João Doria

Igor Gielow: Doria faz ofensiva para unir PSDB, expulsar Aécio e receber parte do DEM

Com plano de pavimentar candidatura em 2022, tucano chama cúpula do partido para jantar

Preocupado com o racha no PSDB apresentado na eleição da Câmara dos Deputados, quando boa parte do partido apoiou o candidato de Jair Bolsonaro à presidência da Casa, o governador João Doria (SP) decidiu apresentar um ultimato à cúpula tucana.

Em jantar na noite desta segunda (8) no Palácio dos Bandeirantes, Doria irá colocar na mesa a proposta de expurgar o partido do grupo de Aécio Neves (MG) e de absorver dissidentes do DEM ligados ao ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

O deputado do PSDB mineiro é visto pelo entorno do governador como o motor do governismo latente no partido e principal obstáculo interno para a candidatura de Doria, hoje maior rival de Bolsonaro em cargo eletivo, à Presidência no ano que vem.

A proposta será servida de entrada no Bandeirantes, já que foi informada no convite aos comensais desta noite. Na prática, ela coloca o partido alinhado à tese da postulação de Doria em 2022, reforçando sua posição no momento em que até aqui aliado DEM rachou e assumiu ares neobolsonaristas.

A alternativa, pela lógica, seria a saída de Doria do PSDB. Mas seus aliados não consideram essa hipótese provável hoje.

A contrariedade com o mineiro é partilhada pela ala histórica do partido, a velha guarda liderada por Fernando Henrique Cardoso. O ex-presidente e outros integrantes do grupo, como o senador José Serra (SP) e o ex-senador Aloysio Nunes Ferreira (SP), foram convidados para o jantar.

Devem participar membros da cúpula tucana, como o presidente do partido, Bruno Araújo, e o líder do partido na Câmara, Rodrigo de Castro (MG), que é próximo de Aécio.

O plano de Doria havia sido delineado já na véspera da eleição no Congresso, ocorrida na segunda passada (1º), quando ficou clara a implosão do DEM.

O partido de Rodrigo Maia deixou naquele domingo (31) o apoio ao candidato dele à sua sucessão, Baleia Rossi (MDB), que também era o nome de Doria na disputa com Arthur Lira (PP-AL), o rei do centrão apoiado pelo Planalto.

A desistência do DEM, patrocinada pelo presidente da sigla, ACM Neto, quase levou o PSDB junto. Na noite de domingo, Bruno Araújo ligou para Doria e o informou que seria muito difícil segurar o partido no bloco de apoio a Baleia.

No começo da madrugada de segunda, os deputados Rodrigo de Castro, Carlos Sampaio (SP) e Eduardo Cury (SP) foram à casa de Lira anunciar que o partido deveria ficar independente —na prática, liberando os cerca de 15 ou 20 de 31 deputados que votariam de qualquer forma no líder do centrão.

Maia entrou em ação e contatou Aécio, visto como apoiador dos deputados. O mineiro argumentou que os deputados estavam votando porque a torneira de emendas parlamentares do Planalto havia secado para eles nos dois últimos anos, mas disse que trabalharia para o PSDB se manter nominalmente no bloco de Baleia.

Esse relato dá matizes à crise na segunda cedo, quando só transparecera que Doria e FHC haviam trabalhado para que o partido ficasse no bloco. Para seus interlocutores, foi uma prova de que Aécio não teria operado para Lira.

Mas, na visão dos aliados do governador paulista, o gesto de Aécio foi apenas um ato de respeito prestado a Maia na despedida do cargo.

No domingo (7), Doria recebeu o ex-presidente da Câmara e o seu vice-governador, Rodrigo Garcia, que também é do DEM. Ambos foram convidados para integrar o PSDB, algo que o tucano confirmou em entrevista coletiva nesta tarde de segunda.

"Ficaremos muito felizes se eles aceitarem", disse. "Fez bem o PSDB em convidar Rodrigo Maia para entrar no partido. Presidiu corretamente a Câmara e é bom quadro político. Tomara que aceite", escreveu FHC no Twitter no começo da noite.

No caso de Garcia, a possibilidade é bastante grande, já que o DEM deixou de ser um partido com o qual Doria conta para 2022.

O tucano tem um compromisso de deixar o cargo para que Garcia dispute a reeleição como governador. Apesar de estar no DEM/PFL desde 1994 e hoje comandar o partido no estado, sempre trabalhou com os tucanos.

De quebra, se ele estiver no PSDB, são tolhidas as eventuais pretensões de Geraldo Alckmin, com quem Doria almoçou recentemente, de voltar a disputar o Bandeirantes. A aliados, contudo, o ex-governador cita que considera quem estiver na cadeira e puder concorrer é o "candidato nato".

Garcia já foi sondado por Baleia para migrar para o MDB, mas esse movimento parece muito difícil. O partido já apoia o governo Doria e teve a vaga de vice da chapa vitoriosa de Bruno Covas (PSDB) na capital paulista ofertada pelo tucano em nome de um acerto em 2022.

ACM Neto ainda está tentando convencer Garcia a ficar no DEM. Ele marcou para esta terça (9) uma visita a ele e a Doria para discutir o assunto, mas as chances são baixas.

Já a realidade de Maia é algo diferente. Entrar no PSDB significaria dar o controle partido no Rio, seu estado, para o deputado. Mas ele colocou como condição para tal um processo que chamou de purificação da sigla.

Entre outros nomes que devem migrar para o PSDB está o de Luiz Henrique Mandetta, o ex-ministro da Saúde demitido por Bolsonaro devido a divergências no manejo da pandemia.

O embate entre Doria e Aécio, que quase foi eleito presidente no segundo turno em 2014 e caiu em desgraça após a divulgação do áudio em que pedia dinheiro para o empresário Joesley Batista, é antigo.

O governador considera o mineiro um fardo político incontornável em termos de imagem, além de rival na política interna da sigla.

O paulista buscou a expulsão do mineiro da sigla, mas foi derrotado na Executiva Nacional. Depois, viu o deputado quase emplacar um nome seu, Celso Sabino (PA), na liderança do partido na Câmara.

A força de Aécio na bancada, apesar de seu ostracismo público, é grande e transcende o PSDB. Mas ele sofreu reveses recentes: Sabino está com o pedido de expulsão da sigla em análise pela Comissão de Ética do partido.

Aí entra a confluência com a velha guarda do PSDB, tradicionalmente pouco afeita a Doria e que acalenta desde 2018 uma candidatura do apresentador Luciano Huck à Presidência.

Com o "embaixador" de Doria em Brasília Antonio Imbassahy de mediador, os dois grupos concordam que é preciso isolar Aécio e talvez mais seis deputados —preferencialmente os expulsando do PSDB.

O vácuo seria ocupado por nomes ligados a Maia e a Garcia egressos do DEM e que estão irritados com a condução de ACM Neto.

