Itália

Demétrio Magnoli: Com coronavírus, Itália vive sua hora mais sombria e lei marcial ameaça se tornar 'novo normal'

Governo italiano se tornou a primeira democracia a mimetizar a ditadura chinesa

No início, a China ocultou as informações sobre a epidemia e reprimiu os médicos que tentavam dar o alerta. Depois, isolou por meios militares 40 milhões de habitantes de Hubei. Agora, a Itália imita a China – e os dois governos, o ditatorial e o democrático, ganham aplausos da Organização Mundial de Saúde (OMS). A lei marcial será, logo, o “novo normal”?

Semanas atrás, Matteo Salvini, o líder da Liga, convocou o vírus para sua campanha anti-imigração. O fraco governo italiano de Giuseppe Conte respondeu ao clamor da extrema-direita ignorando o avanço da doença, que se espalhava silenciosamente. Consequência do catastrófico equívoco original: a Itália tornou-se a primeira democracia a mimetizar a ditadura chinesa, ameaçando encarcerar cidadãos que se moverem para outras cidades.

A trajetória repetiu-se no Irã. O regime camuflou a ampla difusão das infecções até girar 180 graus, advertindo que usará “a força” para conter deslocamentos no Ano Novo persa.

Trump inverteu o percurso, girando no sentido anti-horário. No começo, capturando a covid-19 para legitimar suas políticas xenófobas, fechou as fronteiras a qualquer viajante proveniente da China. Na sequência, diante da turbulência financeira que complica sua reeleição, escreveu no muro da Casa Branca que o vírus é “uma gripe comum”. Bolsonaro repetiu a mensagem embusteira do mestre, sem se dar conta de que ela seria revertida outra vez, dando lugar à perversa proibição de viagens entre Europa e EUA para barrar o “vírus estrangeiro”.

Nosso Ministério da Saúde (MS), uma das ilhas de competência no oceano da estupidez federal, não cede aos cantos concatenados da negligência e da paranoia. Como o ministério alemão, orienta-se pela máxima de que o pânico é ainda mais letal que o vírus. A estratégia de medidas graduais —da educação sanitária à redução de interações sociais em áreas críticas, e daí ao eventual auto-isolamento em clusters de infecção— implica uma aposta esclarecida na responsabilidade dos cidadãos.

A persuasão é a escolha democrática, que funciona; a polícia, a opção autoritária, que fracassa. Na China, não houve a alardeada contenção geográfica, pois milhões deixaram Hubei na hora do surto pioneiro, para as férias de Ano Novo. Mesmo assim, as taxas de letalidade nas demais províncias, onde o governo recomendou auto-isolamento, foram muito menores que as de Wuhan, submetida aos comandos totalitários. A lei marcial mata, disseminando o pavor que empurra multidões gripadas aos hospitais, implode os sistemas de saúde e vitima médicos e pacientes.

Israel determinou quarentena compulsória a todos que, sem sintomas, entrarem no país. Pateticamente, o governo de Netanyahu insinua que a população do exterior é suspeita de contágio – mas a do interior não. A Alemanha, pelo contrário, promete não fechar fronteiras. Nosso MS também orienta-se pela contenção focalizada, evitando reações indiscriminadas. A Itália e os EUA – felizmente, nesse caso – não são aqui.

O diretor-geral da OMS evitou criticar o regime chinês pelo criminoso ocultamento mas elogiou a “coragem” do isolamento militar de Hubei. Sua bússola é a política, não a epidemiologia: a OMS almeja tornar-se, finalmente, parceira da China. A coerência no erro o conduz a festejar a lei marcial italiana, sugerindo que o mundo siga o exemplo de um governo sem rumo. A depressão econômica provocada pelo pânico produzirá incontáveis vítimas entre os pobres, frutos do colapso de renda e de moléstias não tratadas. Essas vidas perdidas não chegarão às tábuas estatísticas.

A pandemia do Covid não é fake news. A notícia falsa é que os polos do debate situam-se entre a complacência e a lei marcial: de fato, a segunda nasce no solo arado pela primeira. Conte disse que a Itália atravessa sua “hora mais sombria”. É verdade – e por culpa dele.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Míriam Leitão: Dia de susto no meio do carnaval

Casos de coronavírus na Itália e na Coreia do Sul derrubam as bolsas e aumentam risco de desaceleração da economia mundial

O mercado financeiro global vai entendendo por espasmos o impacto da crise do coronavírus na economia, o que deveria estar claro desde o início, porque a China é o país mais inserido na globalização. Segunda-feira de carnaval foi um destes dias de compreensão do grau de risco em que todos os países estão. No mar das quedas abruptas de ontem, as cotações de produtos que exportamos e as ações de empresas brasileiras foram afetadas. Desta vez, o susto veio da Itália, com cidades isoladas e o carnaval de Veneza suspenso, e do aumento de casos na Coreia do Sul e no Irã.

A China é o hub global. O mundo quase todo importa de lá ou vende para o país. Ela produz milhões de peças para todo o tipo de indústria, eletrônica, digital. O Japão não produz sem a China. A Coreia do Sul proclamou alerta máximo e pôs sete mil soldados em quarentena. Diante dos 43 casos no Irã, com 12 mortes, Turquia, Jordânia, Paquistão e Afeganistão fecharam as fronteiras ou restringiram as viagens com destino ou origem no país. O turismo, a indústria de aviação, a farmacêutica, tudo depende da potência asiática, é o que alertam observadores que acompanham de forma mais atenta a economia chinesa.

A Itália atingida, com 10 cidades isoladas, coloca em questão a política das fronteiras abertas na qual a Europa se assenta. Investidores ontem alertavam sobre a proximidade da região com a zona industrial alemã. O país faz parte de um continente que dissolveu as fronteiras. Bruxelas está emitindo sinais de que é preciso agir, mas evitar o pânico. Produtos que são importantes para a exportação brasileira, como minério de ferro, caíram e derrubaram as ações de grandes mineradoras internacionais. BHP, Rio Tinto e Vale caíram 7% nos mercados internacionais.

Bancos brasileiros caíram 5%. Petrobras, 6%. Tudo isso lá fora, já que a bolsa brasileira só reabre na próxima quarta. A segunda-feira começou mostrando que enquanto nos países mais devotos da folia a população se diverte, o mundo vivia um momento de queda nos preços dos ativos. O mercado de ações no mundo todo despencou, e os investidores correram para as proteções de sempre, o ouro e os títulos do Tesouro americano. A Ásia teve queda forte e foi seguida pela Europa, enquanto o futuro do S&P já apontou que seguiria a mesma tendência. Assim começou a segunda-feira. Ao fim do dia, ficou claro que a parada do Mardi-gras seria muito bem-vinda para que todos pudessem tentar refletir sobre a real dimensão dos acontecimentos.

Aqui neste espaço, alerta-se desde o começo que este é um evento sem precedentes, porque na última pandemia, a do Sars, o mundo era menos conectado e a China era menos importante para as cadeias globais de suprimento. Então, estamos no terreno das incertezas no qual a volatilidade é a regra.

O mercado financeiro oscila entre dois polos. Ou subestima os riscos ou tem picos de pânico. Quando o mais racional seria ter análises mais profundas sobre o grau de conexão entre as cadeias globais de produção.

Na China, há algumas boas notícias. A província de Guangdong, cuja capital Guangzhou fica a uns 500 quilômetros do centro da crise, baixou o nível de gravidade. A partir desta segunda-feira puderam ser abertos restaurantes, bares, fast foods. As escolas, inclusive as estrangeiras, voltaram a funcionar no dia 16.

