ihu online

Luiz Werneck Vianna: O imprevisto, o Centrão e a política

Quando algo é natural, se for banido da sala, ele volta com força redobrada pela janela, clássico aforismo que serve como uma luva para retratar a nossa situação atual, quando se constata o retorno de instituições e de tradições que dois anos de governo Bolsonaro se empenharam em destruir como projeto político, tal como nos casos das suas arremetidas contra os poderes legislativos, e, principalmente, o judiciário. Esse tipo de experiência é uma velha conhecida, praticada com sucesso nos anos 1930 pela ditadura estadonovista, que fechou o Congresso e emasculou o Supremo Tribunal Federal, e foi reiterada pelo regime militar do AI-5, com as cassações de mandatos parlamentares e o expurgo de juízes da nossa mais alta corte. Nos dois casos, como sabido, frustraram-se os desígnios autocráticos e essas duas instituições renasceram com maior vigor.

Países, tal como os indivíduos, observava Tocqueville em “Democracia na América”, têm sua história marcada pela forma com que vieram ao mundo, na linguagem dos contemporâneos o DNA que trazem de suas origens marcam suas trajetórias futuras. Nosso estado-nação recebeu sua primeira configuração de uma assembleia parlamentar, e o parlamento foi a instituição-chave com que se edificou as estruturas do Estado, o modo de inscrição do país no cenário internacional e a preservação num imenso território da unidade nacional. Para esse último fim, foi determinante o papel desempenhado pelas instituições judiciais, em particular pelos magistrados, disseminados em rede capilar que atava regiões e rincões remotos aos desígnios do Estado.A mesma corporação cumprirá papel igualmente estratégico a partir do processo de modernização que se inicia com a revolução de 1930 que desloca o eixo agrário, até então dominante, para o urbano sob a condução do Estado e de suas políticas de indução da industrialização. Por meio da criação da CLT, da Justiça Trabalhista e do Ministério do Trabalho, o “ministério da Revolução”, se cria um mercado nacional de trabalho, regulado pelo direito e pelos novos agentes que emergem nesse processo, entre os quais, destacadamente, os juízes trabalhistas.

Aqui, não se chegará ao moderno e à industrialização pelas mãos do mercado, mas pelas do Estado, e será por essa via, que nosso longo processo de modernização, variando os regimes políticos, terá seu curso. Daí que, entre nós, o “natural” conheça essas marcas de origem, refratárias às intervenções que visem erradicá-las, propósitos declarados do governo que aí está. Não por acaso o governo de orientação neoliberal de Bolsonaro, cultor do trumpismo, tenha como projeto a submissão do Poder Judiciário e do Legislativo que impõem freios, ainda que débeis, à realização de suas agendas programáticas liberticidas.

Não é que a política seja o reino do imprevisto, mas é certo que ele atua nela, como agora testemunha a crise institucional que se avizinha, provocada por um obscuro parlamentar bolsonarista, marginal em sua grei, que numa ação solitária (tudo indica), investiu pesadamente contra o Poder Judiciário e a ordem constitucional, obrigando o STF a uma resposta à altura com a ordem da sua prisão. Com P. Bourdieu aprende-se que as instituições “pensam”, logo que criadas e institucionalizadas elas se investem de uma lógica própria de difícil erradicação, como o caso brasileiro é mais um exemplo na forte reação às atuais investidas contra elas.

Assim, um episódio provocado para agredi-las suscitou um movimento que as reforça e tende a devolver o andamento da política ao seu leito natural da democracia representativa, pois é na Câmara dos Deputados, sob uma maioria alinhada ao Centrão, agrupamento de políticos em geral pouco afeitos a convicções democráticas, que se encontrou a fórmula de superação de uma grave ameaça ao ordenamento constitucional. Tal feliz solução não se esgota topicamente com a recusa a afrontar o STF suspendendo a prisão do agente agressor, na medida em que deixa como lastro o isolamento das forças que tramam em favor da interrupção da vida democrática no país, a ser certificada pela sua punição exemplar no próprio âmbito do Parlamento.

O mundo gira e a Lusitana roda, e está aí o Centrão em papel propositivo, inédito em sua história de comportamentos meramente reativos, não por que o tenha procurado e sim em razão da trama profunda tecida ao longo da nossa vida institucional que o obrigou, em ato de legítima defesa, a superar suas limitações e agir em favor do interesse geral. Ele também não teria como escapar do naufrágio do nosso Titanic.

Nesses dois anos de governo Bolsonaro a democracia e suas instituições têm experimentado sobressaltos, já naturalizados em nosso cotidiano, e sob esse signo perturbador, em meio a uma cruel pandemia, contavam-se os dias que nos aproximam da decisiva eleição de 22. A pandemia continua, mas, ao menos, pudemos exorcizar as ameaças malévolas de retorno dos anos sombrios do AI-5. Ditadura nunca mais, bradou um ministro do STF no auge da recente crise, sem que fosse replicado.

Deve-se sempre se manter em guarda com as ilusões que podem nos toldar a vista, mas a essa altura é inevitável nosso encontro marcado com o destino na próxima sucessão presidencial. Temos tempo para nos preparar para ele, e devemos aprender com os recentes acontecimentos que, no mundo da política, o melhor ator é o que se guia pelas variações da fortuna e não aspira a lhe impor sua vontade. O imprevisto faz parte da sua lógica, aí está o Centrão não como mero coadjuvante, mas com fumaças de protagonismo, mais uma peça no tabuleiro a ser considerada pela esquerda democrática ao conceber seu xeque-mate à aventura golpista que visou atalhar nossa história.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo PUC-Rio


Luiz Werneck Vianna: Encontro marcado (se possível, suspenso por força maior)

Com os êxitos eleitorais das forças conservadoras no Senado e na Câmara Federal experimentamos um momento inédito na política brasileira de captura dos instrumentos do poder por parte de elites parasitárias do Estado, agrupadas no chamado Centrão, assim conhecido na linguagem dos jornais, melhor designado pelos cientistas sociais como o reduto do nosso atraso político-social. Tais elites nos acompanham ao longo do nosso processo de modernização, de Vargas a Lula, sempre como coadjuvantes, fornecendo bases de sustentação em seus rincões aos diferentes surtos de modernização que se sucederam na história republicana moderna no processo de imposição do capitalismo brasileiro.

Foi assim com a política de Vargas, que nos trouxe ao moderno da industrialização em aliança com o atraso – basta lembrar sua recusa em levar a legislação trabalhista ao campo –, com a de JK, com a do regime militar de1964, especialmente no desenvolvimentismo do governo Médici, que confiou sua política à Arena, partido formatado com as elites do atraso. Chegamos à modernização por meio desse conúbio, classicamente uma modernização conservadora, que nos embaraçou em nosso movimento em direção ao moderno.

O ineditismo da hora presente reside, pois, nessa abstrusa situação em que o coadjuvante chega ao proscênio na ausência de um protagonista. Para que um ator exerça protagonismo em cena é indispensável que ele seja portador de um papel ativo na condução de um enredo em que ele centralize o sentido das ações, papel que o Centrão, por natureza um conjunto amorfo de políticos sem luz própria, não tem como exercer. Bolsonaro igualmente não cabe nesse perfil, presidente acidental que chega ao governo num lance de fortuna e que tem como único projeto a conservação do poder, desconfiado como os tiranos clássicos de tudo e de todos ao seu redor.

O cenário é de desconcertante miséria política numa sociedade carente de lideranças que lhe apontem um rumo em meio às suas dolorosas aflições pela ação de uma cruel pandemia, acossada pelo desemprego e com boa parte dela às portas da miséria absoluta. As respostas a essa situação de descalabro inaudito são desalentadoras, como a do prefeito de Salvador, ACM Neto, virtual candidato ao governo do seu estado, indicando seu alinhamento a Bolsonaro, como foi a do ex-presidente da Câmara Federal, Rodrigo Maia, que por cálculos mesquinhos sentou-se em cima de dezenas petições em favor do impeachment presidencial. E chegam ao inacreditável com a recusa de Lula de compor uma ampla coalizão democrática na próxima sucessão presidencial em nome de uma candidatura do seu partido.

Não há governo e nem sequer uma oposição digna desse nome, assombrada diante da mula sem cabeça assentada em seu destino a sociedade clama por uma voz e ações que venham a seu socorro, que somente podem provir de suas entranhas, como estão vindo das comunidades populares e dos seus artistas e intelectuais, dos profissionais da saúde e das nossas maiores personalidades intelectuais, que fazem coro aos parlamentares que receberam no Congresso o presidente que aí está aos brados de facínora genocida.

Mais do que denunciar o caráter perverso do atual governo, por sua incúria em enfrentar a pandemia, os movimentos que se fazem presentes na luta contra ela têm importado em impulsos para a auto-organização da vida social, registrando-se inclusive petições de impeachment apresentadas por personalidades das atividades de saúde pública. Cabe ao campo democrático amplificar a ressonância dessas vozes traduzindo-as em um sonoro clamor público, chave acionada para nos livrar do horror a que estamos submetidos.

É verdade que temos um encontro marcado com o que aí está em 2022, se não conseguirmos antecipar essa data com um reparador impeachment. Para ele devemos nos preparar, em primeiro lugar com a apresentação de um projeto de soerguimento do país, de reanimação da sua vida econômica e cultural que devolva esperança aos brasileiros. Sobretudo com a articulação de uma frente política tão ampla quanto possível, e que encontre suporte na sociedade civil na forma que aprendemos a fazer nas lutas contra o regime militar.

As condições para tal empreendimento estão dadas e visíveis a olho nu, como no cenário internacional em que a potência dominante defenestrou o populismo reacionário de Trump, e entroniza como eixo estratégico da sua política os temas ao meio ambiente e dos direitos humanos, calcanhares de Aquiles do atual governo que logo sentirá os efeitos perturbadores dessa nova orientação. Internamente, o experimento exótico de um governo dominado pelo Centrão com a consistência das gelatinas, em que pesem as cabriolas hermenêuticas que rolam por aí, promete ser minado pela fúria dos apetites desencontrados dos seus quadros numa feroz competição que ignora quem a arbitre, tal como se testemunha no interior do DEM, satélite enrustido do Centrão.

A composição dessa frente implica em engenho e arte por parte das forças democráticas, particularmente da esquerda, artífice de importância crucial de sua elaboração, cabendo a ela tecer os fios de comunicação entre as forças convergentes no propósito maior de servir a afirmação dos seus valores e princípios. Não chegou ainda a hora da fulanização, para se usar uma expressão de Fernando Henrique, ela virá do processo de construção da frente democrática conforme sustenta Guilherme Boulos em sua resposta a uma precoce proposta de candidatura por parte do PT.

É preciso reconhecer que os recentes resultados negativos nas eleições congressuais adensaram a neblina dos mares que singramos, mas contamos com os bons conselhos do poeta que nos recomenda que, em meio ao nevoeiro, levemos o barco devagar. Devagar, mas em frente, sugerem as suas palavras. A tempestade já passou, ficaram para trás os delírios de um novo AI-5, e é preciso tirar proveito da aragem amável que nos bafeja, seguir viagem ao lugar pretendido. Se formos firmes e prudentes, ele está logo ali, ao alcance da mão.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio  


Luiz Werneck Vianna: Hic Rhodus hic salta

Nesse tempo de espantos algo já se pode dizer: perderam todos os que se empenharam em imprimir uma marcha à ré no movimento das coisas no mundo com a derrota no processo eleitoral de Donald Trump que os liderava a partir do poder e da influência que o governo dos EUA exerce na cena mundial. Em poucos dias, Joe Biden, cuja campanha se orientou por princípios opostos de política externa será ungido com a faixa presidencial, devolvendo o seu país ao seu leito natural historicamente constituído, exemplar no processo de criação da ONU.  O eixo do mal, portador de versões degradadas do nacionalismo em moldes populistas, perde a sustentação do pino que garantia seu funcionamento, e as peças que ainda lhe restam não terão como operar sem o amparo do sistema de quem faziam parte.

Cerra-se um ciclo que se iniciou no governo Thatcher, aprofundou-se com Reagan e culminou com Donald Trump, em que se tentou com a fórmula neoliberal nos devolver ao capitalismo vitoriano. As promessas de um novo tempo, contudo, se encontram embaçadas pelo flagelo da pandemia que nos assola e tolhe a livre movimentação das forças sociais embora estimulem a procura por soluções cooperativas supranacionais. Nesse sentido, o esforço mobilizado para o combate contra ela ainda mais reforça o processo de transição em que estamos envolvidos para uma era de superação do modelo de estado-nação em favor de organizações multinacionais que se comprometam com os ideais da igual-liberdade.

Essa transição não será um processo fácil, à sua frente poderosos obstáculos, políticos, sociais e econômicos, como se constatou dramaticamente com a insurreição frustrada da invasão do Capitólio quando se intentou obstar a certificação das eleições por um golpe de mão. O cenário dantesco daquele episódio foi registrado ao vivo e a cores, e seu macabro inventário tem sido exposto pela imprensa americana com a identificação dos seus personagens, conformando um quadro assustador de supremacistas brancos, neonazistas, de milicianos, de uma gente sem eira e beira, inflada pela cólera do ressentimento social, escória cevada com as bênçãos do governante do país.

Conduzir essa transição demanda soluções enérgicas e criativas que destravem seu caminho, a primeira resposta contundente foi a do impeachment de Trump, que contou com a aprovação de 10 votos de representantes republicanos, e as que devem ser apresentadas por Biden em seu discurso de posse no próximo dia 20 em nome do que ele sustenta serem os remédios para a cura da alma americana da doença do trumpismo que teria posto em risco os valores fundacionais da sua sociedade.

Tal como testemunha o caso brasileiro, mais do que uma patologia própria aos EUA o trumpismo se constituiu em um sistema. Sua derrocada importará em efeitos de dominó nos países que integravam sua constelação, entre os quais o Brasil, contudo a necessária admissão dessa nova condicionante da política brasileira, bem longe de recomendar uma postura quietista, de cega confiança de que a mudança no estado de coisas da nossa realidade possa provir do mundo exterior, deve servir de estímulo aos esforços de erradicação do trumpismo tupiniquim.

O princípio da realidade nos aconselha a constatar as dificuldades políticas e sociais que se antepõem a esse necessário e inafastável empreendimento diante da gravidade das circunstâncias a que estamos expostos. Mas, em que pesem as restrições, inclusive as impostas pela pandemia que dificulta os encontros e as mobilizações no espaço público, são necessários os primeiros passos na longa marcha que se tem pela frente, pois não se podem dar as costas à fortuna que nos alicia para a ação. Caso contrariada por um ator surdo às suas mensagens, ela pode nos entregar à nossa própria má sorte com o resultado nefasto de prolongar o abjeto governo que aí está.

A tragédia amazônica, se permanecermos inertes, será o destino de todos se nos faltar o alento para a reconquista do que nos tem sido subtraído pelo governo Bolsonaro em suas práticas demofóbicas e antidemocráticas. A investida das forças democráticas, na hora atual, deve ter como objetivo principal a defesa da vida e de todas as instituições da área da saúde que se empenham contra a orientação genocida imposta pelas autoridades governamentais, ora representada pela bizarra inépcia do ministro Pazzuelo.

Nessa direção, o movimento ofensivo deve transcorrer nas esferas institucionais, incluído o poder judiciário, com ênfase especial no Congresso, a que não pode faltar o recurso ao impeachment de Bolsonaro, principal responsável pela catástrofe sanitária do país, movimento a ser respaldado pelas agências da sociedade civil por meio de manifestos, panelaços e do que mais estiver à mão.

Cassandras nos aconselham a não partir para o mar alto, e nos relembram dos políticos liliputianos com que contamos, mas não nos vem de João Doria, governador de São Paulo, de perfil e robusto histórico conservador, a qualificação de Bolsonaro como facínora? Não se faz política sem alma, remoendo cálculos intermináveis de avaliação de forças esperando dos céus uma chuva que não vem, pois sempre chega a hora do hic Rhodus hic salta. Pois ela chegou. Já contamos mais de 200 mil mortos, basta, fora.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio


Luiz Werneck Vianna: As nossas duas pragas

Um ano aziago, sem dúvida, esse que começamos a deixar para trás. Então “que se foda 2020”, como se estampa no rótulo do vinho português da Adega Azoeira, aliás bem caro, porque ele superou todas as medidas ao combinar duas pragas pestilenciais, o covid19 e o governo Bolsonaro. Deixa em seus rastros cerca de 190 mil mortos, até aqui, e uma obra de destruição de muitas instituições frutos de conquistas de lutas democráticas e populares em que se acalentavam aspirações por uma sociedade menos injusta e mais igualitária. Desse flagelo, em que ainda se vive, acumulamos perdas, algumas irreparáveis como a de vidas ceifadas, e outras, que mais à frente, podemos com o tempo recuperar.

Contudo, esses têm sido também os tempos de avanços na valorização da ciência, como no empenho na busca de vacinas eficazes que interrompam a propagação incontrolada da atual pandemia, que ora se realiza por meio de uma comunidade científica que atua em caráter cosmopolita, ultrapassando os estreitos limites do Estado-nação. Igualmente viram renascer a agenda dos ideais da solidariedade, e impuseram com vigor os temas ambientais, especialmente entre os jovens.

Sobretudo, 2020 foi o ano da derrota eleitoral de Donald Trump e seu projeto malévolo de imprimir um movimento de marcha à ré nas coisas do mundo a fim de nos devolver por inteiro, em pleno século XXI, o Estado-nação de infausta memória.

A ascensão de Joe Biden ao governo dos EUA, na esteira dos movimentos sociais mobilizados em sua campanha vitoriosa, não deve ser relativizada em sua importância como o fazem certas análises trêfegas, pois trata-se, na verdade, de um acontecimento de repercussão estratégica que afeta para melhor a disposição de processos fundamentais, tais como os do meio ambiente, cujo alvo é o capitalismo vitoriano predatório, e a revalorização dos organismos internacionais, especialmente da ONU. Muito particularmente, e isso é de evidência solar, a nefasta ação da atual política externa brasileira e do seu ministério do Meio Ambiente, a partir de 20 de janeiro, data da posse de Biden, perderão seus pontos de sustentação, o que não é de pouca monta.

Os dois anos restantes do governo Bolsonaro terão como horizonte pautas e agendas estranhas àquelas de sua afeição, uma sobrevivência exótica do trumpismo sem régua e compasso para agir tanto no cenário internacional como no interno. Difícil, nessas condições, conceber a sua reeleição, a que o faro apurado das elites políticas tradicionais não deixará escapar. De qualquer modo, o novo ano não será como aquele que passou, cabendo a ele dar continuidade criativa ao legado que recebeu das lutas de resistência das instituições republicanas, com papel destacado do STF e de suas câmaras de representação política.

As recentes eleições municipais, embora de modo geral tenham confirmado a natureza conservadora da sociedade, viram nascer novas lideranças, vale ressaltar o caso de Guilherme Boulos de óbvia vocação nacional, inclusive muitas delas originárias do mundo popular e de movimentos sociais libertários como o feminista e dos que se empenham na agenda das denúncias contra as desigualdades raciais.

Numa apreciação mais abrangente, fica do ano do qual nos despedimos uma evidente revalorização da política, revigorada pela decisão do STF que interditou, em leitura literal do texto constitucional, a reeleição do comando das casas legislativas na mesma legislatura, animando partidos e parlamentares a ações autônomas quanto ao poder executivo, vindo a estimular, inesperadamente, práticas de negociação política e ações concertadas em frentes multipartidárias em torno de valores comuns.

Vista da perspectiva de hoje, o que se descortina é uma paisagem em mutação quando confrontada com os idos da última sucessão presidencial. Sem triunfalismo, pode-se sustentar que o fascismo, mesmo que tabajara, apesar de sempre latente numa sociedade com a história de formação da nossa, foi um risco exorcizado ao menos imediatamente, e que ora se abre diante de nós uma via franca para a política, à condição de que saibamos nos desatrelar dos erros que nos levaram ao desastre que aí está. Sobretudo se soubermos aproveitar dos bons ventos que nos vêm de fora, e dar sequência às recentes e benfazejas práticas de alguns partidos e várias personalidades políticas em buscar soluções negociadas em favor da democracia.

