ihu online

IHU Online: #15M e o retorno da política às ruas. Algumas análises

Por: Patricia Fachin, João Vitor Santos e Ricardo Machado

As manifestações estudantis da última quarta-feira, 15-05-2019, contra o contingenciamento dos gastos na área da educação, revelam que a pauta do ensino “está sendo posta na rua” e que “a educação tornou-se parte da agenda dos jovens. Isso é novo e é bom”, diz o sociólogo Luiz Werneck Vianna à IHU On-Line. Na avaliação do pesquisador, os protestos da semana passada são marcados por uma “diferença fundamental” das mobilizações de Junho de 2013. “Junho de 2013 tinha uma conotação antipolítica, que a manifestação de agora não tem. Ao contrário, o que se vê – e eu como professor universitário vejo com os estudantes iniciantes na universidade – é uma grande atração pelos partidos políticos; não pelos que existem, mas a necessidade de se ter partidos está muito presente entre eles”.

O professor Benedito Tadeu César observa que “o governo acendeu o estopim de uma bomba que vai explodir contra ele próprio”. Ele se refere aos ataques e cortes de recursos para universidades, o que, na sua opinião, funcionou como uma espécie de catalisador para todas as insatisfações contra o atual governo. Entretanto, pontua que é cedo para associações com 2013, quando houve o que chama de um processo de “politização” que se voltou contra o governo de Dilma Rousseff. Agora, a imprensa endossa o clamor das ruas, mas com um objetivo muito claro. “Há uma estratégia que é bem traçada em que tudo deve se dirigir para possibilitar a aprovação da reforma da Previdência”, observa. “Não sei até onde eles irão nisso, pois querem tirar tudo da frente para aprovar essa medida, nem que seja o próprio presidente, por isso é preciso ficar atento”, acrescenta.

Na avaliação de Cléber Buzatto,”as mobilizações criam um campo político muito adverso” e poderão influenciar “significativamente na base parlamentar que poderia dar sustentação ao governo e às suas proposições”, criando “dificuldades para que o governo mantenha as atitudes extremamente agressivas contra os direitos da população brasileira”.

De acordo com Bruno Lima Rocha, as manifestações ocorridas em 15 de maio ilustram de forma surpreendente a primeira grande cruzada contra as políticas de austeridade que se iniciaram ainda no governo anterior. “No meio urbano e de forma nacionalizada foi a primeira grande jornada de luta contra as políticas do governo Bolsonaro, incluindo também a política herdada do governo Temer, que é o ‘teto dos gastos’ e essa aberração inconstitucional e imbecilidade macroeconômica dizendo que ‘acabou o dinheiro’”, pondera. Ao analisar o fenômeno em perspectiva com Junho de 2013Rocha avalia que as mobilizações operam em “linha de continuidade na rebelião secundarista de 2015 em São Paulo – contra o fechamento de escolas públicas por parte do então governo Alckmin – e a ocupação de escolas públicas no início de 2016 – em Goiás e no Rio Grande do Sul, por exemplo – e na sequência, no final de 2016 – já no governo Temer - na ocupação dos campi universitários contra a aprovação da PEC 95 no Senado”, complementa.

***

Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP, é autor de, entre outras obras, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997), A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999) e Democracia e os três poderes no Brasil(Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012). Destacamos também seu novo livro intitulado Diálogos gramscianos sobre o Brasil atual (FAP e Verbena Editora, 2018), que é composto de uma coletânea de entrevistas concedidas que analisam a conjuntura brasileira nos últimos anos, entre elas, algumas concedidas e publicadas na página do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

Benedito Tadeu César é graduado em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, mestre em Antropologia Social e Doutor em Ciências Sociais com ênfase em Estrutura Social Brasileira, ambos pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. É professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Seu depoimento foi concedido por telefone.

Cleber César Buzatto é graduado em Filosofia. Atualmente trabalha como secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário – Cimi.

Bruno Lima Rocha é pós-doutorando em Economia Política, doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e graduado em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Atua como docente de Ciência Política e Relações Internacionais e também como analista de conjuntura nacional e internacional. É editor do portal Estratégia & Análise, onde concentra o conjunto de sua produção midiática, analítica e acadêmica. É professor de graduação na Unisinos, nos cursos de Relações Internacionais e Jornalismo, e de Direito na Unifin.

Confira as entrevistas:

IHU On-Line - Que avaliação faz das manifestações de quarta-feira, levando em conta que essa foi a primeira grande mobilização no país depois de quatro meses de governo Bolsonaro?

Luiz Werneck Vianna – Foi uma manifestação extraordinária. A lembrança que me veio foi a de 1956, quando aconteceu outra manifestação de caráter nacional dos estudantes secundaristas por causa do aumento da passagem de ônibus no Rio de Janeiro. Chegou a um ponto tal que o presidente da República da época, Juscelino Kubitschek, chamou os estudantes para conversar e a partir dessa negociação a coisa se resolveu. Tenho uma memória muito forte disso porque eu era secundarista na época e participei de algum modo dessa manifestação como massa dos estudantes que estavam protestando. Foi um movimento que incendiou a imaginação dos estudantes na época. Vi uma cena das manifestações em Manaus na televisão, que me impressionou muito, porque era uma manifestação de estudantes secundaristas, muito jovens, uniformizados. Se chegou em Manaus nessa força e nessa idade, é porque isso vai ficar.

***
Benedito Tadeu César – Foram se acumulando ações inconsequentes, impensadas que atingiram diversos segmentos da sociedade. Todo o governo tem um período de crédito, tem a legitimidade das urnas que lhe foi conferida e as pessoas ficam na expectativa. Mas, nesse governo, certas coisas foram se acumulando e atingiram um segmento que é formador de opinião e que hoje está ramificado em todo o Brasil. Só no Governo Lula foram criadas 18 novas universidades federais. Hoje, as grandes cidades brasileiras, e até as de porte médio, têm estudantes em universidades públicas.

E ainda mais: esse é um segmento de jovens, que pela própria condição de juventude tem um ímpeto maior de expor suas opiniões. Assim, quando esse segmento foi atingido, deu o troco. Fiz alguns comentários, logo que começaram os cortes, as agressões a universidades, e disse: o governo acendeu o estopim de uma bomba que vai explodir contra ele próprio. E acho que não deu outra. O estopim foi aceso e as bombas estão explodindo.

***
Cleber Buzatto - Considero que as manifestações da última quarta-feira, 15-05-2019, foram de grande importância pela amplitude de participação e abrangência, considerando todas as regiões do país em que elas aconteceram. Foi um momento especial que aponta para uma nova fase no processo de relação dos cidadãos brasileiros com este governo. Nós passamos por um período conturbado em que as forças populares estiveram retraídas do ponto de vista da mobilização social, mas as ações agressivas e antissociais por parte do governo Bolsonaro contribuíram para acelerar um processo de articulação e mobilização das organizações, movimentos, sindicatos e também das pessoas que não têm tanta articulação com movimentos. Acredito que as manifestações de quarta-feira servirão como um movimento de encorajamento para que outras manifestações possam acontecer nos próximos meses, seja acerca do tema da educação, da defesa da educação pública de qualidade, seja do ensino básico, superior e da pesquisa, ou relativamente a outras questões, como a da previdência.

