Imposto

Luiz Carlos Azedo: O imposto da reeleição

Guedes voltou a defender a reforma tributária. Agora, pretende aumentar o peso do Estado na economia e não o contrário, como anunciou nos tempos áureos de Posto Ipiranga

Há quase um consenso no Ministério da Economia de que a antecipação do projeto de reeleição do presidente Jair Bolsonaro, em meio à pandemia, tornou-se o maior complicador da política econômica. Muito do comportamento errático do ministro Paulo Guedes decorre dessa contingência política, que não tem nada a ver com as necessidades dos agentes econômicos. Ontem, ao afirmar que indexadores não resolvem os problemas, que a solução dos mesmos é sempre política, citando as medidas de “economia de guerra” adotadas pelo Congresso, Guedes jogou a tolha: já não lidera a política econômica do governo, rendeu-se ao “dispositivo parlamentar” montado por Bolsonaro e os generais que hoje mandam na Esplanada dos Ministérios.

Os líderes do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR); no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE); e no Congresso, senador Eduardo Gomes (MDB-TO), são raposas políticas experientes, operam em conexão direta com os ministros da secretaria de Governo, general Luiz Ramos; da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas; e do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, para viabilizar desde já o projeto de reeleição de Bolsonaro, em troca de apoio nas eleições municipais para os candidatos ligados ao Centrão, o bloco político que ancora o governo no Congresso. Guedes foi engolido por esse grupo.

A política, em última instância, é a economia concentrada, mas a experiência mostra que a blindagem da política econômica é que garantiu o sucesso do Plano Real, no governo Fernando Henrique Cardoso, com o economista Pedro Malan no Ministério da Fazenda, e do governo Lula da Silva, com Guido Mantega comandando a economia. Em ambos casos, porém, o projeto de reeleição teve um custo muito alto. No governo Bolsonaro, a equipe econômica, em vez de ser blindada, está sendo implodida pelo próprio presidente da República.

Ontem, por exemplo, o “dispositivo parlamentar” — como não lembrar, com sinal trocado, do “dispositivo militar” do presidente João Goulart, que não impediu sua deposição —, anunciou junto a Guedes que o governo desistiu de manter o veto do presidente Jair Bolsonaro à prorrogação da desoneração da folha de pagamentos de 17 setores da economia intensivos em mão de obra. A decisão foi tomada porque o governo concluiu que já estava derrotado no Congresso. Guedes, que orientou o veto presidencial, é o grande perdedor. Agora, o Palácio do Planalto quer fazer do limão uma limonada. Como? Usando a derrubada do veto como justificativa para criar um novo imposto sobre operações financeiras. Ou seja, o governo pretende aumentar a carga tributária, com um imposto com efeito cascata.

Investimentos

O objetivo é gerar uma sobra de caixa para a implantação do programa Renda Brasil, a transferência de R$ 300 para a população de baixa renda hoje atendida pelo Bolsa Família e o abono emergencial. Concebido para ser o carro chefe da campanha de reeleição de Bolsonaro, o programa ainda não tem viabilidade, por falta de recursos no Orçamento. Para pôr de pé a proposta, Guedes voltou a defender a reforma tributária. Agora, pretende aumentar o peso do Estado na economia e não o contrário, como anunciou nos tempos áureos de Posto Ipiranga.

O resultado da movimentação errática do governo na economia está sendo a volta da inflação, a queda da Bolsa e a alta do dólar, como mostram os indicadores anunciados ontem. O pior ainda está por vir: a taxa recorde de desemprego, que deve chegar a 18% da população economicamente ativa, considerando-se apenas os que procuram emprego, o critério adotado pelo IBGE. Nesse rumo, logo o Banco Central (BC) terá que aumentar a taxa de juros, hoje em 2%, o que é muito bom diante da recessão causada pela pandemia, mas começa a ser pressionada pelos juros nas operações de venda de títulos públicos, por perda de confiança dos investidores.

O Banco Central anunciou, ontem, uma queda de 26,6% nos investimentos diretos, que somaram US$ 22,8 bilhões no primeiro semestre, contra US$ 31,1 bilhões no mesmo período do ano passado. Neste ano, ao contrário do que o presidente Bolsonaro disse em seu discurso na ONU, os investidores já retiraram R$ 88,9 bilhões da Bovespa, o dobro do volume registrado no ano passado: R$ 44,5 bilhões. É o pior desempenho em 11 anos. A pandemia e a recessão mundial têm culpa nesse cartório, assim como é compreensível que o ministro Guedes tente vender otimismo e anuncie uma recuperação em V da economia brasileira, mas não está sendo convincente. Ainda não caiu a ficha de que a falta de confiança dos investidores é resultado do comportamento errático do governo na economia, das crises criadas pelo próprio presidente Bolsonaro e de uma política ambiental desastrosa. Criar um imposto para garantir a reeleição do presidente da República não resolve o problema.

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Luiz Carlos Azedo: Base em desalinho

Com o congelamento dos reajustes das aposentadoria por dois anos, proposta da equipe econômica, todos os velhinhos pagariam a conta da reeleição de Bolsonaro antecipadamente

O Palácio do Planalto tenta ganhar tempo para reagrupar sua base parlamentar no Congresso e evitar a derrubada do veto do presidente Jair Bolsonaro à prorrogação da desoneração das folhas de pagamentos de empresas de 17 setores da economia, até o final de 2021. É mais ou menos como convidar os perus para a festa de Natal, porque não é somente o presidente da República que está de olho na própria reeleição, os parlamentares federais estão com um olho nas eleições municipais e outro na preservação dos respectivos mandatos em 2022. Por essa razão, a apreciação do veto foi adiada para a próxima semana, numa articulação do líder do governo no Congresso, senador Eduardo Gomes (MDB-TO).

Os setores beneficiados pelas desonerações são os mais atingidos pela pandemia, entre os quais os de call center, tecnologia da informação, transporte, construção civil, têxtil e comunicação, que empregam em torno de 6 milhões de trabalhadores com carteira assinada. O objetivo das desonerações foi preservar os empregos do setor. Desde a aprovação da prorrogação, o governo manobra para evitar a votação do veto, que é muito difícil de ser mantido. Mais do que, por exemplo, o perdão das dívidas das igrejas evangélicas, que Bolsonaro vetou no domingo, pedindo ao mesmo tempo que seus aliados derrubassem o veto. A ambiguidade do presidente da República nessa matéria vale também para as desonerações, porque Bolsonaro já não consegue esconder as dificuldades que tem para contrariar seus eleitores em matéria de responsabilidade fiscal.

O veto só não foi derrubado ainda porque o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), tem colaborado com o Palácio do Planalto, evitando pautar a matéria. Alcolumbre é candidato à reeleição no cargo, o que é vedado pela Constituição, mas trabalha para emendá-la. A reeleição não é permitida na mesma legislatura. Outros presidentes da Casa também tiveram a mesma ambição, sem sucesso, até mesmo o ex-presidente José Sarney, que foi o presidente do Senado o mais poderoso desde a redemocratização. No momento, o grande pretexto para o adiamento são as convenções eleitorais nos municípios, que de fato estão mobilizando senadores e deputados.

Impostos
A apreciação de vetos é prerrogativa da sessão conjunta do Senado e da Câmara. O líder do governo no Congresso, Eduardo Gomes, tenta rearticular a base para manter o veto, com o discurso de que é possível “um acordo que contemple aquilo que os vários segmentos querem: que o país tenha uma recuperação econômica segura e que a desoneração fique absolutamente resolvida porque isso mantém empregos”. No fundo, o governo está meio desesperado diante da ameaça de derrubada dos vetos, por causa do cobertor orçamentário curto. A equipe econômica precisa de caixa para bancar o Renda Brasil, programa de transferência de renda anunciado por Bolsonaro, no valor de R$ 300, para substituir o Bolsa Família, o legado social do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que chega ao máximo de R$ 205 quando beneficia cinco pessoas na mesma família.