A tragédia da pandemia que nos assola e ao mundo, como tantos e tão bem têm registrado, induz à mudança que leve a um combate sem tréguas a fim de reduzir, se possível erradicar, os seus efeitos macabros. Uma delas, visível a olho nu, está na destituição do paradigma neoliberal, influente por décadas, como narrativa capaz de explicar e reger a vida social. Na esteira disso, chega igualmente ao fim a primazia do Estado-nação na ordenação da cena internacional, nenhum deles é uma ilha apartada dos demais, o regime dos ventos que vinha de Chernobil conduzia pelas nuvens sua carga tóxica aos distantes países nórdicos. O efeito bumerangue, magistralmente descrito por Ulrich Beck, em Sociologia do Risco, mantém países ricos e pobres atados ao mesmo destino no que se refere aos perigos ambientais.

Entre nós, a luta contra a pandemia transcende as dimensões técnico-científicas em razão, como sabido, das convicções temerárias do chefe do Executivo e do seu obtuso desconhecimento do que lhe diz respeito, incidindo diretamente na agenda política. Seu reino é o do absurdo, e sua contumácia inveterada em alardear despropósitos – a vacina vai fazer com que nos tornemos jacarés – parece estar orientada em conduzir seu rebanho não para a imunidade, mas direto ao precipício. Tal como se dizia, décadas atrás, em muitos dos filmes do nascente cinema novo, é preciso fazer alguma coisa e colocar um ponto final nessa história de horrores.


IHU Online: Para superação das crises, Brasil precisa abandonar o liberalismo econômico, diz Bresser-Pereira

Para economista, com pensamento liberal não pode haver crescimento. Por isso, reedita sua tese novo-desenvolvimentista e assegura que imprimir moeda não é sinônimo de inflação descontrolada

João Vitor Santos, IHU Online

crise econômica que temos vivido em decorrência da pandemia de covid-19 parece ter pego o Brasil de cheio. Segundo o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, é preciso compreender que essa crise é nova, mas que vem no bojo de grandes crises nunca realmente superadas e que têm origem no projeto liberalBresser defende que o Estado não pode se retirar do jogo. “O mercado é uma maravilhosa instituição, não é mecanismo e nem ‘ente’, é uma instituição, um sistema de normas que coordena de maneira ótima uma economia, mas apenas na sua parte competitiva”, alerta. E, por isso, “os outros setores não competitivos, mais a macroeconomia, a distribuição de renda e ainda a proteção do meio ambiente, tudo isso depende da intervenção do Estado”. “Coisa que o neoliberalismo esquece e nós esquecemos também, desde 1990, quando o presidente Fernando Collor de Mello fez a abertura comercial”, dispara.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, o economista recupera a tese de que o Brasil vem sofrendo um processo de desindustrialização. Sem confiança para investir, as indústrias são sucateadas ou vão embora enquanto a ‘poupança pública’ míngua. É aí que entra sua Teoria do Novo-Desenvolvimentismo. Mas, como investir em desenvolvimento no meio da crise? Para ele, o governo precisa criar condições, especialmente manter o câmbio mais depreciado e a taxa de juros baixa. “Tem que mudar o regime de política econômica, tem que abandonar o liberalismo econômico e voltar a ser desenvolvimentista. É preciso voltar a acreditar que deve haver uma intervenção moderada do Estado na economia e que é preciso ser nacionalista econômico”, aponta.

E uma das vertentes dessa intervenção estatal moderada, para ele, é a emissão de moeda. “É preciso pensar que a moeda é uma espécie de óleo lubrificante que permite que as transações aconteçam. E o sistema econômico precisa de um certo grau de liquidez”, endossa. Sua defesa está na experiência de outros países que fizeram a manobra para conter, por exemplo, a crise de 2008. Além disso, Bresser destaca que essa operação tem sido retomada por muitos justamente para custear os gastos decorrentes da pandemia. “São despesas de subsídios às pessoas para as manter vivas, de subsídios às empresas para evitar que quebrem etc. Foram enormes gastos e grande parte está sendo financiada dessa maneira”, acrescenta.

No fim da entrevista, o economista ainda avalia as políticas econômicas do atual governo, que define como “o pior governo que já vi em toda história de minha vida, de longe”. E conta ‘um causo’: elementos da teoria novo-desenvolvimentista foram apresentados – e muito bem aceitos – pessoalmente por ele a Ciro Gomes e Fernando Haddad, nomes que considera muito preparados para assumir a Presidência em 2022. Além disso, olha para a experiência chinesa e destaca que o país resolveu seus problemas desde a realidade local, sem se abraçar a cânones do pensamento econômico. “Existem soluções para o problema brasileiro, mas é preciso que não se pense de acordo com os livros-textos escritos pelos americanos e ingleses. É preciso que tenhamos capacidade de ver nossos problemas por nossa conta”, resume.

Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor emérito da Fundação Getúlio Vargas, atuou como professor visitante de desenvolvimento econômico na Universidade de Paris I (1978), de teoria da democracia no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo - USP (2002/03), e de Novo-Desenvolvimentismo na École d’Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, entre outras universidades pelo mundo. Também foi ministro da Fazenda, da Administração Federal e Reforma do Estado, e da Ciência e Tecnologia no governo Fernando Henrique Cardoso. Bacharel em Direito pela USP, é mestre em Administração de Empresas pela Michigan State University, doutor e livre docente em Economia pela USP. Entre os livros publicados destacamos A construção política do Brasil: Sociedade, economia e Estado desde a Independência (São Paulo: Editora 34, 2016),Desenvolvimento e Crise no Brasil (1968/2003), Construindo o Estado Republicano (2004), Macroeconomia da Estagnação (São Paulo: Editora 34, 2007) e Globalização e Competição (Rio de Janeiro: Elsevier-Campus, 2009).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor defende que é preciso abandonar a ortodoxia econômica. Por quê?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Sou um crítico da Teoria Econômica Neoclássica ou Ortodoxa, que é a Teoria ensinada principalmente nas universidades americanas e inglesas. Entendo que essa teoria é essencialmente errada porque ela utiliza o método hipotético dedutivo ao invés de adotar um método empírico, histórico. Ao invés de ela observar a realidade e tentar generalizar a partir dessa realidade, o que os economistas neoclássicos ortodoxos fazem é partir de dois axiomas, como se faz em Matemática.

É o axioma do homem econômico, sempre racional e portanto seu comportamento é totalmente previsível, e a ideia das expectativas passionais, pois os agentes econômicos além de serem racionais e oniscientes, conhecem os modelos certos de economia e se comportam de acordo com isso. É um absurdo que resultou na crise de 1929, pois essa teoria foi dominante no mundo desde o final do século XIX até 1929. Mas que teoria é essa? É o liberalismo radical que voltou a ser dominante no mundo rico a partir de 1980 com a virada neoliberal de Thatcher e Reagan, e agora desde 2008, quando houve novamente uma grande crise provocada por essas ideias, chegando até o momento atual, em que estamos em profunda crise.

Sou um economista heterodoxo e, entre os economistas ortodoxos, venho desenvolvendo desde 2001 uma teoria chamada de Novo-Desenvolvimentismo. Essa teoria novo-desenvolvimentista tem origem em Keynes e nos desenvolvimentistas estruturalistas como Celso Furtado e Raul Prebisch.

IHU On-Line – Que respostas o Novo-Desenvolvimentismo pode trazer a essa crise que vivemos?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – O Brasil vive uma crise econômica muito grande desde 2014, que foi agravada por um impeachment em 2016 e agora ainda mais por uma pandemia terrível. Diante disso, o governo precisa reagir e as medidas que defende são de austeridade, ou seja, de reduzir o gasto público em toda parte e de manter a taxa de câmbio elevada (com elevada quero dizer não competitiva). E isso, evidentemente, é incorreto.

A tese de que nos momentos de crise o Estado precisa aumentar sua despesa contraciclicamente é uma coisa que foi originalmente desenvolvida por Keynes nos anos 30 do século XX e está mais que comprovado que é a forma correta de se fazer a política macroeconômica. Uma coisa curiosa é que, embora o governo seja contra esse tipo de política, ele, pressionado pelo Congresso, criou um auxílio emergencial muito grande. Foi voltado mais para os pobres, mas que, de alguma forma, sustentou a demanda neste ano e impediu que a crise econômica fosse mais forte ainda. Estava se prevendo uma queda no PIB de 9% e hoje a queda esperada é de 5%.

IHU On-Line – Então, o senhor considera já termos aí uma prova de que o Estado tem de gastar mais em situações de crise?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – A prova disso existe em toda parte, em mil casos. Em 2008 nós só não tivemos uma crise monumental porque todos os governos, tanto americano quanto chinês, também o brasileiro e os europeus, imediatamente fizeram elevadíssimos gastos fiscais. Além de irem correndo salvar os bancos que tinham quebrado. E isso deu certo, caso contrário a crise teria sido tão grave quanto foi a crise de 1929 e a grande depressão nos anos 1930. Assim, reitero, isso está mais do que claro.

O problema é que, além de termos de enfrentar essa crise de curto prazo, nós precisamos pensar que o Brasil vive um regime de quase estagnação há 40 anos. Isso é muito sério. O Brasil, entre 1950 e 1980, crescia a uma taxa per capita de 4,5% ao ano. Era uma taxa muito elevada, a segunda maior do mundo; só o Japão tinha uma taxa um pouco maior do que a do Brasil. Desde 1980 e, principalmente, desde 1990, quando o Brasil resolveu adotar o regime de política econômica liberal ortodoxa ao invés de desenvolvimentista, a taxa de desenvolvimento do país tem sido de 0,8% ao ano. Veja: de 4,5% para 0,8% é uma diferença brutal.

E se nesse mesmo período compararmos esses 0,8% do Brasil com os países ricos, que nós deveríamos estar alcançando, veremos que eles cresceram 1,5% ao ano, ou seja, o dobro do Brasil. E os demais países em desenvolvimento cresceram 3% ao ano, quatro vezes mais do que nós. O Brasil está quase estagnado desde 1980 e nada é feito sobre isso. Nada é feito tanto pela direita, que está hoje no governo – aliás, desde 2016 –, quanto pela esquerda, que no Governo Lula tentou fazer alguma coisa, mas infelizmente no Governo Dilma tudo desmoronou. E uma das causas que se desencadeou em 2014 para a queda do governo, não foi a principal, mas uma delas, foi a má gestão econômica da Dilma.

IHU On-Line – Gostaria que recuperasse seus argumentos para a ‘semiestagnação’ que o senhor coloca.

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Para isso é importante lembrarmos que o desenvolvimento econômico depende fundamentalmente da taxa de investimento do país. Quanto maior for a relação do investimento em capital e o PIB, mais alta tende a ser a taxa de crescimento. Os países do Leste asiático tinham, normalmente, 35% de taxa de investimento. A China, que nos últimos 40 anos apresentou o mais extraordinário crescimento – na história do mundo nunca houve nada semelhante –, cresceu durante esse tempo cerca de 7,5% ao ano.

estratégia de desenvolvimento usada pela China sempre foi desenvolvimentista e não liberal. Enquanto isso, em 1980 o mundo fazia uma virada neoliberal. É uma virada de um regime de política econômica desenvolvimentista – que pressupõe uma intervenção moderada do Estado na economia, com exceção dos setores não competitivos, com uma perspectiva de nação, em defesa do interesse nacional – para uma virada neoliberal com Thatcher e Reagan, na qual se espera que o mercado seja um ente ou um mecanismo milagroso capaz de coordenar tudo. Ora, isso é algo profundamente equivocado. O mercado é uma maravilhosa instituição, não é mecanismo e nem ‘ente’, é uma instituição, um sistema de normas que coordena de maneira ótima uma economia, mas apenas na sua parte competitiva. Aliás, o mercado funciona bem com competição, senão, não existe mercado.

Os outros setores não competitivos, mais a macroeconomia, a distribuição de renda e ainda a proteção do meio ambiente (mecanismos para frear aquecimento global etc.), tudo isso depende da intervenção do Estado. Coisa que o neoliberalismo esquece e nós esquecemos também, desde 1990, quando o presidente Fernando Collor de Mello fez a abertura comercial. Abertura essa que fez com que as tarifas aduaneiras caíssem de 45% para 12%, além da eliminação de subsídios à exportação de manufaturados que eram também de 45% e foram zerados.

Desde então, a economia brasileira cresce muito pouco, porque a taxa de investimento é muito baixa. Isso ocorre porque, devido a essa mudança de regime para o modelo liberal, os investidores foram desestimulados a investir. O investimento acontece quando o empresário tem uma boa expectativa de lucro e sua taxa de juros, o seu custo do capital, é baixo. É uma lei geral e óbvia, ninguém vai investir sem esperar lucro e esse lucro tem que ser maior do que a taxa de juros.

Perda de competitividade

O que houve foi que as políticas adotadas pelo Brasil, a começar pela liberalização comercial e em seguida financeira, que foram adotadas ainda no Governo Collor e depois mantidas e aprofundadas no Governo Fernando Henrique, tonaram as indústrias brasileiras não competitivas. Mesmo as muito bem geridas que usavam a melhor tecnologia do mundo passaram a ter uma enorme desvantagem competitiva em relação às empresas do resto do mundo. Não apenas as empresas nacionais, mas também as multinacionais. E isso fez com que muita empresa falisse e também levou muitas multinacionais a irem embora.

Quando se tem uma taxa de câmbio apreciada no longo prazo e uma taxa de juros muito alta, se é completamente desestimulado a investir. E isso aconteceu desde 1990 até recentemente, porque veio a crise de 2014 em cima dessa semiestagnação. Essa crise foi desencadeada pelo preço da queda das commodities. Na medida em que o Brasil passou a ter uma taxa de câmbio muito apreciada, entrou num processo de violenta desindustrialização, justamente pela apreciação da taxa de câmbio e porque a “doença holandesa” que existe no Brasil deixou de ser neutralizada – a doença holandesa é uma apreciação de longo prazo da taxa de câmbio de um país que exporta commodities, pois essa taxa é determinada pelas commodities. Essa taxa de câmbio deve cobrir o custo com lucro satisfatório das empresas produtoras de commodities, que são as dominantes. E quando há a doença holandesa, a taxa de câmbio corrente é substancialmente mais apreciada do que a taxa de câmbio das empresas industriais do país. Eu chamo isso de equilíbrio industrial, ou seja, tem o equilíbrio corrente dado pelas commodities que equilibra a conta corrente do país, que é conta comercial mais os serviços. A diferença entre o equilíbrio da taxa corrente e essas que as empresas industriais precisam para serem competitivas é a doença holandesa.

Desindustrialização e os efeitos do câmbio

doença holandesa era neutralizada até 1990 com tarifas aduaneiras muito altas, aqueles 45% que referi anteriormente. E, desde 1967, também por subsídios elevados à exportação de manufaturados. Tudo isso foi desmontado em 1990 de acordo com a lógica neoliberal e foi um desastre. A desindustrialização foi brutal e a taxa de crescimento também caiu brutalmente. Para se ter ideia, o investimento no Brasil representava 26% do PIB nos anos 1980, em média, e hoje representa 10%.

Isso aconteceu por causa da taxa de câmbio muito apreciada e por causa dos juros muito altos que atraíam capitais. Ou seja, havia duas causas para essa apreciação de longo prazo da taxa de câmbio que tornava as boas empresas não competitivas. Uma causa era a doença holandesa não neutralizada e a outra era a intenção de crescer não com endividamento externo, o que significaria que se está importando pouco de outros países e aumentando a sua capacidade de investimento. Isso é um enorme equívoco que a teoria novo-desenvolvimentista critica de maneira muito firme. Os brasileiros, não só os economistas ortodoxos neoclássicos, mas também os demais desenvolvimentistas e pós-keynesianos, acreditam que se o Brasil tiver um déficit de conta corrente de cerca de 3% do PIB e se esse déficit for principalmente financiado por empresas multinacionais, então estamos nos melhores dos mundos possíveis. Estaremos aumentando nossa capacidade de investimento, porque esse dinheiro que vem de fora trazido pelas multinacionais vai aumentar a taxa de investimento e em seguida a taxa de crescimento do país.

Só que isso é completamente falso. Na verdade, quando se aprecia o câmbio, se resolve crescer com endividamento externo, entra-se em déficit em conta corrente, e quando entra nesse déficit é preciso que haja mais entrada do que saída de capitais no Brasil. Devido a isso, a taxa de câmbio se aprecia, pois também é determinada pela oferta e procura de moeda estrangeira. E quando isso ocorre, o poder aquisitivo não apenas dos trabalhadores, mas também as rendas dos rentistas (os juros, os dividendos e os aluguéis que recebem) aumentam, de forma que todo mundo fica feliz.

Mais consumo e menos investimento

E o que fazem com esse dinheiro? Consomem mais. Não investem porque na hora em que se tornou a taxa de câmbio apreciada, as boas empresas perderam competitividade, tornando-se mais barato importar aqueles produtos que antes se produzia localmente. Assim, evidentemente elas não investem, são desencorajadas a investir. Tudo isso explica uma parte fundamental dessa quase estagnação da economia brasileira desde 1990 até hoje.

Poupança pública

Há, ainda, uma segunda causa para a semiestagnação, que está relacionada à poupança pública. A poupança pública (toda a receita do Estado menos a despesa corrente ou de consumo) deve existir para financiar os investimentos públicos, que são sempre muito importantes. Uma economia que cresce bastante geralmente tem uma taxa de investimentos públicos de 20 a 25% do PIB.

poupança pública brasileira era, na última década em que o Brasil cresceu fortemente, nos anos 1970, de cerca de 4 a 5% do PIB. Isso fazia com que o investimento público fosse perto de 7% do PIB, porque o governo também usava um pouco de endividamento público. Mas desde os anos 1980 a poupança pública se tornou negativa e os investimentos públicos caíram fortemente, passando de 7% para 2% mais ou menos. Isso é uma segunda causa dessa quase estagnação.

IHU On-Line – O que muda com a crise de 2014 e com o cenário que ela traz?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Isso que destaquei acima vinha acontecendo no Brasil até 2014. No ano de 2014 veio essa grande crise, semelhante à ocorrida durante o governo de Fernando Henrique Cardoso entre 1998 e 2002.

Agora, é importante perceber que a crise de 2014 começa ainda no governo do PT, de Dilma, e depois continua em tempos de Bolsonaro, até agora quando temos uma crise econômica nova. Essa crise nova teve uma consequência interessante: a taxa de juros caiu fortemente pela primeira vez. Eu venho criticando a taxa de juros muito alta desde 2001 e sempre dizendo que é absurda, a mais alta do mundo e, na verdade, essa taxa de juros era uma captura do patrimônio público pelos rentistas e financistas, que assumiram muito poder no governo desde 1990, enquanto os empresários industriais perdiam poder.

Essa taxa de juros tão alta vinha caindo aos poucos, tendo já estado muito alta em 1992, quando houve a abertura financeira, mas em 2014, com a enorme recessão, a taxa de juros teve realmente uma queda. O Banco Central foi obrigado a baixar a taxa porque a inflação quase desapareceu, havia falta de demanda, e a justificativa que o Banco Central usava para manter aquelas taxas de juros altíssimas (que era de combater a inflação) já não se sustentava mais. Na verdade, a taxa de juros vinha alta para atrair os capitais e levar adiante aquela perspectiva de crescimento com endividamento externo.

A consequência dessa queda da taxa de juros, mais a crise que o Brasil vive hoje e a perda de confiança dos credores lá fora, foi uma depreciação da taxa de câmbio. Acredito que uma taxa de câmbio competitiva no Brasil hoje deve estar em torno de 4,80 Reais por dólar. E a taxa de câmbio está a 5,50 Reais, ou seja, está depreciada. Então, ótimo. A economia brasileira estava numa armadilha de juros altos e câmbio apreciável. Essa armadilha não existe mais neste momento.