Apesar das muitas críticas feitas ao governo chinês, diplomatas que vivem lá dentro do país reportam que é impressionante a rapidez com que a sociedade respondeu ao problema. No começo, e instantaneamente, todos os locais públicos, hotéis, shoppings, estações de metrô passaram a ter sempre pessoas medindo a temperatura de todo mundo. Uma semana depois, os termômetros foram substituídos por câmeras infravermelhas capazes de identificar, em uma multidão, quem tem temperatura acima de 37,3 graus. Agora, todo cidadão tem um código e a cada lugar que entra, shopping, metrô, ônibus tem que registrar o seu código. Se por acaso ele aparecer com sintomas, será possível rapidamente refazer seus passos. A tecnologia na qual a China investiu para ser vencedora no mundo globalizado e digital, e para controlar sua vasta população num regime autoritário, está sendo usada, desta vez, para criar a cordão de proteção sanitária.

Ainda não está claro o quanto o mundo será atingido, mas qualquer avaliação que subestime os riscos não é aconselhável. O fato é que o mundo ainda não sabe. E esse é o terreno mais pantanoso para a economia.


El País: Um ano após derrota histórica, esquerda italiana elege líder para tentar voltar à essência

Atual governador do Lazio, Nicola Zingaretti arrasa nas primárias do PD e tentará criar um novo esquema de alianças para mudar o rumo da esquerda no país

O Partido Democrático (PD) da Itália enterrou o renzismo e iniciou um novo capítulo político em que pretende recuperar o espaço ideológico perdido nos últimos anos. Nicola Zingaretti, atual governador da região do Lázio, será o novo secretário-geral da formação socialdemocrata italiana. Cerca de 1,7 milhão de pessoas o elegeram em primárias abertas que superaram em muito as previsões de participação, que eram pessimistas. Antes da contagem final, Zingaretti tinha o apoio de mais de 65% dos votantes, número que permite evitar uma assembleia fratricida e impor um programa estratégico e ideológico que virará definitivamente a página de uma etapa catastrófica nas urnas. “Hoje é o começo de um caminho difícil. Vamos abrir um processo constituinte para um novo PD”, afirmou o novo secretário-geral, anunciando uma mudança de rumo total no partido.

Faz exatamente um ano que a formação de centro-esquerda enfrentou uma enorme crise política com o pior resultado eleitoral desde sua fundação, em 2007 (perdeu sete pontos em relação a 2013). As eleições de 4 março do ano passado mostraram uma desconexão com o eleitorado de esquerda e a profunda aversão de grande parte da base social do partido contra o então secretário-geral, Matteo Renzi. Houve decepção com a virada ideológica, a falta de respostas aos problemas reais dos cidadãos. Muitos de seus eleitores ficaram em casa naquele dia. Outros optaram por uma resposta mais simples e direta, como aquela proposta pelo Movimento 5 Estrelas (M5S).

O ultimato que lançaram neste domingo, 3, esses mesmos eleitores, considerando o perfil de seu novo secretário-geral, é claro: voltar à essência de esquerda, abandonar a vertente mais populista e tentar cicatrizar as feridas com todas as facções às quais Renzi declarou guerra. Ontem, no entanto, o toscano, cujo candidato ficou em terceiro lugar, foi o primeiro a dizer que é hora de acabar com o “fogo amigo”.

Zingaretti (de 53 anos), muito mais próximo das correntes do antigo Partido Democrático Socialista (PDS) e aberto à exploração de novas estratégias, tem um caráter aberto e de diálogo. A ideia do irmão do comissário Montalbano –o ator principal da série de maior audiência, Luca Zingaretti– é construir uma nova grande aliança que percorra todo o espectro de esquerda e chegue até o +Europa, o partido de Emma Bonino. Ele mesmo se encarregou de lembrar disso em suas primeiras palavras enquanto a contagem continuava: “Um partido fundado em duas palavras: unidade e mudança”.

Uma série de movimentos de cidadãos que se opõem ao Governo e ao autoritarismo crescente que atravessa a Itália tomaram as ruas há semanas. A revolução prometida pelo M5S há um ano não veio e o país caminha para uma recessão. No sábado, além disso, cerca de 200.000 pessoas se manifestaram em Milão contra Salvini. A esquerda agora se vê capaz de cavalgar esse mal-estar com um perfil como o de Zingaretti, que não tem inconvenientes em voltar aos velhos esquemas ideológicos, abraçar o ecologismo, admitir que o PD decepcionou profundamente seus eleitores e agir para criar uma nova comunidade. “Foram primárias para a Itália. E isso reativa uma esperança para o futuro. Centenas de milhares de pessoas confiaram em nós hoje e seremos dignos dessa confiança. Eu penso nos desiludidos. Naqueles que não foram votar um ano atrás e hoje estavam nas urnas. Naqueles que nos criticaram; naqueles que, não confiando em nós, votaram em outras forças políticas que expuseram melhor suas ideias. Penso neles porque vejo neste resultado um primeiro sinal. Construiremos um novo PD e uma nova aliança”, disse.

Um dos grandes debates que enfrentará o novo secretário-geral, que recebeu o apoio explícito do ex-primeiro-ministro Paolo Gentiloni, é a possibilidade de chegar a um pacto com o M5S. Uma parte importante do partido considera que essa opção deveria ser explorada quando os atritos no Executivo, que os grilinos formam com a Liga, provocarem uma possível crise de Governo. Outros acreditam que, precisamente, é o momento de recuperar todos os votos roubados em sua própria casa por Luigi Di Maio. Por enquanto, Zingaretti já começou a enviar uma mensagem dirigida aos mais desfavorecidos e aos milhões de pobres que o M5S conquistou nas últimas eleições. “Dedicamos eles a vitória nessas primárias.”


Clóvis Rossi: Um olhar sobre as bobagens de Matteo Salvini

Um dos modelos favoritos do bolsonarismo é um governo extremamente tóxico

O bolsonarismo tem adoração publicamente manifestada por Matteo Salvini, ministro do Interior da Itália e principal líder da Liga, o xenófobo grupo que nasceu como Liga Norte.

Vale a pena, pois, dar uma espiada no que está acontecendo na Itália de Salvini, para o caso de que os Bolsonaros resolvam imitar as besteiras que Salvini pratica.

A mais recente é insólita e inédita desde junho de 1940, quando o embaixador francês, André François-Poncet, teve que deixar precipitadamente a Itália, após a declaração de guerra do fascismo italiano, que então ocupava o poder, à França.

Agora, é a França que chama de volta seu embaixador em Roma, Christian Masset, devido ao que a chancelaria francesa chama de “acusações repetidas”, “declarações ofensivas”, “ataques sem fundamento” e “ingerências sem precedentes” desde o fim da guerra (a de 1939-45).

Tudo praticado pelos dois vice-presidentes do Conselho de Ministros italiano, o tal de Salvini e seu colega Luigi Di Maio, do Movimento 5 Estrelas, também populista, mas de outra cepa.

A gota d’água foi o apoio dos dirigentes italianos ao movimento dos “coletes amarelos” que estão se manifestando repetidamente na França, protestos que geralmente terminam em quebra-quebra.

Sem entrar no mérito do movimento, que ainda não está bem decodificado, pergunto: como reagiria o bolsonarismo se Nicolás Maduro mandasse um representante (ou algum de seus paramilitares) para apoiar uma invasão qualquer do MST?

É isso que faz a Liga que a turma do presidente brasileiro tem como parte de sua futura fraternidade universal. Gente disruptiva por excelência, certo?

Suspeito que Paulo Guedes, o braço liberal do bolsonarismo, não tem maior simpatia por Salvini e sua turma.

O governo italiano apresentou proposta orçamentária que aumenta o déficit público, bem o oposto das intenções de Guedes. E olhe que a dívida italiana, como proporção do PIB, é bem maior que a brasileira.

O governo de que Salvini é a face mais evidente (e mais agressiva) que a Itália não vai bem das pernas: cresceu magro 1% em 2018 e, para 2019, a previsão de crescimento é magérrima (0,2%), o mais débil em cinco anos.