Considero também de grande importância a participação de representantes de povos indígenas em diversas mobilizações no Brasil. Isso demonstra que os povos estão mobilizados em relação ao tema da questão fundiária, como eles já mostraram em outras ocasiões, como durante o Acampamento Terra Livre recentemente, que reuniu cerca de quatro mil indígenas em Brasília. Eles também estão mobilizados em relação ao tema da saúde, como mostraram as mobilizações que fizeram no mês de março em todas as regiões do Brasil. Isso demonstra que os povos estão muito atentos e estão tentando se articular com outras forças sociais. A participação dos povos indígenas nasmanifestações do dia 15 demonstrou mais uma vez a atenção e a disponibilidade deles de se manifestarem e se mobilizarem em defesa dos seus direitos e dos direitos coletivos da população brasileira.
***
Bruno Lima Rocha – Foram positivamente surpreendentes. A convocatória ultrapassou a estimativa dos mais otimistas defensores da agenda da educação pública no Brasil. O fato doMinistério da Educação - MEC sob o governo Bolsonaro já estar no segundo titular da pasta, somado ao estilo do ministro Weintraub – acirrando os ânimos e mantendo o grau de provocação tipo bate boca nas redes sociais – e a tentativa de enquadramento que ameaçava a autonomia universitária (alegando “punir por balbúrdia”) motivou a unidade dentro do meio universitário e das vastas relações que esse ambiente tem com a educação brasileira. Diria que no meio urbano e de forma nacionalizada foi a primeira grande jornada de luta contra as políticas do governo Bolsonaro, incluindo também a política herdada do governo Temer, que é o “teto dos gastos” e essa aberração inconstitucional e imbecilidade macroeconômica dizendo que “acabou o dinheiro”. É preciso reconhecer que o grande motivador da jornada de protesto foi o próprio governo Bolsonaro, causador de suas próprias crises e gerando unidades possíveis: unidade da agenda universitária (liderada pelas federais, mas seguida pelas demais); tentativa de uma unidade da direita que se alega lúcida (ex. defendendo o austericídio mas contra a cruzada olavista); uma unidade que vai das posturas nacionalistas de defesa do patrimônio público até o protagonismo dos movimentos sociais da primeira linha (como o dos povos indígenas e movimentos afro). Enfim, 15 de maio foi um momento importante, através de uma pauta unificadora, onde até a direita não olavista-bolsonarista se viu na obrigação de reconhecer o mérito e a justiça da causa. A pesquisa científica e a capacidade instalada no meio universitário brasileiro têm capilaridade maior do que se imaginava no início do século XXI.

***
IHU On-Line - As manifestações podem produzir algum impacto no governo?

Luiz Werneck Vianna – É insondável; esse governo é imprevisível e não tenho como responsavelmente prever o que o governo vai fazer. Imagino que ele deva ter ficado sensibilizado com a proporção e a envergadura dessa movimentação, que foi uma movimentação estudantil de verdade, com o tema dos estudantes, o tema da universidade, do ensino. A questão do ensino está sendo posta na rua; isso é para ser saudado. A educação tornou-se parte da agenda dos jovens; isso é novo e é bom.

Não sei direito quem é o governo; temos que ver quem é o governo de verdade. É claro que os setores mais atentos e mais lúcidos estão fazendo a leitura correta dentro do governo sobre essa movimentação. Agora, há os que querem um antagonismo a todo preço, porque na verdade o que eles visam é instabilizar instituições: é fechar o Congresso, é fechar o STF. Essa é que é a ideia de fundo desses grupos mais “tresloucados”, como os “olavetes”. Eles querem essa mudança, mas isso não é o governo inteiro. O governo inteiro é outra coisa. Há uma disputa permanente de setores que sabem interpretar direito o que está se passando. Imagino que esses setores vão pressionar no sentido de mudanças na política educacional.

***
Benedito Tadeu César – É muito cedo para fazermos qualquer avaliação nesse sentido. Vai depender de como isso será conduzido daqui para frente. Eu falei do estopim, mas se isso se torna um rastilho, como um rastilho de pólvora, vai ligando a outras bombas e acho que isso pode tomar um volume muito grande e realmente abalarem o governo.

Faria aqui uma previsão: não sei se esse governo chega ao seu final, podendo terminar muito rapidamente. Não sei se em decorrência dessas manifestações, mas desse acúmulo de ações que são, em última análise, inconsequentes, para reduzirmos tudo a uma expressão. Esse é o governo da inconsequência.

***
Cleber Buzatto – Considero o governo Bolsonaro autocrata e autoritário, de modo que as mobilizações terão dificuldade de incidir e influir sobre os rumos do governo. Mas, evidentemente, as mobilizações criam um campo político muito adverso, o que certamente influirá significativamente na base parlamentar que poderia dar sustentação ao governo e às suas proposições. Isso certamente criará ainda mais dificuldades para que o governo mantenha as atitudes extremamente agressivas contra os direitos da população brasileira e, de modo especial, neste caso, relativo à temática da educação.

Relativamente à mobilização da quarta-feira, as manifestações públicas do presidente Bolsonaro foram extremamente desrespeitosas para com a população brasileira que se mobilizou, se manifestou, e isso é um indicativo de que o governo buscará desqualificá-las e deslegitimá-las. Mas, de qualquer maneira, as manifestações provocam um campo político que certamente criará ainda mais dificuldades para a condução dessas pautas antipopulares por parte do governo Bolsonaro.

***
Bruno Lima Rocha – Insisto que se fossem apenas manifestações estudantis, o efeito seria menor. Mas como se trata da defesa da educação pública brasileira, chegando ao ponto da defesa da diversidade, da ciência e pesquisa nacionais além de uma posição pós-iluminista, a dimensão é muito maior. O presidente foi eleito em cima de uma agenda também ideológica, e manifesta convicção na hostilidade como método de governar e arregimentação de sua própria base. Esta forma de “agradar sua base” mira na educação, na pedagogia libertadora, nos ícones de Paulo Freire e Anísio Teixeira como seus alvos permanentes. Dentro dessa lógica, de pressionar a pesquisa e a autonomia universitária como uma forma de reduzir a amplitude de pensamento, a resposta foi inicialmente muito boa e coloca o governo contra a parede. Ocorre que não se trata apenas do núcleo da presidência, mas seguidas vezes vemos títulos de teses e de dissertações sendo ridicularizados em grupos de mídia – incluindo as tradicionais – como se os recursos da universidade fossem apenas para gerar discurso ideológico mais à esquerda, ou “globalista”. O impacto pode se dar em políticas localizadas, como o MEC de portas abertas para reitores, mas deve manter a tentativa de ocupar o Ministério como uma força conservadora e que vai de encontro aos consensos da área, como por exemplo, o respeito às eleições (não paritárias!) para as reitorias.

O sistema educacional brasileiro é complexo e bastante integrado e não se nota reorientação de verbas que seriam do nível universitário para a educação infantil ou fundamental. Isso é balela e o governo não vai rever sequer a própria balela. Em termos gerais posso afirmar que o governo foi abalado – parcialmente – pelos atos coincidentemente no mesmo dia da convocatória do ministro Weintraub na Câmara, contando com a assinatura de 307 deputados – faltaria um voto apenas para emplacar uma PEC, 308 votos. Dentro das batalhas simbólicas e de ausência de políticas positivas do governo Bolsonaro, 15 de maio foi uma demonstração de força da sociedade contra a posição assumidamente retrógrada e reacionária, anti-iluminista eu diria, do presidente e seus aliados ideológicos e de ocasião.

***
IHU On-Line - Que aproximações e distanciamentos podemos fazer entre as manifestações de ontem e Junho de 2013?

Luiz Werneck Vianna – Vejo uma diferença fundamental, porque Junho de 2013 tinha uma conotação antipolítica, que a manifestação de agora não tem. Ao contrário, o que se vê — e eu como professor universitário vejo com os estudantes iniciantes na universidade — é uma grande atração pelos partidos políticos; não pelos que existem, mas a necessidade de se ter partidos está muito presente entre eles. A discussão, inclusive, sobre a participação nessa movimentação de protesto contra os cortes teve uma presença forte dos partidos que têm trabalho juvenil. Vejo aí uma diferença muito grande e positiva em relação ao tema de 2013, que era aquele clima contra os partidos e antipolítica em geral. Essa coisa não está posta agora; ao contrário.

***
Benedito Tadeu César – Tem algumas pessoas fazendo relações com 2013, mas acho que é cedo ainda para fazermos esse paralelo. As grandes mídias, principalmente a Globo, deu uma cobertura razoável ao que aconteceu na semana passada, mas não podemos esquecer que, em 2013, toda grande mídia nacional ficou incentivando, durante semanas, para que as pessoas saíssem às ruas. Se acontecer algo parecido, acho que podemos chegar a uma dimensão similar àquela de 2013. Senão, acho que isso vai se mantendo e, à medida que isso for se politizando mais, pode ser que atinja realmente o governo.

Uma semelhança com 2013 é que foi uma reação mais ou menos espontânea, porque transcendeu as universidades. Teve uma origem dentro das universidades públicas, mas isso já chegou, inclusive, aos estudantes das escolas particulares. Pudemos ver muitas escolas particulares nas manifestações, em muitas escolas os alunos suspenderam as aulas, aderiram à greve, adesão que chegou até mesmo aos professores da rede privada. E muitas pessoas que estavam nas ruas não eram estudantes nem professores universitários. Eu mesmo participei da manifestação e vi muita gente ali que necessariamente não era público universitário, mas populares que estão aderindo.

Por todos esses fatores considero que isso está transcendendo o movimento corporativo. Um primeiro impulso é corporativo, de reação, de defesa a uma agressão que foi feita. Então, os integrantes das corporações universitárias reagem, mas isso acaba atingindo segmentos muito mais amplos. Tem uma nova paralisação, não sei se está confirmada, para o dia 30 de maio, que é um chamamento da União Nacional dos Estudantes - UNE, e há uma greve geral convocada para o início de junho. Isso tudo pode demonstrar que as manifestações da última quarta-feira foram o estopim de uma grande revolta.

Politização e ação da mídia
Entretanto, para que isso ocorra, o movimento precisa ser politizado. Em 2013, a grande mídia se encarregou de dar um direcionamento político para uma reação que era de uma situação de insatisfação difusa e acabou direcionando aquilo contra o governo de Dilma Rousseff. A ex-presidente Dilma tinha uma aprovação altíssima e, depois de dois meses de manifestações, os índices de aprovação do governo dela caíram para menos da metade.

O atual governo já tem uma aprovação muito baixa, cerca de 30%, e a Dilma, na época que começaram as manifestações, tinha mais do que o dobro disso. Assim, as manifestações de agora começam num percentual de insatisfação parecido com aquele que Dilma tinha como piso no momento das manifestações, depois esse percentual caiu ainda mais. Por isso digo que tudo isso pode causar um estrago grande. Acho precipitado dizer que tudo vai evoluir na mesma direção de 2013, mas destaco: as grandes mídias se encarregaram de dar a dimensão política para as manifestações de 2013.

A mídia e o trabalho pela reforma da Previdência
Não acredito que a mídia deva exercer o mesmo papel agora, na mesma proporção. A cobertura da Rede Globo, por exemplo, deu bastante espaço para as manifestações, inclusive eu não imaginava que ela fosse dar todo aquele espaço. Fiquei em dúvida e, depois de meses sem assistir televisão, liguei para acompanhar e me surpreendi. Agora, ela bateu o tempo todo no seguinte: “esse governo está criando a impossibilidade de aprovar aquilo que é a grande necessidade, que é a reforma da Previdência”.

Na realidade, há uma estratégia bem traçada de que tudo deve se dirigir para possibilitar a aprovação da reforma da Previdência. O que, cá entre nós, é um grande caos. Não sei até onde eles irão nisso, pois querem tirar tudo da frente para aprovar essa medida, nem que seja o próprio presidente, por isso é preciso ficar atento. Vejo algumas pessoas dizendo que é preciso derrubar o [Jair] Bolsonaro, mas se isso acontecer, entra o [Hamilton] Mourão. E aí? Aí, não tem mais, eles fazem o que quiserem. Essas bateções de cabeça vão desaparecer.

Expressar insatisfação, mas nos marcos institucionais
Realmente não sei qual é o melhor cenário. Outro dia alguém comentou: “se correr o bicho pega e se ficar o bicho come”. É mais ou menos isso, as perspectivas não são boas. Mas isso não quer dizer que tenhamos que desistir. A sociedade civil tem que expressar as suas insatisfações e o ideal é que possamos agir dentro do marcos institucionais. Cada vez que se rompe com algo sem ter de fato algo mais sólido para colocar no lugar, dá no que deu. Quando começou o processo do impeachment e a Lava Jato, eu dizia que estavam abrindo a Caixa de Pandora e, depois, o que vai acontecer e como vai se fechar ninguém sabe. E foi o que aconteceu, pois quando se enfraquecem as instituições democráticas, abre-se espaço para a tirania.

E aí demora muito tempo para fazer uma recomposição. O melhor seria mesmo agirmos dentro dos marcos institucionais. Essa coisa de interromper mandato de presidente não é bom, temos que ter uma certa estabilidade. Agora, se criou um caos tão grande que se possibilitou a eleição dessa chapa; se não tivessem sido criadas todas aquelas situações que viabilizaram, que criaram aquele caos pré-eleitoral, essa chapa não seria eleita nunca. Ela seria motivo de chacota. Agora o mal está feito, como vamos superar é a questão. É preciso apostar na capacidade de resistência da sociedade, da nação brasileira. Nós vamos amargar, pelo menos, quatro anos de loucuras e do desmonte do Estado de bem-estar social precário que já tínhamos, de desmonte das empresas públicas.

Reflexos nos estados
É um absurdo o que estamos vivendo. Estamos entregando as nossas riquezas, estamos desmontando uma estrutura tanto do plano estadual como do federal. Recebi ontem um vídeo do governador [do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB)] dizendo: “estou aqui nos Estados Unidos, conversando com investidores e tal”. Não me contive e disse: isso é crime de lesa-pátria. Ele está oferecendo, dizendo para virem para o Rio Grande do Sul, pois temos aqui um parque energético instalado no valor de tantos milhões de dólares, temos uma rede rodoviária no valor de tantos milhões, e vai setor por setor dizendo o quanto aquilo custou para os cofres públicos, quanto se tem de investimento público em cima daquilo e dizendo para os investidores que tudo isso está à venda. Veja, se quer promover desenvolvimento, não é dessa maneira que se faz, porque esse investimento está feito. Desta forma está se entregando investimento público já realizado e somente trocando a titularidade, está entregando para outros.

Para promover crescimento é preciso novos investimentos. Se essa é a estratégia governamental, é preciso destacar as potencialidades do Estado e propor que os investidores coloquem novas empresas aqui. Agora, não transferir titularidade, pois isso não agrega nada, não gera emprego, pelo contrário.

***
Cleber Buzatto – As manifestações de 2013 iniciaram uma pauta propositiva e progressista de ampliação de direitos coletivos, especialmente no que tange à questão do passe livre, mas não só. Na sequência houve um empoderamento das forças reacionárias antissociais, antipopulares, que acabaram ocupando as ruas com pautas conservadoras e até reacionárias e que, infelizmente, contribuíram para o fortalecimento da candidatura do então candidato Bolsonaro. Uma série de outras questões, mas de maneira especial a prisão do ex-presidente Lula, levaram-no à presidência da República.

Agora viveremos um novo momento em que a direita vencedora das eleições está testando seu governo e tem se mostrado extremamente incompetente, autoritária e tem perdido recorrentemente a adesão popular. Bolsonaro tem se mostrado uma antítese daquilo para o que se acreditou que seria eleito, inclusive no tema da corrupção: hoje se visibiliza uma série de situações extremamente comprometedoras por parte do presidente e de seus familiares. Portanto, o contexto é bastante diferente do de junho de 2013 e tende a favorecer a ampliação das mobilizações por parte de setores progressistas da sociedade. O grande desafio é manter a hegemonia nas ruas por parte dos setores progressistas, populares, e, por isso, é importante que as pessoas se mantenham mobilizadas para que se evite qualquer tipo de mobilização por parte dos setores reacionários em relação à disputa das ruas. Ganhar a disputa das ruas é um elemento político fundamental tanto na defesa dos direitos da população brasileira, especialmente daqueles mais pobres, explorados, quanto para que a tempestade desse governo reacionário possa passar o mais breve possível.

***
Bruno Lima Rocha – Eu sinceramente não vejo grau de comparação com 2013. As jornadas de 2013 não iniciaram em junho e tampouco terminaram em 2013. Os atos de 2013 têm relação direta com os Comitês Populares da Copa e dos setores que em algumas capitais e regiões metropolitanas lutavam pela execução do Estatuto da Cidade e do direito à mobilidade urbana. Em termos de polarização ideológica, no começo ao menos, se deu um embate entre os setores à esquerda do lulismo e a centro-esquerda governista. Houve “sequestro da pauta” através da intervenção dos grupos de mídia – especialmente em São Paulo capital – e depois os “estudiosos” que em geral não estavam na rua e não conheciam quem se organizava fisicamente afirmam um “conflito de narrativas”. O delírio pós-moderno dá conta das interpretações narcisistas do pós-2013. Mas, os efeitos concretos se deram, e aí têm relação direta com os atos de 15 de maio. Vejo uma linha de continuidade na rebelião secundarista de 2015 em São Paulo – contra o fechamento de escolas públicas por parte do então governo Alckmin – e a ocupação de escolas públicas no início de 2016 – em Goiás e no Rio Grande do Sul, por exemplo – e na sequência, no final de 2016 – já no governo Temer - na ocupação dos campi universitários contra a aprovação da PEC 95 no Senado. Neste sentido, na dimensão socialmente organizada e à esquerda do governo deposto pelo golpe jurídico-parlamentar, observo alguma continuidade. Outro marco de continuidade, agora mais próximo do pós-2016, foi certa unidade por esquerda, mais próximo de uma pauta de defesa do patrimônio público e abertamente antifascista. Creio que esse será o marco das manifestações deste ano, especificamente ainda neste primeiro semestre.

***
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Luiz Werneck Vianna – Sim. Queria dizer o quanto esses profetas do absurdo, que nessa hora preconizam o fim dos partidos, estão equivocados. Os partidos não estão vivendo momentos finais nem aqui nem no mundo; eles estão vivendo crises que são crises de crescimento. Os partidos vão sair melhor do que eram. É preciso dar tempo ao tempo, especialmente no nosso caso. Percebe-se, entre a juventude estudantil, um interesse pela política e pelos partidos muito grande. Não é verdade que essa é a hora dos movimentos sociais e que os partidos não têm mais lugar no mundo. Isso é coisa desses políticos que se orientam pelos modismos, que vivem mudando de roupa para dizer sempre a mesma coisa, que não há saída, especialmente os da esquerda, os que na esquerda preconizam essa posição de dissolução dos partidos. Portugal está lá com seu sistema partidário indo muito bem. Era um país pobre e sem esperança ontem e está lá, é lugar de atração, despertou.


IHU On-line: Entrevista com Maria Alice Rezende de Carvalho

Militarização no Brasil: a perpetuação da guerra ao inimigo interno.

Por Ricardo Machado, do IHU On-line

É muito próprio da cultura brasileira a noção de que as forças militares – Forças Armadas e Polícias Militares – têm como prerrogativa ser o braço armado do Estado, em detrimento de um serviço de proteção aos cidadãos. A perspectiva adotada, em sua forma hegemônica, remonta ao Brasil Império e à manutenção de um elemento estruturante na participação dos militares na formação política de nosso país. “Tal princípio implicou a existência de um corpo militar como ‘braço do Estado’, capaz de garantir, internamente, a preservação de extensas faixas de terra, a identificação etnográfica de suas populações, a afirmação da presença do ‘rei’ perante súditos das mais longínquas regiões. De fato, o exército brasileiro cumpriu esse percurso – o que lhe deu uma feição histórica específica, livre das influências civis e dos interesses de classes ou grupos externos à corporação”, pontua Maria Alice Rezende de Carvalho, professora doutora e pesquisadora da PUC Rio, em entrevista por e-mail à IHU On-line. “Enfim, em nosso regime legal, a polícia é definida como instituição militar, o que a obriga a um tipo de organização semelhante à do exército. Mas será essa a sua forma adequada?”, questiona.

Permeada por uma disputa narrativa polarizada, os debates em torno do papel das instituições militares no Brasil tendem a descambar para simplificações de ambos lados, o que, via de regra, não favorece o debate sobre os efeitos da militarização na política nacional. “A cultura da guerra ao ‘inimigo interno’, tão presente durante a ditadura militar. O efeito dessa cultura sobre as corporações policiais, sobretudo militares, é inegável no nosso tempo, o que acaba por combinar, de um lado, esse repertório bélico, que valoriza a coragem física e o confronto; e, de outro, aquilo que é mais caro em sociedades democráticas: um repertório técnico, que entende a segurança como um serviço público prestado universalmente a cidadãos.”, explica a professora. “Para que assim ocorresse seria necessária uma mudança profunda na própria sociedade, levando a que a democracia não seja mais entendida apenas como o ato de votar, mas como uma cultura de direitos e liberdade”, complementa.

Apoiada no estudo de Adriana Marques e Jacintho Maia sobre o Exército chileno, Maria Alice salienta que a mudança de paradigma organizacional pode ser um caminho interessante para as corporações militares no Brasil. Os pesquisadores destacam que no Chile houve uma mudança de paradigma em relação ao Exército, especialmente, e às forças armadas no geral, o que pode ser um caminho interessante em uma nova caracterização das corporações no Brasil. A pesquisadora destaca que no Chile, o Exército tem migrado para um modelo profissional, assumindo uma “concepção ‘empresarial’ de gestão de seus recursos materiais, tecnológicos e humanos, com a diminuição de seus efetivos”. Maria Alice, entretanto, pensa que esse modelo não será o do Brasil.

Diante dos inúmeros desafios à salvaguarda dos bens naturais e das populações nativas no país, o Exército brasileiro, atuando como defensor dos interesses republicanos, podia ocupar um papel chave nesse processo. “Um discurso público que expressasse a política de gestão ambiental do Exército brasileiro e o comprometimento da Força Terrestre com a melhoria da qualidade ambiental, seria talvez, uma forma de substituir o nacionalismo dos séculos XIX e XX por um propósito nacional compatível com os atuais interesses preservacionistas do planeta. Essa era uma perspectiva plausível há três anos. Vejamos o que 2019 nos reserva, nesse âmbito”, adverte.

Maria Alice Rezende de Carvalho é licenciada em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC Rio, mestre em História Social pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ, onde trabalhou entre os anos de 1987 e 2007, tornando-se Professora Titular. Atualmente é Professora Associada II do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Entre outras publicações, é coautora do livro Para pensar o Exército Brasileiro no século 21, que deve ser lançado em breve.

A entrevista em tela tem como pano de fundo a pesquisa realizada no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio, de autoria da professora Maria Alice Rezende de Carvalho, do professor Eduardo Raposo e da professora e Sarita Schaffel a ser publicada no livro citado acima.

Confira a entrevista:

IHU On-Line – Qual é o papel histórico da corporação militar no Brasil e como ela influenciou a formação das polícias no país?
Maria Alice Rezende de Carvalho – Durante o século 19, no contexto da formação brasileira, a perspectiva territorialista era dominante, isto é, havia a preocupação em manter unificado o território, sob o domínio centralizado da Coroa. Essa característica foi herdada dos nossos colonizadores. Há um historiador português do direito, Antonio Manuel Hespanha, que afirma que nos acostumamos a pensar a conformação dos Estados modernos a partir do paradigma de Thomas Hobbes, atribuindo a centralização do poder monárquico à destruição dos direitos senhoriais do mundo feudal. Mas na Península Ibérica, segundo Hespanha, o Estado moderno não se erigiu sobre os escombros do poder local. Ao contrário. O monarca absolutista português manteve a função do rei medieval de garantir o equilíbrio natural dos corpos políticos e de defender os direitos estabelecidos. Isso lhe trouxe uma dificuldade, pois ao preservar o dominium dos súditos, a monarquia precisava criar novas fontes de soberania, agregar novos espaços materiais e simbólicos que não pudessem ser questionados ou disputados pelas casas senhoriais. Qual foi a solução? A conquista colonial. Com ela, novas terras da África, da América e do Oriente eram submetidas ao domínio real e passavam a emprestar prestígio e poder ao monarca, sem que ele precisasse disputa-las com seus barões. Portanto, território e poder estão na base da aventura colonial lusa.

A existência de um corpo militar como “braço do Estado”, capaz de garantir, internamente, a preservação de extensas faixas de terra – Maria Alice de Carvalho

Ora, podemos pensar que esse princípio estruturante da política portuguesa foi reiterado no Brasil mesmo após a independência e ainda mais sob o Império. Tal princípio implicou a existência de um corpo militar como “braço do Estado”, capaz de garantir, internamente, a preservação de extensas faixas de terra, a identificação etnográfica de suas populações, a afirmação da presença do “rei” perante súditos das mais longínquas regiões. De fato, o exército brasileiro cumpriu esse percurso – o que lhe deu uma feição histórica específica, livre das influências civis e dos interesses de classes ou grupos externos à corporação. Esse é o modelo interpretativo desenvolvido por José Murilo de Carvalho e Edmundo Campos Coelho, que pensam o fenômeno militar com ênfase na sua autonomia organizacional e institucional.

Quanto à influência da corporação militar na formação das polícias é preciso pensar que a organização do exército, nos moldes em que ela tradicionalmente se dá, visa à defesa do território e a soberania nacional – o que não é caso das polícias, cujos objetivos são (ou deveriam ser) garantir os direitos dos cidadãos, prevenindo e reprimindo violações a eles. Ora, para desempenhar o seu papel, o exército precisa se organizar de modo a mobilizar grandes contingentes humanos com rapidez e eficiência, o que requer centralização decisória e uma estrutura verticalizada. Mas será esse o caso das polícias? Atuando na rua, tendo que decidir sobre como agir, gerindo seus próprios recursos, interagindo com cidadãos no espaço público, os policiais necessitam de um treinamento específico e outro tipo de organização, distinta da que tem o Exército. Enfim, em nosso regime legal, a polícia é definida como instituição militar, o que a obriga a um tipo de organização semelhante à do exército. Mas será essa a sua forma adequada?

IHU On-Line – Que tipo de mudanças ocorreram na corporação militar desde a reabertura? Quais passaram a ser as atribuições e práticas dos militares sob o Estado democrático de direito?
Maria Alice Rezende de Carvalho – As mudanças ainda estão em curso e correspondem à longa passagem de uma instituição afinada com um Estado modernizador e desenvolvimentista dos séculos XIX e XX, para uma instituição do século XXI, isto é, afinada com uma Sociedade que almeja a paz e a garantia dos direitos e liberdades dos cidadãos.

A criação do Ministério da Defesa, em 1999, por exemplo, que unificou as Forças e as submeteu a uma liderança civil, se inscreve nessa nova normatividade, assim como o Programa PRO-DEFESA, que pouca gente conhece, mas que tem como objetivo promover a aproximação entre a opinião pública e o esforço de autorreforma das Forças Armadas. Trazer ao debate público nacional algumas questões tidas, até então, como de interesse exclusivamente militar e conhecer os pontos de vista de segmentos sociais representativos do país acerca da atuação das Forças Armadas são evidências dessa mudança. O Ministério da Defesa, com recursos da CAPES, tem lançado editais para que instituições universitárias civis e militares realizem conjuntamente projetos de ensino e pesquisa voltados a questões estratégicas de defesa e segurança do país. Portanto, não é difícil perceber a relevância do PRÓ-DEFESA no contexto da democratização brasileira, quando se espera uma repactuação da sociedade em torno dos objetivos e práticas das Forças militares.

A autorrreforma das instituições militares, repito, visa ao desenvolvimento de novas capacidades para responder a demandas contemporâneas e democráticas por defesa – Maria Alice de Carvalho

Unificação das Forças, comando civil, aproximação do campo científico – tais mudanças não foram uma guinada exclusiva dos militares brasileiros. Nas últimas décadas do século XX, a maioria dasForças Armadas latino-americanas, os Exércitos em particular, passaram ou estão passando por um processo de transformação estrutural, tendo em vista as mudanças na configuração da ordem internacional e o restabelecimento da democracia na região.

A autorrreforma das instituições militares, repito, visa ao desenvolvimento de novas capacidades para responder a demandas contemporâneas e democráticas por defesa, principalmente em operações para garantia da lei, em desastres naturais, na segurança de grandes eventos e na defesa das/nas fronteiras. E o controle dessa capacitação por agências civis, como já ocorre na Argentina e vem sendo ensaiada, aqui no Brasil, pela CAPES, pode ser um sinal interessante do processo de transformação do Exército brasileiro.

IHU On-Line – Qual é o perfil das instituições militares e dos militares no país hoje?
Maria Alice Rezende de Carvalho – A pesquisa Para pensar o Exército Brasileiro no século XXI, que realizei juntamente com Eduardo Raposo e Sarita Schaffel, com recursos provenientes do PRÓ-DEFESA, dedicou uma de suas seções à caracterização socioeconômica da Força Terrestre. E dessa caracterização se extraem seis pontos principais.

O primeiro diz respeito a convergências entre aspectos verificados na população pesquisada e na população brasileira em geral, com duas exceções:

(a) o índice de oficiais brancos em relação aos oficiais negros e pardos se encontra bem acima do verificado proporcionalmente na população nacional; e (b) o perfil religioso dos respondentes aponta para um número de espíritas superior ao de evangélicos, quando, na população brasileira, os evangélicos constituem a segunda maior adesão religiosa, abaixo apenas dos católicos.

O segundo aspecto notável é a centralidade do mundo urbano brasileiro no recrutamento dos militares, principalmente de cidades das regiões Sudeste e Sul do país, com tudo o que essa geografia sinaliza em termos de maior acesso à educação pública, à informação, aos bens de cidadania etc. – fatores que, afinal, são indissociáveis do sucesso em exames vestibulares.

Outro aspecto a merecer destaque é a natureza socialmente mista do Exército, que atualmente combina oficiais cujos pais e mães são superiormente escolarizados, com cursos de pós-graduação completos – o que denota o pertencimento a uma classe média estabilizada há, pelo menos, duas gerações – e oficiais cujas conquistas escolares não recuam à geração de seus pais, o que sugere serem fruto de setores sociais populares ou de uma classe média de extração mais recente.

O quarto aspecto diz respeito ao elevado grau de endogenia institucional, embora essa característica esteja mais presente entre oficiais antigos, em postos mais elevados. Há, contudo, um interessante viés de gênero, que pode ampliar a endogenia, caso cresça o número de mulheres no Exército, pois quase 40% delas disseram que sua escolha pela carreira militar foi influenciada pela existência de outros militares na família.

Aspecto determinante na estruturação do Exército é também o cultivo da família nuclear como agência integradora do oficial à corporação e como valor associado à ordem e à solidariedade entre seus membros.

Finalmente, o sexto aspecto a ser destacado é a potencial permeabilidade do Exército a práticas inovadoras como resultado de uma estrutura institucional em que convivem diferentes classes sociais, crenças e formas de ingresso na corporação. Se, por um lado, essa feição fragmentada do Exército pode ameaçar sua autodefinição como instituição homogênea e resiliente, por outro lado tem o mérito de espelhar as transformações em curso na vida brasileira e se apresentar como instituição compatível com os novos tempos democráticos.

IHU On-Line – Por que a desmilitarização das polícias estaduais encontra tanta resistência?
Maria Alice Rezende de Carvalho – Pois é. Apesar de tantas mudanças importantes terem ocorrido no Brasil desde a Constituição de 1988, as instituições de segurança pública, dentre as quais as forças policiais, não foram significativamente modificadas, tendo sido preservada, por exemplo, a cultura da guerra ao “inimigo interno”, tão presente durante a ditadura militar. O efeito dessa cultura sobre as corporações policiais, sobretudo militares, é inegável no nosso tempo, o que acaba por combinar, de um lado, esse repertório bélico, que valoriza a coragem física e o confronto; e, de outro, aquilo que é mais caro em sociedades democráticas: um repertório técnico, que entende a segurança como um serviço público prestado universalmente a cidadãos.

A cultura da guerra ao “inimigo interno”, tão presente durante a ditadura militar. O efeito dessa cultura sobre as corporações policiais, sobretudo militares, é inegável – Maria Alice de Carvalho

Essa dualidade gera um grande imobilismo e está longe de ser resolvida a favor do aperfeiçoamento técnico da segurança pública.

Para que assim ocorresse seria necessária uma mudança profunda na própria sociedade, levando a que a democracia não seja mais entendida apenas como o ato de votar, mas como uma cultura de direitos e liberdade. Como disse, certa vez, Luiz Eduardo Soares, ex-Secretário Nacional de Segurança do primeiro governo Lula e estudioso do tema, “se as polícias agem de modo francamente racista e adotam nítido viés de classe, se territórios são estigmatizados, os problemas não estão nessas instituições e em seus profissionais apenas, mas na sociedade, em sua história”. Daí o extemporâneo apelo social que se observou durante a greve dos caminhoneiros, quando segmentos numerosos da sociedade clamaram por uma “militarização da política”; ou quando, em contextos de violência urbana exacerbada, o tema da ordem imposta por militares volta a habitar corações e mentes dos urbanitas.

IHU On-Line – A partir das suas pesquisas é possível identificar um discurso comum entre os militares acerca do nacionalismo ou do que eles considerariam um projeto de país para o Brasil?
Maria Alice Rezende de Carvalho – Em 2016, quando teve início a análise das respostas obtidas com o questionário, se podia dizer que havia fortes motivações para o processo de autorreforma do Exército brasileiro. Elas decorriam, em primeiro lugar, das grandes transformações mundiais, exemplificadas, nesse caso, pelo final da Guerra Fria e a vitória da agenda dos direitos e da igual-liberdade em escala planetária; em segundo lugar, do novo marco legal ao qual as Forças Armadasestão submetidas, especialmente a Estratégia Nacional de Defesa- END, lançada em 2008; e, por fim, das alterações observadas na percepção que os oficiais têm de si, da sua atividade e da sua cultura organizacional.

De fato, a pesquisa detectou alguns sinais de mudança orientados não apenas pela inteligência militar, mas também “de baixo para cima”, isto é, por um anseio que talvez se origine de desajustes cotidianos experimentados pelos militares e suas famílias: um deles a progressiva democratização das práticas sociais e, paralelamente, a permanência de um padrão organizacional centralizado e hierárquico que produz efeitos até mesmo na esfera familiar, sobretudo nas famílias residentes em vilas militares. É como se os militares tivessem a sua observação do mundo vazada por novos critérios, valores, juízos que não podem ser replicados em sua atividade e em sua domesticidade.

Portanto, parece que, até 2016, o que se percebia entre os militares era um desejo de atualização de suas práticas e de sua organização em face de um mundo em transformação. Penso que a pesquisa capturou esse desejo, presente nas repostas dos oficiais ao questionário.

Assim ocorresse seria necessária uma mudança profunda na própria sociedade, levando a que a democracia não seja mais entendida apenas como o ato de votar – Maria Alice de Carvalho

Há estudos comparativos, como o de Adriana Marques e Jacintho Maia Neto, que apontam que o Exército chileno migra velozmente para o modelo profissional, enquanto o brasileiro ainda preserva muitas das características de uma instituição total. Tais autores apontam que o Exército vizinho se desprende de uma feição territorialista, substituindo-a por uma concepção “empresarial” de gestão de seus recursos materiais, tecnológicos e humanos, com a diminuição de seus efetivos; e que, no Brasil, se observaria a adesão a algo parecido com esse horizonte estratégico, embora implementado de forma muitíssimo mais lenta e resguardando as nossas especificidades – a principal delas, a Amazônia, um imenso território de que o Exército não descuidará.

Mas, talvez, o aspecto importante a ser frisado seja a ausência de um novo discurso público de legitimação do Exército brasileiro perante a sociedade – algo que substitua o discurso nacionalista que acompanhou o desenvolvimentismo do século XX, e se afine com o atual processo de aggiornamento institucional. Não será, como no caso chileno, em que o ex-comandante Juan Emilio Cheyre Espinosa, em aula magna na Universidad Adolfo Ibáñez, classificou o Exército chileno como “la empresa más querida de Chile”. No caso brasileiro, tal representação dificilmente encontraria eco na corporação e na sociedade, pois seria difícil traduzir o esforço de atualização organizacional do Exército, tradicionalmente identificado com o Estado, sob a perspectiva da racionalidade empresarial.

Porém, um discurso público que expressasse a política de gestão ambiental do Exército brasileiro e o comprometimento da Força Terrestre com a melhoria da qualidade ambiental, seria talvez, uma forma de substituir o nacionalismo dos séculos XIX e XX por um propósito nacional compatível com os atuais interesses preservacionistas do planeta. Essa era uma perspectiva plausível há três anos. Vejamos o que 2019 nos reserva, nesse âmbito.


Luiz Werneck Vianna/IHU On-Line: 'O texto constitucional está em risco'. Para onde a balança do novo governo vai pender?

Por  Patricia Facchin, do IHU On-Line

“O caminho pelo qual nós enveredamos ainda é muito misterioso e não se sabe para onde a balança vai pender”, diz o sociólogo Luiz Werneck Vianna à IHU On-Line ao comentar os primeiros movimentos do governo de Jair Bolsonaro. O discurso de posse do presidente, avalia, “foi ameaçador” e indica a intenção de fazer a “roda girar para trás” na questão dos costumes e das mulheres, mas “em outros temas ele tem a intenção de que a roda gire de uma maneira diversa da que estava girando, e essa maneira é a maneira neoliberal”. O modelo econômico que orienta o governo, pontua, “não é bom nem mau”, mas é preciso “ver o cenário social e político dele. Para fazer tudo isso, quem tem que ser removido? Quem tem que perder? Esse não é um jogo somente de ganhadores. Há ganhadores e perdedores, e os perdedores, por ora, estão do lado de baixo e devem perder muito mais do que já perderam”, pondera.

Entre os passos a serem observados no novo governo, Werneck Vianna chama atenção para qual será a participação e as posições a serem defendidas pelos militares no governo. “Existe um personagem no governo que não está claro como está se comportando ou como irá se comportar, que são os militares, especialmente os do Exército”, menciona. Até onde se sabe, diz, “a corporação continua unida em torno de alguns propósitos gerais, como desenvolvimento, uma ideia de grandeza nacional ainda subsiste, e isso tudo parece indicar uma certa indisposição com essa nova política externa que se preconiza, com a nova economia neoliberal que se preconiza”.

Nos primeiros meses de governo, Werneck Vianna aposta que as políticas econômicas do governo encontrarão “apoio” entre os militares, mas “algumas partes serão mais sensíveis, especialmente no tema da privatização de algumas estatais. Quanto ao tema da abertura da soberania de alguns territórios, acho que essa é uma tese que não passa entre os militares, mas, enfim, a ver”. Mas o que “vai se ver” com certeza no novo governo é a reforma da Previdência. A questão é saber se “esse modelo vigente de captação entre as gerações vai permanecer ou vai ser substituído por um sistema de capitalização”.

O sociólogo frisa também que “por mais que se diga que não, o texto constitucional está em risco” e “o programa de Bolsonaro incide de forma negativa diretamente sobre vários pontos da Constituição”. Ele explica: “O mais recente deles é o trabalho, porque o novo governo pretende dissolver a Justiça do Trabalho, que está prevista constitucionalmente. Então, um embate dessa questão com o judiciário parece ser inevitável se essa ideia prosperar”.

Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP, é autor de, entre outras obras, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997); A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999); e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012). Destacamos também seu novo livro intitulado Diálogos gramscianos sobre o Brasil atual (FAP e Verbena Editora, 2018), que é composto de uma coletânea de entrevistas concedidas que analisam a conjuntura brasileira nos últimos anos, entre elas, algumas concedidas e publicadas na página do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

Confira a entrevista:

IHU On-Line - Qual sua avaliação do discurso de posse do presidente Jair Bolsonaro e da primeira semana do novo governo?
Luiz Werneck Vianna –
O discurso de posse foi ameaçador. Por mais que se diga que não, o texto constitucional está em risco. Existe um personagem no governo que não está claro como está se comportando ou como irá se comportar, que são os militares, especialmente os do Exército. Havia, até bem pouco tempo atrás, a convicção de que eles estavam comprometidos com a defesa da Carta de 88, inclusive isso era claro em declarações públicas do general Villas Bôas. Mas parece que isso não é tão claro, porque o programa de Bolsonaro incide de forma negativa diretamente sobre vários pontos da Constituição. O mais recente deles é o trabalho, porque o novo governo pretende dissolver aJustiça do Trabalho, que está prevista constitucionalmente. Então, um embate dessa questão com o judiciário parece ser inevitável se essa ideia prosperar.

Um fenômeno local e global
A minha ideia geral sobre esse tema não é apenas local. Trata-se de um processo de alcance muito mais geral, que envolve a Itália, a Hungria, a Polônia, os EUA principalmente, e agora o Brasil, com a importância que tem na América Latina. Há um diagnóstico, por parte da direita emergente, de que se tudo permanecesse como antes, com a ONU, com o tema do meio ambiente, o tema da paz, o mundo do capitalismo iria conhecer dissabores importantes no tempo em que vivemos e no tempo em que ainda viveríamos. Vejo essa movimentação da direita como uma concertação internacional no sentido de devolver ao capital e ao capitalismo liberdade de movimentos, fazendo com que ele remova todos os obstáculos que estão antepostos a ele. Isto ocorreu na Inglaterra com o Brexit, que ainda é um processo inconcluso, mas, de qualquer modo, as reações reacionárias, que se opõem às mudanças que estavam ocorrendo e ainda estão, foram demonstradas nas próprias eleições na Itália, na Hungria, e o preço foi contestado por um processo plebiscitário, isto é, dentro dos canais democráticos. Então, a democracia apresentou e vem apresentando caminhos novos, como a emergência da direita no mundo através da manipulação eleitoral e através da exploração dos perdedores por aqueles setores sociais afetados pela globalização.

Esse mundo todo vem percorrendo um caminho que desconhece, que passa por cima ou que passa ao largo das questões do mundo urbano industrial. Os trabalhadores da indústria e os personagens do século XX, sindicatos, partidos de esquerda, partidos em geral, sofreram um processo de esvaziamento muito grande. Hoje o mundo transcorre mais na área dos serviços e das finanças. A política se tornou necessária para liberar o andamento dessa economia nova, financeirizada, para que ela remova os obstáculos da sua reprodução. A roda da história está girando. Quais são os grandes alvos desse movimento? A ONU, a paz.

Programa do governo
O programa desse governo que aí está é mais um programa de limpeza de terreno dos obstáculos existentes a uma reprodução mais flexível do capitalismo. Está aí a questão indígena e a liberação de terras indígenas para a mineração e o agronegócio.

A grande propriedade agrária está desempenhando um papel central na formação do governo, muito importante na formação do parlamento. Fazer a roda girar para trás é possível, mas é muito difícil. Daí que o mundo de Trump não seja um mundo de céu de brigadeiro, inclusive internamente, mas eles estão se esforçando bastante nessa direção e existe uma consciência nova, uma ação nova, novos protagonistas, que devolvem liberdade de movimento ao capitalismo.

A questão feminina não depende da movimentação política, de movimentos feministas e partidários — isso ajuda —, mas é sobretudo o movimento das coisas. O mundo capitalista atual foi obrigado a atrair as mulheres ao mercado de trabalho e, com isso, afetou a família nuclear, o patriarcalismo, inclusive no Oriente esse processo está chegando. Não é possível fazer com que esse movimento da emancipação feminina retroceda. No Brasil, o que se observa como reação àemergência das mulheres no mundo é essa epidemia de feminicídio que vem ocorrendo entre nós. É claro que estou mostrando e acentuando um aspecto microscópico disso, mas isso tem por trás mudanças societais imensas e revolucionárias do ponto de vista antropológico. A família nuclear que o mundo tradicional conheceu não volta mais ao que era; isso foi subvertido por processos sociais inamovíveis. Esse é um tema de fundo, não é um tema lateral, e está presente no combate às chamadas ideologias de gênero, tão forte nos discursos de campanha presidencial de Bolsonaro, e na armação ideológica do discurso anacrônico e primitivo do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo.

Além do mais, o pentecostalismo cresceu no Brasil, mas o país continua católico, majoritariamente católico. Isso cria travas não na questão da mulher exatamente — não é a isso que estou me referindo. Estou me referindo à matriz que formou a identidade nacional brasileira, que não é uma matriz protestante, mas é uma matriz da catolicidade. Tem uma sofisticação dada por séculos e uma capacidade de resistência muito grande. Não creio que esses traços da identidade pela catolicidade no Brasil sejam facilmente radicáveis por essas novas ideologias de fundo pentecostal, como a ideologia da prosperidade e coisas do gênero. Não vejo como isso possa avançar a ponto de jogar a velha matriz que presidiu a formação da nossa identidade. Então, esse é outro ponto que tende a suavizar e amenizar essa ira da Reforma Protestante — não quero me referir ao protestantismo de modo pejorativo, mas a esse impulso de reforma que está nos pentecostais que querem que nos costumes, na sociabilidade, o mundo volte atrás, isso num momento em que Cuba, por exemplo, alivia o seu texto constitucional da repressão ao homossexualismo. Esse é um tema que também não volta atrás. De outra parte, o nível de independência, de liberdade com que o Brasil viveu as últimas décadas levou o país a ter novos personagens, novos temas, e não vai se fazer essa roda girar para trás. Então, esse é um lado do governo, digamos que o lado obscuro do governo.

O lado mais racional, digamos, admitindo de forma generosa a racionalidade disso, estava na necessidade de que o mundo da economia brasileira, especialmente das suas elites, vem ao seu encontro com a ideologia neoliberal. O neoliberalismo implica a remoção das conquistas sociais que foram acumuladas nas últimas décadas. O neoliberalismo precisa de uma movimentação livre de capitais, cujos custos sociais não importam. Os melhores dirão que, com a riqueza que o neoliberalismo trará, todos vão se beneficiar. Isso não se viu em parte alguma e é de uma improbabilidade quase absoluta. O que vai se ver é uma intensificação da exploração, do domínio. Sabe-se lá se vai encontrar resistências ou não.

IHU On-Line – Que problemas o senhor identifica na visão econômica do novo governo?
Luiz Werneck Vianna – É o de que terão de remover os direitos que estão aí: legislação do trabalho, Justiça do Trabalho, abrir a terra para a exploração mineral e agropecuária. Apostar no mercado com a crença de que, a longo prazo, isso vai trazer benefícios a todos.

IHU On-Line – Seria melhor continuar com o capitalismo de Estado que prevaleceu até então?
Luiz Werneck Vianna – Não. De jeito nenhum.

IHU On-Line – O que seria uma outra via?

Luiz Werneck Vianna – Uma via liberal, e não neoliberal. A economia com o governo Bolsonaro vai apenas selecionar regiões privilegiadas para a sua intervenção. Esse é um ponto. Outro ponto são os militares.

IHU On-Line – Por que o senhor está com receio da participação dos militares no governo?
Luiz Werneck Vianna – Eles sempre foram refratários à privatização e sempre tiveram um papel favorável à intervenção do Estado, às estatais, a Petrobras, a Eletrobras. Como eles irão se comportar diante disso ainda é um segredo, um mistério. Tem de se presumir que haverá alguma dificuldade ou algum ruído em algumas dimensões. É um governo com opções arriscadas, que se importa em produzir mudanças que se refletem em outros segmentos do próprio governo. Por exemplo, vamos franquear parte do nosso território a bases militares americanas, como preconizam tantos, como o ministro das Relações Exteriores? Os militares concordarão com isso? Acerca da questão de transferir a embaixada em Israel para Jerusalém, como ficaria isso para o setor agropecuário que depende tanto das exportações para o mundo árabe? Tudo isso não dá para antecipar.

IHU On-Line – Os militares de hoje têm uma visão diferente do nacionalismo se comparado aos militares do passado?
Luiz Werneck Vianna – É uma coisa a ver. O mundo militar é um mundo muito complexo e tem uma geração mais jovem. Está saindo uma pesquisa produzida pelo meu departamento na PUC-Rio, coordenada por Eduardo Raposo e Maria Alice Rezende de Carvalho, a qual foi feita num convênio com segmentos da corporação militar e patrocinado pela Capes. Por essa pesquisa, os elementos de continuidade aparecem muito fortes, a corporação continua unida em torno de alguns propósitos gerais, como desenvolvimento, uma ideia de grandeza nacional ainda subsiste, e isso tudo parece indicar uma certa indisposição com essa nova política externa que se preconiza, com a nova economia neoliberal que se preconiza. O caminho pelo qual nós enveredamos ainda é muito misterioso e não se sabe para onde a balança vai pender. Ela não vai poder ficar sem indicar lados perdedores e vencedores por muito tempo, porque as questões são muito pesadas e importantes. Abrir o território nacional para uma presença militar estrangeira é uma questão que vai mexer profundamente com as Forças Armadas e a sociedade inteira. A questão da transferência da embaixada em Israel vai mexer com um segmento, mas um segmento muito importante, que é o do agronegócio, e por aí vai. Outros temas, como o dos costumes, mexem com a sociedade toda.

O carnaval vem aí e ele não vai se passar que nem missas campais pentecostais; vai ser o carnaval de sempre, da sensualidade desenfreada, da liberação de sempre, e talvez ele também se comporte de forma a caracterizar o que está se passando fora dele, fora do mundo do carnaval. Blocos, escolas de samba vão refletir, como sempre refletiram, sobre temas do cotidiano, e vai ser interessante de ver. Nesse sentido, também por aí, não vai se conseguir fazer a roda girar para trás.

IHU On-Line – O novo governo tem a intenção de fazer a roda girar para trás, ou tem a intenção de fazer a roda girar para frente, mas ainda assim irá fazer a roda girar para trás?
Luiz Werneck Vianna – Em algumas questões, para trás, como na dos costumes, das mulherespor exemplo. Em outros temas ele tem a intenção de que a roda gire de uma maneira diversa da que estava girando, e essa maneira é a maneira neoliberal. Não à toa o Chile de Pinochet é um paradigma do que está aí. Uma coisa que vai se ver é a reforma da Previdência. Esse modelo vigente de captação entre as gerações vai permanecer ou vai ser substituído por um sistema de capitalização?

IHU On-Line – O ministro Paulo Guedes disse em seu discurso de posse que o projeto econômico de sua equipe é sustentado em cima de três pilares: a reforma da Previdência, a privatização acelerada e a redução ou unificação de impostos. Como o senhor avalia esse conjunto de propostas?
Luiz Werneck Vianna – O modelo em si não é bom nem mau. Tem que ver o cenário social e político dele. Para fazer tudo isso, quem tem que ser removido? Quem tem que perder? Esse não é um jogo somente de ganhadores. Há ganhadores e perdedores, e os perdedores, por ora, estão do lado de baixo e devem perder muito mais do que já perderam.

IHU On-Line – Os militares irão apoiar esse modelo ou tendem a divergir?
Luiz Werneck Vianna – No começo, em linhas gerais, vai haver apoio. Algumas partes serão mais sensíveis, especialmente no tema da privatização de algumas estatais. Quanto ao tema da abertura da soberania de alguns territórios, acho que essa é uma tese que não passa entre os militares, mas, enfim, a ver. O mundo gira, os atores mudam, os cenários mudam. Aqui mesmo estamos vendo uma mudança muito grande de cenário.

Cosmopolitismo como ideia-força
Algumas ideias se tornaram ideias-força. Por exemplo, o cosmopolitismo se tornou uma ideia-força. Arrebatadora? Não, tanto é que as resistências estão aí. Essa globalização não tem mais como frear, tem que ver quem está ganhando com ela e quem está se sentindo ameaçado por ela. A situação da China é real: a China é uma potência emergente no mundo, que está disputando a hegemonia com os EUA. China e Rússia estão se aproximando agora. Se se aproximarem de verdade, veja a mudança no tabuleiro. O que está por trás da ameaça de Trump? A ameaça pela perda da hegemonia. É um processo mundial de luta pela hegemonia. O Brasil vai tomar parte nisso? Parece que vai tomar partido de um lado contra o outro. Isso interessa a quem pensa em um país de grandeza e afirmação? Acho que não. Haverá ruídos por aí. Enfim, fomos envolvidos por uma trama infernal que está se dando no plano mundial por hegemonia, onde somos dependentes da China e deveremos ser mais.

Nesse cenário, vamos tomar partido contra a China? Isso é uma coisa que não passaria pela cabeça de um estadista como Vargas, que procurava trabalhar com as oportunidades que apareciam, jogando com os conflitos mundiais de forma tal que aproveitasse o Brasil, como foi o caso da industrialização com o financiamento americano. Vamos nos deixar arrebatar por apenas um dos polos do conflito nessa luta terrível pela hegemonia, que pode terminar em guerra? A guerra comercial já está aí. EUA, Rússia e China não param de aprimorar seu armamento, suas formas de defesa e agressão: mísseis balísticos para cá, mísseis balísticos para lá. Essa situação nos traz de volta aos anos 30, que é um período terrível, que parecia que tínhamos deslocado, com esse papa, esse Vaticano, com o tema do meio ambiente, o tema da paz, o tema da cooperação, da solidariedade. Esses eram temas emergentes até ontem, que estão sendo deslocados por essa gramática de guerra que está ocorrendo no mundo.
Tem uma bibliografia muito importante sobre o risco.

Sempre que se fala nela, lembro do alemão Ulrich Beck, que fez uma demonstração, um inventário de uma reflexão muito poderosa sobre a sociedade de risco, que é hoje a nossa. Não é que sejamos catastrofistas, mas sem reflexão, sem consciência, sem denúncia, o mundo da catástrofe se avizinha, progride, ganha terreno. A ecologia é um tema ineliminável do mundo contemporâneo e, não obstante isso, no Brasil e nos EUA de Trump, erradicaram essa questão como se fosse uma questão ideológica.

Então, há toda uma bibliografia em ciências sociais que vive agora a ameaça de ir para a lata do lixo. A sociologia do risco está sumindo do mapa. Reflexões das melhores consciências que o mundo desenvolveu nos últimos anos estão sendo jogadas na lata do lixo. Um país como a Inglaterra, civilizado, sofisticadíssimo, votou no Brexit por uma motivação rústica, primitiva. É ameaçador. Os EUA, com as suas tradições libertárias dos federalistas, têm na presidência da República um homem como o Trump. É ameaçador.

IHU On-Line – O que explica o apoio de parte da população desses países à emergência da direita?
Luiz Werneck Vianna – Isso vem com a ideologia do populismo, com as perdas que setores da classe média e mesmo setores dos trabalhadores vêm sentindo com as mudanças estruturais que estão ocorrendo na economia e que jogam algumas profissões no lixo da história, com mudanças que não são inclusivas, como a industrialização foi. Quem chegava à cidade vindo do mundo rústico do campo, conseguia emprego nas fábricas. E agora? O mundo industrial encolheu e os requerimentos educacionais para entrar no mundo da informática são altos e deixam gerações de fora. Não adianta ter informação, boa formação em outras dimensões, se não tiver formação do mundo informacional. Eu, por exemplo, estaria condenado à fome e à miséria dada a minha má formação no mundo digital. O populismo de direita avança em cima desse ressentimento, com ameaças trazidas pelos grandes grupos migratórios contemporâneos.

Temos que pensar no mundo a partir da globalização e não com esse populismo nacionalistaque só leva à intensificação dos conflitos e, no limite, à guerra. Só que a guerra agora pode ser final.

IHU On-Line – O retorno ao nacionalismo é uma reação às consequências da globalização?
Luiz Werneck Vianna – Este é o conflito da cena contemporânea: o local e o universal. Isso demanda estadista, intervenções sofisticadas, e não intervenções rústicas, como muros, como fechamento autárquico dos países. A Hungria não tem força de trabalho e fecha as portas à imigração. É todo o continente: a África Subsaariana e outros territórios africanos estão mudando em busca de oportunidades de vida e mudando de continente, marchando para Washington. Isso é algo sem paralelo. As pessoas levam seus filhos, inclusive de colo, nessa epopeia que é atravessar o continente para pedir acolhimento, o qual eles sabem que não terão. Reclamam por abertura do mundo, por uma ordem mais aberta, reivindicam o cosmopolitismo. Aí a presença do papa é uma presença beatífica, porque ele representa esses ideais de cooperação, de paz, embora sem força.

Enfim, esse inventário de conquistas está sob ameaça, inclusive no Brasil. Penso que o mundo da reflexão, da consciência, o mundo dos trabalhadores tem que exercer um sistema de defesa contra esses avanços ameaçadores que criamos da Segunda Guerra para cá. Por onde isso vai, não me pergunte, porque não sei. Só sei que vai haver muito conflito, porque são muitos interesses contrariados.

IHU On-Line - Qual sua expectativa para o novo governo?
Luiz Werneck Vianna – A minha expectativa é a de que será um cenário de competição, de muito conflito. E espero que vivamos isso de uma forma civilizada, sobretudo se conseguirmos garantir a Constituição que nos rege que, a essa altura, mais do que nunca, é o melhor instrumento de defesa da civilização brasileira.