IHU On-Line – Mas o crescimento não veio. Por quê?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Não veio porque continuamos em crise. Quando se está em crise, quer dizer que não se tem confiança de que a demanda será mantida – como a demanda criada agora pelo auxílio emergencial –, que a taxa de juros será mantida baixa e que a taxa de câmbio continuará competitiva. Vendo como reagem as elites brasileiras e seus economistas, vai-se achar que isso não dura. E, ainda, a confiança dos mercados financeiros internacionais no Brasil hoje está baixíssima. O resultado é que começa a entrar capital financeiro no Brasil, que novamente vai fazer com que a taxa de câmbio volte a se apreciar. Os empresários não investem por isso, porque não têm confiança.

IHU On-Line – O que fazer para reverter esse quadro?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – O que o governo deveria fazer é não apenas ter uma meta de inflação, mas além disso deveria assegurar que a taxa de câmbio será mantida basicamente nesse nível. Em segundo lugar, assegurar que a taxa de juros permanecerá baixa. Pode ser aumentada quando houver um pouco de inflação, mas o nível da taxa de juros será civilizado, semelhante à taxa de outros países do mundo. Se o governo desse essas garantias para os empresários e se recuperasse a sua capacidade de poupança, então nós poderíamos voltar a crescer. Agora, para voltar a crescer não basta sair da armadilha da taxa de juros, é preciso que o governo também volte a investir.

IHU On-Line – Qual a solução para isso?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – A mais óbvia é a austeridade. Mas, ora, a austeridade é um desastre. Porque austeridade quer dizer reduzir a demanda, causar desemprego, diminuir salário e isso não resolve o nosso problema de jeito nenhum. É preciso recuperar as finanças públicas e voltar a ter uma poupança pública, mas isso só pode ser feito gradualmente, com muito cuidado e muita firmeza.

Agora, há uma coisa nova que surgiu no mundo e que promoveu uma revolução completa na macroeconomia mundial: a emissão de moeda pelos Bancos Centrais e os Tesouros Nacionais. A emissão de moeda foi sempre considerada o pecado máximo. Aqui no Brasil se explicava a inflação com emissão de moeda; no exterior os monetaristas explicavam a inflação com aumento de moeda.

IHU On-Line – Justamente, e como responder a esses economistas sobre essa perspectiva de emissão de moeda ser sinônimo de inflação descontrolada?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – No começo dos anos 1980, eu e [YoshiakiNakano desenvolvemos toda uma teoria de inflação inercial, o livro principal é “Inflação e Recessão” (São Paulo: Brasiliense, 1984) [a versão PDF da obra pode ser acessada aqui], e nesse livro demonstramos com muita clareza que o aumento de moeda não causava inflação. Já num artigo de 1983, intitulado “Fatores aceleradores, mantenedores e sancionadores da inflação”, dizíamos que o fator acelerador da inflação – por exemplo, uma inflação de 1% ao ano subir para 2% – é o excesso de demanda, segundo explicação keynesiana.

O fator que mantém a taxa de câmbio num valor elevado, o fator inercial, é a indexação. O que mantém a inflação mesmo quando há recessão é o fato de que os agentes econômicos no Brasil, especialmente na época da alta inflação, indexavam formal (com base na lei) ou informalmente (segundo o costume) todos os preços de modo que a inflação só subia e não caía.

Em terceiro vem o fator sancionador, ou validador, que era o dinheiro. O dinheiro é consequência, endógena, do processo de crescimento. O dinheiro aumenta ou diminui numa economia na medida em que o crédito e as despesas do governo aumentam ou diminuem. Se tivesse uma inflação muito alta – durante anos a nossa inflação foi mais de 1.000% ao ano, mas vamos considerar uma inflação de 100% ao ano –, se o governo conseguisse impedir que a quantidade de moeda, que nasce do mercado, não aumentasse em nada, ficasse nominalmente exatamente igual ao começo do ano, tendo havido uma inflação de 100% nesse ano, isso causaria uma crise enorme, uma crise de liquidez.

É preciso pensar que a moeda é uma espécie de óleo lubrificante que permite que as transações aconteçam. E o sistema econômico precisa de um certo grau de liquidez. Isso estava lá em nossa teoria, que não era só nossa porque havia alguns economistas que afirmavam coisas semelhantes, mas o grosso dos economistas ignorava isso, tanto alguns ortodoxos quanto heterodoxos. Aí veio a crise de 2008 no Norte e primeiro houve uma reação muito correta, que já citei, keynesiana, e grandes aumentos de gastos. Mas isso foi em 2009.

Quando chegou em meados de 2010, definiram que deveriam voltar à austeridade. E de fato voltaram para a austeridade fiscal, mas os bancos centrais ignoraram esse fato e, vendo que a economia não se recuperava, começaram a fazer as políticas de afrouxamento quantitativo. Isso consiste em o banco central do país comprar títulos do governo ou das empresas em grande quantidade e, ao fazer isso, acelerar o processo endógeno de criação de moeda. Isso foi feito em volumes absolutamente extraordinários, principalmente no Japão, também nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha e em países menores como a Holanda. Só não aconteceu nos países das zonas do Euro porque eles não têm um banco central para cada país para que seja feito o processo.

O funcionamento dessa operação

Nesse processo, quando se aumenta a quantidade de moeda e se compram títulos do Tesouro, e títulos novos ao invés de comprar títulos velhos ou títulos de empresas, se está emitindo moeda direta para financiar. Como a despesa pública estava muito baixa, esse dinheiro servia para reduzir a dívida pública. Para se ter ideia da importância disso, no caso do Japão, que foi o que mais fez isso, calculei que a dívida pública japonesa, que era de 260% do PIB, caiu em termos reais em 77%.

As estatísticas do Japão mantêm o mesmo nível de dívida porque não consideram essa operação. O Banco Central comprou do Tesouro, e a contabilidade pública deles define que quando o Tesouro deve para o Banco Central isso é dívida pública, o que é ridículo. A dívida pública é a dívida do Estado; o Tesouro e o Banco Central estão dentro do Estado. O Tesouro pode dever, mas o Estado não deve.

Emitindo moeda e financiando despesas da covid-19

Mas aí veio a inflação? Não, não veio inflação nenhuma, absolutamente nenhuma. O tempo todo havia o medo da deflação e não da inflação. Podem dizer que essa revolução morreu aí, mas não morreu, porque neste ano de 2020, o ano da pandemia, esses mesmos países que têm seus bancos centrais e são ricos voltaram a emitir dinheiro enormemente. O Tesouro, então, está vendendo títulos novos para o Banco Central para financiar as despesas da covid-19.

São despesas de subsídios às pessoas para as manter vivas, de subsídios às empresas para evitar que quebrem etc. Foram enormes gastos e grande parte está sendo financiada dessa maneira. Isso é uma forma muito heterodoxa e correta de fazer, desde que realizada com cuidado. Nós aqui no Brasil não fizemos. Isso chegou a ser discutido, eu fiz minha briga pessoal nos artigos que publiquei, mas não adiantou. O medo da inflação ainda é muito grande, esse medo de que a emissão de moeda causa inflação está muito no fundo da alma brasileira. O resultado é que a dívida pública brasileira estava em 80% do PIB e está subindo para 100%, o que é péssimo. Depois será preciso pagar isso.

IHU On-Line – Diante do atual cenário e das estratégias adotadas pela equipe econômica do atual governo, como o senhor vê o Brasil dos próximos anos? Como esse cenário deve impactar 2022, o ano eleitoral?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – As perspectivas para a economia brasileira são muito ruins. Em princípio, continuaremos nessa crise. Em 2021 certamente, porque a pandemia ainda não está resolvida e seus efeitos negativos estão aí. Agora, a partir do final do ano que vem, a confiança poderia voltar. E não só a confiança dos empresários e dos credores estrangeiros, o que não me importa, pois o crescimento não deve ser feito com endividamento externo. Mas se os empresários brasileiros e as multinacionais existentes aqui no Brasil voltarem a ter confiança, e vendo a taxa de juros baixa e a taxa de câmbio competitiva, poderão voltar a investir.

Agora, será que isso vai acontecer? Será que vai voltar a confiança com o governo que está aí? É impossível ao meu ver. Esse é o pior governo que já vi em toda história de minha vida, de longe. O que temos aí é gente absolutamente incapacitada para governar e está nos governando, ou desgovernando. São políticas econômicas contraditórias e realmente ineficientes. Acho que as eleições de 2022 ainda vão ser tomadas nesse quadro de baixíssimo crescimentodesemprego elevado; acho que não muda não.

IHU On-Line – Mas realmente não tem solução para isso?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – É claro que tem. Não é fácil, mas tem que mudar o regime de política econômica, tem que abandonar o liberalismo econômico e voltar a ser desenvolvimentista. É preciso voltar a acreditar que deve haver uma intervenção moderada do Estado na economia e que é preciso ser nacionalista econômico, ou seja, pensar que o Brasil é um Estado-Nação que compete com todos os demais Estados-Nação do mundo. Não só as empresas que competem, são os Estados-Nação também. E para o Brasil poder competir, precisa ter um projeto nacional de desenvolvimento.

IHU On-Line – Em que consistiria esse projeto, dada a atual conjuntura?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Contaria com uma garantia de manter a taxa de juros num nível baixo, em torno do qual o Banco Central faz a sua política monetária. Significa, portanto, ter uma taxa de câmbio competitiva e uma taxa de inflação baixa. Para isso o governo precisa dar garantias de que agirá nesse sentido ao mesmo tempo que vai fazendo gradualmente o ajuste fiscal para recuperar a poupança pública. E é preciso que o governo também passe a ser autorizado a emitir moeda para financiar até 5% do PIB para investimentos públicos. Isso, desde que não haja excesso de demanda.

Uma reforma constitucional autorizaria Banco Central e Tesouro a fazerem essa emissão ao limite de 5%. E o Conselho Monetário Nacional, a cada três meses, se reuniria para, entre outras coisas, decidir se essa transferência de fundos produzidos por emissão de moeda pode continuar a financiar os investimentos ou se a demanda começou a ficar alta e a inflação começou a subir, sendo então preciso parar com esse processo por algum tempo. Existem soluções para o problema brasileiro, mas é preciso que não se pense de acordo com os livros-textos escritos pelos americanos e ingleses. É preciso que tenhamos capacidade de ver nossos problemas por nossa conta.

capitalismo lá do Norte anda muito mal, não tão mal quanto o brasileiro, mas anda muito mal. Quem anda bem sempre são os países do Leste da Ásia, que são desenvolvimentistas. A China, que é quem anda melhor, é claramente um país estadista, mas que fez sua transição para o capitalismo a partir de 1980 e fez uma transição desenvolvimentista. Lá, o Estado intervém moderadamente na economia, controla os bancos, investe na infraestrutura e nos insumos básicos e deixa que o mercado funcione de maneira mais livre possível no setor competitivo da economia. São duas políticas: para os setores não competitivos, macroeconomia, administração do Estado, política econômica, e, para o resto da economia competitiva, dá-lhe mercado. Essa é a lógica chinesa, a lógica novo-desenvolvimentista, e é isso que nós deveríamos fazer.

IHU On-Line – Para além desse grupo econômico que está no governo, o senhor encontra ecos tanto à esquerda como à direita? Suas sugestões são aceitas para que se construa uma alternativa visando as eleições de 2022?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Vou responder contando uma historinha. Em dezembro de 2017, um ano antes da eleição de 2018, eu telefonei para o Ciro Gomes e para o Fernando Haddad. Disse para eles o seguinte:

olha, vocês são, provavelmente, candidatos a presidente e a vice-presidente – eu já tinha na minha cabeça a minha chapa, mas isso era irrelevante; minha chapa era Ciro Gomes para presidente e Fernando Haddad para vice-presidente –, ou, de qualquer forma, vocês vão se candidatar e serão importantes, e estou desenvolvendo uma teoria nova e essa teoria deveria fazer parte das ideias que vocês vão defender caso eleitos. Então, proponho que no mês seguinte – estávamos no fim de dezembro – nós marquemos um dia e vocês reservem a tarde toda desse dia para eu dar para vocês uma aula de Teoria Novo-Desenvolvimentista e depois minha mulher oferece um jantar para vocês”.

Eles vieram os dois juntos, dei minha aula, ficaram muito interessados e, depois, infelizmente, a chapa não aconteceu. Deveria ter acontecido, o PT não pensou bem, mas nos programas dos dois estavam presentes várias coisas que fazem parte da Teoria Novo-Desenvolvimentista e das políticas dela. Isso pode acontecer novamente. O Ciro Gomes vai ser novamente candidato a presidente, acabou de publicar um livro que é ótimo [o livro é Projeto Nacional: O dever da esperança (São Paulo: Leya, 2020)]. Esse livro mostra que o Ciro está mais do que preparado para ser presidente da República. O Haddad é capaz de ser o candidato pelo PT, ele também está preparado. Isso pode acontecer, mas não há nenhuma garantia.

Políticas erradas

As políticas erradas estão do lado liberal e são, obviamente, erradas. O Brasil não poderá crescer num regime político liberal, porque os liberais só defendem uma coisa: ajuste fiscal e reformas, mais nada. E nós fazemos sempre muitas reformas e eles sempre dizem que é preciso mais. Para manter a taxa de juros e a taxa de câmbio no lugar certo, não se pode adotar políticas neoliberais. Para ter uma poupança pública, não se pode ser liberal.

Eles dizem defender responsabilidade fiscal, mas eu também defendo responsabilidade fiscal. Só que eles não querem poupança pública, querem reduzir a despesa do Estado para reduzir a carga tributária e os ricos pagarem menos impostos. Os liberais não têm a menor possibilidade de promover o desenvolvimento do Brasil, e os desenvolvimentistas, alguns têm, mas não todos. Ainda há muito populismo e ideias antigas entre desenvolvimentistas e pós-keynesianos.

IHU On-Line – Em uma das suas reflexões, que reproduzimos no sítio do IHU, o senhor diz que, em nossa sociedade, a “ideia de solidariedade perdeu espaço” e isso nos deixou doentes. Que solidariedade é essa e como reaver essa ideia?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Em primeiro lugar, o capitalismo é uma forma de organização social, um modo de produção, se quisermos usar a expressão marxista, que leva a muita injustiça e tende, naturalmente, ao individualismo. O liberalismo político tem uma parte boa que é a defesa dos direitos civis, o Estado de Direito, mas tem uma coisa horrível que é o individualismo feroz. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, como o país, sendo liberal do ponto de vista político, conseguiu se desenvolver tanto?

A resposta é muito simples: é que nos Estados Unidos havia uma ideologia que neutralizava em boa parte esse individualismo liberal. Isso através de uma coisa chamada republicanismo, uma ideologia clássica que vem de Aristóteles e de Cícero na Grécia e a Filosofia Política que diz que ‘você só é livre quando está disposto a defender o interesse público. E, em certos pontos, está disposto a sacrificar seu próprio interesse para defender o interesse público’. O republicanismo é o oposto do liberalismo, porque este diz que se é livre para fazer tudo que se quer desde que não seja ilegal. Desse jeito não se constrói sociedade nenhuma, para construir uma sociedade é preciso saber que existe algo que se chama bem comum e esse bem comum precisa ser defendido por cidadãos com espírito republicano.

Isso nos Estados Unidos, onde o republicanismo teve uma influência muito grande. Vários daqueles que fizeram a independência tinham uma mistura, um pouco de liberalismo e um pouco, se não bastante, de republicanismo. O republicanismo que domava o capitalismo neoliberal nos Estados Unidos. Na Europa é a solidariedade, pois sabemos que lá o movimento socialista foi muito grande. E se pode pensar o socialismo como modo de produção em que se extingue a propriedade privada, mas se pode pensar o socialismo como a ideologia da igualdade social, da justiça social e da solidariedade.

Essas ideias socialistas foram muito fortes na Europa. E são até hoje, porque os governos social-democratas refletiam essas ideias de solidariedade. Assim, na Europa foi a solidariedade que domou o capitalismo. Então, o capitalismo neoliberal só funciona bem se for domado pelo republicanismo e pelo socialismo, pela solidariedade e a ideia do espírito público ou do bem comum. O neoliberalismo foi um retrocesso muito forte, porque essas duas ideologias que domam o capitalismo individualista foram muito enfraquecidas.

Leia mais


IHU Online: Eleições municipais não trataram do fundamental, diz Luiz Werneck Vianna

“Vejo uma sociedade que ainda é hedonista, consumista, com a maioria da população empenhada na sobrevivência material do cotidiano”, constata o sociólogo

Por Patricia Fachin e João Vitor Santos, IHU Online

Apesar de ainda não ser predominante em termos de números, a "mensagem espiritual" do "aleluia, aleluia e a luta continua com Crivella" é a que tem atraído pessoas com inúmeras frustrações para os "cultos materialistas dos neopentecostais". Numa sociedade “hedonista e consumista”, cuja parcela significativa das pessoas vive para garantir a “sobrevivência material do cotidiano”, não é de se surpreender que a política seja exatamente o que é: atrasada, e que a religião, aos poucos, deturpe não só o cristianismo, como a realidade para manter tudo como está.

Diante desse cenário, o sociólogo Luiz Werneck Vianna, que da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio observa a realidade política brasileira, faz um alerta: "É preciso, sim, uma revisão profunda na orientação dos que cultuam valores mais permanentes, mais humanos, mais universais. É preciso encontrar algum espaço". Nas eleições municipais deste ano, destaca, não vimos nada nesse sentido. Ao contrário, "a eleição foi a representação de um sentimento de inconformidade da população com tudo que aí está".

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, o sociólogo chama a atenção para o atraso da política brasileira, completamente alheia às urgências do país do ponto de vista social, ambiental e de saneamento. A superação do atraso político no país, adverte, virá somente se dermos um passo de cada vez e, nessa caminhada, sugere, "precisamos de uma jovem inteligência da qual se pode esperar alguma coisa nova, especialmente com origem nas universidades".

Werneck Vianna (Foto: Acervo IHU)

Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP, é autor de, entre outras obras, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997), A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999) e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignadaDiálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012). Destacamos também seu novo livro intitulado Diálogos gramscianos sobre o Brasil atual (FAP e Verbena Editora, 2018), composto de uma coletânea de entrevistas concedidas que analisam a conjuntura brasileira nos últimos anos, entre elas, algumas concedidas e publicadas na página do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que o resultado das eleições municipais deste ano revela sobre a política e a democracia de nossos tempos?

Luiz Werneck Vianna – As eleições foram um banho de saúde na política brasileira. Revelam um pouco da verdade excessivamente existente no nosso mundo político; o que também não é nada de espetacular. Num país conservador, com voto conservador, o DEM aparece como um partido forte, com outras credenciais para a disputa presidencial mais à frente, em 2022. A esquerda foi dividida, está sem programa. A eleição foi a representação de um sentimento de inconformidade da população com tudo que aí está. Há uma esperança de que algo melhore com os candidatos de esquerda, mas eles não têm programa, não têm capacidade de articulação, não têm alianças.

No Rio de Janeiro, se juntarmos os três candidatos de esquerda, cria-se um segundo turno, dada a divisão entre PTPDT e PSOL. Essa divisão levou ao segundo turno, de modo que há alguns presságios no ar: nada de espetacular, mas terra à vista. É possível seguir nesta direção em que estamos e chegarmos a um porto, passo a passo. Essa eleição foi mais um passo.

Ela também precisa ser vista no contexto das eleições americanas, que produz uma certa animação dos setores democráticos a partir do que se passa na potência hegemônica. A influência do governo Trump no mundo embaraçava as forças democráticas e impedia as possibilidades de avanço. A remoção [de Trump], que ocorrerá em breve, abre uma bela janela de oportunidades.

IHU On-Line – O que tende a mudar nas relações do governo brasileiro com o novo governo americano de Joe Biden?

Luiz Werneck Vianna – Abre uma janela de oportunidades imensa. Uma coisa interessante a ver nessa eleição é que, apesar de o tema ambiental ter tido um papel muito importante nas eleições americanas e nas eleições europeias recentes, essa questão em particular não ocupou papel relevante na agenda dos candidatos brasileiros. Nenhum partido levantou essa bandeira, em que pese a situação da Amazônia e o que ocorre em matéria de saneamento básico.

Os partidos brasileiros ambientalistas se dissolveram, a própria Marina está num lugar remoto nessa política. A ausência da agenda ambiental nessas eleições é um dado importante. A esquerda precisa descobrir temas, se comportar de forma inovadora. A esquerda está completamente defasada.

Vamos ver se receberemos algum alento a partir de agora para ver se avança e melhora. Mas não há que se pensar numa esquerda exercendo um papel de protagonismo nas eleições.

Apesar de o tema ambiental ter tido um papel muito importante nas eleições americanas e nas eleições europeias recentes, essa questão em particular não ocupou papel relevante na agenda dos candidatos brasileiros - Luiz Werneck Vianna Tweet

IHU On-Line - Qual a sua análise quanto ao resultado das eleições nas principais capitais do Norte, Nordeste, Sudeste e Sul?

Luiz Werneck Vianna – Nesse diapasão, no caso de Pernambuco e Pará – que também é relevante –, venceram os candidatos de centro e em geral de centro-direita, com grande apoio eleitoral, como é o caso de Salvador, na Bahia.

IHU On-Line - A pandemia de 2020 reforçou uma série de questões que estão em pauta na última década: a emergência climática, a concepção de uma outra lógica econômica, a necessidade de uma renda básica universal e um redimensionamento do poder e das ações estatais. Com base no resultado das eleições, como devem evoluir essas propostas?

Luiz Werneck Vianna – Esses debates se fizeram presentes, mas sem muita potência. Seria fundamental que o tema da renda básica tivesse mais relevância nessa disputa, mas não teve. Esse tema não encontrou uma sustentação forte e não creio que tenha amadurecido alguma coisa nessa direção.

IHU On-Line - Quais são as saídas para as mazelas sociais que temos no Brasil, para além da política como a conhecemos?

Luiz Werneck Vianna – A saída para a população brasileira é política, mas o problema é que a nossa política é muito atrasada, primitiva, rústica.

Houve um avanço em relação à última eleição, que foi dominada pelo atraso e pela grosseria, pela “arminha” e esses símbolos idiotas que prevaleceram naquela época e que agora foram banidos. Mas as questões fundamentais, como renda básica, questão ambiental, não foram discutidas em profundidade. Os portadores desses temas, quando apareceram, foram fracos, com baixa densidade eleitoral. Quem venceu essa eleição foi o DEM.

Há candidaturas de esquerda que ainda podem ter um desenlace melhor, como a Manuela [d’Ávila], no Rio Grande do Sul. Mas a ver; tem que esperar. Não sei o que vai se passar.

Não há motivo para satisfação, mas, ao mesmo tempo, a satisfação tem que ser vista com olhos críticos: não se pode achar que agora Roma está diante de nós. Foi um passo importante, mas ainda pequeno; falta muito. Faltam personalidades políticas relevantes, faltam partidos relevantes, faltam programas confiáveis, falta muita coisa. É muito atraso.

solução americana adotou uma postura muito bem-feita no interior do partido democrático, com uma coalizão que, apesar das diferenças entre as correntes, levaram à vitória, em condições muito difíceis. Foi uma vitória importante, uma das mais importantes dos últimos tempos. Mas eles tiveram personalidades políticas maduras, responsáveis, que souberam construir a frente que levou [JoeBiden a vitória. Aqui, quem aparece com esse papel?

No Rio de Janeiro, três candidatos de esquerda disputaram a eleição. É claro que se abriu uma oportunidade ao Crivella, apesar de toda a rejeição da cidade a essa figura. O PSOL apareceu como um esboço de um partido de esquerda de novo tipo, mas qual é o programa do PSOL? Qual é a experiência do socialismo real, por exemplo? Tudo é muito precário. Mas agora avançou-se, deu-se um passo importante, porque mostra a necessidade de novos passos à frente.

A saída para a população brasileira é política, mas o problema é que a nossa política é muito atrasada, primitiva, rústica - Luiz Werneck Vianna Tweet

IHU On-Line - Como vê a proposta de teóricos, como o francês Gaël Giraud, que sugerem uma conversão espiritual e política para realmente transformar as instituições sociais que precisam ser modificadas?

Luiz Werneck Vianna –Se essa mudança está ocorrendo, não estou vendo. Vejo uma sociedade que ainda é hedonista, consumista, com a maioria da população empenhada na sobrevivência material do cotidiano. Não tem portador para uma visão profética, por ora.

IHU On-Line – Seria importante uma mudança espiritual nesse sentido?

Luiz Werneck Vianna – Ah, seria. Claro que seria, mas aí veja: a Igreja Católica no Rio de Janeiro se deixou ultrapassar inteiramente por um culto materialista como o neopentecostalista. Ela se retirou da política e da Teologia da Libertação – deu um fim nisso – e deixou o campo aberto nas periferias para a penetração desses cultos hedonistas de economia da prosperidade e teologia da prosperidade. De modo que é preciso, sim, uma revisão profunda na orientação dos que cultuam valores mais permanentes, mais humanos, mais universais. É preciso encontrar algum espaço. Mas nessas eleições, qual candidato poderia ser identificado com uma mensagem desse tipo? Nenhum. É “aleluia, aleluia e a luta continua com Crivella”. Essa é a mensagem espiritual que há por aqui.

IHU On-Line – O que a Igreja poderia fazer nesse sentido para contribuir a fim de alterar esse percurso?

Luiz Werneck Vianna – A Igreja tinha instrumentos na Teologia da Libertação, mas ela a desarmou, expeliu seus quadros e abriu essa clareira para que esses cultos de fundo materialista preponderassem.

IHU On-Line – Como as universidades católicas podem contribuir para solucionar esta crise e o que elas podem oferecer à sociedade neste momento?

Luiz Werneck Vianna – Isso depende das lideranças, das personalidades, dos intelectuais católicos. Eles têm que ocupar o espaço público e se aproximar outra vez da vida das periferias. As periferias foram abandonadas. Quando você vai a uma favela, vê Assembleia de Deus por toda parte. Você não vê mais Igrejas lá dentro. Havia? Sim, havia.

IHU On-Line – Há anos o senhor é um dos intelectuais que chamam a atenção para a crise de pensamento na sociedade. Como alterar esse curso?

Luiz Werneck Vianna – Precisamos de uma jovem inteligência da qual se pode esperar alguma coisa nova, especialmente com origem nas universidades. O Instituto Humanitas Unisinos - IHU é um exemplo disso, entre tantos outros lugares universitários que têm sido portadores de uma nova mensagem, mais humana. Este ainda é um processo muito embrionário, um novo despertar.

Essas eleições demonstram o começo de um novo estado de coisas. É a saída de um pesadelo que vai se dissipando aos poucos e ainda nos assombra. Precisamos de paciência também e de trabalho diário, cotidiano.

IHU On-Line – A sociologia brasileira pode contribuir de que forma nesse processo?

Luiz Werneck Vianna – Ela tem produzido intervenções interessantes, especialmente a chamada jovem e nova sociologia brasileira. Ela está muito atenta ao tema da desigualdade, ao tema da vida nas comunidades periféricas; é um despertar interessante cujos frutos começam a aparecer. Inclusive com intelectuais saídos da própria periferia, como foi o caso da Marielle Franco. Ela era socióloga e saiu da PUC-Rio. A candidata do PSOL [Renata Souza] também é uma intelectual interessante. Da relação entre universidade e periferia estão começando a brotar frutos, com a formação de intelectuais saídos dos próprios setores marginalizados. Estes são capazes de ser portadores de novidades no que se refere a uma política social de novo tipo, mais avançada.

A minha universidade, a PUC-Rio, cumpre um papel muito interessante nessa direção, especialmente na aproximação com os jovens da periferia que ela acolhe por meio de bolsas de estudo para os seus cursos, formando jovens cientistas saídos das classes subalternas e que têm escalada na esfera pública. Marielle é um caso de evidência solar, mas há tantos outros. Mas é numa escala muito reduzida. A relação da universidade, por exemplo, com a favela da Maré é interessante. O candidato a vice-prefeito da Martha Rocha do PDT [Anderson Quack] é uma liderança da Central Única das Favelas - Cufa. É por aí que a banda tem que tocar. É preciso começar a trocar o ar. Vamos ver.


Luiz Werneck Vianna: A muralha e a sua porta

Aparentemente a atual conjuntura experimenta um tempo homogêneo e vazio em que se reitera o já vivido, como se a sociedade estivesse condenada a movimentos de repetição de suas experiências passadas sem lhe conceder a faculdade de descobrir suas alternativas de futuro. A aceitar esses termos viver-se-ia agora, no Brasil, nas mesmas condições dos idos de 1964 a 85, restando a nós reiterar as práticas bem-sucedidas naquele período. Mas, de fato, nosso tempo nem é homogêneo e nem vazio, pois forças surgidas das entranhas da sociedade capitalista contemporânea brasileira trazem consigo a heterogeneidade e fazem emergir novos sentidos na vida social, alargando a porta estreita de que falava Walter Benjamin pela qual podem entrar as forças da transformação.

Com efeito, se em boa parte novos processos benfazejos que transcorrem no mundo devem sua aparição à ação do domínio dos fatos como protagonista, outra parte se deve ao plano da consciência do ator que se anima e se inova ao vislumbrar as novas possibilidades que percebe na porta entreaberta que tem diante si. De fato, a intervenção sem freios que a expansão do capitalismo expôs o mundo, desencadeando exponencialmente suas forças produtivas, vem precipitando processos disfuncionais que põe sob ameaça sua própria reprodução, entre os quais os riscos ambientais, como a atual pandemia, que, se não controlados, podem, no pior dos cenários varrer do planeta a nossa espécie ou degradar a herança cultural que ela acumulou em sua jornada de séculos.

onda neoliberal que tomou conta do mundo a partir dos anos 1970, em sua versão de um capitalismo vitoriano, deixou em sua esteira, como o demonstra incansavelmente o economista Thomas Piketty, um lastro de desigualdades que corrói por dentro a legitimidade do seu modo de produção. Ao lado disso, o legado do colonialismo com que o capitalismo iniciou sua trajetória de triunfos deu como um dos seus frutos amargos a questão do racismo, primeiro pela importação massiva, sob o estatuto da escravidão, de africanos com que se supriu as plantations de mão de obra com que as Américas realizaram sua inserção no mundo do capitalismo, e bem mais tarde, aí já em cenário europeu, com as migrações originárias das antigas colônias, também em grande escala, em busca de oportunidades de vida em sociedades carentes de força de trabalho barata em serviços subalternos.

A entrada em cena do racismo, em especial nos contextos europeus e americanos, como que vieram a sobredeterminar as desigualdades sociais, instalando um sentimento generalizado de que a injustiça se naturalizou na vida social, sentimento particularmente experimentado pelos jovens que se deparam com sociedades adversas à sua participação. O movimento catártico dos jovens em grande número de países, massivo no caso americano, em reação ao bárbaro assassinato de um negro por motivo banal pelas forças policiais, trouxe à luz a existência de uma ainda embrionária sociedade civil mundial e de novos personagens políticos prontos a entrarem em ação.

atual pandemia que nos assola, por sua vez, acentua o quadro de fim de época que se insinua neste tempo que parece nos ensinar a abandonar as concepções de mundo do utilitarismo que o capitalismo nos impôs para buscar novos caminhos, alguns deles já conhecidos pela longa história humana como os que investiram nos ideais da igual-liberdade, para usar uma forte expressão de E. Balibar.
            
política é o lugar próprio para essa descoberta, que já empreende passos promissores em vários países europeus com a valorização dos temas ambientais e das desigualdades sociais, e começa a encontrar espaço entre os democratas americanos que ora se contrapõem, até aqui bem-sucedidos, à reeleição do anacrônico neoliberalismo de Donald Trump. Sobretudo ela é necessária aqui, neste canto do mundo que cedeu ao atraso e abdicou de suas melhores promessas com este governo Bolsonaro que acena com o fascismo e com uma administração tecnocrática nos moldes preconizados por Paulo Guedes, ministro da Fazenda de confissão neoliberal.

Se Bolsonaro é prisioneiro dos idos do AI 5, a oposição democrática a isso que aí está, não deve ficar retida na sua história de sucessos nos anos 1980, embora deva estar atenta às suas lições. A trama é nova e novos são os personagens, muito particularmente aqueles que surgiram com a auto-organização da vida popular em suas lutas pela vida em meio à catástrofe da pandemia, eles e os seus intelectuais que ganharam estofo nessas lutas, e junto a eles os movimentos de cientistas, de universitários e de intelectuais que a eles se associaram. A política democrática não poderá perdê-los de vista, assim como abrir generosos espaços a esses emergentes setores da esquerda, que, embora ainda imaturos em alguns casos, trazem consigo seiva nova a ser valorizada.

As eleições municipais – eleições, na nossa experiência, consistem em uma forma superior de luta – estão batendo em nossas portas, e aí estará o momento, especialmente se a malfadada pandemia arrefecer para recuperarmos os espaços que fomos coagidos a abandonar. Nessa hora de retomada cumpre alargar, de forma tal que empalideça todas nossas experiências anteriores, uma frente democrática que invista com energia contra as muralhas reacionárias que os desavindos com a nossa história e melhores tradições ergueram para a proteção dos seus privilégios e de suas crenças malévolas.


IHU Online: 'Brasil precisa de um político que seja senhor da arte de tecer algo comum', diz Werneck Vianna

Por Patricia Fachin , IHU On-Line

Para compreender o momento presente e as crises políticas e sociais que o Brasil enfrenta, o sociólogo Luiz Werneck Vianna costuma dar um passo atrás em busca das causas. O abismo político e social diante do qual o país se encontra hoje, assegura, é consequência da política praticada nos últimos anos. A eleição do presidente Bolsonaro e os sucessivos atos antidemocráticos que reivindicam o fechamento do Supremo Tribunal Federal - STF e do Congresso Nacional em defesa de um governo autoritário, são indicativos de que a sociedade brasileira adoeceu porque a política praticada nas últimas décadas não favoreceu a organização da cidadania. “Não quero arrumar culpados, mas fomos todos que perdemos uma herança importantíssima; deixamos que se dilapidasse diante dos nossos olhos a Carta de 88, que é de inspiração social-democrata – é débil, mas é uma social-democracia e tinha possibilidade de desenvolvimento futuro. Para que isso ocorresse, precisávamos ter entendido que democracia política e democracia social deveriam andar juntas. No entanto, a partir de determinado momento, a esquerda hegemônica, no caso o PT, conduziu o tema do social sem política, sem amparar o social em instituições democráticas e sem fortalecer a democracia”, afirma.

As consequências de uma política “desamparada de sustentação cidadã” podem ser vistas nas diferentes tentativas do governo atual de levar adiante a expansão irrestrita do capitalismo, removendo todas as barreiras sociais, e tentando remover as instituições democráticas, como o STF e o Congresso. Entretanto, adverte, remover as “trincheiras democráticas”, “nas circunstâncias do mundo atual, não é fácil, ainda mais sem a reeleição de Trump”.

Enquanto a sociedade brasileira agoniza diante da crise pandêmica, do aumento do desemprego e da falta de perspectivas para o futuro, no meio político busca-se um "replantio", ou seja, restabelecer "caminhos já percorridos, como o da Frente Ampla, que fazem com que o diverso possa se encontrar, independentemente das suas diferenças". A questão, contudo, é ver se a iniciativa "frutifica".

Segundo ele, apesar de não ter surgido uma liderança política que possa fazer frente ao fascismo tabajara do governo Bolsonaro, iniciativas populares de auto-organização se fortaleceram durante a pandemia nas periferias carioca e paulista. “As coisas estão fermentando, aparecendo, mas é claro que no mundo da política são necessárias outras qualidades: é preciso de alguém com perfil de estadista, que pense a partir da ciência, mas tenha a arte de realizar as suas concepções, que seja ouvido, capaz de ter audiência. Isso está nos faltando, mas vai aparecer. Sempre aparecem esses personagens”.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Werneck Vianna analisa os últimos acontecimentos da conjuntura nacional, como a prisão de Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, preso na última quinta-feira. Queiroz, comenta, “faz parte do tipo de gente que veio com este governo: a ralé, o mundo das milícias. Deixamos a sociedade tão vulnerável, que ela não só foi apropriada por essa gente que está no governo, como criamos espaço para a penetração das milícias no meio popular”.

Apesar do contexto atual, o sociólogo acredita que a crise pandêmica poderá gerar mudanças significativas no Brasil e no mundo. “A ideia de cooperação, de uma sociedade mais solidária, igual, está se impondo por força das próprias circunstâncias que vivemos hoje. Os limites da sociedade conhecida já foram dados. Vivemos o fim de uma época e estamos no limiar de outra, que já nasce com algumas percepções fortes: cooperação, igualdade, solidariedade, ciência”, conclui.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O seu diagnóstico é o de que a democracia está em risco não somente por causa do governo, mas porque a sociedade adoeceu, perdeu-se de si mesma. Desde quando estamos doentes política e socialmente?

Luiz Werneck Vianna – Tudo que acontece hoje só foi possível porque a sociedade adoeceu antes e permitiu a vitória dos que estão aí. Eles não chegaram ao poder pelo golpe, mas pelo voto. Como os anos dos governos petistas não favoreceram a organização da vida popular, não favoreceram a organização da cidadania, a política ficou desamparada de sustentação cidadã. Se acumulou, na sociedade, por força disso, um tipo de comportamento em setores sociais bem determinados – que chamo de ralé de camadas médias -, dirigido inteiramente ao consumo, ao culto idiota às personalidades midiáticas independentemente dos seus valores. Criou-se uma personalidade em torno da Sara Giromini, que usa o codinome Sara Winter, nome de uma espiã inglesa em favor do nazismo. Não importa, para eles, a história; importa a exibição, o espetáculo e eles tiveram uma votação impressionante nas últimas eleições. Quantos deles estão nas casas parlamentares? Pessoas que vieram de lugares inexpressivos da vida social conquistaram posições e estão aí hoje, emperrando a resistência democrática no Congresso.

A criação de um abismo

Nada do que nos ocorreu foi fruto de um acaso; não havia nenhuma fatalidade que nos empurrasse para essa situação. Nós criamos este abismo diante dos nossos pés com o tipo de política que praticamos nos últimos tempos. Não quero arrumar culpados, mas fomos todos que perdemos uma herança importantíssima; deixamos que se dilapidasse diante dos nossos olhos a Carta de 88, que é de inspiração social-democrata – é débil, mas é uma social-democracia e tinha possibilidade de desenvolvimento futuro. Para que isso ocorresse, precisávamos ter entendido que democracia política e democracia social deveriam andar juntas. No entanto, a partir de determinado momento, a esquerda hegemônica, no caso o PT, conduziu o tema do social sem política, sem amparar o social em instituições democráticas e sem fortalecer a democracia.

Um caso exemplar disso foi a não subscrição por parte do PT da Constituição de 88. A distância que o partido toma – o partido representava naquele momento a questão social na sua forma mais visível no Brasil – e o fato de não ter assinado a Carta é muito sintomático deste posicionamento de que ele iria procurar avançar na agenda social por fora das instituições, e isso foi debilitando a democracia entre nós. Inclusive, porque – eu tenho prurido em falar assim e no artigo eu falo em “blasfêmia” – foi um partido de esquerda com representação no mundo sindical, que é o coração pulsante da esquerda. O PT fez isso por falta de orientação e, quando acabou conquistando o governo, quis fazer dele um instrumento do seu programa da questão social com independência das instituições, sem organizar, sem atentar para a distância que a cidadania tomava das instituições, do Estado, porque tudo vinha de cima para baixo. Isso foi tornando a democracia debilitada.

Ralé de novo tipo

A derrota que tivemos é eleitoral e não um golpe como em 64. E mais: não foi só a eleição presidencial, foi um tsunami de votos de uma ralé de novo tipo que surgiu na política brasileira sem que nos déssemos conta disso.

Nós perdemos, mas não perdemos tudo. Uma parte da nossa herança democrática conquistada em 88 ficou e algumas instituições também. Essas instituições ainda têm a memória do que se conquistou naquele tempo. Como o governo que aí está é um governo que vem realizar um programa há muito tempo ansiado e esperado pela alta burguesia brasileira, de reformar a sociedade de uma forma tal que ela se tornasse mais compatível, propensa e favorável à penetração do capitalismo em todas as suas instâncias, as instituições aparecem como um obstáculo a ser removido. A marca neoliberal da política econômica foi anunciada e atraiu setores muito poderosos da elite econômica, especialmente do capitalismo agrário, do agronegócio e do setor financeiro do capitalismo brasileiro, para que agora não se tenha obstáculos para avançar: sem legislação trabalhista, sem legislação social, sem a social-democracia que trava e obriga a certas concessões.

É por isso que se quer entrar em terras indígenas e fazer delas mineração, trazer os cassinos para as grandes cidades, fazer com que o capital na sua forma pura venha a prevalecer em todas as instâncias da vida social. Este foi o projeto. Este projeto, contudo, não quer nenhum obstáculo pela frente, como as instituições herdadas da democracia anterior. A luta, então, se estabeleceu: remova-se o Supremo Tribunal Federal - STF, remova-se o Congresso, para fazer da sociedade brasileira um território limpo e acessível para a extensão do capital onde for possível. O capital quer tornar a sociedade totalmente domesticada e as instituições têm recusado isso com energia, criatividade, coragem, mas elas não têm instrumentos de defesa poderosos, salvo os da ordem moral. Então, elas foram sitiadas e pretende-se ou maculá-las ou erradicá-las, e estamos nesta disputa em que o governo avança contra as instituições e as instituições se defendem. Por ora, graças a Deus, a defesa tem sido efetiva. A sociedade está em crise, não há um desenlace para isso e não podemos acumular forças nas ruas por causa da pandemia; nós temos que defender nossas vidas. E com esta circunstância, o apoio externo que poderia vir às instituições fica fraco. Até agora a linha de resistência tem sido efetiva. Mas até quando?

IHU On-Line – Quais instituições reagem e lideram a resistência?

Luiz Werneck Vianna – O Judiciário tem posto uma linha de resistência segura e tem sido uma trincheira importante das conquistas de 88. Até quando, não sabemos. Estamos numa guerra de posições, mas a essa altura, este governo tenta transformar essa guerra de posição em guerra de movimento, isto é, avançar sobre o nosso sistema defensivo a fim de destruí-lo.
O que se diz, como ficou claro na reunião ministerial de 22 de abril, é que se quer aproveitar desta pandemia para avançar com garimpo, com distribuição de terras, com a expansão do agronegócio para colocar vaca no lugar da mata.

IHU On-Line – Está claro como as Forças Armadas estão se posicionando nesta crise ou por que não se posicionam?

Luiz Werneck Vianna – Não tenho informações confiáveis do que se passa na cabeça da oficialidade que está nos quartéis. A que está nos palácios, sabemos, porque eles demonstram as iniciativas que o governo está tomando. Agora, irão eles abandonar as instituições e ir para uma ditadura aberta? Será que toparão isso? É um mundo de risco para eles também. Tendo a achar que não. Há um sentimento de autodefesa da corporação diante desses riscos, das circunstâncias em que o mundo se encontra. O STF encontrou uma linha de resistência sóbria, firme e segura. No limite, que removam o STF e corram esse risco. O mundo não está favorável para isto e Trump não deve ganhar as eleições.

Irão eles [militares] abandonar as instituições e ir para uma ditadura aberta? Será que toparão isso? É um mundo de risco para eles também. Tendo a achar que não - Luiz Werneck Vianna

IHU On-Line – Por que a democracia não é um valor incondicional na sociedade brasileira?

Luiz Werneck Vianna – Porque a nossa sociedade formou-se à margem da vida democrática. Como nós nos criamos enquanto Estado, nação e sociedade independente? Foi por uma revolução social libertadora? Não, foi por um movimento de cúpulas: o herdeiro da monarquia se torna imperador no Brasil. Como chegamos à República? Foi por um movimento popular visando à participação? Não, foi por um golpe militar. Como chegamos à abolição? Bom, com um certo movimento popular; o movimento abolicionista foi importante, mas foi por um ato imperial da princesa Isabel. Não houve um embate que fizesse com que setores mais reacionários fossem deslocados. O que havia de mais reacionário na sociedade imperial, com a abolição, não foi muito afetado. Portanto, a nossa tradição de formação histórica é uma tradição conservadora, quando não reacionária. Como fizemos a nossa revolução burguesa? Por cima, com Vargas, no Estado Novo. Como se deu todo o processo da modernização? Se deu com alguns institutos liberais funcionando, mas com a Lei de Segurança Nacional do Estado Novo ainda vigendo, com a concepção reacionária de ordem social, de repressão à vida popular nos anos 1950 e 1960.

Nos anos 60, o cenário começa a mudar – aí deu pânico na direita brasileira – no terreno mais sensível, que é o campo, a vida agrária, de onde nós saímos, de onde começamos a nossa história, com as Ligas camponesas. A organização da vida popular no campo se tornou uma ameaça e foi preciso interrompê-la para manter o padrão conservador, reacionário, que é a nossa tradição. O golpe de 64 vem nessa linha. Temos uma história pesada de autoritarismo, de domínio burguês autoritário. Não conhecemos uma revolução democrática burguesa; a nossa revolução foi por cima, pelo Estado. Quer dizer, os heróis empresários brasileiros tiveram um destino muito triste: Monteiro Lobato chegou a ser preso pelo Estado Novo por suas lutas em torno do petróleo e do aço; o projeto dele era se tornar um Henry Ford do Brasil. Não tivemos um Henry Ford vindo da sociedade, como nos EUA. As mudanças ocorreram via Estado e isso deixou marcas de autoritarismo muito profundas; enfrentá-las demandava uma inteligência que não tivemos, não soubemos ter. Cavamos um abismo aos nossos pés, como diz a música do Cartola. E agora, como sair disso? Estamos tentando, restabelecendo caminhos já percorridos, como o da Frente Ampla, que fazem com que o diverso possa se encontrar, independentemente das suas diferenças. Tudo isso é um replantio. Vamos ver se frutifica.

IHU On-Line - Direita, centro e esquerda vão conseguir vencer as diferenças em prol de um pacto para deter a extrema direita, como alguns sugerem?

Luiz Werneck Vianna – Diante da ameaça do fascismo – porque é disso que se trata – devemos procurar uma unidade de todos. Agora, isso é difícil, porque a nossa sociedade não é muito sábia, não tem história de sabedoria. Mas estamos tentando.

Isso vai depender da política, que depende da ciência e da arte também. Vai depender do artista, de um político que seja senhor da arte de fazer esta composição difícil. No momento, este artista não está disponível, não temos um Ulysses Guimarães, um Tancredo Neves, que eram artistas desta arte de fazer política, de tecer, a partir das ideias das pessoas, uma coisa comum. Pode ser que esteja aparecendo aí e ainda não vimos. Tem muita movimentação importante na nossa sociedade, inclusive nos setores subalternos, com novos intelectuais vivendo no mundo subalterno, como o Emicida, que é músico, um intelectual finíssimo, um jovem. O conheço apenas da televisão, de entrevistas, e me impressiona muito. Como ele, há muitos e muitos outros que estão se apresentando agora.

Vida popular

Na vida popular há instituições, como a da organização popular de Paraisópolis, em São Paulo, que conseguiu estabelecer estratégias de defesa contra a pandemia. Ela é muito interessante como auto-organização. Está havendo movimentos positivos na crise atual que estamos vivendo. Além de Paraisópolis, há uma série de outros casos. Na Rocinha, que é uma favela importante no Rio de Janeiro, há um movimento de auto-organização muito interessante. As coisas estão fermentando, aparecendo, mas é claro que no mundo da política são necessárias outras qualidades: é preciso de alguém com perfil de estadista, que pense a partir da ciência, mas tenha a arte de realizar as suas concepções, que seja ouvido, capaz de ter audiência. Isso está nos faltando, mas vai aparecer. Sempre aparecem esses personagens.

IHU On-Line - O senhor tem chamado o governo de “fascismo tabajara”. Mesmo sendo tabajara, ele representa ameaças à democracia? Há algo comparável a este momento na história do Brasil?

Luiz Werneck Vianna – Que é fascista, não tenho dúvidas. É tabajara porque as circunstâncias são as nossas, brasileiras, daqui deste pedaço escondido do mundo, que é o Brasil. O fascismo aparece como um projeto bem mais sofisticado. Não dá para esquecer que no nazismo alemão, [Martin] Heidegger aderiu, Carl Schmitt aderiu; não foi um fenômeno com a ausência do grande pensamento, de grandes intelectuais. Aqui temos quadros de pobres personagens e, por isso, tabajara. Mas é fascismo.

O próprio integralismo no Brasil era um movimento de grandes intelectuais. Para mencionar alguns que me ocorrem agora: Santiago Dantas e Helder Câmara. Eles são homens que se aproximaram do liberalismo depois, mas que tiveram este momento de adesão ao fascismo. Miguel Reale, cujo filho está aí e é um liberal importante, também se tornou um liberal no final da vida. Afora a penetração do integralismo nos círculos militares, especialmente na Marinha. Portanto, é inteiramente distinto do que está ocorrendo aqui. É um movimento de pessoas muito rudes, toscas, despreparadas. Algumas, pouco alfabetizadas e dependentes do trumpismo. Essa armação de política externa desamparada, com Trump à frente, está sob ameaça. Trump, a esta altura, dificilmente vencerá as eleições e, sem Trump, o que será deles?

Eles precisam remover as trincheiras, mas removê-las nas circunstâncias do mundo atual não é fácil. Como o Brasil vai reagir à opinião pública internacional em relação a isso? Ainda mais que vivemos de vender mercadorias para fora. E se nossos compradores começarem a enjoar de nós e não quiserem mais comprar as nossas mercadorias? E se a China resolve diversificar os seus vendedores, diminuindo ou rebaixando a presença brasileira no fluxo comercial? Como vai ficar se a União Europeia fizer a mesma coisa? São ideias muito anacrônicas, em um momento em que a sociedade humana enfrenta a pandemia.

A pandemia trouxe o tema da ciência como um dos mais relevantes da cena contemporânea, porque esta pandemia põe no horizonte outras que poderão vir. A sociedade humana precisa se defender e só pode se defender com a ciência, e ciência só se faz com liberdade.

IHU On-Line – A prisão de Fabrício Queiroz poderá reorganizar a cena política? Qual é o significado político dessa prisão para o governo, especialmente para o presidente Bolsonaro?

Luiz Werneck Vianna – Faz parte do tipo de gente que veio com este governo: a ralé, o mundo das milícias. Deixamos a sociedade tão vulnerável, que ela não só foi apropriada por essa gente que está no governo, como criamos espaço para a penetração das milícias no meio popular. Qual é a presença real da Igreja Católica na vida popular, nas favelas cariocas, que eu conheço relativamente bem? Muito pequena. Qual foi a presença do PT na vida periférica e das favelas? Muito pequena. Deixamos espaço para que esses aventureiros armados ocupassem essas posições e se tornassem presentes nos processos eleitorais, com candidatos, apoio, financiamento. Eles controlam setores das classes periféricas. Isso tem que ser combatido e a sociedade começou a acordar para isso.

A sociedade está muito doente. Está doente com a pandemia e socialmente doente; precisa se curar. Ela está em processo de cura, vamos ver se dá tempo. O mundo está curando suas feridas numa direção muito boa: da paz, da ciência, da defesa do meio ambiente. Basta ver o que houve na juventude americana há duas semanas. Isso é de uma importância fundamental.

Queiroz é um homem das milícias. O que pode fazer o Queiroz? A partir da prisão dele, pode-se puxar um fio que irá expor as vísceras das milícias, se ele quiser falar.

IHU On-Line – Uma delação premiada seria um caminho?

Luiz Werneck Vianna – Ele pode inventar isso e aí vai tudo embora… sei lá.

IHU On-Line – Qual é o significado da aproximação do governo com o Centrão?

Luiz Werneck Vianna – É uma tentativa de sair das dificuldades em que ele se encontra pela política, evitando o caminho do golpe, que é um caminho arriscadíssimo para eles. O Centrão é a tentativa de encontrar um caminho na política, o que qualquer estrategista diria que é o mais aconselhável para eles porque, inclusive, no horizonte está a derrota de Trump. Se há alguma lucidez entre eles, o caminho é a política, é encontrar um caminho para levar este governo até o seu término. A saída de [Abraham] Weintraub, que é um destrambelhado, fortalece essa possibilidade. Vamos ver se esse governo aprende a fazer política.

Na opinião pública, Bolsonaro já perdeu. Não dá para saber ainda em que medida perdeu, porque a sociedade está assustada em suas casas, com medo da pandemia, com razão.

IHU On-Line – As recentes manifestações que ocorreram contra o presidente indicam alguma novidade?

Luiz Werneck Vianna – Aqui as manifestações foram pouquinhas; na América [EUA] foi todo mundo. Elas foram positivas, apesar de darem apenas uma parte do que poderiam ser se não tivesse a pandemia. As manifestações de São Paulo foram expressivas, algumas no Rio de Janeiro também. A sociedade adoeceu, mas não toda ela; uma parte continua resistindo, continua com valores. Uma parte da Igreja Católica adoeceu, aquela que foi fazer acordos com o governo para ter recursos para televisão. Mas há setores dentro da Igreja que não estão doentes, lutam e resistem.

Foram anos de uma sociedade formada a partir da dominação autoritária, da escravidão. Queríamos ter o que como resultado? Essa milícia que está aí. Estão tentando fazer milagres de cauterizar as feridas, de encontrar um caminho.

IHU On-Line – Como será o Brasil depois da pandemia?

Luiz Werneck Vianna – Depois da pandemia, vai ser um mundo bom (risos). Não gosto de pensar nisso; é um futuro tão desejado que é melhor deixar ele se impor, se ele se impuser. Esperamos que isso termine para que possamos encontrar os amigos, os filhos, os netos. A sociedade que vai sair disso será melhor.

IHU On-Line – Mesmo com o aumento da pobreza, da crise econômica?

Luiz Werneck Vianna – A economia sempre se resolve.

IHU On-Line - Os intelectuais estão refletindo sobre o momento que estamos vivendo e fazendo projeções de como será o futuro pós-pandemia. Como o senhor tem pensado sobre este momento, sobre os impactos deste período para a sociedade? Que pensamentos a pandemia de covid-19 tem lhe suscitado?

Luiz Werneck Vianna – O planeta está também sob ameaça na questão ambiental, das pandemias, então, a ideia de cooperação, de uma sociedade mais solidária, igual, está se impondo por força das próprias circunstâncias que vivemos hoje. Os limites da sociedade conhecida já foram dados. Vivemos o fim de uma época e estamos no limiar de outra, que já nasce com algumas percepções fortes: cooperação, igualdade, solidariedade, ciência. O nosso planeta é muito pequeno e não pode mais ser depredado pela ação dos homens como foi e vem sendo feito.

Há um sentimento de autodefesa da espécie que vem se manifestando a partir de seus intelectuais, da sociedade, das grandes organizações, dos países democráticos, da igreja, na ação do papa Francisco, muito especialmente, que é o horizonte com o qual vamos nos defrontar – aqueles que conseguirem sair desta pandemia vivos. Espero ser um deles; mas, enfim, eu sou do grupo de risco.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo PUC-Rio


Luiz Werneck Vianna: Não há mal que sempre dure

Não dá para esconder que a democracia brasileira esteja sob alto risco, e não apenas por que se encontra ameaçada por um governo que faz do seu desmonte o seu objetivo estratégico, mas também por que uma parte de sua sociedade abandonou sua afeição por ela. Afinal, os governantes que aí estão foram eleitos em pleitos eleitorais livres, secundados pelos parlamentares mais toscos, despreparados e vorazes conhecidos em nossa longa história parlamentar, presentes em todas as casas de representação política. Também eles não caíram do céu, foram eleitos, e muitos deles com estrondosa votação. O retrato lúgubre que estampam não é filho do acaso e da má vontade do destino, mas das nossas ações e inações. Diante de nossos olhos a sociedade adoeceu, perdeu-se de si mesma, da sua história e melhores tradições.

Como isso pode acontecer aqui, justo no lugar que soube derrotar pela ação política bem concertada um regime autoritário que a afligiu por duas décadas, essa a questão que temos de sondar até as suas raízes a fim de encontrar remédio para os males que nos atormentam. Que se ronde a blasfêmia, inevitável no caso, por que foi de um partido nascido da vida sindical, lugar sagrado da esquerda, que teve início a difusão do vírus maldito que apartou a democracia política da democracia social, cerne da concepção da Carta de 88, destituindo a política do seu papel criador e pondo no seu lugar a esfera bruta dos interesses, deixando fora de foco o cidadão em nome dos apetites do consumidor – os automóveis, as viagens de avião, as comemorações da Força Sindical no 1º de maio com brindes e rifas aos participantes no lugar da evocação das lutas civis que tradicionalmente celebravam.

Principalmente o descaso com a organização da vida popular e a descrença no papel que uma cidadania ativa pode desempenhar nas democracias, uma vez que por cima de todos um poder tutelar agia em nome de todos, vindo a reforçar as tendências à fragmentação social que décadas de modernização autoritária tinham produzido. A questão social sob a administração do Estado vem à tona com pouca sustentação nos atores que deveriam ser os seus portadores naturais, orientada como estava para os fins políticos da reprodução do poder tutelar que se empenhava, como recurso de legitimação, na satisfação dos desejos de consumo das multidões.

Naquele contexto o que importava era a preservação das posições conquistadas no interior do Estado, pois era a partir dele que realizava o seu enlace com os movimentos sociais e setores da sociedade civil, aí incluídas atividades empresariais de todo gênero, movimento que mereceu ser designado como o Estado Novo do PT. Seus efeitos foram letais na medida em que expos as estruturas do Estado às ações de grupos de interesse que se valeram dessas relações promíscuas para a expansão dos seus negócios e atividades econômicas, terreno fértil à corrupção. Com este flanco aberto, escancarou-se a possibilidade para o capitalismo brasileiro de se livrar dos inúmeros obstáculos, sociais e institucionais, que obstavam sua plena realização. A chamada operação Lava Jato foi o cavalo de Troia que permitiu a entrada em cena das hostes que há tempos ansiavam por essa oportunidade.

Com o terreno da política desertificado, lastro deixado pela Lava-Jato, afetado em sua credibilidade o sistema da representação política, destruídas as escoras e referências que orientavam o sistema de crenças da sociedade, já enfraquecidas por anos de práticas refratárias a uma cidadania ativa por parte do PT, a cena pública tornou-se presa fácil do mundo dos interesses e de todos os apetites. Uma ralé de novo tipo, com extração nos setores das camadas médias, em busca da fama e da riqueza fácil, inebriadas pelo mito pós-moderno da personalidade, vislumbra na sociedade indefesa a sua hora e a sua vez e consegue postos importantes no sistema da representação política. Com a infiltração desses vândalos a obra da ainda inacabada civilização brasileira passa a sofrer graves ameaças.

Contudo, dessa história de ruinas permaneceram de pé as instituições edificadas no já longínquo 1988, ano em que celebrou sua Carta democrática, e por isso mesmo os bárbaros que a sitiam têm como lema a sua destruição. Seus defensores, com firmeza e sabedoria, têm sabido até aqui preservar esse último reduto da democracia brasileira, mas seu esforço solitário não é garantia de que poderão sem recursos externos sobreviver ao cerco a que estão expostas. A dificuldade para a efetivação desse movimento está na pandemia que nos assola, e que nos mantém confinados em defesa da vida. Há outros recursos, porém, que embaraçam as ações dos que tramam contra nossa democracia, um deles, nada irrelevante, provem do mundo ao redor.

As forças que nos rondam em nome da destruição da nossa obra coletiva também sabem calcular, e têm tudo a temer, na economia e na política, no cenário atual das coisas no mundo, caso prevaleçam impulsos em suas ações no sentido de apostar na barbárie que anima tantas lideranças suas. O Brasil não é uma ilha, e faz parte desde sua origem do sistema capitalista mundial, filho do Ocidente, sua formação nacional se forjou sob a influência das correntes de ideias que nos vinham da França, no Império, segundo a modelagem operada pelo Visconde do Uruguai, e, na República, dos EUA que inspirou em larga medida a sua primeira Constituição em 1891, obra em grande parte derivada da influência de Ruy Barbosa na sua redação.