Por enquanto, não há dinheiro para viabilizar o projeto, que é a menina dos olhos de Bolsonaro para sua reeleição. Como o governo se recusa a cortar seus gastos na escala necessária — a reforma administrativa proposta pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, tem pouco efeito de curto prazo —, a equipe econômica recorre a subterfúgios do tipo a volta da CPMF, o novo imposto sobre operações eletrônicas proposto por Guedes, ou a recorrente tentativa de transferir renda dos pobres para os mais pobres ainda, para usar as palavras de Bolsonaro, como o congelamento dos reajustes das aposentadoria por dois anos, intenção anunciada ontem: todos os velhinhos pagariam a conta da reeleição de Bolsonaro antecipadamente. A proposta é marota porque permitiria o aumento em setembro de 2022, ou seja, às vésperas das eleições.

São duas propostas com difícil passagem pelo Congresso, quando nada porque o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, se finge de morto, enquanto o presidente da Câmara, Rodrigo Maia(DEM-RJ), mais uma vez bate de frente com o ministro Paulo Guedes e anuncia que não apoia a criação do imposto: “Não dá para criar novos impostos a cada crise, a gente tem de olhar e voltar ao que estávamos discutindo”, referindo-se ao equilíbrio fiscal. “Pode ser mais fácil abrir um espaço fiscal no orçamento para aumentar o investimento púbico, mas isso é um ciclo vicioso”, completou. Segundo Maia, o país não foi capaz de resolver os problemas da economia quando criou novos impostos. Seria melhor debater “as reformas que melhorem a qualidade do gasto público.”

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Luiz Carlos Azedo: Auxílio emergencial e recessão

“Para a oposição, é melhor manter o auxilio de R$ 600 até o final do ano, com Bolsonaro contra, em vez de gastar em obras que miram apenas os aliados do presidente”

O presidente Jair Bolsonaro anunciou ontem a prorrogação do auxílio emergencial por mais quatro meses, no valor de R$ 300; metade do que estava sendo concedido nos últimos cinco meses. O valor é resultado das conversas entre o presidente da República, o ministro da Economia, Paulo Guedes, e os líderes da base do governo. A medida provisória que renova o abono será examinada pelo Congresso e ainda pode sofrer modificações. A oposição pressiona para que seja mantido o valor de R$ 600. O próprio Bolsonaro gostaria que isso ocorresse, porque sua popularidade aumentou devido ao abono, mas o governo não tem recursos para isso. A dívida pública deve chegar a R$ 1 trilhão e projeta um déficit fiscal que deve perdurar por 13 anos.

Os beneficiados pelo auxílio, no total, receberão R$ 4,2 mil do governo federal. Muitos nunca viram tanto dinheiro. Esses recursos explicam em parte o bom desempenho da agricultura, único setor positivo do PIB deste segundo trimestre do ano, principalmente da cultura do arroz (7,3%), porque o café (18,2%) e a soja (5,9%), embora tenham também grande consumo interno, foram beneficiados principalmente pelas exportações. O abono ajudou a manter os níveis de consumo de alimentos pela população. O Brasil, porém, está vivendo a maior recessão de sua história, segundo o IBGE, com uma retração de 12,3% no segundo trimestre e de 12,7% na comparação com igual período do ano passado; o agronegócio foi o único setor, pelo lado da produção, a ter números positivos, de 0,4% e 1,2%, respectivamente. Os dados foram divulgados ontem pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O problema principal é a indústria parada. A queda de produção na indústria de transformação foi de 17,5%, na comparação com os primeiros três meses do ano, e 20% em relação ao mesmo período do ano passado. Os setores mais atingidos foram: automotivo, máquinas e equipamentos, transporte, metalurgia e têxtil. Na indústria têxtil, a queda foi 93%, o que aponta uma retração de 23% neste ano. O ministro da Economia, Paulo Guedes, minimizou a queda do PIB e voltou a defender a tese, inverossímil, de que haverá uma recuperação em V da economia no curto prazo, o que não coincide com a avaliação do mercado financeiro. Comparou os números do PIB à luz das estrelas, que viajam milhões de ano para chegar até nós. Segundo ele, os dados refletem o passado e não a situação real da economia. A narrativa pode convencer Bolsonaro; no mercado, quase ninguém acredita.

Crise fiscal
O problema de Guedes é que os agentes econômicos estão de olho na crise fiscal. O custo do abono é quase de 1% do PIB por mês. Embora Guedes tente reduzir isso pela metade, não será muita surpresa se o Congresso decidir manter os R$ 600 até o fim do ano. O raciocínio da oposição é muito simples: é melhor aumentar o abono, com Bolsonaro contra, do que deixar o governo com saldo para gastar em obras dos ministérios da Infra-Estrutura e do Desenvolvimento Regional, que miram apenas os aliados do presidente. A relação entre a dívida e o Produto Interno Bruto (PIB) deve superar o patamar de 95% neste ano. Em 2019, o endividamento do Brasil foi de 75,8%. Se o abono de R$ 600 for mantido, a dívida pública ultrapassará 100% do PIB. O xis da questão para o mercado financeiro é o “teto de gastos”, que Guedes quer manter, mas Bolsonaro não faz muita questão. Se ele for ultrapassado, haverá retração ainda maior nos investimentos privados, sem que o governo possa compensar com recursos públicos.

A decisão de reduzir o abono emergencial de R$ 600 para R$ 300 tem um cálculo eleitoral de Bolsonaro. A ideia é absorver o desgaste inicial e, mais na frente, faturar a manutenção desse auxílio para as famílias de baixa renda por meio do novo programa de transferência de renda que substituirá o Bolsa Família, denominado Renda Brasil. Esse abono é 50% maior do que o programa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que chega no máximo a R$ 205, quando beneficia cinco pessoas, e atenderá a um número maior de pessoas de baixa renda. Com ele, o presidente da República pretende pavimentar sua reeleição. O abono ajudou o governo a mitigar o desgaste com a pandemia de Covid-19 e abriu as portas desse eleitorado para Bolsonaro, deslocando a oposição de boa parte desse segmento, inclusive no Nordeste.

O outro lado da moeda é a forma como esse déficit fiscal será administrado por Guedes. No mercado financeiro há duas hipóteses: aumento de impostos ou inflação. Qualquer um dos dois é péssimo para a economia. Preocupado com as expectativas negativas, Guedes disse que a reforma tributária ainda não está madura — na verdade, não há clima político para aumento de impostos – e anunciou que pretende mandar a proposta de reforma administrativa para o Congresso amanhã, o que sinalizaria o empenho do governo no sentido de reduzir os gastos com a sua própria máquina administrativa.

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Luiz Carlos Azedo: O peso das desigualdades

“Para viabilizar o investimento de R$ 30 bilhões em obras, a ideia é mesmo recriar o imposto sobre operações financeiras, enquanto a reforma administrativa é empurrada com a barriga”

O governo Bolsonaro anunciará, nesta semana, o programa Pró-Brasil. Para os que não sabem, é o projeto de obras de infraestrutura que havia sido apresentado pelos ministros da Casa Civil, Braga Neto; da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas; e do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, logo no começo da pandemia, à revelia do ministro da Economia, Paulo Guedes. Gerou uma crise que levou o mercado a reagir algumas vezes, com forte especulações sobre a saída de Guedes, que não saiu. Entrou numa negociação com os demais ministros, mediada pelo presidente Jair Bolsonaro, que resultou na mudança de enfoque do programa, no qual ganharam mais densidade as propostas de desoneração da folha de pagamento e de transferência de renda mínima, chamados de Carteira Verde e Amarela e Renda Brasil, respectivamente.