É verdade que a Itália vem tendo desempenho econômico medíocre há muito tempo, mas a Liga e o 5 Estrelas foram eleitos justamente para escapar da mediocridade.

Não o conseguiram em seus sete meses de governo.

Pode ser pouco tempo, mas uma fatia dos italianos parece achar que é muito: o Istat, o IBGE italiano, informou na quinta-feira (7) que cerca de 160 mil italianos mudaram-se para o exterior no ano passado, o maior número de emigrantes desde 1981.

Ou seja, o governo supostamente da “nova política” está sendo incapaz de dar esperança à ponderável fatia de italianos, que preferem tentar encontrá-la fora do país.

Ah, se o bolsonarismo reclama do vice Hamilton Mourão, na Itália é pior: Salvini fechou o país para o desembarque de imigrantes. O presidente do Conselho de Ministros, Giuseppe Conte, escolhido pela própria Liga e pelo M5S, foi à televisão para dizer que, “se não permitem os desembarques, irei eu mesmo buscá-los em meu avião”. Mourão não chegou ainda a tanto.

Vê-se, pois, que um dos modelos favoritos do bolsonarismo é profundamente tóxico. Alguma surpresa?


El País: Foragido, italiano Cesare Battisti é preso na Bolívia e Bolsonaro comemora com críticas ao PT

Extradição de ex-ativista de esquerda para a Itália era promessa de campanha do presidente brasileiro, que tenta se aproximar diplomaticamente do país europeu

Cesare Battisti, ex-militante da esquerda condenado por quatro assassinatos na Itália na década de 1970, foi preso na Bolívia na noite deste sábado, 12 de janeiro, por uma equipe da Interpol formada por agentes italianos e brasileiros na cidade de Santa Cruz de La Sierra. Battisti era considerado foragido desde meados de dezembro do ano passado, quando o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux, ordenou sua prisão preventiva. A detenção do ex-ativista foi divulgada inicialmente nas redes sociais por Filipe Martins, assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais, e comemorada horas depois pelo presidente Jair Bolsonaro. O mandatário brasileiro aproveitou a notícia da detenção para retomar suas criticas ao PT, partido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que em seu último dia de Governo, em 2010, concedeu asilo ao italiano. "Finalmente a justiça será feita ao assassino italiano e companheiro de ideais de um dos governos mais corruptos que já existiram no mundo (PT)", escreveu Bolsonaro, em uma rede social, adotando o mesmo tom de um dos seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro, que escreveu no Twitter: "Ciao Battisti, a esquerda chora".

Ainda não foi decidido se Battisti será encaminhado de volta ao Brasil para que o Governo federal dê início ao processo de extradição, ou se será enviado à Itália diretamente da Bolívia, sob o comando do presidente Evo Morales, um dos últimos expoentes do ciclo de esquerda da década passada na América Latina. Embora tenha comparecido à posse de Bolsonaro no início do mês em Brasília, Evo Morales sempre foi mais alinhado políticamente aos governos petistas. Em nota divulgada na manhã deste domingo, os Ministérios das Relações Exteriores e o Ministério da Justiça e Segurança Pública informaram que "estão tomando todas as providências necessárias, em cooperação com o Governo da Bolívia e com o Governo da Itália, para cumprir a extradição de Battisti e entregá-lo às autoridades italianas". Por ser considerado um foragido internacional, ele não precisa voltar ao Brasil para ser extraditado. De acordo com a rádio brasileira CBN, autoridades italianas já providenciaram a aeronave para transportá-lo diretamente de Santa Cruz de La Sierra à Itália.

Jair M. Bolsonaro

@jairbolsonaro

Parabéns aos responsáveis pela captura do terrorista Cesare Battisti! Finalmente a justiça será feita ao assassino italiano e companheiro de ideais de um dos governos mais corruptos que já existiram no mundo (PT).

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Battisti foi membro do grupo Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), um braço das Brigadas Vermelhas, e foi condenado à prisão perpétua por quatro homicídios ocorridos entre 1977 e 1979, que ele nega ter cometido. Depois de viver 15 anos exilado na França – onde se tornou um bem-sucedido autor de romances policiais –, em meados dos anos noventa se viu obrigado a partir para o México. Finalmente chegou em 2004 ao Brasil, onde permaneceu oculto até que, em 2007, foi ordenada sua detenção. Em 2013, casou-se no Brasil com uma brasileira e teve um filho com ela.

O Supremo Tribunal Federal aceitou sua extradição em 2009, numa decisão não vinculante, que deixou a decisão nas mãos do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas este a rejeitou em 31 de dezembro de 2010, último dia de seu segundo mandato. O destino de Battisti, que sempre foi reivindicado com insistência pela Itália, começou a mudar durante a última campanha eleitoral no Brasil, quando o então candidato da extrema direita Bolsonaro prometeu sua extradição se chegasse ao Planalto. Battisti estava foragido desde que, em 13 de dezembro, o STF ordenou sua detenção para que fosse extraditado para a Itália, valendo-se de um decreto do então presidente Michel Temer.

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Matteo Salvini

@matteosalvinimi

🔴Ringrazio per il grande lavoro le Forze dell’Ordine italiane e straniere, la @poliziadistato, l’Interpol, l’AISE e tutti coloro che hanno lavorato per la cattura di , un delinquente che non merita una comoda vita in spiaggia, ma di finire i suoi giorni in galera.

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A notícia da captura de Battisti foi comemorada pela classe política italiana. O ministro do Interior, Matteo Salvini, agradeceu ao presidente Jair Bolsonaro e às autoridades bolivianas pela colaboração, acrescentando que Battisti é “um delinquente que não merece uma cômoda vida na praia, e sim acabar seus dias na prisão”. O ultradireitista Salvini acrescentou: “Meu primeiro pensamento vai para os familiares das vítimas deste assassino, que durante muito tempo gozou uma vida que vilmente tirou dos outros, protegido pela esquerda de meio mundo”.

O ministro da Justiça, Alfonso Bonafede, antecipou que o ex-militante “agora será entregue à Itália” para que cumpra sua pena. “Quem erra deve pagar, e também Battisti pagará. O tempo passado não sanou as feridas que Battisti deixou nas famílias de suas vítimas e no povo italiano, assim como que não diminuiu o desejo humano e institucional de obter justiça”, afirmou na sua conta do Facebook. O ex-primeiro-ministro Matteo Renzi, do Partido Democrata (PD, centro-esquerda), também manifestou sua satisfação: “A detenção de Battisti na Bolívia é uma boa notícia. Todos os italianos, sem nenhuma distinção de cor política, desejam que um assassino deste tipo seja devolvido o antes possível ao nosso país para cumprir a pena. Hoje é um dia para a justiça”, celebrou.

Eduardo Bolsonaro

@BolsonaroSP

(ITA) Il Brasile non è più terra di banditi. @matteosalvinimi , il "piccolo regalo" è in arrivo 🇮🇹 ✈️

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O embaixador da Itália no Brasil, Antonio Bernardini, congratulou-se pela notícia: “Battisti está preso! A democracia é mais forte que o terrorismo”, escreveu o diplomata no Twitter. O deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, também usou essa rede social para enviar uma mensagem em italiano a Salvini: “O Brasil já não é mais uma terra de bandidos. @matteosalvinimi, o ‘presentinho’ está chegando'“. Junto à mensagem, colocou uma bandeira da Itália e o ícone de um avião.

A detenção de Battisti na Bolívia tem potencial para criar tensões entre esse país com seu poderoso vizinho, além de representar um desafio ao presidente Evo Morales. Em uma série de tuítes, o procurador federal brasileiro Vladmir Aras evocou várias alternativas legais, começando pela solicitação, por parte de Battisti, do status de refugiado político na Bolívia. Caso o obtenha, não poderia ser enviado para a Itália nem para o Brasil. Mas a Bolívia também poderia negar a permanência em seu território, devolvendo-o ao país de origem ou enviando-o a um terceiro país que aceite recebê-lo.