Orbitamos desde aí, de Rio Branco a Nabuco e Osvaldo Aranha em torno desse último eixo, que agora se move em reação contrária a política de Donald Trump que desafia as concepções dos seus pais fundadores em nome do seu projeto de poder em antagonismo com o universalismo e ideais civilizatórios preponderantes ao longo da sua história republicana. Tal movimento, nos dias que correm, tendo como estopim a questão racial, ganhou as ruas, em que pese a pandemia que a todos atinge, em multitudinárias manifestações de jovens apoiadas pela opinião pública e de grandes personalidades do mundo da cultura e dos esportes, não lhe faltando sequer palavras de simpatia entre algumas de suas elites militares. Anuncia-se a possibilidade de mudança nas coisas do mundo.

A política dos governantes que aí estão se encontra desalinhada das tendências benfazejas que ora se afirmam em todos os cantos do planeta. Sob a pressão da pandemia em curso, a linguagem da cooperação se universaliza, com forte intensidade na dimensão da ciência onde se fazem presentes vigorosas denúncias do estado de coisas reinante no mundo, que adoece pelas desigualdades sociais, pela degradação da natureza e da vida em geral. Coube a nós viver essa quadra inclemente sob a condução de ideologias de hospício, hostilizados pelo bestiário de dirigentes que afrontam o mundo e o que há de melhor em nosso país. Isso que aí está não pode durar, não vai durar.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio.


IHU Online: Fim do piso para a saúde é o divórcio definitivo da economia dos problemas sociais, diz Ligia Bahia

Por Ricardo Machado, IHU Online

No centro do alvo das políticas administrativas e econômicas do atual governo estão as políticas sociais. Os três pilares que sustentam o austericídio das políticas públicas são as Reformas da Previdência e Trabalhista e a Emenda Constitucional – EC 95, que congelou os investimentos em áreas fundamentais para o país, como saúde, educação e segurança. Uma nova ofensiva visa desmantelar ainda mais o Sistema Único de Saúde – SUS. “A proposta de extinção da proporção fixa de recursos para a saúde seria o corolário das mentiras que justificaram a EC 95 e a reforma da previdência. A economia se divorciou definitivamente dos problemas sociais”, ressalta a professora doutora e pesquisadora Ligia Bahia, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

“O subfinanciamento crônico da saúde pública poderia se tornar desfinanciamento do governo federal. Estados e principalmente municípios teriam que fazer das tripas coração para impedir o caos completo na saúde e possivelmente não conseguiriam evitar a deterioração radical dos serviços de saúde”, avalia a pesquisadora. No fundo há uma visão, por parte de quem defende o corte de recursos para a saúde, vulgarizada do que é o SUS, ao mesmo tempo que se romantizam os planos privados, que, atualmente, devem mais de R$ 1,7 bilhão aos cofres do Sistema Único de Saúde. “A concepção sobre o SUS apenas como prestador de serviços médicos e não como sistema que pesquisa e produz insumos prevalece e agora está ainda mais explícita”, critica.

ataque à saúde pública e universal é mais um capítulo no processo contínuo de destruição das conquistas sociais da Constituição Federal de 1988, que tem ocorrido, de forma explícita, desde 2016. Ao projetar o futuro, Ligia Bahia faz um balanço sobre os investimentos na área nos últimos dez anos. “A década de 2010 se encerra com o SUS em banho-maria e expansão do setor privado, a de 2020 possivelmente consolidará a tendência de enfraquecimento da rede pública. No entanto essas tendências geram crises porque a privatização está longe de ser uma alternativa efetiva para organizar o sistema de saúde em um país como o Brasil”, projeta.

Ligia Bahia é professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Possui graduação em Medicina pela UFRJ, mestrado e doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Políticas de Saúde e Planejamento, principalmente nos seguintes temas: sistemas de proteção social e saúde, relações entre público e privado no sistema de saúde brasileiro, mercado de planos e seguros de saúde, financiamento público e privado, regulamentação dos planos de saúde. Entre suas publicações, destacamos Planos e seguros de saúde. O que todos devem saber sobre a assistência médica suplementar no Brasil (São Paulo: Unesp, 2010) e Saúde, desenvolvimento e inovação (Rio de Janeiro: Cepesc, 2015).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que a extinção dos pisos para investimento nas áreas de saúde e educação está no raio de ação da PEC do Pacto Federativo?

Ligia Bahia – A proposta de extinção da proporção fixa de recursos para a saúde seria o corolário das mentiras que justificaram a EC 95 e a reforma da previdência. Ambas políticas foram justificadas com o argumento que poderia haver aumento dos recursos para a saúde e o que ocorreu foi o contrário. A economia se divorciou definitivamente dos problemas sociais. Essa ameaça de “liberação” das amarras do orçamento é o ponto máximo dessa ruptura onde haveria um orçamento extraído de impostos, taxas e contribuições que não dialoga com as necessidades sociais do país. Em tempos de Coronavírus ao invés dos esforços para ampliar recursos para a saúde pública o governo anuncia que irá restringir as respostas para a melhoria da saúde.

IHU On-Line – Em específico para a área da saúde, quais os riscos da extinção do piso mínimo de investimento? Como isso se materializaria no cotidiano do SUS?

Ligia Bahia – O financiamento do SUS dependeria exclusivamente da boa ou má vontade de cada governo e assim fica tudo ainda mais difícil. O subfinanciamento crônico da saúde pública poderia se tornar desfinanciamento do governo federal. Estados e principalmente municípios teriam que fazer das tripas coração para impedir o caos completo na saúde e possivelmente não conseguiriam evitar a deterioração radical dos serviços de saúde.

IHU On-Line – O senador Marcio Bittar (MDB-AC), relator da PEC do Pacto Federativo, já declarou que além de educação e saúde, estuda incluir o setor de segurança pública no pool de áreas que devem ter o piso mínimo para investimentos extinto. Quais podem ser as consequências de medidas como essas?

Ligia Bahia – São proposições diretamente derivadas de acepções completamente errôneas sobre as relações entre economia e questões sociais. Nós nunca defendemos engessamento do orçamento, os pisos foram adotados como estratégias de resistência às políticas sucessivas de ajustes fiscais e subfinanciamento do SUS. Os pisos se confundem com tetos exatamente porque os governos não priorizam políticas essenciais para a efetivação de direitos básicos de cidadania. O núcleo do problema nunca foi a “reserva” de recursos e sim a negligência com as políticas sociais.

IHU On-Line – Em mais um verão, o Brasil vê aumentar a incidência de doenças causadas por vetores, como a Dengue. O que esses dados revelam acerca dos investimentos estatais em saúde pública e na própria concepção do SUS nesse último ano?

Ligia Bahia – As arboviroses, entre as quais a Dengue, se tornaram endêmicas no Brasil. O país realizou investimentos na produção de vacinas e mantém esforços em relação à vigilância epidemiológica. Entretanto essas iniciativas sempre foram insuficientes e uma parte delas está sendo descontinuada. A concepção sobre o SUS apenas como prestador de serviços médicos e não como sistema que pesquisa e produz insumos prevalece e agora está ainda mais explícita. A acepção sobre as relações entre saúde e desenvolvimento econômico e social está soterrada sob o cimento da indiferença de autoridades governamentais pelo sofrimento da população com doenças que poderiam ser evitadas.

IHU On-Line – Como avalia atualmente a estrutura e ações de saúde preventiva no Brasil, desde a ação de agentes comunitários de saúde, a unidades de atenção básica?

Ligia Bahia – Estamos certamente diante de uma retração do SUS e de sua possibilidade de resolver problemas de saúde. A prevenção no sentido literal sempre foi frágil e está evidente, desde os casos de febre amarela, que temos problemas muito graves que incluem desde qualidade e transporte adequado de vacinas até a oferta de unidades de saúde abertas limpas e dotadas de profissionais de saúde e medicamentos.

IHU On-Line – Em agosto de 2019, o governo federal encerrou o programa Mais Médicos e abriu, em substituição, o Médicos pelo Brasil. Pouco mais de meio ano depois, como avalia essa mudança?

Ligia Bahia – O programa Mais Médicos foi um marco no Brasil, demonstrou ser possível alocar profissionais de saúde em lugares distantes e inóspitos. O Ministro Mandetta não suprimiu a política de interiorização de médicos. Considero que a continuidade deva ser comemorada como uma conquista da saúde pública. É importante dar seguimento a uma política que busca uma distribuição mais homogênea de recursos. Certamente houve perdas de traços importantes do programa mais médicos relacionados com a presença dos profissionais cubanos: disposição para trabalhar sob condições muito precárias em áreas remotas. Mas houve também o reconhecimento, ainda que não explícito, de seus acertos. Os desafios agora estão explicitados: 1) a alternativa carreira de Estado para médicos é de difícil viabilização, requer formulação e decisão política que são incompatíveis com o sentido e direção da reforma administrativa pretendida pela área econômica; 2) os postos de trabalho em áreas remotas e perigosas não são preenchidos mediante editais de convocação, será necessário encontrar alternativas estruturais e sustentáveis para manter a oferta de serviços nessas localidades.

IHU On-Line – O ano de 2019 encerrou com um verdadeiro caos na saúde pública do Rio de Janeiro. O que esse caso revela acerca da política de saúde pública no Brasil? Como conceber saídas para casos como esse do Rio de Janeiro?

Ligia Bahia – O Rio pode estar na “vanguarda” do caos. A queda de arrecadação, repasse irregular e insuficiente de recursos conjugada com a ausência de liderança de autoridades sanitárias e presença de milícias em unidades de saúde plasmam uma crise de enormes proporções. As saídas requerem reconhecimento dos problemas, transparência e participação e mobilização social para a definição de prioridades e monitoramento permanente da execução de políticas.

IHU On-Line – Quais os desafios para o fortalecimento e manutenção do SUS agora em 2020? E, além da PEC do Pacto Federativo, qual a maior ameaça?

Ligia Bahia – O SUS está de pé, ficou de pé. As principais ameaças são a expansão do setor privado. Os lobbies mais ativos na saúde concentram-se em torno da desregulamentação das coberturas dos planos privados. Empresas privadas querem vender mais planos. Do lado governamental, a principal ameaça é o desestímulo completo das carreiras públicas (um ministro que considera que servidores púbicos são parasitas). Não existirá um SUS abrangente e de qualidade sem servidores públicos muito bem formados, sem uma burocracia moderna e eficiente. A PEC do pacto federativo, a extinção dos mínimos orçamentários são ameaças que poderão ser revertidas por governos que priorizem a saúde, a acepção do SUS como política negativa, fracassada, ultrapassada causa danos irreversíveis.

IHU On-Line – Como o Brasil encerra a década de 2010 na área da saúde? E o que se projeta para a próxima década?

Ligia Bahia – A década de 2010 se encerra com o SUS em banho-maria e expansão do setor privado, a de 2020 possivelmente consolidará a tendência de enfraquecimento da rede pública. No entanto essas tendências geram crises porque a privatização está longe de ser uma alternativa efetiva para organizar o sistema de saúde em um país como o Brasil. Iniciamos a década com uma baita crise na saúde em várias cidades brasileiras.

IHU On-Line – Este ano tem eleições. Como a pauta da saúde deve emergir nesse contexto?

Ligia Bahia – Nas eleições municipais a saúde tem presença garantida nas plataformas eleitorais. Possivelmente haverá novidades porque as velhas soluções mágicas como os corujões, mutirões, atendimento móvel, nada disso deu certo, mostraram-se insuficientes. Temos que contribuir para a elaboração de programas e debates eleitorais que vinculem os temas sociais aos econômicos, buscando impedir que as promessas de campanha sejam meramente retóricas.

 

Leia mais


IHU On-Line: Repensar o Brasil é uma tarefa fundamental, diz Antonio Risério

A tarefa mais urgente para nós, brasileiros, diante de uma das maiores crises políticas que o país enfrenta, é “repensar o Brasil”, diz o antropólogo Antonio Risério à IHU On-Line

Por: João Vitor Santos, do IHU On-Line

Isso significa, explica, “rever com serenidade e lucidez — com conhecimento, acima de tudo — a experiência nacional brasileira. Esta é uma tarefa básica, fundamental. Temos de nos conhecer, em vez de ficar repetindo clichês esquerdistas falsificadores de nossa trajetória no tempo”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Risério denuncia a substituição de uma historiografia nacional baseada em mitos e mistificações, que tentou definir uma “identidade nacional” a partir da colonização portuguesa, por uma nova historiografia encampada pela esquerda brasileira nos anos 1970, em que “o colonizador português era o mal — e o bem se encarnara, aqui, em pretos e índios”. Segundo ele, em sua revisão historiográfica, a esquerda brasileira “se empenhou mal” e “não tratou de realmente encarar, em toda a sua complexidade, a experiência nacional”. Ao contrário, afirma, ela “optou pelo maniqueísmo, pela visão do Brasil como um filme de bandido e mocinho. Então, repetiu a velha história oficial, só que invertendo tudo. Passamos a ter então, basicamente, as figuras do negro sempre luminosamente libertário, do índio ecofeliz e do português genocida”, afirma.

Nesta entrevista, o antropólogo também reflete sobre a crise política brasileira, que tem origem nos “partidocratas”, e assinala que ela é fortalecida pela “polarização extremista entre o autoritarismo de esquerda e o autoritarismo de direita, ambos populistas”. Na avaliação dele, a crise da representatividade política, denunciada pela sociedade nas manifestações de Junho de 2013, já se manifestava na reabertura democrática, porque “de Sarney aos governos petistas, a sociedade foi percebendo gradualmente que as eleições iam se convertendo num rito vazio e que ela, sociedade, não contava para nada na hora da formulação e execução das políticas públicas nacionais”.

Confira a entrevista:

IHU On-Line - O Brasil de hoje, especialmente o campo da esquerda, compreendeu as transformações que ocorreram desde 2013? Quais os desafios para apreender essas transformações em suas complexidades?
Antonio Risério - O problema inicial é que os políticos profissionais, partidocratas, parecem não entender ou não querer entender o próprio 2013. Tivemos uma coisa fundamental ali, que foi a exposição pública da crise da representação partidocrata. Na verdade, de Sarney aos governos petistas, a sociedade foi percebendo gradualmente que as eleições iam se convertendo num rito vazio e que ela, sociedade, não contava para nada na hora da formulação e execução das políticas públicas nacionais. Ou seja, o próprio sistema político se encarregou de corroer a representatividade e fragilizar a democracia. Isso foi escancarado na reeleição de Dilma Rousseff, que foi eleita dizendo uma coisa e, assim que recebeu o resultado das urnas, passou a fazer outra. A população viu então com clareza que o jogo era cínico, manipulador.
2013, ao colocar em questão o sistema político, com a sociedade afirmando que os partidos não a representavam, abriu a possibilidade de virar a página e de que a gente entrasse no capítulo inaugural de uma nova cultura política e um novo sistema de poder. Vale dizer, no capítulo inaugural da construção de uma nova democracia brasileira, coisa que não interessou a Fernando Henrique e a Lula, que tiveram a oportunidade histórica de dar o pontapé inicial nessa partida e não o fizeram. Isso foi sufocado por dois processos, que vieram com a irrupção da Lava Jato e as manobras para depor Dilma, uma trapalhona quase tão confusa quanto Bolsonaro. Com as atenções voltadas para os escândalos da corrupção e do “impeachment”, essa grande discussão política foi adiada.

Na campanha presidencial de 2014, todos os candidatos evitaram 2013. Mas parece difícil rasurar do mapa o que aflorou ali. Na época, Marco Aurélio Nogueira disse algo mais ou menos assim: estava em marcha uma espécie de revolução sem revolução, com a sociedade ultrapassando o sistema político e pondo em xeque o partidocratismo. O que ficou claro ali era que as pessoas não se contentariam com uma reforma política pontual, com cláusulas de barreira, listas fechadas, tipos de voto. O que esteve na origem das movimentações de 2013 foi coisa distinta. O que se defendeu, de modo breve, mas nem por isso irrelevante, foi a necessidade de configuração de uma nova cultura política brasileira. Uma política de militância cidadã, com a cidadania se constituindo como tendência à autorrepresentação, sem tomar conhecimento do partidocratismo profissional e seus expedientes surrados, apodrecidos. A mudança não aconteceu. Mas o que há é uma reivindicação adormecida, não extinta. Que, mais cedo ou mais tarde, promete voltar acesa ao centro do palco.

IHU On-Line - O senhor tem defendido que é necessário repensar a sociedade e reinventar a nação, mas por onde começar? O que é a sociedade brasileira hoje? Que conceito de nação deve ser forjado?
Antonio Risério - O que tenho dito é o seguinte. Nós tínhamos uma velha história oficial do país, gerada no tempo do império, com [Francisco Adolfo de] Varnhagen e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que respondia a demandas surgidas com a conquista da autonomia nacional em 1822. Essa história forjou um passado brasileiro, quase o criou, mas produzindo mitos e mistificações. Cerca de um século depois, a esquerda brasileira se empenhou numa revisão dessa história. Mas se empenhou mal. Não tratou de realmente encarar, em toda a sua complexidade, a experiência nacional brasileira. Não: optou pelo maniqueísmo, pela visão do Brasil como um filme de bandido e mocinho. Então, repetiu a velha história oficial, só que invertendo tudo. Passamos a ter então, basicamente, as figuras do negro sempre luminosamente libertário, do índio ecofeliz e do português genocida.

E isso, gravando-se nos parâmetros curriculares do ensino, no governo de Fernando Henrique, se converteu em práxis escolar, em bombardeio pedagógico, em ideologia historiográfica dominante. Configurou-se, assim, como a nova história oficial do Brasil. Acontece que essa nova história apenas substituiu mentiras antigas por mentiras novas. O negro luminosamente libertário, assim como o índio ecofeliz, são duas empulhações. Havia escravidão — e escravidão pesada, cruel — tanto na África quanto entre nossos índios. Os tupis eram escravistas. A sociedade tupinambá era uma máquina de guerra implacável, destruindo outras sociedades indígenas, tomando-lhes as terras etc. E foi deles que herdamos a agricultura de coivara, as queimadas destruindo o campo.

Palmares contava com escravos — e palmarinos sequestravam mulheres (negras ou brancas), sem perguntar se eram esposas ou mães, para servi-los em termos agrícolas e sexuais. Quanto ao português, não temos de celebrá-lo sem senso crítico, mas também não devemos tratá-lo apenas como um eterno e sistemático malfeitor, porque também isso é mentira.

Qualquer pessoa séria, que de fato conheça a história de nosso povo, sabe disso. Mas o que vingou, graças à ignorância generalizada, foi o panfletarismo rasteiro da nova história oficial. É por isso que temos hoje de repensar o Brasil, de rever com serenidade e lucidez — com conhecimento, acima de tudo — a experiência nacional brasileira. Esta é uma tarefa básica, fundamental. Temos de nos conhecer, em vez de ficar repetindo clichês esquerdistas falsificadores de nossa trajetória no tempo.

IHU On-Line - Depois de 2013, foi corrente a afirmação de que o país vivia uma crise política. Hoje, em 2019, essa crise foi superada ou apenas abafada? Por quê? E quais devem ser as consequências num curto e médio prazo?
Antonio Risério - De certa forma, respondi a isso antes. Penso que os dois temas mais importantes de 2013 continuam vivos: a crise representacional do partidocratismo e a reivindicação relativa ao direito à cidade, que então se expressou numa luta contra o aumento do preço da passagem no sistema público de transporte. As pessoas geralmente nem sabem, mas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, cerca de 38% da população brasileira andam a pé por não terem dinheiro para embarcar em nenhum veículo. Tem muito mais gente andando a pé do que em automóvel particular. Afora isso, todas as reclamações que emergiram ali ainda não tiveram resposta. Podemos continuar exigindo educação e saúde no “padrão FIFA”, como então se dizia. Nem Dilma, nem Temer, nem o aluado Bolsonaro alteraram qualquer coisa nesse quadro. Mas podemos acompanhar a incompreensão desde o início.

Exemplo vexaminoso disso foi o pronunciamento nacional de Dilma na noite de 21 de junho de 2013, desenhado e orientado da perspectiva do “marketing”. Acuada pelas manifestações, Dilma apelou para o seu marqueteiro, que alinhavou para ela uma fala a meio caminho entre o clichê e o disparate. É suficiente lembrar que ela acenou com coisas como um “plano nacional de mobilidade urbana” (tinha prometido isso na campanha eleitoral de 2010), com o qual nunca se preocupara nem viria a se preocupar. E prometeu uma reforma política estrita, totalmente dentro do padrão partidocrata, tema que as manifestações nem afloraram. Na boa observação de Eugênio Bucci, o pronunciamento “dava respostas contundentes a perguntas que ninguém tinha feito”. E ainda: “O que se deu naquele comunicado foi um dos mais desastrados lances de marketing da história recente do país”. Mas o sistema partidocrata preferiu mesmo fechar os olhos, fazer ouvido de mercador, como se não tivesse sido colocado em questão.

Temer e seu guru Moreira Franco tocaram o barco como se o MDB fosse legítimo representante da sociedade brasileira.

O PSDB, tendo à frente a toupeira do Alckmin, o burguesinho mimado do Aécio e um autodegradado Serra, ficou alheio a tudo (acho que só Fernando Henrique sacou o que estava rolando). E assim por diante. Tanto que, quando chegou a campanha presidencial de 2014, todos se comportaram como se 2013 não tivesse existido. E ele de fato ficou abafado pela polarização quase fratricida em torno do “impeachment”, que se acentuou com Bolsonaro. Interessa ao partidocratismo manter isso assim.

Nosso sistema político, nossos partidos e políticos profissionais, hoje, não têm o mínimo preparo para responder a um questionamento dessa natureza. Falar em crise do partidocratismo com Rodrigo Maia e quejandos é realmente falar grego. Mas a esquerda também não consegue ver nem ouvir isso. A primeira reação do PT, diante de 2013, como vimos num daqueles típicos ataques de sinceridade de Gilberto Carvalho, foi falar da “ingratidão” do povo, que recebeu tantos presentes do partido no governo e então, ingratamente, se rebelou.

Depois, o PT mudou o discurso. Passou a dizer que, sob Lula e Dilma, o Brasil tinha avançado tanto que passou a ficar mais exigente. Ou seja: 2013 passou a ser visto como um subproduto da boa governação petista, o que é o ridículo do ridículo. Só mais tarde o PT passou a execrar 2013 — o que é mais compreensível, porque aquelas movimentações não se moveram dentro da lógica binária do “nós x eles”, que orienta o pensamento petista. Mas também a Rede, Ciro Gomes etc., ninguém analisou o acontecido, nem tirou qualquer lição dali. A Rede, na verdade, parece querer flutuar acima das conjunturas, fazendo um discurso absolutamente genérico e universal, de modo que tende a se dissolver em pura ou mera fantasia filosófica.

Para a extrema direita e Bolsonaro, a coisa é mais simples: a crise do partidocratismo é resolvida pela implantação de uma nova ditadura no país. Mas nós temos a obrigação de pensar em outra direção: a crise do partidocratismo é uma exigência de aprofundamento da democracia, de superação da subdemocracia brasileira.

IHU On-Line - O que leva ao desvirtuamento do sistema político brasileiro? Como nasce a “partidocracia”?
Antonio Risério - Não é uma questão somente brasileira. Na verdade, passei a usar a expressão “partidocratismo” ali pelo final da década de 1970, depois que a li num texto ou num discurso de Pietro Ingrao, que foi dirigente do Partido Comunista Italiano e presidente da Câmara dos Deputados da Itália naquela mesma década de 1970. Não tenho certeza agora, mas acho que Ingrao partia de Gramsci, que falava do perigo de substituir o movimento real da vida social pelo movimento interno da vida partidária. E é isto o que acontece. E tem se acentuado no mundo inteiro. O slogam “não nos representam” apareceu em manifestações espanholas, por exemplo.

E foi um grito dos “indignados” no mundo inteiro, ali pela época da chamada primavera árabe. O militante partidário passa a achar que o partido é o centro do mundo, na melhor das hipóteses — e dá as costas à sociedade. Esta cegueira já recebeu até tratamento poético, louvada num texto — esteticamente, bom, mas, em termos políticos e intelectuais, completamente idiota — como “Wir Sind Sie” de Bertolt Brecht. O que podemos dizer é que vivemos uma crise política sem precedentes, no sentido de que ela atinge não um partido ou outro, mas coloca em xeque todo o sistema político estabelecido. Isso ficou arrefecido no Brasil, em função da polarização extremista entre o autoritarismo de esquerda e o autoritarismo de direita, ambos populistas. Mas não se pode ter dúvida de que vai voltar com tudo. É uma coisa que está latente, rolando como lava subterrânea de vulcão.

Analisando a situação brasileira, Fernando Henrique Cardoso está certíssimo quando diz que nossos partidos políticos se renderam à lógica do corporativismo: não representam os interesses da sociedade, mas apenas os seus próprios interesses. Basta dizer que, hoje, parte significativa do governo petista da Bahia fez aliança com Bolsonaro. Diante disso, a queixa não é apenas relativa à baixa qualidade de nossa atual representação política, que de fato é uma coisa entristecedora. É uma queixa mais fundamental, mais essencial, como recusa do “establishment” político-partidário, recusa do déficit de democracia que sentimos no país. Na verdade, bem vistas as coisas, nós não temos partidos políticos, temos partidos eleitorais — e só. Um sistema desses está historicamente condenado.

IHU On-Line - Quais são as maiores fragilidades dos partidos políticos de esquerda e centro-esquerda atualmente? Que fatores parecem os levar a um descolamento da realidade social, que culmina na falta de aderência da população aos seus programas?
Antonio Risério - A esquerda não está procurando saída alguma para a crise do partidocratismo, nem para a crise nacional em globo. O PT acha que encarna o interesse nacional e popular e, quem discorda disso, é automaticamente classificado como inimigo do povo e da nação. Ora, este é o caminho mais curto que existe para evitar a praga do pensamento. E este é o principal problema. A esquerda e a centro-esquerda brasileiras, hoje, parecem querer tudo, menos pensar. O pensamento — principalmente, o pensamento livre, nada dogmático, nada subserviente a dogmas e princípios apriorísticos — virou uma espécie de maldição e é estigmatizado. De outra parte, a esquerda se acha mais infalível do que o papa. Sob este aspecto, José Dirceu, Lula e Ciro, entre outros, estão muito mais próximos de Stálin do que do papa Francisco.

Falamos sempre que o PT nunca reconhece os erros, que dirá os crimes que cometeu! E é um partido que cometeu crimes gravíssimos contra a democracia e contra o povo brasileiro, daí que tenha sido eloquentemente rejeitado nas eleições de 2018. Mas também nunca ouvi uma autocrítica em profundidade do PSDB, cuja inflexão à direita começou em 2002, com a candidatura presidencial de Serra, acentuou-se com o “picolé de chuchu” e já ficou à vontade no campo da direita com Aécio Neves, que parece não ter entendido nem uma meia liçãozinha do avô Tancredo.

A Rede, por sua vez, paira acima dos mortais. Sugere uma espécie de nirvana dos ambientalistas, falando sobre coisas reais, mas numa linguagem que ninguém entende. Nenhum sinal de autocrítica, claro. Ciro, menos ainda. É uma pessoa interessante, mas um político fadado ao fracasso. Por fim, temos o narcisismo. A desconexão com a realidade, com as pessoas superestimando seu lugar, sua força etc., em detrimento de uma leitura clara do real histórico. Exemplifico. O ex-deputado Jean Wyllys (que hoje quer definir como “exílio” uma temporada voluntária que está passando no exterior, sempre caprichando no papel de vítima) disse que foi a homofobia brasileira que elegeu Bolsonaro. É ridículo. Presumo que esta homofobia que elegeu Bolsonaro seja a mesma homofobia que deu a Jean Wyllys prêmio milionário no “reality show” da Rede Globo e, ainda por cima, três mandatos de deputado federal. Aparece depois uma antropóloga para dizer que Bolsonaro foi eleito em consequência do avanço do feminismo. Não dá para acreditar. Falo disso em meu novo livro, “Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária”, que acaba de ser lançado pela editora Topbooks. Digo que, diante dessa dupla lunática, só falta aparecer um militante racialista neonegro para dizer que foi o racismo brasileiro que elegeu Bolsonaro — e um militante ambientalista para contestá-lo, argumentando que quem elegeu o porra-louca miliciano foram nossas conquistas ecológicas recentes...

Nessa baboseira, são todos “lacanianos”: o real não existe. É como se a eleição de Bolsonaro nada tivesse a ver com a recessão econômica, o desemprego, a crise na segurança pública etc. etc. Foi por esse caminho que a esquerda brasileira, como bem disse Giuseppe Cocco, se converteu em denunciante do óbvio. Hoje, tudo o que ela faz é repetir “ad nauseam” que Bolsonaro é Bolsonaro... Chegamos ao grau absoluto da redundância política. E não vamos sair disso se não rediscutirmos impiedosamente as idiotices que fizemos para alcançar tão nítido e espetacular fracasso.

IHU On-Line - De outro lado, os partidos de direita e extrema direita parecem ocupar os espaços deixados pela esquerda e centro-esquerda. Como isso se dá?
Antonio Risério - Porque hoje, como diz o povão, é cara de um, cu de outro. Não há nada mais parecido com Lula do que Bolsonaro. E vice-versa. Não nos esqueçamos de que Lula e o PT pensaram seriamente num “terceiro mandato”, na linha de Chávez e Evo Morales. O PT tolera a democracia, na medida em que o partido possa controlar o aparelho estatal e, a partir daí, fazer o que bem quiser com a sociedade, na base de um “populismo tecnocrático”, como diz Werneck Vianna, vale dizer, um populismo palaciano, populismo de gabinete, sem massas. E não é verdade que Dilma tenha lutado pela democracia no Brasil entre o AI-5 e os tempos de Médici. Ela jamais defendeu a democracia no Brasil. Conheço sua história política. Dilma criou uma fantasia deliriosa para consumo próprio, bem distante da realidade da esquerda militarista em que se enrascou. Porque ela veio jovem para a esfera de influência da organização “marxista-leninista” Política Operária (onde ficou um semestre na célula da Faculdade de Economia) — a Polop, que considerava imbecilidade essa conversa de “democracia”. Livro de cabeceira dos polopianos era Estado e Revolução, de Lênin, pregação acesa a favor da destruição do Estado representativo-parlamentar.

Para o Brasil, o programa era unívoco: derrubar a “ditadura dos patrões” para, em seu lugar, implantar a “ditadura do proletariado”. A democracia era olhada como manipulação alienante. Deveria ser combatida em nome da revolução socialista.

E Dilma, embora militante sem qualquer relevo (naquele arremedo de luta armada, nunca foi além da “intendência”), rezava por essa cartilha. Chegou à Polop no momento do racha da organização, optando então pela facção militarista, que se confinou no Colina – Comando de Libertação Nacional. Adiante, duas vertentes da esquerda armada, o Colina e a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), se fundiram na VAR (Vanguarda Armada Revolucionária)-Palmares. E em todos esses momentos e organizações, “democracia” era palavrão. Mistificação execrável para sustentar a dominação da classe burguesa. O projeto continuava o mesmo: substituir a ditadura militar da burguesia pela ditadura militar do proletariado.

Agora, por que Dilma esconde esses fatos e se dispõe a mentir para o conjunto da sociedade brasileira? Simples: porque hoje fica muito bem na foto quem diz que enfrentou heroicamente a ditadura em nome do princípio maior da democracia. Mas fica mal quem admite que, como os militares, também achava que a solução estava numa ditadura.

E Dilma prefere a morte a ficar mal na foto. O problema é que o autoritarismo populista de esquerda levou o Brasil à pior crise de sua história e o autoritarismo populista de direita prometeu a salvação nacional. Bem, se o autoritarismo de esquerda deixou a desejar, nada mais natural que a população procurar um novo abrigo no autoritarismo de direita. É isso.

IHU On-Line - No caso brasileiro, a vitória de Jair Bolsonaro é uma vitória dos partidos de direita e extrema direita ou apenas o fracasso da esquerda? Por quê?
Antonio Risério - Ambas as coisas. A vitória de uma se fez em cima do fracasso da outra. No segundo semestre de 2013, já víamos que o trem começava a descarrilhar. Era fácil perceber o desastre a caminho: o arrocho salarial já tinha começado, o desemprego crescia, a inflação era absurdamente controlada com preços artificiais, a classe média afundava, combinávamos atraso técnico, crescimento insignificante e inflação reprimida — mas com políticos e marqueteiros sobrepondo um mundo falso, ideológica e eletronicamente construído, a uma realidade que se desenhava em perspectiva catastrófica.

E essa gigantesca construção falaciosa seduziu e hipnotizou a maioria da população brasileira, produzindo a reeleição de Dilma, o quarto mandato do PT. Mas é claro que tal fantasia, totalmente descolada da realidade, não teria como se sustentar. No entanto, nas eleições, a grande mentira triunfou — e deu no que deu. A realidade aparecia clara e escandalosamente na frente de nossas caras.

A direita e a extrema direita navegaram em cima disso. Somaram, a um discurso de redenção econômica nacionalista e restabelecimento de um clima de segurança pública, todo um conservadorismo represado. Um conservadorismo que, aliás, o grande eleitorado petista não tinha deixado para trás.

IHU On-Line - O que a crise do presidente Jair Bolsonaro com o seu partido, o PSL — que surgiu e cresceu estrondosamente na última eleição —, revela sobre o sistema político brasileiro?
Antonio Risério - O que já dissemos: estas coisas estão caindo de podres... Vou ter de repetir o que disse: não temos partidos políticos, mas partidos eleitorais. Além disso, nossos partidos são agências e cabides de emprego. Espaços por excelência para o livre comércio de falcatruas. O que o PSDB tem a ver hoje com qualquer resquício do projeto de construção de uma social-democracia brasileira? Nada.

O PT cresceu combatendo agressivamente a confusão ou simbiose entre o público e o privado que reinava soberanamente na política nacional. Chegou ao poder e o que aconteceu? O mensalão e o petrolão, organizados pelo PT em nome do interesse nacional-popular, se revelaram os exemplos extremos e mais escandalosos da promiscuidade entre o público e o privado. Ética? Nem pensar. O suposto partido da ética abandonou esta senhora antes mesmo do resultado das eleições de 2002. Bolsonaro, por sua vez, já nasceu na escola da podridão política. Do troca-troca do baixo clero legislativo, que é corrupto até à medula. Não tem um pingo da dignidade nacional que ainda é possível encontrar em nossas forças armadas.

Não é só que ele seja mentalmente raquítico. Certo que é um ignorantão, incapaz de distinguir entre país, Estado e nação, por exemplo. Mas é também um padroeiro corrupto do clientelismo, de modo até escancarado. Se o “seu” partido não se mostra tão “seu” assim, irá à busca de outro. E isso vai a um ponto tão escandaloso que não duvido que tramas e tramoias se encarreguem um dia de derrubá-lo.

IHU On-Line - O que é e como se dá o que o senhor chama de “processo de avacalhação da História do Brasil”?
Antonio Risério - O binarismo e o maniqueísmo são coisas perfeitas para quem não gosta de pensar. E nossa esquerda foi criada nisso, no cultivo do maniqueísmo, identificando o opressor (a burguesia, a classe dominante) ao mal e o oprimido (o proletariado) ao bem. E foi assim que partiu para revirar pelo avesso a historiografia tradicional do país.

Tudo começa com a formação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, durante um século o nosso único centro de estudos históricos. A missão do Instituto, sob a liderança de Varnhagen, um protegido de Pedro II, era dizer quem nós éramos. Em termos geográficos, balizando o espaço nacional, situando rios e cidades etc. E em termos históricos, definindo um elenco de feitos e personalidades memoráveis, casos exemplares que definiriam a identidade nacional.

Foi assim que se forjou a primeira história oficial do Brasil, celebrando a colonização portuguesa dos trópicos. E isso vigorou por um século, ao menos. Até que, na década de 1970, historiadores (e jornalistas) de esquerda resolveram virar a mesa. Mas, em vez de realmente reexaminar a experiência nacional brasileira, eles optaram pela pura e simples inversão da velha história e pela instauração de um padrão fundado no maniqueísmo: o colonizador português era o mal — e o bem se encarnara, aqui, em pretos e índios.

Assim, bem nos termos da velha retórica marxista, a classe dominante-dirigente foi acusada de tudo e as classes ou os povos dominados passaram a ser celebrados irrestritamente. Não era preciso pensar: bastava denunciar o mal e celebrar o bem. Daí, todas as conquistas nacionais passaram a ser objeto de negação, de ataque e mesmo de deboche.

Nada era relativizável, nada era complexo. Então, da década de 1970 para cá, a experiência nacional brasileira foi submetida a um processo de avacalhação sistemática, configurando-se como a ideologia historiográfica hoje dominante, a nova história oficial do país. Mas não é só. Dividiram o país em um “nós” e um “eles”, ambos míticos. “Nós” teríamos sofrido tudo, “eles” teriam sido os culpados de tudo. Então, todos passaram a dizer: “eles” mataram índios, “eles” humilharam mulheres, “eles” depredaram o meio ambiente etc. Ou seja: “nós” não temos culpa alguma no cartório. Isso é terrível: a gente passa a tratar as coisas na terceira pessoa. Nos demitimos da responsabilidade diante de tudo que fizemos, como se tal demissão fosse possível. Se realmente quisermos levar o Brasil a sério, nos interpretando em profunda profundidade, temos de aprender a dizer nós.

IHU On-Line - Quais os maiores equívocos da “contra-história do Brasil”, tecida desde aqueles que reagem à chamada ‘História tradicional’? E como esse movimento vai “vitaminar” uma virada conservadora?
Antonio Risério - Essa contra-história, que é a nova história oficial brasileira, nasce do casamento da ignorância histórica com o masoquismo nacional, no espaço de uma sociedade bipolar, que vai da euforia à depressão em questão de minutos. Entre seus grandes equívocos, está o de celebrar irrestritamente o experimento escravista de Palmares, por exemplo, ou o de falsificar a história com conversas do tipo “genocídio dos índios”, quando a política lusitana sempre foi a de assimilar os índios, transformá-los em súditos, em brasileiros, ao contrário do que ocorreu com a colonização norte-americana, que via os grupos indígenas como nações inimigas a serem exterminadas.

É possível criticar em profundidade a relação da colonização portuguesa com os índios, mas não acionar o clichê do genocídio, porque não houve isso. Genocídio é guerra de limpeza étnica, projeto de banir um povo da face da terra. Mas como dizer isso, com Thomé de Sousa e Mem de Sá distribuindo terras entre os índios aliados? Como dizer isso com o marquês de Pombal premiando portugueses que se casassem com índias? Não faz sentido. Quem conquistou e colonizou o atual nordeste brasileiro foi a Casa da Torre — e a Casa da Torre era luso-indígena desde sua origem: Garcia d’Ávila casou com uma índia canibal e daí vieram seus filhos e descendentes que avançaram da Bahia ao Maranhão...

Mas a postura historiográfica da esquerda não foi a de analisar, mas a de esculhambar tudo, inclusive o movimento abolicionista e aquela que é ainda hoje a nossa maior revolução social, acontecida em 1888. É como se só os reacionários pudessem se orgulhar de nossa experiência como povo e nação.

Marco Aurélio Nogueira viu bem, comentando meu artigo no Estadão, que provocou também esta nossa conversa aqui. Ele escreveu no “facebook”, dizendo o seguinte: “O texto é precioso pelo estilo, pelo conteúdo e especialmente pela coragem de dizer o que precisa ser incluído em uma agenda estratégica de pesquisa, coisa que ninguém leva muito a sério. Risério denuncia a ‘avacalhação’ a que está sendo submetida a história brasileira, com reflexos dramáticos na cultura, na política, na vida cotidiana. Os efeitos disso têm gerado uma espécie de bloqueio mental dos democratas, que não conseguem nem sequer defender o que seria seu legado. O país vai ficando assim largado pela estrada, para que o primeiro aventureiro dele lance mão, como ocorreu em 2018”. Não por acaso a direita se veste de verde e amarelo. E só ela pode assumir qualquer grandeza que porventura o Brasil tiver? Temos, pelo menos, duas: em meio milênio de história, construímos um povo — e uma nação.

IHU On-Line - Podemos inserir essa “contra-história do Brasil” no bojo dos movimentos globais da historiografia que tentam mudar o centro gravitacional para o que chamam de história dos vencidos? Quais os limites dessa história dos vencidos?
Antonio Risério - Li a matriz francesa e as filiais brasileiras. É a historiografia populista, de que fala Marshall Sahlins em Ilhas de História. Historiografia populista encarnada na (e defendida pela) “nouvelle histoire” francesa, com Jacques Le Goff e seus discípulos, numa leitura empobrecedora de Marc Bloch e Braudel, que se vai desdobrar futuramente, não importa se de forma imprevisível, nas mais variadas ginásticas do identitarismo, em discursos veementes e falsificadores sobre mulheres, pretos, veados, índios etc.

Toda essa gente é muito simpática, mas é incompetente — como diria Caetano Veloso. Na prática escritural-analítica, se comporta como se o porteiro do seu prédio fosse tão ou mais importante, para a história nacional, quanto ou do que Pedro II, Joaquim Nabuco, Getúlio Vargas ou João Goulart. É claro que é importante conhecer a mentalidade do porteiro do seu prédio. Mas não foi ele quem decidiu implantar a Universidade de Brasília, nem tentar levar à prática as chamadas “reformas de base”, que foram o modelo do reformismo social brasileiro. Não foi o porteiro do seu prédio quem implantou a CLT ou decidiu que o Brasil tinha de se engajar na II Guerra Mundial. É preciso aprender a fazer essas distinções elementares.

Além disso, há uma pergunta: quem são os vencidos? Se alguém me diz que são os negros, por exemplo, respondo que, na história cultural do Brasil, na dimensão simbólica de nossa vida social, o candomblé foi vitorioso. Então, tudo isso é muito arbitrário, ideologizado demais. A história do futebol brasileiro é uma história vitoriosa de nosso povo.

Não dá para compartimentar tudo. É preciso examinar caso a caso, repito. No caso da adoção da “nouvelle histoire”, de resto, é muito mais rico e enriquecedor alimentar uma compreensão antropológica da história brasileira. Ter uma visão histórico-antropológica do país, analisando cada período, cada conjuntura, em termos diacrônicos e no horizonte interno de suas significações. O problema é que quase todo mundo adora esquematismos, binarismos etc. A complexidade afugenta. Jornalistas a detestam, mas o mundo acadêmico também.

IHU On-Line - Como fazer a crítica dessa perspectiva da contra-história do Brasil, sem rasgar e demonizar todo um passado, mas também reconhecendo passagens abomináveis de nossa história?
Antonio Risério - Seguindo o ensinamento bíblico — separando o joio do trigo. Para dar um exemplo, você não pode celebrar os malês e condenar o 13 de Maio. Por um motivo simples: os malês eram escravistas e o 13 de Maio foi o dia da oficialização do fim da escravidão no país.

Outra estupidez é condenar o 13 de Maio, que tentou realizar um grande avanço democrático, celebrando Zumbi dos Palmares, líder de uma liga escravista. Aliás, as leituras políticas do mito de Zumbi variam muito. Na época do Estado Novo, a Frente Negra Brasileira se derramava em elogios ao nazismo e tratava Zumbi — vejam só — como o führer de ébano. Dessa perspectiva negra, ele seria uma espécie de Hitler quilombola. Na verdade, um quilombo como Cidade Maravilha foi muito mais importante do que Palmares, sob todos os pontos de vista. E aqui podemos tocar numa questão histórica da maior relevância. Os negros que fizeram quilombos, levantes etc., lutavam contra a sua escravização, em particular, não contra a escravização em geral. Não só os palmarinos foram escravistas, os malês também. Em 1835, o projeto dos malês era fuzilar os brancos, escravizar os mulatos e implantar um “estado islâmico” na Bahia. Muito democrático, não?

Mas, ainda aqui, no terreno da história negra no Brasil, temos uma coisa extraordinária, uma vitória cultural espetacular, com os nagôs criando seus terreiros de candomblé, impondo nacionalmente o respeito aos orixás, que hoje o Brasil inteiro celebra em Iemanjá, na virada do Ano Novo. Temos de condenar o sadismo senhorial reinante no sistema escravista e, ao mesmo tempo, saber reconhecer que negros, brancos e mulatos se deram as mãos, numa extraordinária coalizão democrática de classes e cores, para abolir a escravidão no país. E a luta não foi nada fácil, implicando movimentações de massa e operações armadas. Os pretos estiveram na linha de frente disso: dos cinco principais líderes abolicionistas, três eram pretos: Luiz Gama, André Rebouças e José do Patrocínio.

É estranho ver hoje os negros, adotando o padrão ideológico estabelecido pela Fundação Ford e a CIA (e aqui defendido por Florestan Fernandes), jogarem no lixo a bela história de seus ancestrais. Não: temos de rever tudo isso — e caso a caso. A preguiça, a ignorância e a trambicagem ideológica não podem nos impor a leitura que querem, fraudando e defraudando a experiência nacional brasileira. Além disso, podemos ser um pouco marxistas e um pouco freudianos, analisando a conjuntura em que esta contra-história ou nova história oficial do país nasceu. Ela foi gerada por uma esquerda nocauteada em 1968. Foi gerada por gente que direta ou indiretamente amargou a prisão, o exílio, a tortura, o fuzilamento.

Uma gente derrotada na década de 1970, sob a ditadura de Médici. E essa gente escreveu uma contra-história celebrando os derrotados e execrando todas as vitórias do povo brasileiro e da nação brasileira ao longo de seus 500 anos de história.

*Antonio Risério é poeta, ensaísta e escritor. Cursou mestrado em Sociologia com especialização em Antropologia na Universidade Federal da Bahia - UFBA. É autor de, entre outras obras, A casa no Brasil (Rio de Janeiro: Topbooks, 2019), A Cidade no Brasil (São Paulo: Editora 34, 2012), A utopia brasileira e os movimentos negros (São Paulo: Editora 34, 2007), Adorável comunista (Rio de Janeiro: Versal, 2002) e O poético e o político e outros escritos (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988).


IHU On-Line: Tensionar continuamente as relações sociais e institucionais. É estilo de governo inspirado no chavismo, diz Paulo Baía

Tomando os primeiros cinco meses do governo como métrica do que será o mandato de Bolsonaro, possivelmente nos próximos meses veremos “a continuidade do estilo Bolsonaro de governar, isto é, o de estar o tempo todo tensionando as relações sociais e institucionais”, diz Paulo Baía à IHU On-Line na entrevista a seguir, concedida por telefone.
Por: Patricia Fachin  
Entre as tensões, Baía comenta as relações entre os três poderes. “Estamos assistindo a uma expectativa do Legislativo e do Judiciário para que Bolsonaro mude sua postura, mas nessas manifestações ele afirmou que não vai modificá-la. Pelo contrário, ele quer dar densidade a essa postura e a manifestação mostrou que ele tem apoio popular para fazer isso”, diz.

Na avaliação de Baía, a “ligação direta” que o presidente tem com uma parcela da sociedade e a sua tentativa de subordinar os demais poderes ao Executivo fazem com que o bolsonarismo assemelhe-se ao chavismo. “Com a consolidação do chavismo e do governo Maduro, houve a consolidação de que o Poder Executivo é imperativo e subordina o Legislativo e o Judiciário a ele e, portanto, não há contrapeso. Isso foi o que aconteceu com o chavismo, e a minha preocupação é que a todo momento se acena para uma ideia de que o Executivo vai passar por cima do Legislativo e do Judiciário, sobretudo com a ideia de reeditar o decreto-lei”, adverte. Segundo ele, apesar de o lulismo ter criado “mecanismos de cooptação dos outros poderes, sobretudo do Legislativo, como mostra o Mensalão e o Petrolão, (...) em momento algum o discurso político do lulismo pregava a substituição do Legislativo ou do Judiciário por algo subordinado ao Executivo”.

As manifestações contra e pró-governo realizadas no mês passado também são sinais do jeito do presidente de governar e se manifestam na satisfação do governo com o resultado. “O governo ficou feliz com as manifestações, pois teve como resultado uma reunião com o presidente do STF [Dias Toffoli], uma reunião com os presidentes do Senado [Davi Alcolumbre] e da Câmara de Deputados [Rodrigo Maia], e acenou com um pacto político a favor das reformas”, avalia. À esquerda, lamenta, partidos e movimentos ainda estão “atônitos” com a eleição de Bolsonaro e não se vê “um movimento de autonomia e de protagonismo nos grupos de esquerda, inclusive na questão da educação. As manifestações do dia 15 de maio e as da semana passada são manifestações reativas à própria ideia do governo, tanto é que o governo manipula essa pauta dizendo que não há cortes, que há contingenciamento”, conclui.

Paulo Baía é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense – UFF e doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ. Atualmente é professor do Departamento de Sociologia da UFRJ.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em cinco meses de governo, já assistimos a três manifestações: duas contrárias ao contingenciamento na educação e outra a favor das reformas propostas pelo governo. Que leitura o senhor faz desses dois momentos e qual é o significado dessas manifestações?

Paulo Baía – O governo foi eleito com uma expectativa muito grande da população, dos eleitores que foram majoritários em outubro do ano passado, e tem se pautado dentro da expectativa dos eleitores que o elegeram, não de todos, mas de seu núcleo raiz, seu núcleo primário. O eleitor do Bolsonaro foi o eleitor de uma coligação que atraiu votos do Geraldo Alckmin, do [HenriqueMeirelles e do João Amoêdo, de todos aqueles antipetistas. Antes disso, entretanto, Bolsonaro tinha um núcleo raiz que o acompanhava desde 2014, quando ele lançou sua candidatura a presidente da República. Esse núcleo, que é fechado, é o que foi às manifestações do dia 26 [de maio], e é o que convocou inicialmente a manifestação em apoio ao governo e em apoio às teses que elegeram Bolsonaro.

Ao longo da convocação, as teses contra os Poderes Legislativo e Judiciário — teses que pediam o fim do Supremo Tribunal Federal – STF, o impeachment dos ministros do STF e eram contra o Parlamento — foram relativizadas com a entrada em cena de ministros de governo, sobretudo de Onyx Lorenzoni, que colocaram como pauta o apoio à Reforma da Previdência e à Medida Provisória sobre o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – Coaf no sentido de legitimar as manifestações, para que elas não tivessem o viés do início da convocação, que pedia o fechamento do STF e do Congresso Nacional. A tônica da manifestação passou a ser a favor da Reforma da Previdência e da Medida Provisória da Reforma Administrativa.

Estamos assistindo a uma expectativa do Legislativo e do Judiciário para que Bolsonaro mude sua postura, mas nessas manifestações ele afirmou que não vai modificá-la. Pelo contrário, ele quer dar densidade a essa postura e a manifestação mostrou que ele tem apoio popular para fazer isso. Por isso classifiquei as manifestações do dia 26 como a caracterização de um bolsonarismo semelhante ao chavismo, que enfrenta os Poderes Legislativo e Judiciário, e com caraterísticas semelhantes ao peronismo.

Não considero o bolsonarismo semelhante ao lulismo, mas é um movimento forte, de massa, com uma característica nacionalista. Porém, esse nacionalismo que eles pregam não se enquadra nos conceitos clássicos de nacionalismo, mas tem, sim, um forte viés nacionalista à medida que se apropriam dos símbolos nacionais, da bandeira e do hino nacional, das cores verde e amarela e associam isso a uma luta anticorrupção e ao resgate de um país imaginário.

IHU On-Line – O governo sai enfraquecido ou fortalecido das diferentes manifestações que ocorreram em maio?

Paulo Baía – O governo ficou feliz com as manifestações, pois teve como resultado uma reunião com o presidente do STF [Dias Toffoli], uma reunião com os presidentes do Senado [Davi Alcolumbre] e da Câmara de Deputados [Rodrigo Maia], e acenou com um pacto político a favor das reformas. Pacto esse ao qual sou muito crítico, principalmente em relação à participação do Judiciário, porque o presidente do STF não pode assinar um pacto político com o Executivo ou com o Legislativo, na medida em que o STF pode ser um espaço de questionamento das decisões tomadas pelo Executivo e pelo Legislativo. Mas o governo se apropriou das manifestações do dia 26 como um sinal de vitória das suas teses.

IHU On-Line - O senhor declarou recentemente que o governo tem uma forte base de apoio ligada diretamente à personalidade do presidente Bolsonaro. Isso significa que há uma adesão mais estrita ao bolsonarismo do que às ideias de direita? Há uma diferenciação entre esses dois campos?

Paulo Baía – O governo Bolsonaro é uma ampla coligação de conservadores e da direita com os liberais. A manifestação mostrou o núcleo duro do governo; a pauta liberal foi periférica e é exatamente a pauta que o governo buscou sustentar para não ser ilegítimo. Assim, uma manifestação em favor da Reforma da Previdência e da Reforma Administrativa legitima uma pauta de ser contra os Poderes Legislativo e Judiciário.

IHU On-Line – Segundo o seu argumento, o bolsonarismo criou uma base. A direita também criou uma base que se expressa naqueles grupos que não foram nas manifestações?

Paulo Baía – Os grupos que não foram na manifestação — MBL e Vem pra Rua — estão nessa base que busca o apoio Legislativo e se colocou contra as teses de enfrentamento com o Congresso Nacional e com o Judiciário. Eles estão na base do governo, mas não estavam no eixo das manifestações. Quero chamar a atenção para o fato de que esta manifestação reedita as manifestações de 2015 e 2016, que foram manifestações significativas para o enfrentamento e o impeachment de Dilma.

IHU On-Line – Desde a última campanha presidencial, vários analistas chamam atenção para o surgimento de uma nova direita no país. Como o senhor compreende esse fenômeno no Brasil? O que caracteriza essa nova direita?

Paulo Baía – Existe uma nova direita, embora isto ainda não esteja bem definido. Mas existe uma nova direita e existe uma base social para esta nova direita. Isso é expresso na votação contundente que Bolsonaro teve e ao longo de toda a campanha, em que ele sustentou um patamar contundente de apoio eleitoral. A manifestação do dia 26 vem exatamente mensurar essa perspectiva de uma nova direita com apoio social. Por isso, a classifico como um fenômeno parecido com o chavismo e o peronismo.

IHU On-Line - Em que aspectos o bolsonarismo se assemelha mais ao peronismo e ao chavismo?

Paulo Baía – À ideia de uma ligação direta com a sociedade e à ideia de que essa ligação direta pode passar por cima do Legislativo e do Judiciário e fazer com que esses poderes fiquem subordinados a uma ideia do ExecutivoHugo Chávez teve sucesso nisso e subordinou o Legislativo e o Judiciário ao Executivo.

IHU On-Line – O governo Maduro mostra os efeitos negativos dessa estratégia?

Paulo Baía - Sim, porque rompe com as bases fundamentais de um Estado Democrático de Direito, com a ideia de que o Judiciário e o Legislativo sejam um contrapeso ao Executivo, com a ideia de independência dos poderes e com a ideia da não subordinação de um poder sobre os outros. Com a consolidação do chavismo e do governo Maduro, houve a consolidação de que o Poder Executivo é imperativo e subordina o Legislativo e o Judiciário a ele e, portanto, não há contrapeso.

Isso foi o que aconteceu com o chavismo, e a minha preocupação é que a todo momento se acena para uma ideia de que o Executivo vai passar por cima do Legislativo e do Judiciário, sobretudo com a ideia de reeditar o decreto-lei. Nós não temos, na nossa estrutura institucional pós-88, a figura do decreto-lei; o decreto-lei foi extinto na Constituição de 88, mas a todo momento o presidente da República e seus ministros falam e editam decretos que afrontam a autonomia do Legislativo e do Judiciário e que certamente serão questionados pela estrutura institucional que temos hoje.

IHU On-Line - Por que o bolsonarismo não se assemelha ao lulismo? O que os distingue?

Paulo Baía – O lulismo tinha e tem uma base social forte, mas em momento algum enfrentou o Poder Legislativo e o Judiciário. Ele até criou mecanismos de cooptação dos outros poderes, sobretudo do Legislativo, como mostra o Mensalão e o Petrolão, e foi isso que levou à crise do governo Dilma. Mas em momento algum o discurso político do lulismo pregava a substituição do Legislativo ou do Judiciário por algo subordinado ao Executivo.

Na prática eles também são diferentes e têm bases sociais diferentes. O lulismo busca se consolidar em instituições como os sindicatos e movimentos sociais, enquanto o bolsonarismo busca se sustentar no indivíduo, com uma ideia de uma grande família. Tanto que, nas suas manifestações, os manifestantes fazem questão de descartar organizações clássicas, e é interessante que os movimentos que se organizaram em 2015, como o MBL e o Vem pra Rua, que hoje estão no parlamento, foram justamente os que se colocaram contra a mobilização do dia 26.

IHU On-Line – Por que e em que aspectos o nacionalismo defendido por alguns políticos se distingue do nacionalismo clássico ao qual o senhor fez referência anteriormente?

Paulo Baía – Há uma redefinição de nacionalismo por esses movimentos, que joga fora toda a ideia de nacionalismo construída depois da Segunda Guerra Mundial e do desenvolvimento do terceiro mundo e de afirmação da nacionalidade como uma autonomia. O que eles querem com este nacionalismo é garantir, sobretudo, uma posição de privilégios dentro do mercado de trabalho e do mercado financeiroe o fortalecimento de uma ideia vaga contra a corrupção.

Eles não trabalham com o princípio tradicional do nacionalismo desenvolvido no século XIX e ao longo do século XX. Eles trabalham dentro de um novo patamar: isso não ocorre só no BrasilTrump faz issoOrbán faz isso, na Itália tem se feito isso, ou seja, são políticos que usam os símbolos nacionais para ressignificar o nacionalismo.

IHU On-Line – Há algum ganho político nessa nova concepção?

Paulo Baía – Não sei se esse é um conceito melhor, entretanto é uma base para aglutinar um pensamento conservador contra a imigração, contra os valores universais, como a democracia, o direito das mulheres, a defesa do meio ambiente. Então, eles se organizam num sentido muito particular e criam uma base social de apoio. Trata-se de uma visão diferente a partir daí: é uma pauta antiambientalista, porque eles colocam o ambientalismo como algo globalista. Essa significação de globalista faz com que se retome um princípio arcaico de nação, que é contra a ONU, contra a Organização dos Estados Americanos, contra os pactos internacionais, contra a globalização naquilo que ela tem de democrático, de trazer valores civilizatórios, mas não é contra o fluxo internacional de capitais.

IHU On-Line - Que avaliação geral faz da atuação do governo nestes primeiros meses?

Paulo Baía – Nestes primeiros cinco meses, o governo incorporou uma pauta liberal, que é a do Paulo Guedes, e uma pauta centrada nas expectativas da maioria da sociedade, que é a pauta do Moro. Esses são os dois movimentos que ele faz: ele envia ao Congresso a Reforma da Previdência e o pacote anticrime do Moro. Paralelo a isso, o governo reforça a base do bolsonarismo de raiz, sobretudo nos Ministérios de Relações Exteriores, da Educação, dos Direitos Humanos e do Meio Ambiente.

IHU On-Line - Como avalia a atuação da esquerda na oposição?

Paulo Baía – A esquerda está não só fragmentada, mas estilhaçada com o resultado eleitoral e não está tendo capacidade de se contrapor ao governo. É curioso que a esquerda tem usado as fissuras do governo para alavancar a sua ação. Então, não há um movimento de autonomia e de protagonismo nos grupos de esquerda, inclusive na questão da educação. As manifestações do dia 15 de maio e as da semana passada são manifestações reativas à própria ideia do governo, tanto é que o governo manipula essa pauta dizendo que não há cortes, que há contingenciamento. A esquerda entra nessa discussão que é secundária, porque não tem uma pauta objetiva de atuação no Congresso Nacional. Falta para a esquerda um projeto político de nação e falta um projeto político de oposição, de ser oposição. Toda a oposição, PTPSOLPDTPSD, ainda está atônita.

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Paulo Baía – Vamos ter ao longo dos próximos meses a continuidade do estilo Bolsonaro de governar, isto é, o de estar o tempo todo tensionando as relações sociais e institucionais.