A guerra ficou escancarada em uma entrevista concedida por Maia ao jornal Valor Econômico nesta segunda, na qual disse que o ex-prefeito de Salvador entregou "a cabeça do partido para Bolsonaro".

O baiano retrucou nesta tarde, dizendo à Folha que o deputado "se encastelou no poder conquistado e, agora, demonstra surpreendente descontrole".

Doria namora o que seus aliados chamam de "DEM do bem", avessos à aproximação com o centrão e o Planalto.

Há resistências contra esse movimento na bancada federal. Um aliado de Aécio afirma que pelo metade do partido na Câmara não concorda com o que chama de "exibicionismo" do tucano paulista, ainda que reconheça seu peso relativo pela cadeira que ocupa e pelo protagonismo no combate à pandemia do novo coronavírus.

Esse deputado afirma, contudo, que prefere ver uma disputa interna no PSDB entre Doria e Eduardo Leite, o governador gaúcho que já foi especulado para tal missão pela velha guarda.

Com o racha instalado no partido, contudo, o tempo corre para que os tucanos se decidam. Na avaliação de seus aliados, a projeção nacional dada pelo patrocínio da vacinação contra a Covd-19 deu a Doria o carimbo que faltava para suas pretensões presidenciais.


RPD || Especial: Bolsonaro quer destruir política nacional de saúde mental para favorecer evangélicos

Em São Paulo, João Doria e Bruno Covas seguem na mesma linha do governo federal, mostra a reportagem especial da Revista Política Democrática Online de janeiro

Cleomar Almeida

Uma multidão de dependentes químicos ocupa parte da Alameda Dino Bueno, no Centro de São Paulo, na região conhecida pelo intenso consumo e tráfico de crack. Alguns improvisam tendas para se protegerem de sol e chuva e não interromperem a fumaça que exala do cachimbo, mesmo com a cracolândia cercada por tropas da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana e um número ínfimo de profissionais de saúde e assistência social.

A cena, que já é comum para quem vive na região, pode se espalhar para outras capitais diante do risco de retrocesso no socorro a dependentes químicos no país. O governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) planeja desmontar a Política Nacional de Saúde Mental do Sistema Único de Saúde (SUS), que ainda garante o mínimo desse tipo de atendimento a dependentes químicos e outras pessoas em diferentes situações de vulnerabilidade social, agravada pela pandemia do coronavírus.

Sem se identificar, a equipe de reportagem da revista Política Democrática Online transitou pela cracolândia de São Paulo e constatou a ausência do Estado para garantir atendimento adequado e resposta efetiva ao problema. Por um lado, essa omissão faz aumentar a reclamação de moradores contrários à aglomeração de dependentes químicos na região, que, por outro lado, ficam ainda mais suscetíveis ao tráfico e imersos na onda de desassistência à saúde.

A última pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) sobre a cracolândia mostrou que 50,3% dos frequentadores da região tinham algum nível de quadro psicótico, 48,4% já haviam praticado automutilação e 38,2%, tentado suicídio. Além disso, 63% da população local já havia contraído sífilis, a doença que mais se manifesta entre essas pessoas.

Compilados no Levantamento de Cenas de Uso de Capitais (Lecuca), os dados da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Unifesp foram extraídos de entrevistas com 240 pessoas que afirmaram consumir crack na cracolândia. Divulgada no ano passado, a pesquisa sobre a região é a mais recente realizada por uma universidade e exemplifica a necessidade de fortalecimento do atendimento em saúde mental do SUS.

Em São Paulo, apesar de se apresentarem como oposição ao bolsonarismo, o governador João Dória e o prefeito Bruno Covas, ambos do PSDB, estão totalmente alinhados com Bolsonaro no plano de desmonte da política de saúde pública mental. Defensores da internação, eles agem para favorecer comunidades terapêuticas, alvo de denúncias em todo o país e mantidas em sua maioria por igrejas, como forma de devolver favores dos evangélicos em apoio às suas eleições.

Na capital paulista, desde 2017, quando Dória assumiu a prefeitura, intensificou-se um processo de enfraquecimento do atendimento a dependentes químicos. Ele substituiu o programa Braços Abertos, da administração de Fernando Haddad (PT), que oferecia trabalho, moradia e outras formas de acolhimento como estímulo para que cada dependente químico pudesse reduzir o uso de drogas. No lugar, instituiu o Redenção, focado na internação e ligado a clínicas religiosas, além de instalar laboratórios de militarização na região, para aumentar as operações policiais. Covas mantém essa linha.

“O que se vê é o esvaziamento de qualquer política na cracolândia. A principal política atual da gestão Dória e Covas é bater nas pessoas que estão ali”, afirma Daniel Mello, ativista da Craco Resiste, movimento que existe desde o final de 2016, logo após Dória ser eleito para a prefeitura com a promessa de que iria acabar com a cracolândia. “As pessoas usam drogas para suprir outras necessidades. Quando tinha oferta de abrigo e emprego, a grande maioria mantinha o uso, mas sob controle”, diz.

No mês passado, o Ministério da Saúde apresentou a proposta de revogar cerca de 100 portarias editadas entre 1991 e 2014. Exposta em reunião com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e as Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), a medida pode atingir estratégias de cuidado das pessoas com problema psíquico baseadas nos direitos humanos e conquistadas com a reforma psiquiátrica, instituída pela Lei Federal 10.2016 de 2001. O cuidado em rede pode ser desmontado para favorecer a internação em hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas.

Na prática, a proposta tem o objetivo de rever a atual política de saúde mental, desarticulando a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que é baseada na humanização do tratamento e formada por estratégias e equipamentos. Entre eles estão os centros de atenção psicossocial (Caps) nos tipos I, II, álcool e outras drogas, álcool e outras drogas 24h (III) e infantil; leitos de atenção Integral em saúde mental em hospital geral; unidade de acolhimento transitório; serviço residencial terapêutico; consultório na rua e iniciativas de geração de renda.

O plano do governo federal é cortar mais verba do SUS, que em 2019 teve perda de R$20 bilhões, pois pretende revogar portarias que instituem procedimentos ambulatoriais e a revisão do financiamento dos Caps. Os centros de atenção psicossocial fortalecem vínculos dos usuários da saúde mental nos seus territórios, como alternativa à internação em hospitais psiquiátricos, os chamados manicômios.

No entanto, a proposta do Ministério da Saúde quer criar ambulatórios gerais de psiquiatria e unidades especializadas em emergências psiquiátricas. Pela atual Política de Saúde Mental do SUS, somente pessoas em situações mais graves são encaminhadas para internação, que deve ocorrer em hospitais gerais.

O risco de desmonte dessa política do SUS fez mais de 100 entidades e movimentos sociais de todo o Brasil criarem, no mês passado, a Frente Ampla em Defesa da Saúde Mental, da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial. “Tal mudança projeta mais dor em um contexto já trágico de pandemia por covid19: por que querem causar mais sofrimento mental às pessoas? Como fechar serviços de saúde em plena pandemia?”, questiona um trecho do manifesto.