 


El País: Battisti vira peça central no flerte de Bolsonaro com Governo de direita italiano

Disputa diplomática com a Itália se aproxima do fim com mandado de prisão de italiano. Temer já assinou ordem de extradição, porém ex-ativista está foragido

A decisão de Luiz Fux, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), de determinar a prisão de Cesare Battisti deixa o ex-militante e escritor italiano a um passo da extradição e aproxima do fim uma disputa diplomática entre Brasil e Itália que se arrasta desde o final do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na Itália, Battisti é peça central nas cada vez mais próximas relações entre o presidente eleito Jair Bolsonaro e o governo do país europeu. Matteo Salvini, ministro do Interior e líder do partido populista de direita Lega Nord, comemorou a decisão de Fux e trocou mensagens pelo Twitter com Bolsonaro. "Darei grande mérito ao presidente Bolsonaro se ele ajudar a Itália a ter justiça, 'dando de presente' para Battisti um futuro nas nossas prisões", escreveu Salvini. A resposta de Bolsonaro a Salvini nas redes não poderia ser mais clara: "Conte conosco!"

O diário italiano La Repubblica narra uma vida repleta de fugas internacionais que há décadas mantêm Cesare Battisti longe das prisões italianas. Nascido em 1954, ele integrou na Itália o grupo Proletariado Armado pelo Comunismo (PAC), que nos anos 70 realizou assaltos a banco e a supermercados no país europeu, justificados como ações de expropriação. Foi nesse contexto que ele foi acusado —e condenado— por ter participado de quatro assassinatos, sendo o autor material de dois deles. Detido na Itália, conseguiu escapar da prisão em 1981 e fugir para a França. Permaneceu na Europa por pouco tempo e depois partiu para o México. Antes de fugir para o Brasil, passou outra temporada na França, que só reconheceu o pedido de extradição feito pela Itália em 2004. Ante o risco de cumprir prisão perpétua em seu país, fugiu novamente, dessa vez para a América do Sul. Ao longo desse período, Cesare Battisti passou a escrever livros e amealhou o apoio de intelectuais de esquerda que se opuseram à sua devolução à Itália.

No Brasil, Battisti protagonizou uma disputa diplomática com a Itália que se arrastou durante anos. Em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os assassinatos pelos quais Battisti fora sentenciado em seu país de origem não podiam ser considerados crimes políticos. Dessa forma, a condição de refugiado do italiano foi revogada e o caminho para a extradição parecia livre. No entanto, a Suprema Corte havia determinado naquele mesmo julgamento que a decisão final sobre entregá-lo ou não à Itália caberia ao presidente da República, na época Lula. No último dia do seu mandato, o petista optou pela não extradição, o que gerou fortes protestos das autoridades italianas.

Matteo Salvini

@matteosalvinimi

: “Conta su di noi!”.
Grazie Presidente @jairbolsonaro.
Se serve prendo il primo volo per riportare finalmente in Italia un delinquente condannato all’ergastolo.

Instalado no país e contando com a simpatia de figuras importantes dentro do PT, Battisti teve um filho no Brasil, um dos pontos levantados por sua defesa como impedimento à sua extradição. Seu caso voltou a complicar-se após o impeachment de Dilma Rousseff e a chegada de Michel Temer ao Palácio do Planalto, quando a nova administração passou a emitir sinais de que tinha interesse em dar seguimento à extradição.

Em 2017, o italiano chegou a ser preso tentando atravessar a fronteira do Brasil com a Bolívia em Corumbá, no Mato Grosso do Sul. Segundo as autoridades, ele portava 6.000 dólares e 1.300 euros. Depois de ser solto, ele se defendeu e disse que seu status legal à época lhe permitia sair do Brasil quando quisesse, mas o episódio foi interpretado por autoridades brasileiras com uma tentativa de evasão.

Naquele mesmo ano a Itália pediu ao governo Temer que revisasse o decreto de Lula de 2010 que possibilitou a permanência de Battisti no Brasil. Seus advogados entraram com um pedido de habeas corpus preventivo no Supremo para tentar evitar o seu envio à Itália. O principal argumento dos seus defensores era que a decisão de Lula não poderia ser derrubada mais de cinco anos após a sua publicação. Em um primeiro momento, Fux concedeu uma decisão provisória impedindo a extradição, mas ele cassou a própria decisão no seu despacho desta quinta-feira. "Com efeito, todos os requisitos para a extradição de Cesare Battisti já foram preenchidos, conforme reconhecido pelo plenário deste Supremo Tribunal Federal", escreveu o ministro do STF.


Alberto Aggio: "A situação da Itália é de impasse para a formação de um novo governo"

ELEIÇÕES ITALIANAS - ENTREVISTA - PROFESSOR ALBERTO AGGIO AO BLOG VOTO POSITIVO

1. A polarização entre a Centro-Direita e a Centro-Esquerda aparentemente se encerrou com a emergência do Movimento 5 Estrelas na política italiana. Depois da Eleição de 4 de março, seria possível afirmar que a “antipolítica” é a tendência que ganhará hegemonia nos próximos anos?

Alberto Aggio - É verdade que um dos aspectos significativos dessa eleição foi a superação do bipolarismo, o que não quer dizer que não há mais esquerda e direita. Também é verdade que o grande vencedor, o M5S, tem como principal característica uma marca antipolítica muito forte. Contudo, agora, vitorioso, numa situação bem especifica em que não há maioria e não há mecanismos em que o eleitorado defina uma eventual maioria, o jogo será jogado pelas forças em cena. O problema é que aqueles que venceram, M5S e Liga, não obterão facilmente o apoio daquele que perdeu, especificamente o PD de Matteo Renzi, embora esse tenha renunciado um dia depois dos resultados eleitorais serem conhecidos. A situação é de impasse para a formação de um novo governo. A tendência geral da antipolítica existe, é um fenômeno mundial, mas é difícil saber qual será precisamente seu futuro.

2. As três maiores forças políticas (Centro-Direita, Movimento 5 Estrelas e Centro-Esquerda) não conseguiram a maioria absoluta nas últimas eleições ao Parlamento Italiano. O Senhor avalia que é possível construir um acordo político entre Centro-Direita e Centro-Esquerda semelhante ao que ocorreu na Alemanha de Angela Merkel?

Alberto Aggio - A situação italiana é muito diferente da alemã. Na Itália, há uma clara oposição entre três polos e isso se expressou nas eleições. São três polos que não levam uma política de aproximação, com um centro político fazendo esse papel. Na Alemanha há já uma inclinação à “grande coalizão” porque se chegou ao um impasse histórico entre o partido de Merkel e os socialdemocratas. O risco na Alemanha é o crescimento espantoso dos neonazistas. De certa forma, nessa eleição italiana isso também apareceu, de maneira muito forte. Ou seja, há um clima de extremismo que precisa ser enfrentado. Não sei como as forças políticas italianas irão compor um novo governo. Mas seguramente não há disposição de composição entre direita e esquerda. Com a vitória da Liga, pode-se dizer que não há mais centro-direita na Itália porque Berlusconi foi derrotado. À esquerda, a derrota do PD também tem consequências sérias para qualquer composição. As únicas possibilidades seriam um governo guiado pelo M5S, o que é difícil uma vez que De Maio pensa que o PD é o seu mais forte interlocutor, mas o ataque que o M5S fez ao PD na campanha talvez inviabilize essa alternativa. Para o M5S o PD era o partido que significava o poder que precisava, no seu entendimento, ser derrotado. É difícil agora construir uma coabitação governamental.

