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Luiz Werneck Vianna || A procura de um ator

Cumpridos sete meses de disputas encarniçadas ainda não se divisa qual partido tem levado vantagem na guerra de posições em que estão envolvidos o governo com as forças políticas que o apoiam no sentido de desviar o curso do nosso processo de modernização, vigente em linhas gerais desde os anos 1930, e as que se opõem, embora erraticamente, a tal movimento. De qualquer modo, pode-se constatar que se houve veleidades de uma ação do tipo blitzkrieg, rápida e fulminante, a fim de levar de roldão o sistema da ordem da Carta de 88, ela saiu do plano das cogitações oficiais, admitindo os estrategistas dessa operação que ela exige um tempo longo de maturação, para o que já se cogita mais um período presidencial.

Longe de serem uma linha maginot facilmente devassável, as instituições postas pela Carta de 88 tem-se mostrado robustas e resilientes, contrariando os incréus, ao assédio que lhes são feitas. Daí serem elas o objetivo estratégico do governo e seus aliados, principalmente o grande empresariado das finanças e do agronegócio, que identificam nelas obstáculos à expansão dos seus negócios, tal como na afirmação do princípio da solidariedade social, obstáculo ao modelo de capitalização desejado pelo super ministro da economia em favor das finanças, e da defesa do meio ambiente e das terras indígenas cobiçadas pelo agronegócio e pelo setor da mineração.

É próprio das guerras de posição de que as partes em conflito não só se mantenham firmes na defesa do terreno ocupado como procurem se assegurar das suas bases de abastecimento, de apoio político e social. Na atual circunstância em que ora se vive aqui é preciso destacar as vantagens com que contam o governo e seus aliados sobre seus oponentes, a começar pelo fato elementar de deterem a iniciativa das ações, com o que selecionam a seu favor o tipo dos embates com que fustigam seus adversários. Outra vantagem não negligenciável deriva da inexistência no campo das oposições de lideranças que organizem sua heterogênea composição, quer as de origem política quer as intelectuais, viciadas em seu gosto idiossincrático pelo protagonismo, dificultando, quando não impedindo, ações concertadas.

Contudo, pode-se considerar como passageiras algumas dessas desvantagens por que de fácil remédio. O estoque de reservas mobilizáveis pela oposição é muitas vezes superior ao que se apresenta como disponível pelo governo e aliados, e que tende a crescer em razão do estilo truculento e errático que tem caracterizado suas ações, prisioneiro até então da biografia e da personalidade agressiva do seu maior condutor, o presidente da República. O sindicalismo, os intelectuais, os estudantes, o amplo mundo das classes subalternas, a massa considerável da população se encontra à margem da agenda governamental que não dispõe de políticas de legitimação para elas. No caso, vale lembrar que o regime militar – pretenso espelho do governo atual – adotou em busca de legitimação, com êxito durante certo tempo, a via da expansão econômica, objetivo inteiramente ignorado pelos agentes atuais da política econômica.

Nesse cenário de disputa não se trata de uma corrida contra o tempo. Salvo imprevistos dramáticos, os atores que se contendem devem continuar em seus esforços de acumulação de forças, contrapondo o projeto de erradicação da Carta de 88, fórmula concisa da estratégia do governo e seus aliados, dos que a defendem. São dois projetos antagônicos de concepção de ordem e de sociedade, e nisso a vantagem se encontra mais no lado dos seus defensores do que naqueles que a atacam, em razão do óbvio motivo de que a Carta já está aí, conta com trinta anos de existência e penetração capilar em todas as regiões do social.

Daí estarmos envolvidos numa batalha de ideias, apesar de se ter uma débil compreensão a respeito desse fato. Grande parte dos nossos intelectuais, como reação à rusticidade e à brutalidade das ações do governo, tem-se dedicado, muitas vezes com brilho, a explorar pelas artes da ironia a fraqueza e a ausência de argumentos com que são formuladas as suas iniciativas. Ficar nisso não altera em nada a atual disposição de forças. O endereço principal da crítica deve ser o da estagnação da economia, do crescimento das desigualdades sociais, da falta de alento na vida social, da baixa estima quanto aos nossos valores e à nossa história. Para tanto, conta-se com um rico inventário na nossa bibliografia a ser expandido e exposto a uma revisão crítica e que tenha como alvo a valorização da nossa cultura e o reconhecimento dos nossos êxitos civilizatórios, recusados arbitrariamente pelo conjunto de forças que animam o governo que aí está.

Lembrar que o movimento vitorioso na derrota do regime militar nasceu escorado numa larga produção cultural, inclusive universitária, constante desse acervo a produção de teses de doutorado que se dedicaram à pesquisa das raízes do nosso autoritarismo e das nossas desigualdades sociais, exemplares dessa vasta coleção a obra de Florestan Fernandes em a Revolução Burguesa no Brasil e São Paulo, crescimento e pobreza, trabalho coletivo inspirado pelo Cardeal Paulo Evaristo Arns, ambos de meados dos anos 1970. São fios a serem retomados a fim de dotar as forças da oposição ao que aí está de um plano de navegação em meio a essa tempestade que se abateu sobre nós, cuja duração parece longe de arrefecer.

Finalmente, deve-se atentar para o contexto internacional em que o país vem dando largos passos em direção a um alinhamento incondicional à política do presidente norte-americano Donald Trump, rompendo com a tradição de autonomia da sua política externa, vigente inclusive durante o recente regime militar, e que, no limite, pode trazer prejuízos a muitas de suas atividades econômicas, como no caso do agronegócio. Contradições severas, portanto, caracterizam o momento atual, e que demandam por parte de um ator, que ainda não temos, amplo descortino da situação, sangue frio e perseverança no sentido de afastar os perigos que rondam a nossa democracia e o destino do seu povo. O esforço de agora é para construir um ator capaz de intervir com eficácia nessa cena.

 


Stiglitz: hora de enterrar um sistema fracassado

Juventudes. Protagonismos, transformações e futuro

O experimento neoliberal — impostos mais baixos para os ricos, desregulamentação dos mercados de trabalho e de produtos, financeirização e globalização — tem sido um fracasso espetacular, escreve Joseph Stiglitz, economista e prêmio Nobel da Economia em artigo publicado por OutrasPalavras, 06-06-2019. A tradução é de Felipe Calabrez.

Eis o artigo.

Que tipo de sistema econômico é mais propício ao bem-estar humano? Essa questão definirá nossa época, porque, após 40 anos de neoliberalismo nos Estados Unidos e em outras economias avançadas, sabemos o que não funciona.

O experimento neoliberal — impostos mais baixos para os ricos, desregulamentação dos mercados de trabalho e de produtos, financeirização e globalização — tem sido um fracasso espetacular. O crescimento é menor do que era no quarto de século após a Segunda Guerra Mundial, e a maior parte acumulou-se no topo da escala de renda. Depois de décadas de renda estagnada ou mesmo em queda para aqueles abaixo dos mais ricos, o neoliberalismo deve ser declarado morto e enterrado.

Lutando para sucedê-lo há pelo menos três grandes alternativas políticas: nacionalismo de extrema direita, reformismo de centro-esquerda e esquerda democrática (com a centro-direita representando o fracasso neoliberal). E, no entanto, com exceção da esquerda progressista, essas alternativas permanecem em dívida com alguma forma de ideologia que expirou (ou deveria ter expirado).

A centro-esquerda, por exemplo, representa o neoliberalismo com um “rosto humano”. Seu objetivo é trazer as políticas do ex-presidente dos EUA Bill Clinton e do ex-primeiro ministro britânico Tony Blair para o século XXI, fazendo apenas pequenas revisões dos modos predominantes de financeirização e globalização. Enquanto isso, a direita nacionalista renega a globalização, culpando migrantes e estrangeiros por todos os problemas de hoje. No entanto, como demonstrou a presidência de Donald Trump, não é menos comprometida — pelo menos em sua variante norte-americana — com cortes de impostos para os ricos, desregulamentação e encolhimento ou eliminação de programas sociais.

Em contraste, o terceiro campo defende o que chamo de sistema econômico progressista [1], que prescreve uma agenda econômica radicalmente diferente, baseada em quatro prioridades.

A primeira é restaurar o equilíbrio entre mercados, Estado e sociedade civil. O crescimento econômico, a crescente desigualdade, a instabilidade financeira e a degradação ambiental são problemas nascidos do mercado e, portanto, não podem e não serão superados pelo mercado por si só. Os governos têm o dever de limitar e moldar os mercados por meio de leis ambientais, de saúde, segurança ocupacional e outros tipos de regulamentação. É também tarefa do governo fazer o que o mercado não pode ou não irá fazer – como investir ativamente em pesquisa básica, tecnologia, educação e saúde de seus constituintes.

A segunda prioridade é reconhecer que a “riqueza das nações” é o resultado da investigação científica – aprender sobre o mundo ao nosso redor – e de formas de organização social que permitam que grandes grupos de pessoas trabalhem juntos para o bem comum. Os mercados ainda têm um papel crucial na facilitação da cooperação social, mas só atendem a esse propósito se forem regidos pelo Estado de Direito e submetidos ao crivo democrático. Caso contrário, os indivíduos podem ficar ricos explorando os outros, extraindo riquezas por meio do rentismo, em vez de criar riqueza por meio de genuíno esforço. Muitos dos ricos de hoje tomaram a rota de exploração para chegar onde estão. Eles foram bem servidos pelas políticas de Trump, que encorajaram o rentismo enquanto destruíam as fontes subjacentes de criação de riqueza. O sistema econômico progressista procura fazer exatamente o oposto.

Isso nos leva à terceira prioridade: enfrentar o crescente problema do poder do mercado concentrado. Ao explorar as vantagens da informação, comprando potenciais concorrentes ou criando barreiras à sua entrada, as empresas dominantes acabam se envolvendo numa busca de renda em larga escala, que prejudica todos os demais. O aumento do poder das corporações, combinado com o declínio do poder de barganha dos trabalhadores, explica muito por que a desigualdade é tão alta e o crescimento é tão morno. A menos que o governo assuma um papel mais ativo do que prescreve o neoliberalismo, esses problemas provavelmente se tornarão muito piores, devido aos avanços na robótica e na inteligência artificial.

O quarto item chave na agenda progressiva é cortar a ligação entre poder econômico e influência política. Juntos, ambos reforçam-se mutuamente e se autoperpetuam, especialmente onde os indivíduos e corporações ricas podem gastar sem limite nas eleições. À medida em que países como os EUA se aproximam cada vez mais de um sistema fundamentalmente antidemocrático de “um dólar um voto”, o sistema de freios e contrapesos, tão necessário para a democracia já não é capaz de se sustentar: nada consegue restringir o poder dos ricos. Este não é apenas um problema moral e político: economias com menos desigualdade têm um desempenho melhor. Reformas progressistas, portanto, têm que começar reduzindo a influência do dinheiro na política e reduzindo a desigualdade de riqueza.

Não será possível reverter o dano causado por décadas de neoliberalismo em um passe de mágica. Mas uma agenda abrangente, construída com base nas linhas esboçadas acima pode fazê-lo com certeza. Muito dependerá de os reformadores serem tão enérgicos no combate a problemas (em especial) o poder excessivo de mercado e a desigualdade) quanto o setor privado o é ao criá-los.

Uma agenda abrangente deve enfocar a educação, a pesquisa e outras fontes verdadeiras de riqueza. Deve proteger o meio ambiente e combater as mudanças climáticas com a mesma vigilância que os defensores do Green New Deal, nos EUA, e a Extintion Rebellion no Reino Unido. E deve propor políticas públicas para garantir que a nenhum cidadão seja negado os requisitos básicos de uma vida decente. Isso inclui segurança econômica, acesso ao trabalho e salário digno, assistência médica e moradia adequada, aposentadoria segura e educação de qualidade para seus filhos.

Esta agenda é eminentemente acessível. Na verdade, não podemos nos dar ao luxo de não executá-la. As alternativas oferecidas por nacionalistas e neoliberais assegurariam mais estagnação, desigualdade, degradação ambiental e amargura política, levando potencialmente a resultados que nem sequer queremos imaginar.

O capitalismo progressista não é um oxímoro. Pelo contrário, é a alternativa mais viável e vibrante para uma ideologia que claramente falhou. Como tal, representa a melhor chance que temos de escapar do nosso atual mal-estar econômico e político.

Nota

1 - No original, Stiglitz usa o conceito “progressive capitalism”, ou “capitalismo progressista”. No entanto, como o leitor notará, as bases de sua proposta são radicalmente distintas daquilo a que se denominou “capitalismo” no Brasil (em especial nas últimas quatro décadas). Por isso – e acima de tudo para preservar a potência política do texto – optamos por substituir a expressão por “sistema econômico progressista”.