canção-reflexão sobre amor e perda, espiritualidade e empatia. Muito da força desse hino à humanidade está no que ele deixa em aberto para interpretações múltiplas do que é ser, do que é viver. Difícil imaginar que Trump tenha sido fã do compositor canadense. Mais difícil ainda cogitar que Cohen algum dia se resignaria ao triunfo trumpista. Daí a vilania da rasteira post-mortem dada no artista por ocasião do festão de quinta-feira na Casa Branca: “Aleluia” foi entoada duas vezes, sem autorização dos herdeiros, na coroação do presidente-candidato à reeleição em novembro próximo. Nada transcendental, apenas um detalhe da grosseria em tudo o que leva a logomarca Trump.

Na cerimônia de encerramento da Convenção Republicana faltou apenas rebatizar o partido para Trump Party. De resto —da apropriação da Casa Branca como imobiliário do ocupante aos fogos de artifício proclamando “Trump 2020” sobre o Monumento a Washington —, o evento todo foi de adulação personalista. Nos jardins da “casa do povo americano” haviam sido plantadas 1.500 cadeiras para familiares e servidores públicos, não por servirem ao Estado, mas por serem servos de Trump. E, ao final de quatro dias de elegias, coube ao entronizado apresentar a sua versão fantasia de si mesmo.

Foi um discurso de 70 minutos que arrebatou a plateia. Mesclando fatos e ficção, o presidente proclamou-se predestinado guardião da Constituição e acenou com um futuro de grandeza nacional. Sobretudo, Trump incitou medo, recurso de eficácia comprovada em tantas eleições mundo afora. Richard Nixon disse o essencial em 1968 ao conquistar a Casa Branca: “As pessoas reagem a medo, não a amor. Ninguém aprende essas coisas em aula de catecismo, mas a verdade é essa.”

Na semana anterior, a Convenção Democrata também procurara definir Donald Trump como uma ameaça nacional — mas à democracia. O partido do presidente optou por retratar o país como uma presa da violência urbana. Uma escumalha de foras da lei e da ordem estaria a rondar os subúrbios brancos, governantes democratas seriam incapazes de conter o caos urbano, a China acabará com a bonança americana e, resumiu Trump, “ninguém mais estará em segurança nos Estados Unidos de Joe Biden”.

O presidente referiu-se ao adversário Biden 41 vezes, ora como incompetente desvertebrado — “está há 47 anos no Congresso e nunca fez nada” —, ora como “cavalo de Troia” a serviço da extrema-esquerda socialista.

Mas a estocada de Trump mais letal contra o adversário, e talvez a mais temida pela campanha democrata, ainda está por vir. Trata-se da reiterada insinuação do presidente de que Joe Biden, aos 77 anos, estaria com a acuidade cognitiva comprometida, portanto sem condições de liderar a nação.

Dias atrás Trump chegou a sugerir que os dois candidatos se submetessem a testes toxicológicos antes do primeiro debate presidencial, marcado para 29 de setembro, com divulgação dos remédios que cada um toma. Alegou ter observado que Biden apresentou-se apagado e confuso nos dez debates democratas coletivos, e que apenas no último, contra Bernie Sanders, apresentara vigor cerebral. O repórter do ultraconservador “Washington Examiner” quis saber se Trump estava sugerindo testes como os que lutadores fazem antes de subir no ringue.

“Sim”, respondeu o presidente, “debate é como uma luta entre gladiadores. Só que no debate você usa o cérebro e a boca. E também seu corpo. Quero debater em pé, não sentado como quer a comissão organizadora.”

A esse contexto que, por si, já parecia insólito, veio se juntar, também esta semana, um inesperado conselho público da presidente da Câmara, a democrata Nancy Pelosi, para Biden: recusar-se a debater com Trump no formato habitual. A falta de civilidade e a notória enxurrada de afirmações falsas do presidente tornariam o debate inútil, argumentou Pelosi. Por ora, Joe Biden descartou a sugestão. Ainda bem.

A tática do medo adotada por Trump contém um risco evidente — alardear para o caos num país que está sob seu comando há três anos e meio. O papel de presidente como espectador, não responsável pelas desgraças nacionais, só existe no planeta Trump, porque o país real ficou de fora do seu discurso e do Jardim da Casa Branca. Mas esse país real existe — ele tem 180 mil mortos por Covid, é formado por uma sociedade dilacerada pelo racismo, pela violência policial, esgotamento e desgoverno. É esse o país que vai votar. Ou deixar Donald J. Trump se reeleger. Rest in Peace, Leonard Cohen.