3. A coalizão da Centro-Direita teve a Liga como a força política mais votada (em torno de 18%) em relação a Força Itália do Ex-Premiê Sílvio Berlusconi (em torno de 14%). Isso sugere que haverá uma guinada para o extremismo político na Itália? A questão dos imigrantes foi o fator decisivo nas eleições?

Alberto Aggio - Essa é efetivamente a mudança mais expressiva à direita. A derrota de Berlusconi significa o fim de sua carreira política e talvez do próprio partido, a Força Itália. A Liga deixou de ser identificada apenas como Liga Norte, inclusive eliminou a localização geográfica do nome. Contudo, sua votação mais expressiva tenha sido no Norte da Itália, enquanto o M5S venceu ao Sul. Como disse, o extremismo foi muito forte e os ataques à democracia representativa, à política tradicional, enfim, ao poder instituído, mesmo que ele seja democrático e reformista, como tem sido nos últimos anos na Itália. Ele, seguramente, permanecerá se exprimindo. Por isso, as instituições e os atores democráticos devem construir consensos para garantir estabilidade e funcionalidade do sistema. Mesmo os extremistas da Liga e do M5S terão que moderar o seu discurso e se institucionalizar. A questão dos imigrantes foi, certamente, transformada num embate que enfraqueceu o partido do governo, o PD, e fortaleceu o extremismo.

4. Há a possibilidade de a Itália encaminhar um processo de saída da União Europeia após as eleições do último domingo?

Alberto Aggio - Creio que nem mesmo o eleitorado que deu o seu voto a quem fazia o discurso antieuropeísta não estará disposto a apoiar a saída da Itália da UE. Na campanha eleitoral já estava clara a mudança. Tanto M5S quanto a Liga moderaram seus discursos contra a EU. O comparecimento da população às urnas foi em torno de 73%, num país onde o voto é facultativo, o que mostra que há interesse na participação eleitoral na Itália e que há consensos básicos entre os italianos. Um deles é de ser europeísta. Lembremos que em 2014, nas eleições europeias, o PD teve 40% dos votos; o M5S elegeu eurodeputados e eles estão lá realizando o seu trabalho (claro que estão num grupo fortemente crítico ao governo da UE, mas estão lá).

5. Como o Senhor explica o declínio eleitoral da coalizão de Centro-Esquerda? A liderança política de Matteo Renzi sai abalada com os resultados eleitorais do PD?

Alberto Aggio - A derrota do PD e de Matteo Renzi é dura e vai gerar mudanças. Inclusive, Renzi já renunciou ao cargo de secretário geral do PD, embora deva ficar até a realização da Assembléia Nacional do partido e das prévias para a definição e um novo secretário. Acho que a liderança de Renzi jogou o PD numa nova fase e redefiniu o PD. Alguns ex-comunistas se afastaram do partido, como era inevitável e formaram um novo partido, “Livres e Iguais”, que também não foi bem nas eleições. Algumas lideranças do antigo PCI, como Massimo d’Alema, que não foi eleito, sofrendo uma derrota vergonhosa, finalizaram sua carreira política nessa eleição. A questão para o PD agora é definir se apoiará um possível governo M5S ou não. Se o fizer, será a escolha de um caminho cujos resultados, para seus apoiadores, não se sabe as consequências. Se não o fizer, estabelecerá que o caminho é a reconstrução a partir da oposição, assumindo um outro papel. Há muita especulação e muita confusão também. Alguns dizem que o M5S é comparável, em termos de base social, o PCI de Enrico Berlinguer, grande líder do comunismo italiano da década de 1970. Há mais do que um exagero nessa avaliação. Mas há também informações que, de fato, mais de 1 milhão de eleitores que eram do PD, votaram no M5S, o que explica muita coisa e merece uma análise mais profunda.

6. Muitos analistas sugerem que o impasse político se prolongará até convocarem novas eleições. O que o Senhor acha desta hipótese?

R: É possível e até provável que isso aconteça. O presidente da República, Mattarella, deve chamar os líderes partidários ou suas direções para conversar sobre a formação de um novo governo. Isso deve tomar algumas semanas. Como disse, há um impasse e todos sabem disso. Por outro lado, convocar novas eleições tem um custo político muito grande, para vencedores e para quem foi derrotado. Mas, hoje não se pode saber muito bem o que irá acontecer.

7. A esquerda brasileira a partir dos anos 60 (movimento aprofundado nos anos 80/90) sofreu influências do debate político italiano com a recepção das obras de Gramsci. Como o Senhor avalia o quadro político/intelectual da esquerda brasileira que segue, se ainda assim podemos dizer, essa tradição?

Alberto Aggio - Acho que a esquerda brasileira passa por um processo de esgotamento depois do desastre petista. Na sociedade, a identidade de esquerda é vista hoje com muito desconfiança. O petismo foi muito tóxico. Há que se abrir uma espécie de “canteiro de obras” para repensar o ideário de esquerda num mundo como esse, de transformações imensas, de contradição velhas e novas, de idas e vindas, marchas e contramarchas em termos políticos e culturais. Há muito a se rever e a própria “tradição gramsciana”, como você sugere, deve fazer parte desse debate, desse repensar, revendo-se a si mesma.

8. Enfim, quais seriam as possíveis lições das eleições italianas para os brasileiros no ano das eleições gerais de 2018?

Alberto Aggio - Brasil e Itália tem muitas diferenças e alguma proximidade. Nós somos presidencialistas e a Itália é parlamentarista. Essa não é uma diferença pequena. A nossa cultura democrática é mais rarefeita e o nosso debate político bastante pobre, em comparação com o italiano. Vemos crescer aqui também um certo extremismo que é preocupante, para dizer o mínimo. A nossa esquerda, como disse, está em frangalhos depois da experiência lulopetista, e volta-se para si mesmo, procurando manter o apoio das corporações que lhes dão sustentação, especialmente as estatais. Uma nova esquerda, moderna e democrática, só teria passagem hoje em aliança com setores de centro, mais moderados e democráticos, e me parece que essa seria, de imediato, uma alternativa de perfil necessário, mas mínima. Em suma, em uma leitura da realidade brasileira, eu diria que o Brasil precisa ser reconstruído depois do desastre petista e seria bobagem uma atitude de “gladiador romano”, ilusória em nossa realidade.

 

 


El País: Forças radicais avançam na Itália em um cenário sem maiorias claras

Movimento 5 Estrelas cresce de maneira espetacular, mas a coalizão de centro-direita tomaria a liderança sem conseguir as cadeiras necessárias

Itália foi votar no domingo ameaçada pelo fantasma da ingovernabilidade e foi dormir com medo. Após a Espanha e a Alemanha, o país dos 64 Governos em 70 anos sofre as consequências do fim do bipartidarismo e de uma lei eleitoral ineficiente. De acordo com as pesquisas de boca de urna, nenhuma força conseguirá maioria. O Movimento 5 Estrelas cresce de maneira espetacular. Mas a coalizão de centro-direita tomaria a liderança sem conseguir as cadeiras necessárias. Dessa forma, se abre um cenário de pactos que formará estranhas parcerias e estimulará a ameaça do bloqueio sobre a terceira economia da zona do euro.

As pesquisas estavam quietas há duas semanas e nenhuma referência servia, nem mesmo a das últimas eleições, em 2013. A Itália foi às urnas nesse ano com uma lei eleitoral diferente, uma votação que foi até a manhã de segunda-feira e um partido que teve uma excepcional votação sem ter sequer um candidato. Dessa vez, 46 milhões de italianos deveriam resolver um problema que as pesquisas prognosticavam há semanas.

De acordo com as primeiras pesquisas de boca de urna para a rede de televisão RAI (80.000 pessoas entrevistadas) o bloqueio seria inevitável. O Movimento 5 Estrelas ganharia as eleições com um ótimo resultado (por volta de 30%), mas não seria capaz de chegar à maioria necessária. A coalizão de centro-direita superaria o M5S em quatro pontos percentuais, mas seu resultado, pior do que o esperado, também não ajudaria a desbloquear a situação.