Na avaliação das pesquisadoras Elizabeth Sousa Hernandes, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Política Social (Neppos), e Waleska Batista Fernandes, tutora da residência multiprofissional em saúde mental do adulto da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde (Fepecs), o risco é iminente. Segundo elas, “o Brasil não pode permitir um retrocesso em termos de política de saúde mental”.

“É fundamental que a comunidade acadêmica, os movimentos sociais e todo indivíduo ou instituição que se importe com direitos humanos levantem a voz para mudar o rumo dessa história. Com isso, ganhará quem deve ganhar: a sociedade, que é afetada pelo sofrimento mental de qualquer dos seus indivíduos e por todas as situações de destituição de direitos”, escrevem elas, em análise sobre o risco de desmonte.

Paulo Fluxos lamenta abandono de pessoas vulneráveis por parte das autoridades. Foto: Ailton de Freitas

Artista visual, ativista de movimentos sociais e morador da região da cracolândia, Paulo Fluxos disse que a situação dos dependentes químicos e outras pessoas em situação de vulnerabilidade no local piorou ainda mais durante a crise sanitária global provocada pelo coronavírus. “Já passei aqui oito meses, escutando, acompanhando como essa população de rua enfrentou a pandemia. Completamente abandonada”, diz ele. “Única coisa que a Prefeitura e o Estado de São Paulo ofereceram foi a polícia”, acrescenta.

A Defensoria Pública da União (DPU) e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) já solicitaram ao ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, uma série de informações sobre as medidas adotadas pela pasta, com o objetivo de alterar políticas públicas destinadas ao tratamento em saúde mental e de dependentes químicos no país. Ele ainda não respondeu.

Procurados pela reportagem, o Ministério da Saúde, o governo de São Paulo e a prefeitura da cidade não se pronunciaram. A Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas também não retornou ao pedido de resposta.


Governo desconsidera alertas sobre violação de direitos em comunidades terapêuticas

Para favorecer comunidades terapêuticas, o governo brasileiro tem agido na contramão de alertas feitos por instituições nacionais, como o Conselho Federal de Psicologia (CFP), o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e o Ministério Público Federal (MPF). Relatório de fiscalização chama atenção da sociedade para o risco de o país reviver o “holocausto brasileiro”.

Uma série de violação de direitos humanos em comunidades terapêuticas no país foi constatada em fiscalização dessas instituições e registradas no mais recente Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, divulgado em 2018. Entre os principais problemas identificados estão privação de liberdade, castigos, punições, indícios de tortura, trabalhos forçados e sem remuneração – conhecidos como laborterapia –, e violação à liberdade religiosa e à diversidade sexual.

Mesmo com os diversos alertas, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sancionou, em julho de 2019, a lei das comunidades terapêuticas, retirando recursos da saúde para colocá-los na assistência social, área em que elas estão classificadas. No entanto, prometem tratamento e, muitas vezes, “cura” para dependentes químicos, sem receber qualquer fiscalização da vigilância em saúde.

Palhaço da cracolândia, médico Flávio Falcone: ‘Redução de danos não tem fórmula’. Foto: Arquivo pessoal

O médico psiquiatra e artista Flávio Falcone, conhecido como o palhaço da cracolândia, critica a política proibicionista e punitivista em relação ao consumo de drogas, que, segundo ele, reforça a estratégia manicomial contra dependentes químicos. “As comunidades terapêuticas são os novos manicômios”, afirma.

Falcone, que já atuou em programas de atendimento e acolhimento a dependentes químicos em São Paulo, ressalta que, por lei, as comunidades terapêuticas são de assistência, mas, na prática, fazem tratamento. “É comum uma pessoa ter passado por 20 ou 25 internações em comunidades, mas continuam na cracolândia”, afirma.

Na avaliação do psiquiatra, o modelo de internação não tem êxito porque reforça o foco proibicionista e punitivista. “A oferta de tratamento é sempre na visão de abstinência e quem não a consegue é punido pela segurança pública, com repressão policial e violação de direitos humanos. Vejo isso acontecer cotidianamente na região”, lamenta.

De acordo com Falcone, a estratégia proibicionista e punitivista e o foco na abstinência também se sustentam na perversão do conceito de redução de danos, dizendo que é caminho para a abstinência, sendo que é um dos recursos disponíveis para tratamento das pessoas.

“A redução de danos é um conceito, não tem uma fórmula nem protocolo que vai dar certo para todas as pessoas. Precisa de projeto terapêutico singular entendendo que cada pessoa tem um processo”, explica o psiquiatra, ressaltando que esse conceito é uma das bases do tratamento da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que está em risco.


Jovem acende cachimbo de crack nos arredores da Praça Júlio Prestes, em São Paulo. Foto: Ailton de Freitas

Michel Temer iniciou processo de desmonte contrário à luta antimanicomial

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ameaça emplacar um desmonte da Política Nacional de Saúde Mental, em um esforço para cortar mais verbas da saúde e que começou antes de seu mandato, no governo Michel Temer (MDB). Pesquisadores analisaram os efeitos das primeiras mudanças que pretendiam vencer a luta antimanicomial no Brasil.

No trabalho intitulado Retrocesso da Reforma Psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019, os pesquisadores Nelson Cruz, Renata Gonçalves e Pedro Delgado constataram que o governo Temer iniciou o processo de desmonte.

Eles analisaram 14 documentos – portarias, resoluções, nota técnica e decreto – publicados entre outubro de 2016 e abril de 2019, que, afirmam, indicam “os primeiros efeitos das mudanças na rede de atenção psicossocial, como o incentivo à internação psiquiátrica e ao financiamento de comunidades terapêuticas”. Essas ações, ressaltam, são fundamentadas em abordagem proibicionista de questões sobre o uso de álcool e outras drogas e, ainda, confirmam “tendência de estagnação do ritmo de implantação de serviços de base comunitária”.

De 2003 a 2016, houve a implementação da Política Nacional de Saúde Mental, que rendeu ao país o reconhecimento da comunidade internacional. Nesse período, houve destinação de recursos para serviços de natureza extra-hospitalar, fechamento e descredenciamento significativo de leitos e hospitais psiquiátricos e publicação de portarias que visaram à expansão dos serviços e ações.

Na última década, também houve significativos avanços na construção da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), além da reestruturação da assistência psiquiátrica e atenção ao usuário de álcool e outras drogas.

Especialistas internacionais chegaram a reconhecer resultados práticos da política de saúde mental. Ela ficou conhecida, principalmente, por extinguir “depósitos de loucos e indesejáveis” e propor a inclusão das pessoas com doença mental na comunidade. Elas recebiam os cuidados adequados nos três níveis de atenção do SUS (básica, média e alta complexidade), por meio de equipes interdisciplinares que retiravam o foco da doença e do médico, priorizando a pessoa com doença mental e seu tratamento, sem a obrigatoriedade de exclusão da comunidade.