Para viabilizar o investimento de R$ 30 bilhões em obras em fase de conclusão, a ideia é mesmo recriar o imposto sobre operações financeiras, ou seja, aumentar a carga tributária, enquanto a reforma administrativa é empurrada com a barriga pelo presidente da República. Há controvérsias sobre a manutenção do teto de gastos, do qual o ministro Paulo Guedes, com apoio do mercado, não abre mão. Mas o assunto continua em pauta, porque há economistas que defendem uma nova política monetária, como André Lara Resende, com menos preocupações fiscais. A torcida do Flamengo, os ministros militares, Freitas e Marinho, os políticos do Centrão e o presidente Jair Bolsonaro simpatizam com essas teses, contra as quais Guedes bate o pé. O velho conflito entre liberais e desenvolvimentistas está instalado no governo.

Há uma ligação entre os governos Vargas, Geisel e Dilma Rousseff, cujo fio condutor é o desenvolvimentismo. Boa parte das obras que Bolsonaro quer concluir, principalmente as que envolvem infraestrutura de transportes e energia para viabilizar a expansão do agronegócio e da mineração e de suas cadeias de exportação — interligando o Centro-Oeste, o Nordeste e o Norte à rota de comércio do Pacífico, via o canal do Panamá, na América Central —, foi iniciada nos governos Lula e Dilma. A política dos “campeões nacionais” do BNDES e a “nova matriz econômica”, que resultaram em grandes escândalos de corrupção do governo Lula e no desastre econômico do segundo mandato de Dilma Rousseff fazem parte desse mesmo processo. Vale lembrar que Rogério Marinho foi o articulador da reforma trabalhista do governo Michel Temer, no qual Tarcísio de Freitas foi o braço direito de Moreira Franco no programa de investimentos em infraestrutura e parcerias público-privadas. Há um fio de história em tudo isso, que as narrativas à esquerda e à direita procuram ocultar.

O tema da modernização conservadora, que alguns chamam de “via prussiana” e outros de “revolução passiva”, está tendo sua recidiva nos bastidores do governo Bolsonaro. Os militares que o hegemonizam são desenvolvimentistas, saudosistas do “milagre econômico” do regime militar e começam a esboçar um projeto de desenvolvimento para o país sob a bandeira da ordem. O problema é que a ordem é democrática, ou seja, pressupõe o respeito à Constituição e aos demais poderes, o que complica bastante a implementação de projetos sem um amplo consenso político e social. Como o governo Bolsonaro não é de construir amplos acordos, vive do confronto com seus adversários, certas convergências programáticas com a oposição se inviabilizam. Mas essa é outra discussão.

Estado e mercado

De onde vem a força do desenvolvimentismo nos tempos atuais? Vem, sobretudo, da experiência dos chamados Tigres Asiáticos — Coreia do Sul, Cingapura, Taiwan e Hong Kong —, que alcançaram altos níveis de desenvolvimento combinando intervenção governamental e relação com o mercado. Esses países investiram pesadamente na educação e na infraestrutura e mantiveram uma forte relação com o mercado, com subsídios e incentivos fiscais, sem interferir na relação entre as empresas. O mesmo modelo foi adotado na América Latina e na África e fracassou, por causa do tratamento preferencial dado às empresas, sufocando a concorrência, e da corrupção. Não faltam exemplos, mas nos basta o que aconteceu por aqui. A China, hoje, é o país mais bem-sucedido em termos de modelo de “Estado desenvolvimentista”, mas é uma outra coisa, porque manteve o planejamento centralizado e o controle absoluto do Partido Comunista sobre a maioria das empresas chinesas, embora também existam grandes empresas 100% privadas e integradas às cadeias globais de comércio.

Com a pandemia e a recessão, as deficiências do sistema educacional, a política ambiental retrógrada, as tensões políticas e a explosão da dívida pública, fica muito difícil financiar a modernização da infraestrutura. Como não temos poupança interna nem capacidade de endividamento, o financiamento dos grandes projetos depende de investimentos estrangeiros, o que requer segurança jurídica e estabilidade política, além de atender às modernas exigências de sustentabilidade, transparência e responsabilidade social. Além disso, nossas desigualdades contribuem para frear o crescimento econômico: a concentração de renda gera insatisfação social e pressiona o governo por políticas mais distributivistas, que somente são possíveis com aumento de impostos, que acabam por reduzir as taxas de crescimento. Essa ciranda, diante da crise que estamos vivendo, inviabiliza tanto o projeto ultraliberal de Guedes quanto a proposta desenvolvimentista de seus adversários no governo. Estamos num jogo de perde-perde.

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Luiz Carlos Azedo: O projeto conservador

“A dois anos do bicentenário da independência, as ideias de Oliveira Viana parecem renascer das cinzas, como fênix, diante da grande interrogação: que país seremos daqui a 100 anos?”

Há 100 anos, o livro de um autor até então desconhecido, com 37 anos, fez estrondoso sucesso literário e político: Populações Meridionais do Brasil, de Oliveira Viana. Escrito entre 1916 e 1918, levou dois anos para ser publicado, pela livraria José Olympio. Somente um intelectual da época ousou contestá-lo, Astrojildo Pereira, um dos grandes biógrafos de Machado de Assis, jornalista, crítico literário e anarquista, que se converteria ao marxismo e, dois anos depois, fundaria o Partido Comunista. O que dizia Viana? Ele definia três arquétipos para o povo brasileiro: o sertanejo, o matuto e o gaúcho, os quais pretendia analisar, desenvolvendo um projeto de pesquisa ambicioso, ao qual deu sequência com a publicação meteórica de mais quatro ensaios: O Idealismo da Constituição (1920), Pequenos Estudos da Psicologia Social (1921), Evolução do Povo Brasileiro (1923) e O Ocaso do Império (1924). O primeiro volume de Populações Meridionais do Brasil dedicou aos paulistas, fluminenses e mineiros; o segundo, ao campeador rio-grandense. Partia do homem para criticar as instituições da época.

“O sentimento das nossas realidades, tão sólido e seguro nos velhos capitães gerais, desapareceu, com efeito, das nossas classes dirigentes: há um século vivemos praticamente em pleno sonho. Os métodos objetivos e práticos de administração e legislação desses estadistas coloniais foram inteiramente abandonados pelos que têm dirigido o país depois da independência. O grande movimento democrático da Revolução Francesa; as agitações parlamentares inglesas; o espírito liberal das instituições que regem a república americana, tudo isto exerceu e exerce sobre nossos dirigentes, políticos, estadistas, legisladores, publicistas, uma fascinação magnética que lhes daltoniza completamente a visão nacional dos nossos problemas. Sob esse fascínio inelutável, perdem a noção objetiva do Brasil real e criam para uso deles um Brasil artificial e peregrino, um Brasil de manifesto aduaneiro, made in Europa, sorte de Cosmorama extravagante. Sobre o fundo de florestas e campos, ainda por descobrir e civilizar, passam e repassam cenas e figuras tipicamente europeias.”

Oliveira Viana faz um ataque frontal aos liberais brasileiros, corroborado pela iniquidade social que havia sido desnudada por Euclides da Cunha, ao descrever a Guerra de Canudos, n’Os Sertões. Concluía que era preciso “coragem infinita” para “contravir ostensivamente às ideias de liberdade e construir um poderoso Estado centralizado, capaz de impor-se a todo o país pelo prestígio fascinante de uma grande missão nacional”. Ao dizer que era impossível reproduzir aqui no Brasil o parlamentarismo inglês, o liberalismo democrático à francesa, ou o federalismo e descentralização republicana ao estilo americano, como lembra o falecido jornalista e cientista político Gildo Marçal Brandão, em Linhagens do Pensamento Político Brasileiro (Hucitec), Oliveira Viana recomendava uma intervenção radical pelo Estado, destinado a promover a industrialização e criação de bases sociais aptas a sustentar governos liberais, o que alguns viram como uma espécie de “autoritarismo instrumental”.

Estado Novo

Música para a jovem oficialidade do Exército, que daria início às rebeliões tenentistas, e para o castilhismo gaúcho, o suprassumo do nosso republicanismo positivista mais autoritário, que desaguariam na Revolução de 1930. A consagração das ideias antissistema de Oliveira Viana viria com o Estado Novo, do qual foi o grande ideólogo, e a “Polaca”, a Constituição de 1937, redigida por Francisco Campos e outorgada pelo ditador Getúlio Vargas. Ironicamente, Jorge Caldeira, em História da Riqueza no Brasil (Estação Brasil), destaca que o colapso político da República Velha interrompe mudanças importantes que estavam em curso, alavancadas por nosso mercado interno e a economia do sertão, como o aumento de rentabilidade da exportação de café, a grande acumulação de capital dos cafeicultores paulistas, que apostaram na industrialização, e não no patrimonialismo, ao contrário das oligarquias rurais que Viana enaltecera.

Segundo Caldeira, em 1920, o Brasil tinha 30 milhões de habitantes, 13,3 mil indústrias, 275 mil operários, produzia 775Gwh de energia elétrica. O Correio transportava 642 milhões de itens. Havia 28,5 mil quilômetros de ferrovias, que transportavam 16,5 milhões de toneladas. Os investimentos, estagnados durante a guerra, eram de 1,1 milhão de libras esterlinas e chegariam a 2,8 milhões, em 1929. Exportava-se 11,5 milhões de sacas de café, cujo rendimento era de 40,4 milhões de libras esterlinas. O percentual da população alfabetizada chegava a 28,8%. Era uma época em que o Estado arrecadava 6% do PIB, ou seja, o setor privado ficava com 94%. A União era responsável por 3,5% desse montante, os Estados com 2,% e os municípios com 0,5%. O país crescia graças ao desenvolvimento capitalista, a conexão entre a economia do sertão e a economia de exportação financiava a industrialização.

Entretanto, o Centenário da Independência desencadearia o questionamento de quase tudo, com a Semana de Arte Moderna, a criação do Partido Comunista, as rebeliões tenentistas, como a Revolta Paulista de 1924 e a Coluna Prestes, no mesmo ano. Qual seria o projeto de país para os 100 anos seguintes? À época, esse debate foi hegemonizado pelas ideias de Oliveira Viana, que tiveram sua grande recidiva após o golpe de 1964, no Sesquicentenário da Independência, no auge “milagre econômico” do regime militar. Agora, no governo Bolsonaro, a dois anos do bicentenário da independência, elas parecem renascer das cinzas, como fênix, diante da grande interrogação: que país seremos daqui a 100 anos?

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Luiz Carlos Azedo: A âncora da estabilidade

”Embora desanuviada, a crise permanece, porque o cobertor está curto para fazer o que Bolsonaro deseja: aumentar os investimentos com recursos do Tesouro, sem reformas”

Foi um dia de muito nervosismo no mercado e no Palácio do Planalto, a ponto de o presidente Jair Bolsonaro ter de chamar uma reunião de ministros e parlamentares de sua base, com o ministro da Economia, Paulo Guedes, em razão da péssima repercussão da saída de dois integrantes da equipe econômica, que jogaram a toalha devido à falta de compromisso do governo com a reforma administrativa e as privatizações. Os secretários especiais de Desestatização e Privatização, Salim Mattar, e de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, Paulo Uebel, pediram demissão na terça-feira, o que pegou Guedes de surpresa. O ministro abriu o jogo para opinião pública: há uma “debandada” na equipe, por causa dos rumos do governo.

Guedes não escondeu seu desconforto e revelou a crise interna do governo na terça-feira, após uma reunião com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), hoje o seu principal aliado na defesa do chamado “teto de gastos”, que vincula as despesas do Orçamento da União à inflação passada, como uma maneira de conter e reduzir, ao longo do tempo, o deficit fiscal. O que era um deficit previsto de R$ 134 bilhões neste ano, com os gastos decorrentes das medidas emergenciais para enfrentar a pandemia, deve chegar à casa dos R$ 800 bilhões, fazendo a dívida pública se aproximar dos 100% do PIB no fim do ano. Esse é o tamanho do problema. O mercado vê com desconfiança a capacidade de Guedes administrar essa dívida.

Colabora para isso o fato de que outros cinco integrantes da equipe econômica já haviam deixado o governo desde o ano passado: Marcos Cintra (ex-secretário da Receita Federal), Caio Megale (ex-diretor de programas da Secretaria Especial de Fazenda), Mansueto Almeida (ex-secretário do Tesouro Nacional), Rubem Novaes (ex-presidente do Banco do Brasil) e Joaquim Levy (ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, BNDES). Mas nenhum deles tinha a mesma proximidade de Mattar e Uebel com Guedes, com o agravante de que o primeiro é um líder empresarial carismático, cuja saída teve muito mais repercussão no mercado.

Nos bastidores do Ministério da Economia, a avaliação é de que o grupo de executivos e empresários liberais que cercava Guedes não aguentou o giro da moenda da administração pública federal e o jogo bruto de poder na Esplanada dos Ministérios, principalmente com os militares. A saída dos dois auxiliares e amigos deixou Guedes muito abalado, mas o ministro amanheceu, ontem, disposto a partir para a briga pela manutenção do teto de gastos contra seus colegas de Esplanada, aparentemente com a solidariedade do presidente Jair Bolsonaro. A reunião de ontem à tarde, no Palácio do Planalto, com Guedes e seus desafetos na Esplanada, os ministros Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, que foi seu secretário de Previdência, e o ministro Tarcísio Freitas, da Infraestrutura, foi para Bolsonaro pôr ordem na tropa e começar a negociação da manutenção do teto com o Congresso.

Novo líder
Também participaram do encontro os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP); e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ); os deputados Arthur Lira (PP-AL) e Ricardo Barros (PP-PR), e os senadores Eduardo Gomes (MDB-TO) e Fernando Bezerra (MDB-CE). A novidade foi a presença de Barros, ministro da Saúde no governo Michel Temer, que será o novo líder do governo na Câmara. Bolsonaro trocou o deputado Major Vítor Hugo (PSL-GO), seu fiel escudeiro, por um dos quadros mais importantes do Centrão na Câmara, unificando o grupo, cuja liderança Barros divide com Arthur Lira, o líder da bancada do PP.

Embora a crise tenha sido desanuviada, permanece, porque o cobertor está curto para fazer o que Bolsonaro deseja: aumentar os investimentos com recursos do Tesouro. Na equipe econômica, a avaliação é de que a antecipação da estratégia de reeleição de Bolsonaro está sendo um fator perturbador da política econômica. De certa forma, Guedes também tem culpa nesse cartório: na polêmica reunião ministerial de 22 de abril, foi um que pôs pilha em Bolsonaro, ao vincular o abono emergencial ao projeto eleitoral de 2022. Todo o problema, agora, é o fato de que Bolsonaro já está em campanha.

Há uma conta que não fecha. Guedes não consegue fazer as privatizações, seja porque os militares que comandam as estatais fazem obstrução, seja por falta de investidores, ou as duas coisas. Não faz a reforma administrativa porque Bolsonaro não quer confusão com os servidores públicos. Não consegue aprovar a nova CPMF porque essa sigla é palavrão para a opinião pública e para a maioria do Congresso. Sem reforma administrativa nem aumento de impostos, não tem teto de gastos que resista.

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Luiz Carlos Azedo: A tentação populista

“A tendência do presidente Bolsonaro é forçar a barra para Guedes “furar o teto de gastos”, estabelecendo exceções, como os gastos com o reaparelhamento das Forças Armadas”

O populismo no Brasil, como de resto em toda a América Latina, pode ser caracterizado por um arremedo de Estado de bem-estar social, com uma agenda nacionalista e estatizante, além de uma legislação trabalhista que concedeu representação e muitos direitos aos trabalhadores, mas também exacerbou seu corporativismo e lhes tomou a autonomia. No nosso caso, deixou raízes tão fortes que sobreviveu ao golpe de 1964, serviram de alicerce social para o regime militar por bom período, bem como renasceram das cinzas durante os governos petistas. Agora, em mais uma das reviravoltas que nos promove, ressurge como uma tentação para o presidente Jair Bolsonaro alavancar seu projeto de reeleição em meio à crise causada pela pandemia da covid-19.

Nosso país vem ficando para trás na corrida mundial para reinventar o Estado e modernizar a economia, que sofre o choque de uma crise sanitária sem precedentes e uma brutal recessão econômica. Sob o impacto de aceleradas inovações tecnológicas, que alteram a divisão internacional do trabalho, as relações entre capital e trabalho e também a própria organização do trabalho, a sociedade brasileira se depara com a necessidade de uma agenda econômica e social robusta, inovadora, que enfrente o problema do desenvolvimento econômico com menos desigualdades sociais. Entretanto, nem o governo Bolsonaro nem a oposição são capazes de formular essa agenda, bloqueada por narrativas ideológicas de caráter liberal-conservador ou nacionalista-reacionária, no campo oficial, e social-democrata ou nacional-desenvolvimentista, entre as forças de oposição.

São embarcações à deriva num mar revolto, sem chance de corrigir o rumo. É aí que o pulo do gato de um populismo de direita, que misture corporativismo, paternalismo social, conservadorismo nos costumes e uma recidiva nacional-desenvolvimentista começa a ganhar força no governo Bolsonaro, com apoio dos militares que compõem o eixo principal de sua equipe de governo, o que tem tudo a ver com suas concepções históricas sobre o papel do Estado brasileiro, impregnadas de positivismo e nacionalismo. O sonho do Brasil potência dormia em berço esplêndido; após a posse de Bolsonaro, busca um caminho de volta à cena política.

O ciclo de modernização em curso no Brasil é desigual e socialmente injusto, não se apoia na capacidade própria da nossa economia, mas em fluxos do comércio mundial nos quais nossa vocação natural é produzir commodities de minérios e alimentos, o que tem resultado na progressiva redução de nossa complexidade industrial. Além disso, a nossa baixa inovação tecnológica também resulta dessas demandas, bem como toda a ideologia que fomenta essas inovações. Assim, o moderno e o modernoso se confundem no mundo das narrativas, enquanto a realidade social e econômica continua amarrada por toda uma estrutura de relações institucionais, econômicas e sociais com um pé na economia arcaica e outro no atraso cultural. Esse quadro estressa nosso Estado de direito democrático.

Popularidade
Essa tensão estrutural hoje permeia a vida nacional e tem como epicentro a relação entre a política institucional, cujo desenvolvimento ocorre por meio das instituições da democracia representativa, e as redes sociais, nas quais os diferentes atores se digladiam ao defender suas visões de mundo. Interpretam a realidade de forma distorcida pela perspectiva ideológica, muitas vezes de caráter religioso. Nesse cenário, o projeto ultraliberal de modernização do ministro da Economia, Paulo Guedes, que já tinha contradições com a agenda reacionária de costumes do presidente Bolsonaro, naufragou na pandemia e não tem chance de se restabelecer. Ao mesmo tempo, as medidas de emergência adotadas pelo Congresso para compensar os efeitos sociais e econômicos da pandemia estão chegando ao seu limite.

Por ironia, essas medidas econômicas de caráter heterodoxo tiveram impacto favorável à popularidade do presidente da República, que estava em queda aberta, principalmente no Norte e Nordeste, entre os mais pobres e os mais jovens. Pode-se dizer que o abono emergencial caiu no colo de Bolsonaro e passou a ser um vetor de seu projeto de reeleição, do qual não pretende mais abrir mão. Vem daí sua tentação populista. A oposição, que não pode apostar no “quanto pior, melhor” nem “pôr mais azeitona na empada” de Bolsonaro, está perplexa e paralisada diante da situação, como aquela presa enfeitiçada pela cobra que prepara o bote iminente.

Entretanto, o governo Bolsonaro está diante de escolhas duras, do tipo, aumentar impostos ou reduzir as despesas. No primeiro caso, não conta com o apoio da maioria dos políticos, mas encontra ressonância nos meios empresariais. No segundo, tem apoio da opinião pública, mas enfrenta resistência feroz das corporações. A tendência de Bolsonaro é forçar a barra para Guedes “furar o teto de gastos”, estabelecendo exceções, como os gastos com o reaparelhamento das Forças Armadas. Quando fala em “desengessar” o Orçamento da União, destinando verbas de despesas obrigatórias — que normalmente não são executadas para reduzir o deficit fiscal — em investimentos em obras públicas, faz concessões incompatíveis com seu próprio projeto. Num momento de grandes mudanças globais, nas quais vamos ficando para trás, estamos enxugando gelo. O Brasil não tem uma agenda moderna, democrática, socialmente mais justa e mobilizadora da sociedade.

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O Estado de S. Paulo: Projeto de reforma tributária aumenta impostos pagos por profissionais liberais

Na proposta do governo, os 3,65% pagos atualmente por escritórios de advocacia, contabilidade, assessoria econômica e de comunicação, passariam para uma alíquota de 12%

Adriana Fernandes, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - A nova etapa da reforma tributária em estudo pelo governo vai modificar o modelo de tributação de profissionais liberais que prestam serviços por meio de empresas e conseguem receber remunerações em forma de lucro livre do pagamento de impostos. Escritórios de advocacia, contabilidade, assessoria econômica e de comunicação, que hoje pagam alíquota de 3,65% de PIS/Cofins e distribuem cerca de 85% do que faturam sem pagar impostos, estão se mobilizando contra a proposta de criação da nova Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e, principalmente, contra a volta da tributação sobre lucros e dividendos (pagamentos que os acionistas recebem pelo lucro gerado). 

O modelo atual levou à famosa “pejotização”: trabalhadores mais qualificados deixam de ser contratados como pessoa física por uma empresa e passam a prestar serviço como pessoa jurídica. O PJ, pessoa jurídica, paga cerca de um terço, ou até menos, de tributos em comparação a um empregado registrado, mesmo exercendo tarefas idênticas. Para o consultor Thales Nogueira, o fenômeno da “pejotização” contribui para aumentar a desigualdade de renda no Brasil nos últimos anos ao tributar menos quem ganha mais. 

Felipe Santa Cruz
Felipe Santa Cruz, presidente do Conselho Federal da OAB, disse que 'iria à guerra' no Congresso contra a alíquota de 12% da CBS. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

De acordo com os dados mais recentes do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), o porcentual médio de renda isenta dos profissionais liberais chega a 76% entre os advogados, 75% entre economistas, 71,6% entre agentes e representantes comerciais, e 68,6% entre produtores rurais (ver quadro). 

Embora a proposta do governo federal só esteja tratando do PIS/Cofins, a alíquota prevista de 12% é muito maior do que os 3,65% pagos atualmente por esses profissionais. No caso do novo imposto que deve substituir o PIS/Cofins, especialistas ouvidos pelo Estadão lembram que essas empresas poderão usar o crédito que vão gerar ao longo da cadeia produtiva (à medida que forem comprando produtos) para abater no pagamento do imposto, mas quando o serviço for prestado a uma pessoa física (consumidor final), não haverá crédito a ser abatido e, portanto, a carga tributária será mesmo maior.

Arrecadação

Já a retomada da tributação dos lucros e dividendos, que existia até 1996, deve ser incluída na reforma tributária do ministro da EconomiaPaulo Guedes, com o objetivo de aumentar a arrecadação para bancar o novo programa social estudado pelo governo, o Renda Brasil, que deve substituir o Bolsa Família, com um benefício maior e mais famílias contempladas. Essa tributação deve ser progressiva, ou seja, quem distribuir mais lucros, pagará uma alíquota maior – nos moldes do Imposto de Renda. 

Hoje, esses profissionais pagam imposto sobre o lucro da empresa, mas os porcentuais são bastante baixos em função dos regimes simplificados de tributação. “É praticamente um caso de dupla não tributação dos lucros”, diz o economista Sérgio Gobetti, lembrando que o Brasil é um dos poucos países do mundo que isenta os dividendos distribuídos pelas empresas.

As propostas de reforma que estão sendo discutidas na comissão mista do Congresso não alteram a tributação de lucros e dividendos, mas o debate se acirrou na esteira das críticas de profissionais liberais de que haverá aumento da carga tributária com a alíquota mais alta da CBS de 12%. 

O descontentamento foi maior entre os advogados. O presidente do Conselho Federal da Ordem de Advogados do Brasil (OAB)Felipe Santa Cruz, chegou a declarar que a entidade “iria à guerra” no Congresso contra a proposta. 

“Os dados da Receita para 2018 mostram que nenhuma ocupação se beneficiou mais do privilégio do que os advogados”, disse Pedro Fernando Nery, consultor do Senado. Segundo ele, com a isenção vigente sobre lucros e dividendos, os brasileiros mais ricos se livram de pagar o imposto de renda sobre a pessoa física. 

O procurador tributário da OAB, Luiz Bichara, rebate às críticas e argumenta que é preciso entender que o uso da sistemática não é uma prerrogativa dos advogados. “O que alguns burocratas entendem por ‘benefício’ nada mais é do que um regime válido para a esmagadora maioria dos empreendedores brasileiros”, diz. 

Perguntas e respostas

1. Como é a tributação hoje?

As empresas são tributas em 34% sobre o lucro auferido. Sócios e proprietários de empresas que recebem dividendos (pagamentos que os acionistas recebem pelo lucro gerado) não estão sujeitos à incidência de IR pessoa física (a alíquota poderia chegar a 27,5% se estivessem). A isenção na distribuição de lucros e dividendos resulta numa baixa tributação dos valores recebidos pelos sócios e acionistas. Em muitos casos, um profissional liberal que receba por meio de uma empresa de lucro presumido (nome dado a um tipo de modelo simplificado em que a empresa estima um lucro com base em porcentuais sobre a receita bruta)é tributado sobre apenas 32% da receita, podendo distribuir todo o lucro sem tributação na pessoa física.

2. Quantas pessoas recebem dividendos no País?

São 3,2 milhões de pessoas, segundo dados de 2018 (o mais atual). 

3. Esses são os PJs?

Eles se confundem. Há empresários, executivos e alguns profissionais liberais que recebem a maior parte dos valores em lucros e dividendos. Mas também há o avanço da “pejotização”, quando um trabalhador se torna prestador de serviço, atuando como pessoa jurídica. Uma coisa é o profissional que é dono ou sócio de empresa, paga aluguel, tem folha de salário, opta por um regime especial e tem parte da renda isenta porque recebe um montante como dividendo. Outra coisa são as atividades de cunho personalístico e que não têm custo. Só o trabalhador travestido de empresa para não pagar imposto.NOTÍCIAS RELACIONADAS


Míriam Leitão: A velha CPMF de roupa nova

O governo tem fantasiado o novo imposto que pretende propor com roupas modernas. Segundo dizem os economistas da equipe econômica, seria o mesmo que está sendo pensado na Europa para as transações digitais. Na verdade, o que está em debate em várias partes do mundo é totalmente diferente de um imposto sobre as movimentações financeiras — eletrônicas ou não — dos consumidores. Tenta-se saber como taxar as grandes empresas da tecnologia, as mesmas que dias atrás foram interrogadas na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos para se defender da acusação de poder excessivo.

Quem explica a diferença entre uma nova versão da CPMF e o que se tenta na Europa é o economista Pedro Henrique Albuquerque, da Kedge Business School, em Marselha, na França. Ele trabalhou no Banco Central, esteve na equipe que implantou as metas de inflação e é autor de um estudo de referência sobre a CPMF e seus impactos na economia brasileira:

— O objetivo na Europa não é tributar transação financeira ou a compra e venda por cartão de crédito. É fazer as grandes corporações americanas pagarem mais impostos. Apple, Google, Facebook, Microsoft, Amazon, ir atrás das receitas dessas empresas. Uma das ideias seria um imposto eletrônico, mas se for feito, vai ter que ser de uma forma que a Amazon pague mais, mas o pequeno comerciante que vende produtos eletrônicos, não. Do contrário, seria injusto. O problema é o poder de monopólio dessas companhias, esse é o centro da discussão.

Pedro Albuquerque fez mestrado e doutorado nos Estados Unidos e há 10 anos é professor na França. No seu estudo sobre a CPMF, publicado em 2001, ainda no Brasil, ele mostrou várias das distorções provocadas pelo tributo: aumento do spread bancário, estímulo à informalidade, custo maior para os mais pobres e peso excessivo sobre as empresas menores.

— O primeiro problema desse imposto é que a base de arrecadação não é estável, pelo contrário, é altamente reativa. Quanto maior a alíquota, mais a base encolhe. É como se o Imposto de Renda tivesse como efeito diminuir a massa salarial. Não é isso que se espera de um bom imposto — disse.

Um dos argumentos que a equipe econômica tem dito, agora com a permissão presidencial para defender o imposto, é que a base de tributação é ampla. Assim paga-se pouco porque todos pagam.

Não foi o que aconteceu no Brasil com a CPMF. Ela era cumulativa, virava uma grande taxação sem transparência, e dava aos maiores a chance de escapar. Grandes empresas levaram vantagem porque usavam a sua capacidade de verticalização. Ou seja, uma grande companhia podia aumentar o número de processos produtivos internamente, para evitar a compra e venda de produtos de terceiros.

Com isso, os pequenos negócios acabavam sendo sobretaxados. Além disso, criou-se um estímulo à informalidade. Albuquerque lembra que no Brasil começou a haver muitas trocas de cheques, que passaram a exercer função de moeda:

— As grandes empresas estavam criando quase que bancos internos com sistemas de compensação. Tentaram proibir isso, mas as pessoas são criativas, e quanto maior a alíquota maior o incentivo. É um imposto regressivo.

As propostas de taxação sobre movimentação financeira vêm da esquerda europeia, explica o economista, mas como forma de impostos regulatórios, como por exemplo sobre o mercado especulativo de ações. Ou inspiradas na Taxa Tobin, do economista James Tobin, que propunha tributar grandes movimentações financeiras internacionais:

— Há várias propostas de impostos eletrônicos na Europa, mas não são impostos que vão fazer o professor pagar mais. Não é para incidir sobre aluguel, sobre compras em geral, o objetivo não é esse.

Ele explica que o que se tenta é um tributo que incida sobre uma empresa grande como a Amazon, mas não sobre uma pequena. Não é para tributar cada transação eletrônica, é para tentar de alguma forma pegar a receita de grandes empresas de tecnologia.

— Com o Google a coisa complica ainda mais. Seria ir atrás da renda de propaganda, da publicidade, que é a fonte da receita da empresa. Não é para taxar a compra do cafezinho na esquina. Seria muito difícil politicamente na União Europeia se alguém tentasse colocar um imposto na conta-corrente do europeu. Seria um escândalo — afirmou.

A expectativa é que o ministro Paulo Guedes explique nos próximos dias e semanas o que pretende, afinal.


Luiz Carlos Azedo: A volta do “mais do mesmo”

“O governo está quebrado e não tem recursos para implantar o programa Renda Brasil, que substituirá o Bolsa Família, menina dos olhos de Bolsonaro para sua reeleição”

O governo Bolsonaro perdeu o ímpeto das reformas. É normal, mas após o segundo ano de governo. Entretanto, a pandemia antecipou a inércia. E, se levarmos em conta o papel coadjuvante que representou na reforma da Previdência, o presidente Jair Bolsonaro nunca teve muita motivação para protagonizar as reformas econômicas. Sua agenda prioritária sempre foi outra, o conservadorismo nos costumes, que também anda encalhado no Congresso, e o fortalecimento do Executivo em relação aos demais Poderes, como fato consumado na política. Se ainda houver alguma reforma este ano, será a tributária, na qual as propostas em discussão na Câmara e no Senado são mais ambiciosas do que o projeto apresentado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, para embrulhar a recriação do imposto sobre operações financeiras. Uma solução simples para um problema muito mais complexo, que seria modernizar o nosso sistema tributário para torná-lo mais eficiente, equilibrado para os entes federados e mais justo, socialmente.

Entre os economistas, há uma compreensão quase unânime de que a dívida pública, se nada for feito, trará de volta a inflação no próximo ano (o termômetro é o câmbio), que somente não está acontecendo por causa da recessão e do desemprego. Mesmo economistas como Samuel Pessoa e Armínio Fraga, que defendem políticas de austeridade fiscal, já admitem a criação de um novo imposto para evitar o colapso do governo federal no próximo ano. A alternativa que está se discutindo, a partir da proposta de Guedes, é a volta da CPMF. A tese é ampliar a base de arrecadação para ter a menor alíquota do imposto. Com isso, o governo espera resolver seu problema de caixa e evitar a insolvência.

Como aconteceu na reforma da Previdência, uma reforma tributária depende muito mais da Câmara e do Senado do que do empenho do Palácio do Planalto. O projeto encaminhado por Paulo Guedes não tem nada a ver como isso: seu foco é a falta de caixa. Por causa da pandemia, o governo está quebrado e não tem recursos para implantar o programa Renda Brasil, que substituirá o Bolsa Família, menina dos olhos de Bolsonaro para sua reeleição. Na pauta da Câmara e do Senado, respectivamente, as PECs 44 e 110 são outra coisa: uma reforma tributária de verdade.

Diferenças
A PEC 45/2019, elaborada por Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal, tem como relator o deputado Baleia Rossi (SP), presidente do MDB. É defendida também pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que pretende aprovar a reforma tributária antes de deixar o comando da Casa. O ponto central do projeto é a substituição de cinco tributos por um único imposto, que seria chamado de imposto sobre bens e serviços (IBS). O modelo é inspirado em sistemas utilizados em outros países, que reúnem em um único imposto sobre valor adicionado (IVA) toda a tributação sobre o consumo, com uma alíquota uniforme. Economistas como Samuel Pessoa defendem a proposta.

A PEC 110/2019, de autoria do ex-deputado Luiz Carlos Hauly, em discussão no Senado, porém, tem a preferência dos tributaristas, porque promove uma simplificação tributária mais ampla, unificando nove impostos. A PEC, porém, facilita a concessão de incentivos fiscais a alguns setores produtivos e atividades econômicas específicas — como de alimentação básica, saneamento básico, educação infantil, o que não é bem-visto pelos fiscalistas, porque gera subsídios cruzados e guerra fiscal.

Voltando ao ponto de partida. O governo não aposta em nenhuma dos dois projetos já em tramitação. Fatiou a sua proposta de reforma tributária, porque o interesse maior de Guedes é sair do sufoco orçamentário. O problema é que essa estratégia mexe com os nervos da equipe econômica, recrutada entre economistas liberais, cuja motivação para participar do governo está longe de ser apenas financeira, é ideológica. Se Guedes jogar a toalha e aderir ao “mais do mesmo”, a equipe implode.

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Luiz Carlos Azedo: Estado de choque

“Guedes propõe solução simples para um problema complexo: mais um imposto. Como sabe que é isso, pode ser para criar um cavalo de batalha, justificar seu fracasso e deixar o cargo”

A ideologia de livre mercado do vienense Friedrich August Von Hayek, paradigma da política liberal conservadora do pós-guerra, foi historicamente associada às doutrinas de choque. Embora originárias das décadas de 1920/1930, suas ideias somente ganhariam força após a II Guerra Mundial. Esse caráter de “choque” foi resultado do envolvimento de Hayke com regime ditatoriais da América Latina, entre os quais a ditadura sanguinária do general Augusto Pinochet, no Chile. A doutrina de choque funciona como uma chantagem, porque as pessoas são persuadidas de que a única opção é aceitar o “mal menor” diante das crises, o que se traduz em soluções selvagens para a desregulamentação da economia e alienação patrimonial, assim como a naturalização do desemprego em massa e da chamada “destruição criativa”.

Obviamente, Hayke foi um crítico das teorias de John Maynard Keynes, o que dificultou muito sua vida no imediato pós-guerra, por causa do sucesso das políticas keynesianas nos Estados Unidos, depois da Grande Depressão de 1929, e na reconstrução da Europa Ocidental, com o Plano Marshall, no imediato pós-guerra. Entretanto, Hayke ganhou o prêmio Nobel de 1970 e conquistou corações e mentes dos dois principais líderes ocidentais da década seguinte, Ronald Reagan, presidente republicano dos Estados Unidos, e Margareth Thatcher, primeira-ministra conservadora do Reino Unido. Com isso, sua figura controversa deixou de ser associada aos ditadores latino-americanos e passou ser identificada com a bem-sucedida política “neoliberal” desses dois líderes.

Com o colapso da antiga União Soviética e do comunismo no Leste Europeu, o mundo ingressou num período de aparente unipolaridade, até a Rússia de Putin se reerguer como potência energética, a aliança franco-alemã se consolidar na Europa e a China, emergir como novo player da economia mundial, cujo eixo comercial se deslocou do Atlântico para o Pacífico. Simultaneamente, um filósofo norte-americano, John Rawls, que cresceu em Baltimore e havia servido no Pacífico — Nova Guiné, Filipinas e Japão —, durante a II Guerra Mundial, começou a ser muito discutido nos Estados Unidos, por causa de suas teses sobre a justiça, o direito dos povos e a equidade. Formado em Princeton, no começo dos anos 1950, estudou na Universidade de Oxford, no Reino Unido, onde conviveu com outro gigante do liberalismo, Isaiah Berlin.

Equidade
Justiça, equidade e desigualdades eram as principais preocupações de Rawls, que questionava a forma como os princípios de justiça se baseavam. Ele estava preocupado com a relação entre a política e as desigualdades, que ultrapassa os julgamentos morais individuais. Por essa razão, estabeleceu uma correlação entre os princípios da justiça e a forma como os sistemas educacional, sanitário, tributário e eleitoral funcionam. Crítico da guerra do Vietnã e simpático aos movimentos de direitos civis das minorias, concluiu que todos têm as mesmas demandas para as liberdades básicas e que as desigualdades sociais e econômicas deveriam ter um limite razoável, que fossem associados a cargos e posições acessíveis a qualquer um, de forma a que todos pudessem sobreviver com dignidade. Nesse aspecto, o Estado deveria ser garantidor da justiça com equidade. Suas palestras sobre o tema foram reunidas num livro por ele revisado em 2001: Justiça como equidade: uma reformulação (Martins Fontes), muito adotado nas escolas de direito no Brasil. Sua Teoria da Justiça era o livro de cabeceira do presidente Bill Clinton, do Partido Democrata.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, é um discípulo da Escola de Chicago, liderada por Milton Friedman, outro prêmio Nobel de Economia, de quem foi aluno e apadrinhado na ida para a equipe econômica do general Pinochet. A essência do seu pensamento se baseia na formação de preços, livre mercado e expectativas racionais dos agentes econômicos. Há um ano, o ministro anuncia uma reforma tributária, sem apresentá-la, enquanto o Congresso discute dois projetos, um no Senado, de autoria do ex-deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), e outro na Câmara, do deputado Baleia Rossi (MDB-SP), com base em estudos do economista Bernard Appy.

Como já vimos, é preciso compatibilizar nosso liberalismo com a justiça social. O que a pandemia escancarou foi o sucateamento da saúde e da educação e a brutal violência e iniquidade social nas favelas, periferias e grotões do país. Entretanto, agora, Guedes anuncia uma proposta de reforma tributária cujo eixo é a criação de imposto com tributação automática de operações digitais, para arrecadar mais de R$ 100 bilhões. Na prática, é uma exumação da antiga CPMF, que foi criada originalmente para viabilizar recursos para a Saúde.

O problema de Guedes é o crescimento da dívida pública por causa da pandemia, que deve elevar o deficit fiscal de R$ 134 bilhões para, aproximadamente, R$ 700 bilhões, o que inviabiliza as políticas de transferência de renda e pode provocar o colapso financeiro do governo federal, se não houver uma reforma administrativa e nova reforma previdenciária no próximo ano. Guedes propõe uma solução simples para um problema complexo: mais um imposto. Política de choque. Como sabe que é isso mesmo, pode ser, também, para criar um cavalo de batalha, justificar seu fracasso e deixar o cargo.

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Luiz Carlos Azedo: Uma crise instalada

”A queda na arrecadação é tratada por Bolsonaro como uma espécie de castigo aos governadores que estão defendendo o isolamento social”

O choque entre o presidente Jair Bolsonaro e seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, é a face mais visível de uma crise de maiores proporções entre a União e os estados, numa recidiva da velha contradição centralização versus descentralização. A epidemia de coronavírus e a recessão mundial dela decorrente exacerbaram o conflito, que se manifesta na discussão sobre aprovação do chamado Plano Mansueto, ou seja, a ajuda a estados e municípios. Bolsonaro está em litígio aberto com os governadores e prefeitos que estão na linha de frente do combate à epidemia de coronavírus e não esconde o incômodo com o alinhamento entre eles e o ministro Mandetta.

Uma decisão de Bolsonaro é emblemática quanto às dificuldades que cria para os governadores na implementação da estratégia de distanciamento social adotada pelo Ministério da Saúde para conter a velocidade da epidemia. No fim de março, as operadoras de telecomunicações ofereceram ao Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) um mapa de calor para mostrar a geolocalização da população. O intuito era identificar aglomerações e situações de risco de contaminação do novo coronavírus. Bolsonaro vetou o uso das informações, que seria mais uma arma no combate à Covid-19, pois o georreferenciamento permite a pronta atuação das autoridades locais para reduzir essas aglomerações.

O ministro Marcos Pontes chegou a gravar um vídeo anunciando a implantação do sistema nesta semana. No sábado, porém, Bolsonaro ligou para Pontes e suspendeu tudo. Alegou que há riscos para a privacidade do cidadão e que a Presidência precisa estudar melhor o tema, apesar de um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) aprovar o uso da ferramenta proposta pelas teles, uma solução semelhante à que foi adotada pela Coreia do Sul, um dos países com menores taxas de mortalidade pela Covid-19.

A decisão de Bolsonaro tem endereço certo: o governador tucano João Doria, que está controlando o nível de isolamento social no estado de São Paulo pelo monitoramento dos celulares. Para se ter uma ideia de como isso é útil, a diferença de 50% para 70% da população em regime de distanciamento social, para efeito da propagação da epidemia por pessoa, salta de uma média de dois para quatro novos contaminados, ou seja, um crescimento exponencial.

Nada disso importa. A tese que empolga Bolsonaro é a do ex-ministro da Cidadania Osmar Terra, para quem a epidemia já atingiu o seu pico e entrará em declínio, acabando em maio, o que não bate com os modelos matemáticos da equipe do Ministério da Saúde. Segundo Terra, que é médico, o isolamento social não tem eficácia e apenas aprofunda a recessão, além de retardar a autoimunização da maioria da população. A tese também está sendo endossada pelo líder do governo na Câmara, deputado Victor Hugo (PSL-GO), que vem defendendo abertamente a saída de Mandetta do governo. Ontem, Mandetta não falou com a imprensa. Sua permanência no governo é incerta.

Ajudas
A estrela da entrevista de ontem no Palácio do Planalto foi a ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, que anunciou medidas destinadas a proteger grupos de risco, como indígenas, quilombolas, ciganos, moradores de rua e idosos em asilos. Damares também contrariou a orientação do Ministério da Saúde e defendeu o chamado isolamento vertical, ou seletivo, focado nesses grupos. Na ocasião, anunciou a distribuição de cestas básicas e o confinamento de tribos indígenas, quilombolas e acampamentos ciganos, além de uma rede de proteção aos moradores de rua e outras populações de risco, formada por instituições filantrópicas e religiosas.

Mas o maior conflito é mesmo a negociação do Plano Mansueto. O ministro da Economia, Paulo Guedes, convenceu Bolsonaro a não ceder a governadores e prefeitos, que pedem socorro financeiro em razão da queda da arrecadação. Eles são responsabilizados pela recessão e o desemprego. A queda na arrecadação é tratada por Bolsonaro como uma espécie de castigo aos governadores que estão defendendo o isolamento social.

As negociações entre o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e os líderes partidários com o governo, nos últimos dias, foram muito tensas. Guedes foi duro: “O desenho deste projeto é muito perigoso, é um cheque em branco para governadores e prefeitos fazerem uma gestão descuidada, levando todo ônus para o contribuinte, justamente no momento em que mais precisamos da boa gestão para proteger os mais vulneráveis”, declarou.

Rodrigo Maia, entretanto, articulou mudanças no projeto para garantir a aprovação da nova versão do chamado Plano Mansueto, que foi limitada à instituição de um seguro-garantia de arrecadação para estados e municípios, com impacto estimado de R$ 80 bilhões. “A posição que ouvi majoritária entre os líderes é que nós façamos como se fosse um seguro. Se arrecadação era 100 e caiu pra 70, o governo recompõe 30. Se daqui a quatro meses a arrecadação era 100 e foi 100 (novamente), o governo não precisa dar um real”, afirmou Maia.

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