As duas forças políticas de maior destaque no sábado – o Movimento 5 Estrelas e a coalizão de centro direita – tinham a calculadora no sul da Itália. Lá a disputa seria realmente decidida. As fileiras de Silvio Berlusconi e companhia davam como certa a vitória no Norte. Mas as regiões da Sicília, Campania, Puglia e Lazio seriam a pedra Rosetta do enigma eleitoral italiano, o mais incerto da história de um país cuja política não é exatamente simples de se decifrar.

Mas o M5S estava bem avançado na conquista desse território. A participação dos eleitores aumentou, o que beneficiaria o partido de Beppe Grillo que conseguiu o máximo do que poderia esperar: frear a centro-direita, obter um resultado que obrigará a levá-los seriamente em consideração no cenário dos pactos pós-eleitorais. Mas se os resultados se confirmarem, a voz de comando continua sendo a da centro-direita, em plena luta interna pela liderança da coalizão entre Matteo Salvini – as pesquisas davam um empate – e Berlusconi.

Mas a soma dos números do Força Itália, o partido de ultradireita populista da Liga e o Irmãos da Itália não seria suficiente para governar. De modo que vários cenários se abrirão. Incluindo o que a própria coalizão pescará no mar de outros partidos para conseguir uma base suficiente.

Desde o fim da publicação das pesquisas há duas semanas, os números falavam de um complicado quebra-cabeças dividido em três blocos: a centro-direita, a centro-esquerda e o M5S. A gravidade do assunto e a pressa em solucioná-lo, de qualquer forma, serão marcadas pelos mercados e prêmios de risco que começarão a incomodar se o bloqueio não for solucionado.

Evitar o caos

O presidente da República, Sergio Mattarella, e as instituições do país já trabalham em um cenário de consultas e pactos para evitar o caos. Os mercados, evidentemente, preferem uma grande coalizão entre a centro-esquerda – o Partido Democrático (PD) de Matteo Renzi + o Europa de Emma Bonino – e o Força Itália, um artefato político parecido ao que no sábado recebeu o sinal verde definitivo na Alemanha. Nesse caso, deverá encontrar uma figura de consenso, talvez externa à Câmara – como já aconteceu com Mario Monti – que lidere a Grande Coalizão italiana. Mario Draghi ultimamente aparece nas apostas. Mas além dessas variáveis, existem outras duas soluções de emergência que contemplariam um grande resultado do Movimento 5 Estrelas.

O partido fundado por Beppe Grilo deverá fazer sacrifícios se quiser fazer parte de um Executivo. O mais claro, renunciar a sua promessa de não formar alianças de Governo. Dentro do M5S falou-se do assunto durante toda a semana. Os números nunca lhe deram uma maioria. E uma possibilidade evidente seria formar um Executivo com o PD de Renzi e a esquerda do Livres e Iguais.

A outra, a que mais inquieta os mercados e a União Europeia, levaria o M5S a aproximar-se da Liga (que nas últimas eleições só obteve 4,1%) e seu pequeno aliado, os pós-fascistas Irmãos da Itália. Essa é a preferência de personagens como Steve Bannon, o ex-assessor do presidente dos EUA, Donald Trump, que está por esses dias em Roma como entusiasta das opções mais populistas (dito por ele mesmo).

Mas alguns dos cenários que se abririam não mudaram tanto. Em 2013, o então secretário geral do PD, Pier Luigi Bersani, já tentou um pacto com o M5S, o famoso Governo de mudança que lhe custou o cargo apesar de ter obtido um bom resultado (24,5%). Para Renzi, entretanto, seria uma partida complicada, a negação de tudo o que prometeu até agora em relação a não se acertar com os “extremistas”. Uma aliança que poderia fagocitar definitivamente o PD.

A militância do M5S também não vê com bons olhos essa opção. Os interesses pessoais, entretanto, podem fazer muitos mudarem de opinião. O partido liderado agora por Luigi di Maio não permite que seus representantes se apresentem a mais de dois mandatos. Uma regra que afeta o próprio candidato a primeiro-ministro, que está agora em sua segunda legislatura. Se precisarem repetir as eleições, não poderá concorrer. Um dado que poderá ajudá-lo a reconsiderar algumas de suas promessas. Qualquer cenário será submetido às bases mediante uma votação telemática, como em outras ocasiões.

SALVINI DISPUTA COM BERLUSCONI A LIDERANÇA DA COALIZÃO

Uma das batalhas mais apaixonantes dessas eleições foi a disputada silenciosamente pelo Força Itália e a Liga para liderar a coalizão de centro-direita. Silvio Berlusconi e Matteo Salvini acertaram que quem obtivesse mais votos escolheria o candidato a premier da coalizão. No caso do Força Itália é o presidente do Parlamento Europeu, Antonio Tajani. No da Liga, o próprio Salvini quer ser o candidato à presidência do Conselho de Ministros.

De acordo com as pesquisas de boca de urna realizadas pelas empresas EMG, Piepoli e Noto para a RAI no fechamento dos colégios eleitorais, os dois partidos estariam empatados. Uma disputa implacável que pode acabar significando um golpe de efeito no caso da contagem terminar favorável à Liga. O resultado acrescentará agressividade à fase pós-eleitoral onde deverão ser forjados os possíveis pactos de Governo. O partido de ideais inspirados no francês Le Pen é um fenômeno levantado pela crise imigratória, com a chegada de 600.000 pessoas na Itália nos últimos cinco anos e que se transformou em seu cavalo de batalha.

O sucesso da Liga também poderá abrir a janela ao cenário mais temido pela União Europeia e os mercados. Ou seja, um pacto entre o partido de Salvini e o Movimento 5 Estrelas, que também flertou nos últimos cinco anos com a ideia de convocar um referendo sobre o euro.

A liderança da Liga também desativará a opção Tajani, que continuaria em seu cargo à frente do Parlamento Europeu. Mas dificilmente seria aceitável pelo establishment e pelas instituições italianas, inquietas pelo discurso antieuropeu de Salvini, que prometeu que a Itália sairá da moeda única se a Europa não concordar em negociar todos os tratados que prejudicam seu país.


Mario Lavia: tentemos dizer algo sobre o terremoto de 4 de março na Itália

O voto de 4 de março é um terremoto político. À espera de conhecer os números definitivos (que podem fazer mudar alguns juízos iniciais), os traços salientes nos parecem os seguintes:

1. O país se revoltou: contra as elites, um pouco contra tudo. O humor negro dos italianos, por longo tempo latente, finalmente explodiu, arrastando tudo o que pareceu tradicional ou próprio do poder. É um fenômeno que tem características mundiais. Estamos numa fase histórica na qual os povos se levantam, democraticamente, de modo mais ou menos forte, contra as forças de governo, especialmente as forças reformistas.

2. Neste quadro, o PD sai do voto em mau estado. É um golpe muitíssimo duro, com traços de ingenerosidade — se é que na história pode valer pode valer esta categoria — em relação a um partido e a seu líder que carregaram por 5 anos o ônus de tirar o país da crise. Não sabemos o que sucederá no PD: no mínimo, uma discussão, não restrita a um punhado de dirigentes, parece inadiável. Uma discussão verdadeira.

3. O Movimento 5 Estrelas é o vencedor das eleições. Recolheu o descontentamento à esquerda e à direita. Soube aparecer como a única, e boa, novidade. Em linhas gerais, interceptou o protesto. No plano propositivo ainda não há clareza: o que Di Maio fará? Com quem se aliarão? Caminharão, de fato, com uma Liga já de extrema-direita? Ou se manterão puros e duros até as próximas eleições? Cabe a eles responder, se forem capazes.