Hélio Schwartsman: O papelão do Instituto Butantan

A patacoada do instituto é um desserviço à ciência

O que a onda populista que varre o mundo ensina é que é possível sabotar o sistema sem violar formalmente nenhuma de suas regras. Hugo Chávez não cometeu crime quando reduziu limites às reeleições; Viktor Orbán seguiu os trâmites legais quando redesenhou o Judiciário húngaro para servi-lo.
O corolário disso é que, se o cidadão pode ter seu campo de ação limitado só pelas leis, figuras que desempenham papel-chave no sistema precisam cumprir as regras na forma e no espírito.

A necessidade do "fair play" não está restrita à política. Ela é ainda mais vital na ciência. Se pesquisadores fraudam ou embelezam os dados de seus trabalhos, minam a confiança na própria comunicação da ciência, que é o que a viabiliza como atividade colaborativa e cumulativa.

Se cada cientista tivesse de refazer pessoalmente todos os passos de seus antecessores, nós ainda estaríamos discutindo se a Terra é redonda, não só nas redes sociais, onde todos os delírios são permitidos, mas também na academia.

Faço essas reflexões como um lamento. Foi patética a participação do Instituto Butantan na entrevista coletiva da semana passada, em que se anunciou uma eficácia de 78% para a Coronavac. Na mais honesta entrevista desta semana, quando mais dados foram revelados, ficamos sabendo que a eficácia apurada no estudo foi de 50,4%. Os 78% representavam o recorte de casos que demandaram alguma assistência médica, não o total de sintomáticos.

Até acho que os 78% são um número mais relevante que os 50,4%, mas o "fair play" científico não tolera que se propagandeie o primeiro sem nem mencionar o segundo, como se fez na primeira coletiva. Que um político medíocre e marqueteiro como João Doria tenha aprontado essa é esperado. Que o Butantan, que conhecia os dados, tenha chancelado a patacoada é um desserviço à ciência. Penitencio-me diante do leitor por ter reproduzido os 78% sem questionamento.


Maria Hermínia Tavares: Nem tudo é desastre; na pandemia, temos capacidade de fazer boa ciência

São inaceitáveis as idas e vindas na discussão dos recursos destinados à Fapesp

Há mais de duas décadas, o historiador José Murilo de Carvalho usou dados de pesquisas de opinião para refletir sobre o que os concidadãos se orgulhavam. No artigo “O motivo edênico no imaginário brasileiro”, concluiu que apenas a natureza grandiosa —os céus, mares, rios e florestas— gratificava a sociedade. Nada do que os humanos haviam legado ou estivessem construindo causava admiração: o povo era visto, antes, com ceticismo e desprezo.

Com efeito, há muito de negativo a apontar nessa obra perversa que, ao longo do tempo, produziu uma nação de iniquidades e injustiças; predação e violência; ignorância e superstição; notável insensibilidade (das elites) pela sorte alheia (a dos mais vulneráveis); de promiscuidade entre interesses privados e órgãos estatais; de apropriação patrimonialista de recursos e agências públicas.

Mas nem tudo é desastre. Na pandemia, o país descobriu a virtude de ter atendimento de saúde universalizado por meio do SUS, a importância de contar com o aconselhamento de cientistas bem formados e com um robusto sistema de produção de conhecimentos e suas aplicações.

É na Fundação Oswaldo Cruz e no Instituto Butantan que estão sendo desenvolvidas —em parceria com empresas e instituições acadêmicas internacionais— as vacinas que nos ajudarão a enfrentar em melhores condições a crise sanitária.

Essa capacidade não brota da noite para o dia. Requer, além de muito investimento, a segurança de que estará garantido por décadas e a gestão competente de sua utilização.

Como é feito pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de S. Paulo (Fapesp), instituição modelar que sustenta o sistema paulista de pesquisa, permitindo a formação de quadros para as universidades, as empresas e a administração pública; a geração de saberes em todas as áreas e a criação de startups inovadoras.

Todos os pesquisadores em atividade aqui residentes tiveram algum apoio da Fapesp —quando não foram por ela financiados durante toda a carreira profissional.

Eis por que são inaceitáveis as idas e vindas que marcaram a discussão dos recursos destinados à fundação, durante os meses em que estiveram em pauta, primeiro as medidas de ajuste fiscal, e agora o orçamento do próximo ano no estado. Mesmo que o governador, pressionado, tenha enfim se comprometido a repor os R$ 454,6 milhões subtraídos à entidade no PL 627/2020.

Em momento de aperto fiscal e futuro incerto, financiar ciência é prioritário. A ponto de definir se, mais adiante, os brasileiros poderão se orgulhar de algo além da natureza —vá lá o ufanismo— dadivosa.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


RPD || Rodrigo Augusto Prando: A politização da vacina e o Bolsonarismo

Alheio às mais de 177 mil mortes por conta da pandemia e já em campo pela reeleição em 2022, Jair Bolsonaro politiza uma questão eminentemente de saúde pública em uma disputa com o Governador João Doria, seu concorrente direto

“Todavia não se pode dizer que haja virtude em exterminar concidadãos, trair os amigos, não ter fé nem piedade nem religião; pois é possível conquistar o poder por esses meios, mas não a glória”
Nicolau Maquiavel – O Príncipe

Provavelmente, o ano de 2020 seja palco não apenas de cenas dramáticas de uma pandemia que levou à enfermidade e à morte milhares de pessoas, mas, também, de uma das maiores evoluções no campo da ciência ao se permitir uma vacina em menos de um ano. Em 08/12/2020, na Inglaterra, foi iniciada a imunização de sua população. E nós, brasileiros, como estamos?

Em nosso país, houve uma conjugação de crises. Crise sanitária, advinda do coronavírus; crise econômica, consequência direta da pandemia; crise política e de liderança, cujo fulcro está nas ações e discursos de Jair Bolsonaro e dos bolsonaristas. Já sabíamos, desde os idos de 2018, que o então deputado Jair Bolsonaro trilhava o caminho sinuoso das redes sociais, especialmente, alicerçado sobre clima de ódio, medo e rejeição – todos característicos da eleição de 2018 – mas, ainda, seguia lépido e à vontade junto às fake news, negacionismos, pós-verdade e teorias da conspiração. Bolsonaro foi eleito, mas não governou nesta primeira metade do mandato.

Situação, provavelmente, inédita de um presidente que, por dois anos, confronta as instituições da democracia, os atores políticos e a própria sociedade e que, nos próximos dois anos, buscará sua reeleição. No bojo de seu presidencialismo de confrontação, Bolsonaro e os bolsonaristas foram, como todos nós, jogados numa situação pandêmica que suspendeu a normalidade de nossas vidas cotidianas. Estamos, todos (ou quase), em compasso de espera pela vacina capaz de nos imunizar, já que não há tratamento comprovadamente eficaz para os quadros mais graves da Covid-19. Desafortunadamente, a pandemia encontrou um presidente sem liderança, um governo que não governa e uma sociedade fraturada politicamente, quase em estado de anomia.  

A ciência, os especialistas, os intelectuais públicos, os jornalistas e a Política foram, nestes tempos de bolsonarismo, atacados e, inicialmente, muitos atribuíam às declarações de Bolsonaro uma perspectiva anedótica, caótica. Em Os engenheiros do caos (2019), Giuliano Da Empoli, asseverou que: “No mundo de Donald Trump, de Boris Johnson e de Jair Bolsonaro, cada novo dia nasce com uma gafe, uma polêmica, a eclosão de um escândalo. Mal se está comentando um evento, e esse já é eclipsado por outro, numa espiral infinita que catalisa a atenção e satura a cena midiática” (p.18). Segundo o autor, esse carnaval populista não é desprovido de método e tem, nos bastidores, os “engenheiros do caos”, cientistas especializados em Big Data, ideólogos e consultores políticos que sabem – e muito bem – o porquê de tensionar as regras da democracia e desacreditar a ciência e o jornalismo profissional.

O Brasil, com cerca de 177 mil mortos, como outros países, aguarda, em compasso de espera, uma vacina ou várias capazes de nos devolver à normalidade. O governo federal abençoa a parceria da Fiocruz com a Universidade de Oxford e o Laboratório AstraZeneca, mas ainda não estendeu apoio ao Estado de São Paulo, cujo Instituto Butantan vem desenvolvendo junto com laboratório chinês Sinovac a Coronavac. Uma questão eminentemente de saúde pública está sendo politizada no altar da disputa política que o Presidente Bolsonaro, já em campo pela reeleição em 2022, vem travando com o Governador João Doria, seu concorrente direto.

Doria acaba de desfechar golpe maquiavélico no Chefe de Estado. Anunciou que, a partir de 25 de janeiro próximo, São Paulo começará a vacinar profissionais da saúde, indígenas, quilombolas e todos aqueles, residentes ou não no Estado, demandaram as dezenas de postos de saúde especialmente montados para atender aos brasileiros. Quanto à autorização da Anvisa, o governador informa que, já este mês – dia 15, mencionou – passará à agência toda as informações e os protocolos necessários para assegurar que, no espaço de 40 dias, a autorização para a vacinação seja concedida, a não ser que haja obstrução política, vale dizer, do Planalto.  

 O cenário que se desenha é bem promissor para o Estado de São Paulo A vacina Fiocruz/Oxford apresentou problemas em seus testes, especificamente no que tange às doses aplicadas nos voluntários, e isto demandará mais estudos, atrasando a conclusão dos testes. Além disso, a produção desta vacina, segundo noticiado, dependerá da construção de uma fábrica, ou seja, de mais recursos financeiros do governo federal. Tal fato demonstra que os investimentos e a logística envolvidos não permitirão que vacinas estejam disponíveis em curto prazo, como a Coronavac em São Paulo. Governadores e prefeitos – há muito descrentes de qualquer liderança presidencial – já se articulam junto ao Butantan e ao Governo de São Paulo para garantir acesso à “vacina do Doria”.  

Não se descartam atos extremados, como a judicialização do tema via Supremo Tribunal Federal, com vistas a forçar o governo federal, em última instância, Bolsonaro, a adotar a Coronavac para todo o país.

O cenário em tela será, por anos, capaz de gerar estudos de caso sobre a liderança (ou falta de) na condução do combate à pandemia, estudos que, banhados em ironia, se poderão enriquecer com a leitura de Maquiavel e suas reflexões em O Príncipe.

*Professor e Pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Graduado em Ciências Sociais, Mestre e Doutor em Sociologia, pela Unesp. 


RPD || Paulo Fábio Dantas Neto: Em busca de um centro - Uma eleição e dois scripts

Eleições municipais mostraram que, para vencer Bolsonaro no pleito de 2022, será necessário uma candidatura capaz de dialogar embaixo e partidos que tenham papel aglutinador

Lemos e ouvimos sempre que eleições municipais têm lógica diferente de eleições para Executivos nacional e estaduais. Fenômenos comuns a 2016 e 2018 arranharam um pouco essa convicção. O sucesso do discurso anti-política, a força da onda lavajatista, o antipetismo como coalizão de veto e por aí vai, tudo isso se desdobrou e radicalizou entre 2016 e 2018. Agora, um ponto em discussão é em que medida 2020 reverteu 2016. Deve-se considerar o insucesso eleitoral dos discursos de polarização ideológica, da “nova política” como antipolítica, a menor relevância nas urnas do tema da segurança e a pouco peso do da corrupção. Também que o eleitorado valorizou eficácia nas gestões municipais, fator cuja importância foi potencializada pelo contexto da pandemia.

Mas não se pode excluir da análise importante elemento de continuidade entre 2016 e 2020: o fortalecimento eleitoral da chamada centro-direita, em sua diversidade. Aqui cabe distinguir uma centro-direita pragmática que recebe o apelido, muitas vezes impróprio, de centrão, e aquela que há tempos tem o DEM como sua expressão programática, postura que manteve esse partido, por mais de uma década, na oposição.  

Da análise desses fatores depende a resposta à seguinte questão: a reversão que tenha havido, em 2020, do “espírito” de 2016 restabelecerá o antigo grau de autonomia de eleições municipais, deixando supor que 2022, apesar da sinalização contrária de 2020, possa reiterar o quadro inóspito de 2018 ou o padrão de desconexão que vigorou dos anos 90 até 2016-2018 seguirá sendo violado, tornando 2020 capaz de prenunciar 2022 como 2016 prenunciou 2018?  

Analiticamente, é possível admitir as duas hipóteses. Politicamente, é interessante ver como reforçar a segunda. Uso aqui a chave toquevilleana que abre possibilidades a escolhas políticas, em condições gerais postas por um processo que os atores não controlam. Mas reforçar qual script de 2020? Há mais de um a delinear um realinhamento de forças. Uma bifurcação liga-se a diferenças persistentes de idioma entre a política de São Paulo e do resto do país.  

"O peso de São Paulo nas análises encobre movimentos de fortalecimento de outro tipo de centro moderado em Fortaleza, Recife, Rio e Porto Alegre, convergentes com o ocorrido, no primeiro turno, em Salvador"
Paulo Fábio Dantas Neto

Há duas versões acerca do desfecho do segundo turno das recentes eleições na capital paulista. A primeira, que a reeleição de Bruno Covas foi uma vitória do governador João Dória, o que estimularia uma aliança entre PSDB, DEM e MDB, com posição determinante do primeiro. Ela estaria em dupla polarização com o bolsonarismo e uma esquerda unida que teria encontrado em Boulos uma nova rota de navegação. A segunda versão é que Covas venceu apesar de Doria e que sua vitória pessoal aponta à possibilidade de o PSDB paulista adotar perspectiva mais ao centro e mais nacional, para superar dificuldades de trânsito de Doria, fora da centro-direita.  

O peso de São Paulo nas análises encobre movimentos de fortalecimento de outro tipo de centro moderado em Fortaleza, Recife, Rio e Porto Alegre, convergentes com o ocorrido, no primeiro turno, em Salvador. Nessas cinco cidades, DEM, PSDB, MDB e Cidadania estiveram juntos com o PDT e/ou o PSB, no primeiro e/ou no segundo turno. Em todas, venceram. Em Fortaleza a aliança chegou a englobar, no segundo turno, o PT. Nessas cidades, com diversas peculiaridades óbvias, há um desenho comum, diverso daquele que São Paulo sugeriu.  

Dessa bifurcação surge uma outra questão:  saber se esses movimentos apontam a um tipo de centro moderado que pode atrair São Paulo, em vez de gravitar em torno do contencioso paulista e do PSDB. Sinalizam a chance de uma frente ainda no primeiro turno, situada, de fato, ao centro, aproximando setores da centro-direita e da centro-esquerda. Isso pede uma candidatura capaz de dialogar embaixo e partidos que tenham papel aglutinador. Do nome, ainda estão longe. Quanto a partidos, é preciso conversar a sério sobre o DEM. Ele é tão central para essa rota Brasil-São Paulo como o PSDB e Boulos são para a rota São Paulo-Brasil. Para observá-lo, é preciso uma filmadora que capte seu movimento da centro direita ao centro, não flashs que o flagrem como um ator com “essência” de centro-direita.  

Essas cogitações sugerem balizas para um agir baseado no que aí está: governo relativamente enfraquecido e Presidente relativamente popular. Muito pode mudar se presidente e governo desabarem juntos numa crise econômica e social ou se, por oposto, o capitão surpreender e vier a ser também presidente. É incerteza intrínseca ao processo. Convém as oposições terem pés no chão, para lidar com o que há e olhos abertos para o que pode vir.

*Doutor em Ciência Política, bacharel em Ciências Econômicas e mestre em Administração. É professor da FFFCH/UFBA, onde atua como docente no Departamento de Ciência Política e no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e, como pesquisador, no Centro de Recursos Humanos (CRH). Foi Vereador em Salvador (1983-1988), deputado estadual (1989) e secretário municipal de Educação (1994).  


Ricardo Noblat: Dê-se a Bolsonaro o que ele tanto se esforça por merecer

A coragem de um presidente que diz o que pensa e deseja

A lerem-se os fatos com as lentes dos bolsonaristas de raiz, o presidente da República acertou em cheio nos seus comentários sobre a pandemia da Covid-19 desde que ela se insinuou por aqui em março último. Pode ter errado ao estimar que o vírus mataria, se tanto, oitocentas pessoas. Corrigiu-se depois e falou em algo como três mil. O número já ultrapassou a casa das 180 mil mortes.

Sim, mas é daí? Quem poderia ter acertado na mosca? Bem, o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, muito antes de ser demitido por Bolsonaro, disse a ele que se nada fosse feito para deter a pandemia, em dezembro o número de mortos chegaria a 180 mil. Mandetta disse isso a Bolsonaro de corpo presente e também por escrito para que ele não esquecesse. Não adiantou.

Outra vez: e daí? Bolsonaro não é coveiro. Prescreveu remédios para a cura do vírus – a cloroquina foi um deles. Ordenou ao Exército que os produzisse em grande quantidade. Milhões de brasileiros se encharcaram com eles. E não se assistiu a nenhuma marcha de consumidores enganados pelo presidente. O governo gastará mais de 200 milhões para desovar o estoque das drogas.

Quem tinha que morrer, morreu ou ainda morrerá – outra observação afiada de Bolsonaro que foi mal compreendida por muitos, mas que está sendo confirmada pela realidade. E não será o uso da máscara, nem medidas de isolamento que porá um fim ao avanço da doença. Ela só será detida, como Bolsonaro sempre garantiu, quando contaminar 70% da população. Taokey?

Daí porque não há pressa para dar início à vacinação em massa. E quando ela finalmente começar, só deve ser vacinado quem quiser. Quem não quiser, novamente como Bolsonaro afirmou, poderá estar sendo negligente com a própria vida, mas jamais com a vida dos outros. Afinal, liberdade é mais importante do que a própria vida mesmo que ponha em risco a vida alheia.

A mais recente pesquisa Datafolha, divulgada ontem, mostra que aumentou o número dos que não pretendem tomar uma vacina contra o novo coronavírus. 22% dos entrevistados disseram que não planejam se vacinar, enquanto 73% disseram que vão participar da imunização. Cerca de 5% declararam não saber o que fazer. Em agosto passado, os dispostos a se vacinarem eram 89%.

Sejamos isentos: trata-se ou não de mais um triunfo de Bolsonaro que costuma dizer o que pensa doa em quem doer? Sua posição sobre a vacina da China, berço do vírus, passou a ser compartilhada pelos que o escutam. Metade dos entrevistados do Datafolha respondeu que não tomará a Coronavac de jeito algum. Preferem uma vacina americana ou inglesa. Até mesmo russa.

O fato é que os verdadeiros ou falsos profetas só costumam ser reconhecidos para além do tempo em que pregaram.


Demétrio Magnoli: O Doria da vacina contrasta com dois outros Dorias, insensíveis ao interesse público

Suspeito que, em 2022, todas as versões do governador marcharão juntas, num cortejo ritmado pela batida do oportunismo

"Os dois fazem política com a vacina" —no rastro do bate-boca entre João Doria e Eduardo Pazuello, sobraram analistas dispostos a colocar um sinal de equivalência entre o governador paulista e Jair Bolsonaro. A pretensa identidade sustenta-se na ideia de que a política é um domínio tóxico —e no corolário segundo o qual, quando se trata de uma pandemia, deve ser substituída pela pura razão científica.

Nenhuma nação enfrentou a pandemia sem apelar à razão política, pelo simples motivo de que existem argumentações científicas capazes de justificar diversas abordagens (embora nem todas: cloroquina não vale!). A Itália aplicou rígidos "lockdowns". A Alemanha, quarentenas moderadasA Suécia, suaves restrições sanitárias. Nos três casos, especialistas conceituados divergiram entre si e os governos adotaram as decisões finais, guiadas pela política. No caso da vacina, Doria faz a boa política, norteada pelo interesse público mais vital —e, se isso o beneficia politicamente, melhor para ele.

O lance magistral foi a divulgação antecipada do cronograma de vacinação paulista. O xeque ao rei obrigou o governo Bolsonaro a mover suas peças.

O governo federal apostou tudo numa única vacina, a de Oxford/AstraZeneca, cujos testes sofreram atraso. Ignorando a Coronavac, que mantém contrato com o Butantan, Pazuello anunciara o início da imunização para as calendas de abril. De repente, açoitado por Doria, o ministro da Doença girou 180 graus, negociando a compra de estoques da vacina Pfizer/BioNTech, algo que antes descartara. Mais: no compasso do pânico, antecipou o começo da vacinação para "dezembro ou janeiro", um compromisso que dificilmente poderá honrar.

O plano original de Brasília era usar a Anvisa para postergar a aprovação do imunizante que o presidente rotula como "vacina chinesa" até depois da inoculação das primeiras doses da "vacina federal". Tratava-se de sacrificar deliberadamente as vidas de milhares de brasileiros no altar da febre ideológica bolsonarista e dos cálculos eleitorais de Bolsonaro. Doria frustrou a ofensiva da infantaria presidencial contra a saúde pública.

A guerra prossegue, em novos teatros. O contra-almirante Barra Torres, chefe da Anvisa, um soldado raso tão obediente quanto o submisso general Pazuello, ameaça enrolar a avaliação da Coronavac por infinitos 60 dias, que valem (na cotação atual) cerca de 39 mil óbitos. Mas, sob pressão da opinião pública e da peregrinação de estados e municípios às portas do Butantan, é provável que o Congresso ou o STF dispersem a caravana da irracionalidade, impondo a vacinação geral.

O Doria da vacina, que emerge vitorioso do bom combate, contrasta com dois outros Dorias, insensíveis ao interesse público.

O primeiro é o governador que propiciou o fechamento eterno das escolas paulistas. Pelo mundo afora, em nações ricas e pobres, estudos avalizados pela OMS comprovam que escolas não são focos significativos de contágios. O prolongado cancelamento das aulas presenciais cobra preço devastador das crianças pobres e de seus pais. Mas, curvado à resistência corporativa dos professores e ao compreensível temor de famílias assustadas, Doria virou as costas à ciência na qual proclama se inspirar.

O segundo é o governador que cumpre a promessa eleitoral de proteger uma polícia treinada no esporte de "atirar para matar". A letalidade policial em São Paulo bate recordes históricos, vitimando centenas de jovens nas periferias —sem, obviamente, arranhar os negócios do PCC. O Doria da vacina, que é o da vida, convive pacificamente com o Doria da morte, um político semibolsonarista pronto a surfar a onda da barbárie.

Qual Doria se apresentará como alternativa a Bolsonaro em 2022? Suspeito —e espero estar errado— que todos eles marcharão juntos, num cortejo ritmado pela batida do oportunismo.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Merval Pereira: Doria venceu

Foi uma vitória política do governador de São Paulo João Doria a admissão do ministro da Saúde, General Eduardo Pazuello, de que o início da vacinação nacional pode se dar ainda em dezembro, mais certamente em janeiro.

Embora o governador Doria garanta que não haveria falta de doses para todos que procurassem, mesmo não morando no Estado, São Paulo se livrou de problemas como a superpopulação das cidades com pessoas de outros estados procurando por vacinas, e poderá promover a vacinação de maneira tranquila e rápida.

Pode ser até que sobrem vacinas para doação a outros estados, sem prejuízo da população local, que se sentiria prejudicada pelo afluxo de pessoas de outros estados. A antecipação da vacinação nacional é um anúncio que só confirma que o governo brasileiro, se tivesse se organizado com antecedência, poderia estar começando a vacinação nacional, sem polêmicas, ao mesmo tempo que vários países.

A compra da vacina da Pfizer, que já está sendo utilizada na Inglaterra e em outros países, foi atrasada por uma decisão equivocada do ministério da Saúde, que a descartou pela dificuldade de armazenamento a temperaturas muito baixas. A solução foi dada pela própria farmacêutica, que criou embalagens com gelo seco que conservam a vacina por pelo menos um mês.

Agindo sempre com rancor, e sem nunca objetivar a proteção da vida humana, o presidente Bolsonaro foi obrigado a antecipar o calendário de vacinação para não deixar o governador paulista ser o pioneiro no país, enquanto a Saúde permaneceria em estado de paralisia burocrática.

A vacinação pode começar em janeiro, e com a vacina da Pfizer, descartada por Pazuello dias antes. Poderia ser com a vacina chinesa da Sinovac, que está sendo produzida no Instituto Butantan em São Paulo, mas a idiossincrasia de Bolsonaro em relação à China e a Doria, seu provável adversário em 2022 na disputa pela presidência da República, fez com que o governo brasileiro não levasse em consideração os avanços da vacina chinesa, que até hoje não está incluída na lista oficial das vacinas negociadas.

O que sempre foi óbvio, que a vacinação dos brasileiros atrasada em relação a muitos outros países pelo mundo provocaria uma forte reação da opinião pública, somente agora parece ter ficado claro para nossos governantes, que correm atrás do prejuízo improvisadamente.

A antecipação do calendário de vacinação nacional, que aliás ainda não foi divulgado de maneira oficial, vai ser feita não para salvar vidas, mas para salvar a pele do próprio presidente, que nega os benefícios da vacina, mas quer impedir que o governador de São Paulo tenha a dianteira nesse processo, o mais importante procedimento diante da pandemia da COVID-19.

Com a notícia de que a vacina da Pfizer pode causar efeitos colaterais nas pessoas alérgicas em alto grau, o presidente Bolsonaro é capaz de alegar que tem razão quando não recomenda a vacinação. A vacina em que o governo joga suas fichas é a da AztraZeneca, da Universidade de Oxford, que está sendo feita no Rio na Fiocruz.

Mas há problemas a serem superados, como a possibilidade de essa vacina não ser eficaz para idosos. Essa possibilidade surgiu nos estudos publicados na revista Lancet, que confirmou que a eficácia da imunização, que é de 60%, aumenta para 90% quando se dá uma meia dose na primeira vez, e depois completa-se com uma dose inteira.

Porém, não há explicação científica ainda para essa disparidade, e também o número de voluntários idosos foi insuficiente, segundo pesquisadores independentes, para se afirmar que a vacina de Oxford é eficaz para esse grupo de risco. Esses atropelos são naturais, pois foi um esforço internacional de emergência que permitiu que vários tipos de vacinas fossem produzidas em cerca de 1 ano de pandemia, o que é excepcional.


Hélio Schwartsman: A guerra das vacinas

Para Bolsonaro, é melhor atrapalhar Doria do que imunizar a população do país

A "vacina inglesa do Bolsonaro" (Oxford/AstraZeneca) não é nenhuma maravilha. Registrou só 70% de eficácia na melhor interpretação dos dados do estudo de fase 3. Já os resultados da "vacina chinesa do Doria" (Coronavac) devem ser divulgados nos próximos dias.

Por não ter chutado um pênalti para fora, João Doria está na frente de Jair Bolsonaro na disputa, mas não há nenhuma certeza de que sua vacina será certeira. O padrão-ouro em imunização contra a Covid-19 é, por ora, o das vacinas da Pfizer e da Moderna, que conferiram em torno de 95% de proteção nos ensaios clínicos.

O governo federal, que apostara todas as fichas no imunizante da Oxford, não adquiriu nenhuma dose do produto da Moderna e tenta agora um acordo de última hora com a Pfizer, mas dificilmente conseguiremos um lote para logo. Outros países foram mais rápidos. O Canadá, por exemplo, fez tantos acordos que já computa dez doses de imunizantes para cada habitante.

O Brasil também deixou de fazer a lição de casa num item muito mais básico, que é a compra de seringas, agulhas etc., coisas que sabíamos serem necessárias qualquer que fosse o imunizante a utilizar, mas que o ministro da Saúde especializado em logística preferiu ignorar.

E esse é o ponto a que eu queria chegar. O Brasil, que até há pouco era um país conhecido pela excelência de seu programa de imunizações, corre o risco de ficar sem vacinas e sem insumos para aplicá-las.
Um dos principais motivos para a decadência é Jair Bolsonaro. Além da ignorância militante da qual parece orgulhar-se, o presidente trabalhou incansavelmente para minar a estrutura de órgãos como o Ministério da Saúde, que agora faz falta.

Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".


Bruno Boghossian: Bolsonaro tenta conter prejuízo político na guerra da vacina contra Covid

Apesar de negacionismo, presidente percebe risco e mexe suas peças para enfrentar Doria

Jair Bolsonaro mexeu suas peças no embate com João Doria. Depois que o tucano fez o lançamento precipitado de um plano de vacinação contra a Covid-19, o presidente despachou o ministro da Saúde para um pronunciamento em que reivindicou a competência pelo processo e anunciou a intenção de comprar doses adicionais do imunizante.

Bolsonaro adota até aqui um comportamento que varia entre a incompetência e a indiferença. O governo, no entanto, parece ter percebido o tamanho do prejuízo político que poderá sofrer quando os brasileiros entenderem que ficaram para trás na fila da vacinação.

Após uma reunião com o presidente, Eduardo Pazuello tentou fazer uma mudança de rumos disfarçada de propaganda. O ministro disse nesta terça (8) que "todos aqueles que desejarem" serão vacinados e confirmou a assinatura de um termo para a compra de 70 milhões de doses da Pfizer –algo que era visto com ressalvas na semana passada.

Pazuello afirmou que "qualquer vacina" que tenha registro no país será comprada e distribuída. "Não existe essa discussão", declarou.

Parecia que o governo tinha trocado o ministro da Saúde mais uma vez. Em outubro, Bolsonaro fustigou o rival Doria e mandou cancelar a compra da vacina chinesa fabricada em São Paulo. Pazuello aceitou a ordem e se humilhou: "É simples assim: um manda, e o outro obedece".[ x ]

O presidente ainda deve fazer de tudo para atrapalhar os planos de Doria, enquanto ensaia movimentos alternativos para evitar que o adversário colha benefícios sozinho.

A politização da vacina ganha dimensões cada vez maiores. Para Maurício Moura, da Ideia Big Data, essa é "a única chance de Doria se tornar competitivo" em 2022.

Já Bolsonaro teria chance de recuperar terreno, apesar de seu negacionismo durante a pandemia, porque a população busca "soluções de curto prazo". "É um risco muito grande não agir de maneira contundente em relação à vacina", avalia. "É um momento crucial para a gestão dele."Bruno Boghossian

*Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).


Vera Magalhães: Acossado pela vacina

Bolsonaro enfrenta pressão pelo boicote que promoveu à imunização

As imagens das primeiras pessoas, na maioria idosos sorridentes e esperançosos, sendo vacinadas no Reino Unido emocionaram quem assistiu televisão neste início de semana, e a chegada do tão esperado imunizante trouxe a cobrança que seria inevitável: e nós, e o Brasil?

Nós somos governados por Jair Bolsonaro, e esta é a razão pela qual o País está hoje lá atrás na corrida global pela vacinação contra o novo coronavírus.

O presidente negacionista está sentindo agora o resultado de seu negacionismo desde o início da pandemia: Bolsonaro é hoje um líder acossado pelos cidadãos, ávidos pela vacina, e pelos políticos, que também sentem a cobrança da população de seus Estados. E ela vai crescer e ganhar as ruas.

A imprensa sempre alertou que não adiantava o presidente se comportar como um antivax irresponsável e liberar sua tropa inconsequente, capitaneada por deputados como Bia Kicis, para vomitar sandices nas redes sociais, como aquela segundo a qual vacinas podem alterar o DNA das pessoas. Quando as vacinas começassem a ser ministradas mundo afora a omissão do governo federal ficaria patente.

Mas o que colocou fogo no pavio da pressão sobre Bolsonaro e seu ministro da Saúde, o titubeante e suarento general Eduardo Pazuello, foi o movimento, também político, do governador de São Paulo, João Doria Jr., de fixar uma data para o início da imunização no Estado com a Coronavac (que ainda não apresentou os estudos de fase 3, que comprovam a eficácia, e até agora não tem aprovação nem da Anvisa nem de agências internacionais).

Diante da data de 25 de janeiro, governadores de todos os Estados foram a Brasília cobrar do ministro um plano que não deixe as demais unidades da federação de fora.

Com sua franqueza crua, o prefeito Alexandre Kalil (PSD), reeleito em primeiro turno em Belo Horizonte, vaticinou em entrevista recente ao Roda Viva que Bolsonaro não teria como negar o acesso dos brasileiros à vacina quando ela chegasse, qualquer que fosse ela, mesmo a “chinesa” Coronavac: “Isso é crime! É impeachment!”.

É o medo do impeachment e de uma queda ainda maior na popularidade que justifica a corrida desengonçada do presidente, de Pazuello e do entorno dantesco por mostrar iniciativa na busca por uma vacina — até agora vale qualquer uma, menos a do Butantan.

Bolsonaro e os filhos, que incentivavam a criminosa pregação antivacina, agora defendem a imunização em suas redes sociais. Sumiram cloroquina, invermectina e outros embustes que eles e até o dublê de ministro da Ciência e astronauta tentaram enfiar goela abaixo de incautos. E com os quais torraram bilhões de dinheiro público em estudos inócuos e compras injustificáveis. Todo esse show de horrores não tem até aqui nenhuma responsabilização judicial.

Mas agora o cerco se fecha. O STF e o Congresso devem adotar medidas nos próximos dias aumentando a pressão sobre o Ministério da Saúde e a Anvisa. Governadores farão fila no Supremo cobrando o dispositivo da “Lei Covid-19” (13.979) para que vacinas sejam validadas pela Anvisa imediatamente, se já tiverem aprovação de uma de quatro grandes agências internacionais.

O prazo de fevereiro para a aprovação das vacinas que o “especialista em logística” (sic) Pazuello deu será encurtado por ele e por Bolsonaro em novas declarações atabalhoadas.

Vacina é uma conquista da civilização. A jornada da Ciência para criar e aprovar em tempo recorde imunizantes com diferentes tecnologias para o novo coronavírus é mais um capítulo emocionante dessa epopeia.

Que no caminho entre o nós e a vacina esteja um governante que tem profundo descaso pela vida é mais um dos infortúnios que o Brasil tem de enfrentar por ter, em 2018, votado majoritariamente em alguém inepto para presidi-lo.