Situação da Amazônia pode contaminar relação entre Brasil e EUA, diz Rubens Barbosa

Em artigo publicado na revista Política Democrática Online de agosto, embaixador analisa reflexos de possível eleição de Joe Biden

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Diante de uma provável vitória de Joe Biden nas eleições dos Estados Unidos, o presidente Jair Bolsonaro está seguindo o conselho de John Bolton, ex-secretário de Segurança Nacional de Trump, que recomendou ao Brasil fazer pontes com o candidato democrata. “O desafio geopolítico talvez seja o dilema mais sério para o governo brasileiro, caso Trump seja derrotado”, analisa o presidente do Irice (Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior), o embaixador Rubens Barbosa, em artigo que produziu para a revista Política Democrática Online de agosto.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de agosto!

A revista é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. Todas as edições podem ser acessadas, gratuitamente, no site da instituição. De acordo com Barbosa, “o tema da Amazônia, em vista da prioridade ambiental democrata, se sair do âmbito da burocracia e ganhar relevância na opinião pública, poderá contaminar a relação bilateral e afetar o financiamento e infraestrutura por parte de instituições públicas e privadas internacionais”.

No artigo publicado na revista Política Democrática Online, o embaixador diz que o Brasil vai ter de decidir se fará uma opção, evitada pela maioria dos países europeus e asiáticos, por um dos lados ou se preferirá permanecer equidistante nessa disputa.

Barbosa também questiona: “Eventual oposição à tecnologia chinesa no 5G e apoio à proposta dos EUA na OMC (Organização Mundial do Comércio) sobre a participação apenas de países de economia de mercado – o que excluiria a China – indicariam que o Brasil teria escolhido seu lado. Os EUA convencerão o Brasil a ficar contra a China?”.

De acordo com o presidente do Irice, levando em conta que a disputa entre as duas potências está apenas começando e durará por muitas décadas, manter-se equidistante parece ser a melhor atitude na defesa do interesse nacional.

O alinhamento com os EUA, segundo Barbosa, nem sempre explicitado nas relações bilaterais, torna-se automático quando se trata de votações de resoluções sobre costumes, mulheres, direitos humanos, saúde e sobre o Oriente Médio nos organismos multilaterais, como a ONU (Organização das Nações Unidas), OMS (Organização Mundial da Saúde) e OMC.

“Em muitos casos, o Brasil fica isolado com EUA e Israel e, na questão de costumes, apenas com países conservadores (Arábia Saudita, Líbia, Congo, Afeganistão)”, escreve o autor. “O tema da Amazônia, em vista da prioridade ambiental democrata, se sair do âmbito da burocracia e ganhar relevância na opinião pública, poderá contaminar a relação bilateral e afetar o financiamento e infraestrutura por parte de instituições públicas e privadas internacionais.

Leia também:

‘Brasil precisa voltar a crescer, criar empregos e gerar renda’, diz Benito Salomão

‘País parece dominado pela boçalidade’, afirma Martin Cezar Feijó

Moro e Lava Jato viraram obstáculos à reeleição de Bolsonaro, diz Andrei Meireles

‘Humberto Mauro é o mais nacionalista de todos os cineastas’, diz Henrique Brandão

Cenário brasileiro na economia para 2021 é ‘assustador’, diz José Luiz Oreiro

‘Entramos para etapa do fingimento no governo Bolsonaro’, analisa Paulo Baía

Como as trilhas mudaram a percepção sobre filmes? Lilian Lustosa explica

‘Programa de ‘destruição’ pauta governo Bolsonaro’, afirma Alberto Aggio

Covid-19 destrói vidas e impõe ameaças à cultura indígena, mostra reportagem

‘Congresso tem se omitido na definição do papel das Forças Armadas’, diz Raul Jungmann

‘Falta tudo à educação brasileira’, diz Arnaldo Niskier à Política Democrática Online

Oposições devem impulsionar convergência, diz revista Política Democrática Online

Gargalos da educação e covid-19 entre indígenas são destaques da Política Democrática Online

Clique aqui e veja todas as edições da revista Política Democrática Online


Cristina Serra: O racismo e a eleição nos EUA

Maior desafio de Biden é tirar de casa o eleitor que está cansado de tudo

O entranhado racismo da sociedade norte-americana tem tido grande destaque na campanha eleitoral. A figura de George Floyd, assassinado em maio por um policial branco, pairou sobre a convenção democrata. A escolha da vice de Joe Biden, Kamala Harris, já fora um sinal do impacto do movimento Black Lives Matter.

Esse não é um tema em que o atual presidente, Donald Trump, fique confortável. Seu histórico fala por si. E é aí que as coisas se tornam um pouco mais complexas. Dias atrás, vieram a público as imagens de outro homem negro, Jacob Blake, alvejado por um policial branco com vários tiros nas costas.

Esse inconcebível caso de brutalidade policial contra negros desencadeou nova onda de protestos. Alguns terminaram em saques e incêndios. Nesses primeiros dias de convenção republicana, Trump e seus apoiadores têm tentado mostrar os democratas como "extremistas", "socialistas", "radicais de esquerda", que vão "roubar" a eleição e "tirar" as armas dos cidadãos. Particularmente chocante foi a participação, na convenção, de um casal branco que ficou famoso por apontar armas para manifestantes pacíficos, que pediam justiça para Floyd.

O tom da convenção republicana tem sido acentuar clivagens na sociedade norte-americana e açular o ódio e o medo. Isso vai afastar ou atrair eleitores de centro? Uma coisa parece certa: Trump tem conseguido manter sua base coesa.

Já os democratas formaram uma frente que vai da esquerda do partido até republicanos insatisfeitos com o presidente. Não é pouca coisa. Mas não garante a vitória. No sistema de votação dos Estados Unidos, nem sempre quem ganha no voto popular leva no colégio eleitoral, esta, sim, a eleição decisiva. Hillary Clinton que o diga.

Nos EUA, o voto não é obrigatório. Por isso, mesmo à frente nas pesquisas, talvez o maior desafio de Joe Biden seja tirar de casa o eleitor que está cansado de tudo: da pandemia, do desemprego e da política.


Dorrit Harazim: Faltam 72 dias

Obama desvestiu-se da sua oratória poética para comunicar, em tom de urgência, que a nação corre perigo

Feliz do país que, como os Estados Unidos, tem no seu acervo de instituições democráticas algo tão peculiar como sua confraria de ex-presidentes. O seleto clube nunca conseguiu ter mais de seis membros, uma vez que ex-presidentes também morrem. Mas, desde que foi criado formalmente por Harry Truman, em meados do século 20, com estatuto e direito à sede própria perto da Casa Branca, os ex servem de esteio valiosíssimo para quem assume a Presidência. Os relacionamentos entre eles e com o titular na Casa Branca se forjam com o tempo. São relacionamentos por vezes surpreendentes, de afeto tardio, outras vezes hostis ou cheios de reservas, mas sempre respeitosos. Todos do clube passaram pela mesma experiência, conheceram as falácias do poder, acumularam cicatrizes no comando da nação. E todos, quando eleitos, recorreram ao clube em algum momento de seus mandatos. Menos Donald Trump, que não confia em ninguém.

Em outubro de 1981, diante da notícia-choque do assassinato do líder egípcio Anuar Sadat em atentado no Cairo, Ronald Reagan convocou três antecessores para representá-lo nos funerais de Estado: Gerald Ford, Richard Nixon e Jimmy Carter. A longa viagem tinha tudo para dar errado: Ford nunca se afinara com o encrenqueiro Carter, e este jamais escondera o desapreço por Nixon. Os três haviam se tornado ex-presidentes ou em desgraça, ou decepcionados, ou trucidados nas urnas. As questões de protocolo no voo foram espinhosas até para definir quem subiria primeiro no Air Force One. Mas ao final o trio já se tratava por Dick, Jimmy e Jerry. A partir dali, Ford e Carter estabeleceram uma parceria tão longeva que decidiram firmar um pacto — quem sobrevivesse ao outro faria o tributo final no funeral do morto. E assim foi.

Cabe também lembrar a tradicional “carta ao sucessor” deixada na mesa de carvalho do Salão Oval por todos os presidentes no derradeiro dia de poder. “Quando você ler esta carta você será Nosso Presidente… Torço por você”, escreveu o republicano George H.W. Bush em bilhete endereçado ao democrata Bill Clinton. E assim foi — Bush sênior sempre torceu pelo sucessor. Também Barack Obama, pouco após a posse em 2009, tratou de convidar para um almoço íntimo os quatro membros do clube dos ex da época: Bush pai e filho, Carter e Clinton. “Conseguimos deixá-lo à vontade falando de nossas próprias inseguranças, trocando lembranças”, contou Carter em livro. “Todos que ocuparam o posto entendem que o cargo transcende o indivíduo.”

Todos, menos Donald Trump.

Difícil imaginar o teor de uma hipotética “carta ao sucessor” redigida de próprio punho por Trump. Talvez um tuíte? Ou apenas sua assinatura garrafal? Ou nem isso? A tentativa de adiar a qualquer custo a passagem de bastão poderia levá-lo a desviar da caminhada democrática iniciada há 244 anos.

Foi pensando nisso que Barack Obama falou à nação esta semana. É útil ouvir e ler o discurso na íntegra para apreciar a escolha de cada uma de suas 2.298 palavras. O tom de voz sombrio tem peso equivalente ao conteúdo. Nada no texto é acidental ou retórico. Obama desvestiu-se de sua conhecida oratória poética para comunicar, em tom de urgência, que a nação americana corre perigo. A palavra “democracia” é repetida 18 vezes, e o alerta vem sem enfeites: “Este governo já demonstrou que, para vencer, derrubará nossa democracia se achar necessário”.

Pela primeira vez na história dos EUA, um ex-presidente afirma que outro presidente, no exercício do cargo, ameaça a democracia, é moralmente falido e inteiramente despreparado para liderar o país.

A fala de Obama fez parte da programação de quatro dias que oficializou a chapa Joe Biden/Kamala Harris no confronto com Trump. Mas ficará registrada como um dos discursos mais relevantes de toda a carreira pública do ex-presidente. Como a pandemia condenara a Convenção Democrata a um formato 100% virtual — alguns dos recursos utilizados deram muito certo, por sinal —, Obama escolheu o Museu da Revolução Americana na Filadélfia para lhe servir de pano de fundo silencioso, carregado de história. Foi mais decisivo do que Hillary e Bill Clinton somados.

Caberá ao amplo leque de vozes que acredita em “We, the People…” tentar empurrar o candidato democrata para a vitória perseguida por Joe Biden há 33 anos. A depender do seu discurso de aceitação, sozinho ele não conseguirá turbinar a nação “para além da escuridão atual”. Foi designado pela temperança de agregador e pela imagem de decência exigida no momento. Tomara que seja o suficiente. Cabe sempre lembrar que Donald Trump não é uma aberração solitária, nem a causa do estado de desagregação cívica do país. O ocupante da Casa Branca é apenas o sintoma mais berrante e perigoso da corrente obscurantista que o colocou no poder. Tem tudo para ser, também, um dos piores ex-presidentes da história.


Míriam Leitão: Risco democrático é o ponto central

“Esta eleição é sobre preservar a democracia”, disse o senador americano Bernie Sanders na convenção do Partido Democrata. A mensagem foi passada até nos cenários escolhidos. O ex-presidente Barack Obama falou diretamente do icônico “National Constitution Certer”, museu da Constituição, na Filadélfia. O candidato Joe Biden confirmou no seu discurso que essa é a luta principal. No Brasil, o Supremo deu o mesmo recado. Proibiu o Ministério da Justiça de fazer dossiê contra funcionários que não apoiam o governo. “É incompatível com a democracia”, segundo o ministro Luiz Roberto Barroso. A Corte condenou a espionagem de adversários feita pelo Ministério da Justiça, confirmando, por nove a um, o voto claro da ministra Cármen Lúcia.

A democracia, que parecia garantida, passou a ser ameaçada por governantes sem valores democráticos e com desprezo pelas instituições. O importante no dossiê contra policiais antifascistas e pessoas notáveis, como os professores Paulo Sérgio Pinheiro e Luiz Eduardo Soares, é que ele não pode ser feito. É inaceitável. Simples assim. Alguns ministros ressaltaram que o relatório tinha péssima qualidade como documento de inteligência. Isso é assunto lateral. O relevante é a atitude do Ministério da Justiça, de usar a máquina para investigar servidores que não concordam com o governo.

O ministro André Mendonça é o maior derrotado, mesmo tendo sido poupado, e até defendido pelo presidente Dias Toffoli. O país viu seu contorcionismo. A ministra relatora quis saber: existe ou não existe o dossiê? Ele tentou escorregar, mas a realidade se impôs. O pior momento do ministro da Justiça foi alegar questão de segurança nacional para negar ao STF o acesso ao documento. Felizmente, a ministra Cármen não se deixou enganar pela mentira embrulhada na bandeira. Exigiu conhecer o teor e fundamentou seu voto: “O Estado não pode ser infrator, menos ainda em afronta a direitos fundamentais que é sua função garantir e proteger.”

A existência dessa atitude infratora do governo, de montar um dossiê identificando servidores contrários ao fascismo, foi revelada pelo jornalista Rubens Valente no UOL. O país não caiu no erro de deixar passar para ver como é que fica. A Rede Sustentabilidade foi ao Supremo. O STF estabeleceu que o Ministério da Justiça não faça mais esse tipo de investigação, porque isso ameaça a democracia e é “desvio de finalidade”.

Na discussão, duas coisas ficaram claras: mesmo que seja nomeado ministro do Supremo, André Mendonça não merece a cadeira. Ele se comportou mal com suas versões conflitantes, mas o pior foi não entender a função constitucional do Supremo. Outro ponto a ficar explícito foi a constrangedora submissão do procurador-geral da República ao executivo. Colocando-se, na prática, como assistente do advogado-geral da União, Augusto Aras traiu o papel que a Constituição entregou ao chefe do Ministério Público.

Nos Estados Unidos, a convenção democrata, toda virtual, trouxe um recado real. Obama disse que Donald Trump representa a maior ameaça às instituições americanas. “É isso que está em jogo neste momento, a nossa democracia.” E por fim avisou sobre a dureza da luta dos próximos 70 dias: “Essa administração já mostrou que destroçará a nossa democracia, se é isso que precisa para ganhar.”

O candidato democrata Joe Biden confirmou a mensagem de toda a convenção. Falou dos tempos sombrios que Trump representa. “O caráter nacional está em disputa nas urnas. A decência, a ciência, a democracia.” Falou em “salvar nossa democracia”. Em tempos de descrença, alguém pode perguntar para que ela serve afinal? Para ter líderes que tragam uma palavra de conforto quando o país atravessa período de sofrimento. “O melhor caminho para superar a dor, a perda e a desolação é encontrar um propósito”, disse o candidato democrata, que em sua vida pessoal viveu o que diz. E o propósito final tem que ser sempre ampliar a inclusão de todos os grupos da sociedade. A convenção democrata trouxe de volta à cena a nova demografia da América, colorida, diversa, multicultural, ecumênica, que está explícita na exuberante diversidade de Kamala Harris, negra, filha de imigrantes — mãe indiana e pai jamaicano — e que estará na chapa que enfrentará Donald Trump.


Dorrit Harazim: O fator Kamala

Biden precisa dela para seu projeto de arrancar o país da era Trump

Que ninguém se engane: a indicação de Kamala Harris como vice do candidato democrata Joe Biden, que em novembro próximo disputa a Presidência com Donald Trump, é coisa grande. Não por ter sido surpresa — Harris sempre esteve entre as primeiras da lista de 11 finalistas sabatinadas para o cargo. É coisa grande por abrir caminho, algum dia e com séculos de atraso, a um autorretrato mais verdadeiro da sociedade americana em acelerada mutação.

Para Donald Trump e sua América nostálgica dos anos 1950, a indicação da senadora multirracial é desconcertante. Por um lado, fica difícil acenar com o fantasma do crime e caos urbano dominarem o país em caso de vitória democrata. O currículo de Harris, quando procuradora-geral da Califórnia, foi notoriamente durão — demais, até, para muitos jovens negros da época. Trump também não irá muito longe com seu bordão apocalíptico de uma “América comunista”, dado que Harris nunca foi da ala mais radical/progressista do Partido Democrata. Por fim, acusar a adversária de chapa, abertamente, de ser mulher, negra e de ascendência asiática, pode ser arriscado demais. Trump até tentou, em entrevista à rádio Fox Sports. Sugeriu que “algumas pessoas” diriam que “homens” poderão se sentir “insultados” com a indicação de uma mulher — tudo em fraseado indireto e no condicional, não atribuível a ele.

Kamala, como a candidata a vice prefere ser identificada em campanha, encarna tudo o que desestabiliza a escassa autoconfiança do ocupante da Casa Branca. Ela sabe quem é e domina o poder que deriva desse autoconhecimento. É debatedora afiada, capaz de desconcertar pesos pesados como o ex-ministro da Justiça Jeff Sessions e o ministro do Supremo Brett Kavanaugh, em sabatinas no Congresso. Foi impiedosa com o próprio Biden no primeiríssimo debate entre a plêiade de candidatos à indicação democrata, o que lhe valeu críticas de deslealdade partidária.

Ainda assim, Biden não a teme, precisa dela para seu projeto de arrancar o país da era Trump e servir de transição para tempos mais civilizados. Será presidente de um só mandato, se eleito e empossado aos 78 anos. Precisa de alguém capaz de substituí-lo desde o dia de sua posse.

Kamala Harris, de 55, é uma assombração para Mike Pence, o atual vice-presidente que mantém fidelidade ladina a Trump, pois pretende sair candidato solo em 2024. Seu debate televisivo com a adversária democrata tem tudo para ser tão faiscante quanto os dois confrontos agendados entre Trump e Biden. Sobretudo quando se sabe que 1 em cada 3 vice-presidentes da história dos Estados Unidos tornou-se chefe da nação, comparado a apenas 1 em cada 145 governadores ou 1 em cada 124 senadores.

Onipresente em defesa do chefe, Pence tem sido o contraponto perfeito para a destemperança errática do presidente. Monocromático no visual e monocórdio na fala, o máximo que Pence se permite é um ligeiro levantar de sobrancelha em sinal de lamento, nunca de rancor ou raiva. Divergiu publicamente de Trump uma só vez, às vésperas da eleição de 2016, quando veio à tona a famosa gravação chula, sexista e cafajeste do candidato. Na ocasião prevaleceu sua fidelidade à fé evangélica que norteia seu cotidiano — em 2002 ele afirmara nunca sentar-se à mesa para jantar com uma mulher que não fosse sua esposa, nem participar de eventos sem Kate em que bebidas alcoólicas seriam servidas. É esse personagem que eleitores americanos verão em confronto com uma adversária assertiva e incômoda em tudo.

Kamala tem dupla função. Uma, na atual campanha : bater em Trump sem receio de prejudicar o papel tiozão de Biden. Cabe-lhe apontar, através de dados e retórica, a incapacidade do presidente para liderar a nação, seja na guerra à pandemia seja na pacificação racial e social do país. Embora candidatos a vice tenham pouco impacto efetivo sobre a base eleitoral já constituída do presidenciável, talvez Kamala até consiga garantir o voto de mulheres negras em estados cruciais como Michigan e Pensilvânia, que tanta falta fez a Hillary Clinton em 2016.

Sua segunda função é mais duradoura e independe de vitória: apressar a urgente adequação do país a suas muitas gentes. Kamala Devi, filha de imigrantes , tem sangue negro e indiano, é casada há 6 anos com um advogado branco e judeu de Nova Jersey e tem duas enteadas adultas que a chamam de Mamala. Abriu caminho a fórceps, empurrada por pais que valorizavam educação, formação e atitude. Tem a cara, as cores e o vigor que a esclerosada máquina do Partido Democrata fingia ter, mas não abraçava de fato. Agora terá de ser na marra.

Kamala também tem a cara, cores e vigor que Donald Trump precisa deslegitimar a qualquer custo. O primeiro tiro indica o estado de alarme do 45º presidente dos EUA. Foi de um pódio da Casa Branca que Trump levantou a falsa hipótese de Kamala Harris não preencher os requisitos de cidadania americana para o posto. “Me falaram disso ainda hoje”, comentou meio en passant durante a coletiva de quinta feira. “Não tenho ideia se é isso mesmo …”, acrescentou com a habitual vileza de isentar-se de qualquer responsabilidade pelo que diz. Conseguiu, assim, colocar em roda uma falsa discussão sobre o que diz a 14ª Emenda de 1868, que concede cidadania americana a quem é nascido dentro de suas fronteiras territoriais — a jus solis que já ameaçara abolir por decreto. Pela Constituição dos EUA, são apenas dois os requisitos para se tornar presidente ou vice: ter nascido em solo americano e ter idade acima dos 35 anos. Kamala preenche ambos.

Outros tiros virão, mas as Kamalas já são muitas, e muitas mais virão. O que não muda é o medo que o presidente dos EUA tem de mulheres fortes e do poder que elas emanam.