4. A centro-direita não tem mais a liderança de Silvio Berlusconi — agora próximo de seu fim político —, mas a de Matteo Salvini. Pode-se dizer que a centro-direita não existe mais: existe a direita. Como aconteceu na França: fim do gaullismo, há Le Pen. É bom que a centro-esquerda se prepare para esta novidade que muda radicalmente a fisionomia desta parte do sistema político.

5. À esquerda do PD existe simplesmente a derrocada do projeto de LeU [Liberi e Uguali] e a emergência de pulsões extremistas que devem ser estudadas.

Cada um destes pontos, lançados a título pessoal como primeiríssimas linhas de reflexão, constitui um grande campo de discussão.

A coisa certa, em conclusão, é esta: é muito difícil dar um governo à Itália, sobretudo um governo democrático à altura dos problemas do País. Que Deus nos proteja.

* Mario Lavia é jornalista de Democratica, site de informação do PD

 


Alberto Aggio: A disjuntiva gramsciana

De um lado, o Gramsci da ‘política democrática’ e, de outro, o Gramsci da ‘política revolucionária’

Neste ano relembramos os 80 anos da morte de Antonio Gramsci, líder político comunista, reconhecido como um dos mais importantes pensadores da Itália. Depois da derrota do fascismo e do fim da 2.ª Guerra, suas ideias ajudaram a fertilizar o terreno que redundaria na construção da moderna República Italiana. Encarcerado por Mussolini em 1926, Gramsci não pôde ver essa tarefa realizada. Sem ter nunca publicado um livro, a difusão do seu pensamento se deve a seus editores, depois do resgate das notas que escreveu na prisão. Desse resgate resultaram as diversas edições dos famosos Cadernos do Cárcere, editados no Brasil desde a década de 1960.

Bastante conhecido no Brasil, o texto gramsciano presta-se a infindáveis polêmicas em torno da interpretação e dos usos dos seus conceitos. Muitos o veem como um ameaçador seguidor de Marx e Lenin, um revolucionário comunista sem mais. Outros o admiram por sua capacidade de perceber as mudanças de sua época, anunciando os traços da complexidade social que viria a se edificar com mais vigor bem depois de sua morte.

O pertencimento de Gramsci ao marxismo e ao comunismo é patente, ainda que ele seja reconhecido como um formulador original e considerado um “clássico da política”. Inicialmente, foi visto como um “pensador da cultura nacional-popular” e um “teórico da revolução nos países avançados”, de cuja obra se extraíram os conceitos que o tornaram um autor assimilado em grande escala. Recentemente, a partir de uma “historicização integral” da sua trajetória, visando a apanhar simultaneamente vida e pensamento (Giuseppe Vacca), aliada à recepção e ao tratamento de fontes inéditas ou até ignoradas, vem emergindo uma nova inserção de Gramsci na política do século 20. Essa perspectiva analítica tem permitido a superação dos diversos impasses e bloqueios que marcaram por longos anos os estudos gramscianos.

Mesmo na prisão, Gramsci continuou sendo um homem de ação. Tudo o que escreveu, das reflexões anotadas nos cadernos à correspondência com familiares e amigos, indica que ele permaneceu atuando como um dirigente político. Nessa condição, procurou fazer chegar à direção do Partido Comunista Italiano (PCI) suas avaliações do cenário italiano e mundial, bem como seus questionamentos a respeito de algumas orientações do PCI que lhe pareciam equivocadas. É desse comprometimento que emergem os termos de uma “teoria nova”, hoje reconhecida no mundo da política e dos intelectuais.

Nos Cadernos do Cárcere foi se sedimentando um novo pensamento, com o qual Gramsci imaginava poder mudar as orientações do movimento comunista. Do texto de Gramsci se pode apreender uma superação clara do bolchevismo, notadamente em relação à concepção do Estado, à análise da situação mundial, à teoria das crises e à doutrina da guerra como parte intrínseca da revolução.

Não foi por acaso que dessas reflexões emergiu a proposta de luta pela convocação de uma Assembleia Constituinte. Isso implicava deslocar o PCI da preparação da revolução proletária para a conquista da Constituinte. Em outras palavras, estrategicamente a luta pela democracia deixava de ser pensada apenas como fase de transição para o socialismo e assumia autonomia plena. No mundo do comunismo da década de 1930 tratava-se de um ato de ruptura. Assim, o ponto de chegada dos Cadernos foi a elaboração de uma nova visão da política como luta pela hegemonia, o que, em termos objetivos, representaria a adoção de um programa reformista de combate ao fascismo e, com ele, a reconstrução da nação italiana.

Essa nova teoria, dramaticamente elaborada no interior das prisões fascistas, resultava do enfrentamento dos impasses que o atormentavam como dirigente político: a derrota para o fascismo e a perda de propulsão do movimento comunista soviético, bloqueado pelo “estatalismo” e pelo autoritarismo. Os conceitos de Gramsci, tais como “hegemonia”, “guerra de posições”, “revolução passiva”, “transformismo” e “americanismo”, entre outros, evidenciam uma linguagem própria, não mais bolchevique ou leninista, de quem, mesmo na prisão, pensava de maneira inovadora os desafios que estavam postos diante da construção política da modernidade no Ocidente.

Em meio às lutas pela democracia, diversas gerações de intelectuais brasileiros que se aproximaram do pensamento de Gramsci buscaram uma tradução dos seus conceitos para nossas circunstâncias. Da década de 1970 para cá, parecia haver consenso na assimilação dos conceitos do pensador sardo, mas a realidade não confirmou essa tese.

Hoje há uma disjuntiva explícita: de um lado, o Gramsci da “política democrática”, ou seja, da política-hegemonia, enquanto “hegemonia civil”, não mais “proletária” ou “socialista”; de outro, o Gramsci da “política revolucionária”. Na primeira “leitura”, a revolução não é mais o centro da elaboração política e a perspectiva se deslocou no sentido de exercitar o conceito de revolução passiva até seus limites, isto é, acionar permanente e intransigentemente a política democrática visando a inverter a longa “revolução passiva à brasileira” (Werneck Vianna), de marca autoritária e excludente, e dar-lhe novo direcionamento.

Aqui estamos diante de uma tradução do Gramsci que se descolou da sua originária demarcação revolucionária e se distanciou de um marxismo que ainda tem como referência uma época histórica de revoluções. É isso que lhe dá o viço ainda hoje. Inversamente, o “outro” Gramsci permanece prisioneiro de uma representação construída a partir de um duplo sentido: representação de classe, como o fora anteriormente, numa perspectiva revolucionária, e, noutro sentido, como representação da conservação e difusão de um imaginário revolucionário do qual se querem resguardar os signos e significados de uma época revolucionária terminada há décadas.

 


Marco Aurélio Nogueira: Déspotas, populistas e demagogos, os arautos dos tempos atuais

Quando Silvio Berlusconi surgiu na cena política em maio de 1994, houve espanto e curiosidade. Não pelo fato de um magnata vencer eleições e governar a Itália, mas porque Il Cavaliere, como era conhecido, simplesmente reunia, em sua persona, a figura do rico empresário, do bon vivant e do homem da indústria do entretenimento, condição derivada do controle que mantinha sobre a maior rede privada de comunicação do país.

Era a imagem perfeita de uma liderança política que iria se sintonizar com os tempos que então se anunciavam: tempos de dificuldades para a democracia, de crise da representação, de desorganização política e social, de redução da densidade ética e política dos estadistas. Beneficiado pelas circunstâncias, Berlusconi assumiu o governo como premiê e nele construiu uma casamata de proteção dos próprios interesses, impulsionado por um império midiático e por um movimento de novo tipo (a “Força Itália”) que erodia as bases de reprodução dos partidos políticos, devorando-os por dentro e por fora.

No arco de quase duas décadas, Berlusconi ganhou e perdeu eleições, mas permaneceu no centro da política italiana. Chegou por três vezes ao cargo de primeiro-ministro, a última das quais se encerrou em 2011. Ao todo, ocupou o cargo de primeiro-ministro durante nove anos, um tempo considerável. Saiu da cena política formal em 2013, deixando um rastro de escândalos e tramoias que ainda hoje cercam sua trajetória, fazendo dela um verdadeiro case político.

Berlusconi foi um arauto. Com ele, a democracia representativa passou a conviver com personagens que carregam consigo a utilização abusiva dos meios de comunicação, que fazem da imagem, do histrionismo cênico e do personalismo os principais canais de interpelação dos cidadãos. Com eles, a política foi “reinventada”, passando a ser praticada com ingredientes explosivos: a mentira, a centralidade da televisão e das redes, a pregação racista, a xenofobia explícita, o separatismo, a demagogia populista, a ameaça, o baixo nível generalizado, a rusticidade argumentativa, o marketing movido a rios de dinheiro.

Uma visão em grande angular da política atual mostra bem como esse novo padrão está em marcha ascendente. De Trump a Marine Le Pen, do Movimento 5 Estrelas de Beppe Grillo na Itália ao Brexit e a Nigel Farage na Inglaterra, dos racistas holandeses e dinamarqueses à Alternativa para a Alemanha (AfD), de Frauke Petry, dos nacionalistas populistas aos vários separatismos, tudo se acomoda na ideia de que a extrema-direita encontrou uma estrada para acessar o grande palco da política, nele não só acampando como fazendo-o de forma totalitária, animada pela ideia de tomar o poder para atenuar as liberdades, repor a “ordem” e conter a democracia. Mantêm-se as instituições e as rotinas eleitorais, mas mudam-se o conteúdo e os estilos, com a infiltração na cultura democrática de valores e procedimentos que a corroem e desvirtuam.

Uns falam em “pós-democracia”, outros em morte dos ideais iluministas, outros ainda em novo irracionalismo. Todos procuram as chaves explicativas do processo em curso. Sabem que ele se associa à globalização e à reorganização do capitalismo, que estão a enfraquecer os Estados nacionais, a fragmentar as sociedades e a desestruturar as economias, levando os cidadãos à angústia da desproteção e fazendo com que o sistema representativo e seus operadores (a começar dos partidos políticos) mergulhem em uma fase de impotência e diluição. O cenário é perfeito para a multiplicação de pessoas providenciais.

Quando Berlusconi iniciou seu controle sobre a política italiana, o filósofo italiano Norberto Bobbio (1909-2004), um liberal-socialista então com mais de 80 anos, saiu em seu encalço. Como explicar o fato, como aceitar que um magnata do entretenimento, controlador dos principais órgãos de comunicação do país, concentrasse em suas mãos o poder político e o fizesse com aplausos entusiasmados de parte ponderável do eleitorado italiano?

Bobbio escreveu diversos artigos na imprensa diária da Itália para tentar não somente entender o fenômeno mas sobretudo alertar a opinião pública. Viu Berlusconi como um autêntico ovo da serpente, do qual nasceriam demônios difíceis de serem controlados.

Uma seleção desses artigos foi então reunida pela revista Critica Liberale no volume Contra os novos despotismos. Escritos sobre o berlusconismo, que a Editora Unesp e o Instituto Norberto Bobbio acabam de publicar no Brasil.

Os textos mostram o que Bobbio tinha de melhor: a retórica afiada e elegante, a argúcia argumentativa, sempre movimentando um pêndulo entre a realidade factual da política e as grandes elaborações teóricas e filosóficas, com as quais a política foi sendo pensada ao longo do tempo. Estão ali alguns de seus maiores achados e praticamente todas as suas obstinações: a complexidade, a indispensabilidade e as promessas fracassadas da democracia, o perigo dos totalitarismos, a importância dos partidos políticos, a força criadora do liberalismo social, a face demoníaca do poder, a relevância do cidadão politicamente educado.

Para Bobbio, o perigo representado por Berlusconi derivava do fato de que ele reunia, em uma só pessoa, aquilo que devia ser separado: o poder econômico, o poder político e o poder cultural. Não lhe parecia razoável que alguém que detinha um quase monopólio das redes de comunicação pudesse disputar um cargo público e chegar à posição de primeiro-ministro, a partir da qual teria força não somente para defender seus próprios interesses como para burlar e desorganizar o sistema democrático, enxertando nele sementes de um novo tipo de despotismo, que, do antigo, conservava o fundamental: ser um “governo sem leis nem freios”.

Tal como tantos líderes de hoje, Berlusconi criava partidos e movimentos ad hoc, para servi-lo. Se os grandes partidos o rejeitavam, explorava suas correntes internas, de modo a extenuá-los. Conseguia, assim, ir formando partidos pessoais, obedientes às suas ordens. Como insistiria Bobbio, a “Força Itália” berlusconiana não era um partido, mas “um conjunto de comitês eleitorais difusos por todo o país”. Não se sabia quem a financiava, quem a compunha, qual o seu projeto para o país. Era, na verdade, uma “rede de grupos semiclandestinos”, uma invenção sem precedentes com a qual se imaginava fazer funcionar a democracia.

O líder dispensava o trabalho diuturno de edificação partidária para se dedicar à montagem de uma “videocracia triunfante”, na qual o poder seria exercido não mais somente por meio da palavra falada escrita ou falada, mas “por meio da imagem que entra insistentemente na casa de todos e se fixa na memória, bem mais do que um discurso”. Desta forma, transmitia-se à sociedade mensagens que valorizariam a figura providencial do “grande homem” e destilariam medos e ameaças de todo tipo, voltados sobretudo para o ataque às esquerdas e à democracia. O poder televisivo mostraria, assim, sua pior face: forneceria ao poder político a posse dos “meios essenciais para a formação do consenso”.

O novo despotismo está solto pelo mundo. Faz-se acompanhar de demagogos e populistas de variada espécie, quase todos autoritários e que se apresentam como “determinados e enérgicos”, contrários à temperança e ao que veem como “frouxidão” dos adversários. São tipicamente de direita, mas a praga, a rigor, não escolhe campo para proliferar.

Bobbio foi direto ao ponto. “Uma das características mais conhecidas e documentadas da ‘personalidade autoritária’ é a absoluta confiança em si mesmo, nas próprias possibilidades de resolver os mais difíceis problemas não apenas para si mesmo, mas também para os outros”. O líder autoritário não falha e sempre tem razão, cerca-se quase sempre de uma “missão divina” que o põe um palmo acima dos outros, sua generosidade é proverbial, apresenta-se como um serviçal do povo. É performático, estampando na face a estudada indignação de quem se julga vítima dos poderosos, dos aristocratas endinheirados de Wall Street ou dos que controlam os esquemas tradicionais da política. São invariavelmente inescrupulosos quando se trata de poder.

O filósofo se atormentava com a incapacidade que os progressistas tinham de bloquear a irrupção dos novos déspotas. “Tenho a impressão de que nesse universo globalizado continuamos a discutir sobre ideias, enquanto o que conta agora são os grandes interesses econômicos e financeiros, que passam por cima da política e não estão muito preocupados com a cultura”. (p. 81).

Olhando os dias que passam, magnatas como Berlusconi continuam atuantes na política. Talvez já não causem mais espanto, mas continuam a produzir uma sombra sobre a dinâmica democrática, especialmente quando sabem o que fazer com os meios de comunicação. Junto com eles, estão em campo populistas autoritários pouco preocupados com a institucionalidade democrática. Bobbio escreveu que, na Itália dos anos 1990, “um vento de loucura está arrastando nosso já frágil sistema político”. É um diagnóstico que permanece atual para onde quer que se olhe no mundo de hoje.

*Professor titular de teoria política e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp