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Jair Bolsonaro durante reunião com pastor Gilmar Santos em 2019| Foto reprodução: Carolina Antunes / PR

Eleições 2022: pastores fazem pressão por voto e ameaçam fiéis com punição divina e medidas disciplinares

Julia Braun | BBC News

Toda vestida de verde, amarelo e azul, ela afirma que cada fiel "vai responder diante de Deus pelo seu voto".

Milhomens tem 320 mil seguidores no Instagram e 137 mil inscritos em seu canal no YouTube. Ela é uma das muitas líderes religiosas evangélicas que têm feito campanha pelo presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL).

A ministra e presidente da Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo não menciona Bolsonaro nominalmente em suas postagens e discursos, mas as cores escolhidas para os vídeos e o discurso são os da campanha do atual mandatário. Ela também já participou de celebrações religiosas ao lado do presidente e sua família.

Milhomens ainda tem promovido um movimento de oração e jejum nos dias que antecedem o segundo turno das eleições presidenciais. Em um guia divulgado no site do Conselho Apostólico Brasileira (CAB), os fiéis podem seguir um roteiro de orações, entre as quais há uma com o nome de Jair Bolsonaro.

O programa de 21 dias vai até 29 de outubro e tem sido divulgado nas redes sociais por diversos pastores de diferentes denominações.

Já o pastor André Valadão é muito mais direto em seus pronunciamentos. "Vamos para cima! A vitória do Bolsonaro nesse segundo turno tem que ser grande!", diz em um dos vídeos postados em seu Instagram, onde acumula 5,3 milhões de seguidores.

"Tem que votar certo, se não você não é crente não", afirmou também em um vídeo gravado ao lado do atual presidente, usando o bordão que se popularizou em suas redes sociais.

Valadão é fundador da Lagoinha Orlando Church, na Flórida, nos Estados Unidos, e cantor gospel. Em suas redes, responde com frequência perguntas de fiéis e seguidores sobre religião e política.

E tão comum quanto as postagens que exaltam Bolsonaro, são as que criticam a esquerda e, em especial, o ex-presidente e candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Em uma postagem do dia 4 de outubro, pouco após o primeiro turno das eleições, uma usuária mandou o seguinte comentário para o perfil do pastor: "Sou cristã e não votei no Bolsonaro #forabolsonaro".

Valadão respondeu: "Você pode até ser cristã, mas é desinformada. Ou talvez escolhe caminhar na ignorância, sem entender que tudo o que a esquerda oferece é tudo que é fora dos valores cristãos".

Em reação a outra pergunta, o religioso escreveu que crente que vota em Lula é "um absurdo".

Punição a membros de esquerda

O discurso político combativo se repete entre outros pastores que possuem uma ampla gama de seguidores, algumas vezes até com ameaças contra os fiéis que se recusam a seguir a orientação de voto.

Um vídeo em que um pastor da Assembleia de Deus afirma que os evangélicos que declararem voto em Lula serão proibidos de tomar a Santa Ceia circulou nas redes sociais em agosto.

"Eu ouço crentes dizendo: vou votar no Lula. Você não merece tomar a ceia do Senhor se você continuar com esse sistema", diz o pastor Rúben Oliveira Lima, da Assembléia de Deus em Botucatu, interior de São Paulo.

Em outro momento do vídeo, ele afirma, se referindo ao ex-presidente Lula: "Se eu souber de um crente membro dessa igreja que votou nesse infeliz, eu vou disciplinar". Ele não deixa claro o que quer dizer com disciplinar.

Um documento discutido em plenário durante uma assembleia em 4 de outubro da Convenção Fraternal das Assembleias de Deus do Estado de São Paulo (Confradesp), um dos braços mais fortes da Assembleia de Deus, fala de "aplicação de medidas disciplinares" contra membros que adotem filosofias que, segundo eles, entram em choque com os princípios cristãos.

Presidente Jair Bolsonaro ao lado do pastor Wellington Bezerra da Costa, líder da Confradesp, em culto em São Paulo

O texto a que a BBC News Brasil teve acesso afirma que a Convenção não aceitará em seus quadros ministros que defendam, pratiquem ou apoiem, por quaisquer meios, ideologias contrárias aos princípios morais e éticos defendidos por ela. O documento cita um posicionamento contrário à "Desconstrução da Família Tradicional, Erotização das Crianças, Ampla Liberação do Aborto" e outros.

"Os Ministros que comprovadamente defenderem pautas de esquerda, dentro da cosmovisão marxista, serão passíveis de representação perante o Conselho de Ética e Disciplina, assegurado o contraditório e a ampla defesa", diz a carta.

A resolução foi aprovada pouco depois de o presidente Jair Bolsonaro participar de um culto para os fiéis presentes à assembleia, na Assembleia de Deus Ministério do Belém, na zona leste de São Paulo.

Durante esse mesmo culto, diversos líderes religiosos falaram a favor do presidente e a primeira-dama Michelle Bolsonaro cobrou das igrejas evangélicas um posicionamento no segundo turno das eleições de 2022.

"A gente queria vitória, sim, no primeiro turno. Mas a gente entendeu, irmãos, que se a gente tivesse recebido a vitória no primeiro turno, talvez a igreja não estivesse preparada para isso. A gente precisa se voltar ao Senhor. A igreja precisa se posicionar, a igreja precisa aprender", disse ela.

A primeira-dama, Michelle Bolsonaro, e o presidente Jair Bolsonaro em culto na Assembleia de Deus Ministério do Belém, na zona leste de São Paulo

A Confradesp é liderada por José Wellington Bezerra da Costa, um dos pastores mais influentes do Brasil. Seu filho, o também pastor e líder da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil (CGADB) José Wellington Costa Junior, disse em um culto no início de maio que o ex-presidente Lula não deve ser recebido nas igrejas que ele comanda.

"O inferno não tem como entrar em lugar santo. Aqui é lugar santo", disse, em referência ao PT e a Lula. "É bom que nos conscientizemos disso. Você, pastor, vai ser procurado sorrateiramente [por petistas], dizendo que é só uma visita. É um laço do Diabo!".

'Não vamos impor nossa vontade a ninguém'

Outro líder religioso que declarou seu apoio à candidatura de Bolsonaro foi o apóstolo Estevam Hernandes, pastor da Renascer em Cristo e idealizador da Marcha para Jesus. Ele é hoje um dos principais cabos eleitorais do atual presidente.

O apóstolo, que é dono do canal de televisão Rede Gospel e apresenta um programa de rádio e televisão na emissora, utiliza frequentemente as cores verde e amarelo durante cultos e nas fotos e vídeos que posta nas redes sociais.

Em sua página no Instagram, que tem 1 milhão de seguidores, o líder religioso utiliza uma foto de perfil em que aparece ao lado de Bolsonaro. Ele também compartilha com frequência cliques ao lado de outros candidatos, entre eles o aspirante a governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos).

O apóstolo Estevam Hernandes ao lado de Jair Bolsonaro na Marcha para Jesus

Em suas participações na televisão, o apóstolo não cita nominalmente nenhum candidato, mas fala de temas como a "destruição da família" e o "apoia ao aborto". Ele também costuma divulgar eventos com a participação de outras lideranças religiosas em que se discute política e o apoio a Bolsonaro.

À BBC News Brasil, Hernandes afirmou que ele e sua igreja defendem "os valores cristãos, mas não vamos impor nossa vontade a ninguém". "Acredito que ele defende os mesmos valores que nós cristãos, da importância da família, e contra o aborto, por exemplo", disse sobre o atual presidente.

"Eu acredito que temos o direito de defender os candidatos que representam os valores e demandas da igreja, mas de maneira nenhuma fazemos disso uma imposição. Da mesma forma, tenho o direito de me posicionar em minhas redes sociais sobre o que acredito. Mas não estamos impondo nada a ninguém e nem usando o púlpito para isso", afirmou o fundador e líder da Igreja Renascer em Cristo em respostas enviadas por escrito à reportagem.

Assim como a ministra Valnice Milhomens, o apóstolo tem divulgado o programa de jejum e oração para o período que antecede o segundo turno das eleições. O líder religioso afirma que sua igreja realiza jejuns com frequência desde a sua fundação.

"O objetivo do jejum é ter um período especial de consagração em que buscamos orar e estar ainda mais próximos de Deus. Neste jejum, em especial, estaremos orando também pelo país e pelas próximas eleições, mas, como falei, jejuamos sempre."

'Falso cristão'

Bolsonaro não é o único que recebeu apoio de lideranças religiosas. O ex-presidente Lula também tenta reunir votos do eleitorado cristão por meio de pastores e padres. O petista também vem tentando reforçar sua imagem como cristãos em suas campanhas e redes sociais, rebatendo algumas das críticas e acusações feitas contra ele.

Mas enquanto o atual presidente recebeu apoio de grandes igrejas e denominações e de pastores midiáticos com uma ampla rede de seguidores, Lula é apoiado principalmente por quadros dissidentes e igrejas menores.

O petista tem ao seu lado, por exemplo, Paulo Marcelo Schallenberger, que se identifica em suas mídias como "o pastor solitário de Lula".

O religioso faz parte da Assembleia de Deus, mas afirma ter sido afastado dos cultos formais na igreja por conta de seus posicionamentos. Hoje se dedica principalmente a palestras em outras igrejas. "Passei a me posicionar primeiro contra o governo Bolsonaro, só depois me aliei publicamente ao Lula. Mas sempre votei nele e na ex-presidente Dilma [Rousseff]", disse à BBC Brasil.

Além de pastor, Schallenberger concorreu a deputado federal neste ano pelo Solidariedade, mas não foi eleito.

Ele afirma guardar as discussões de políticas e suas opiniões pessoais para discussões após o culto ou fora da igreja. "Há um exagero na discussão de política dentro das igrejas, especialmente entre aqueles que cultivam uma certa idolatria em relação ao Bolsonaro."

O ex-presidente Lula cumprimenta o pastor Paulo Marcelo e sua esposa
Legenda da foto,O ex-presidente Lula cumprimenta o pastor Paulo Marcelo e sua esposa

O pastor também usa as redes sociais com frequência para falar da corrida eleitoral. Em uma postagem compartilhada no Instagram após o primeiro turno das eleições, Bolsonaro é classificado como "falso cristão". O post cita a relação do atual presidente com a Arábia Saudita e o príncipe Mohammad bin Salman.

"Um cristão não pode se comportar da forma que ele se comporta, seja na forma de falar ou na vida", diz. "Não tem como se dizer cristão e não sentir empatia, se solidarizar ou derramar uma lágrima sequer por quem morreu na pandemia."

Há cerca de duas semanas, o pastor também publicou em suas redes sociais um vídeo adulterado em que o atual presidente afirma que a primeira-dama cumpriu três anos de prisão por tráfico de drogas. Trata-se de um áudio falso, manipulado a partir de uma declaração dada em 2019. Na realidade, Bolsonaro comentava sobre a avó de sua esposa.

Questionado pela reportagem sobre o post, o líder religioso afirmou que não sabia que se tratava de uma fake news quando postou, mas que foi avisado posteriormente. "Já apaguei do meu Twitter, mas alguém da minha equipe deve ter esquecido de deletar do Instagram. Vou verificar", disse. O vídeo foi apagado posteriormente.

Outra liderança religiosa que declarou seu voto em Lula foi o bispo Romualdo Panceiro, ex-número 2 da Universal e atual líder da Igreja das Nações do Reino de Deus.

A Aliança de Batistas do Brasil, uma organização que prega a "livre interpretação da Bíblia", a "liberdade congregacional" e a "liberdade religiosa" para todas as pessoas, também se posicionou a favor do petista, afirmando ser contra o "governo perverso e mau que está no poder".

Lei proíbe propaganda eleitoral em igrejas

Segundo a lei eleitoral, é proibido veicular propaganda eleitoral de qualquer natureza em templos religiosos. Esses espaços são definidos como "bens de uso comum", assim como clubes, lojas, ginásios e estádios.

"Falar bem de um determinado candidato não é propaganda eleitoral, mas comparar dois nomes e dizer, por exemplo, que um representa o bem e o outro o mal, pode ser considerado propaganda", explica o advogado eleitoral Alberto Rollo.

A Lei das Eleições, de 1997, estabelece como propaganda eleitoral não apenas declarações, mas também exposição de placas, faixas, cavaletes, pinturas ou pichações. O mesmo vale para ataques a outros candidatos - a chamada campanha negativa.

O descumprimento da lei pode gerar multa de R$ 2 mil a R$ 8 mil. "A multa é aplicada para quem fez a propaganda ou para o candidato beneficiado", diz Rollo.

O especialista explica ainda que igrejas são consideradas pessoas jurídicas e, pela lei, nenhum candidato pode ser financiado por empresas. Transgressões são consideradas abuso de poder econômico e podem levar ao cancelamento do registro da candidatura ou à perda do cargo.

Veículos ou meios de comunicação social, incluindo os religiosos, também não podem atuar em benefício de candidato ou de partido político.

Segundo Rollo, porém, declarações feitas nas redes sociais pessoais de líderes religiosos não se enquadram na regra. "Os pastores são cidadãos e pessoas físicas, não jurídicas, portanto aquilo que dizem em suas redes sociais pessoais não está sujeito a essa lei. Mas essas declarações não podem acontecer nas redes sociais da própria igreja, por exemplo."

Há também, no Código Eleitoral, um artigo que proíbe o uso de ameaças para coagir alguém a votar, ou não votar, em determinado candidato ou partido, sob pena de reclusão de até quatro anos e pagamento de multa.

'Não vamos votar no novo papa'

Pastores moderados e lideranças religiosas criticam o uso da religião e do palanque de igrejas para fazer campanha e coagir fiéis a darem seus votos para determinados candidatos.

A pastora Romi Bencke, secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), ressalta que para além de qualquer proibição da lei eleitoral brasileira, fazer uso da posição de autoridade, de celebrações ou de canais de televisão religiosos para esse fim não é ético.

"Não creio que seja correto que lideranças religiosas se utilizem de sua autoridade perante os fiéis para estimular votos em candidatos específicos", diz. "As lideranças religiosas são respeitadas, escutadas e têm uma legitimidade em suas comunidades."

Para Valdinei Ferreira, professor de teologia e pastor titular da Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo, há uma linha muito tênue que separa as convicções pessoais de pastores e outros religiosos de seu papel público. "Mas devemos evitar cruzar essa linha e usar a autoridade religiosa para respaldar ou legitimar nossa opção político partidária", afirma.

"Eu me sinto tentado a me pronunciar em alguns momentos, mas resisto a fazer isso na condição de pastor e mais ainda usando o púlpito e o culto."

Ferreira critica ainda o uso de discursos camuflados para apoiar determinadas ideologias políticas a partir de preceitos religiosos. "Há valores tanto da direita quanto da esquerda que são compatíveis com o evangelho. Dizer que cristão não vota em candidatos de uma determinada ideologia é manipulação", afirma.

"No dia 30 de outubro [dia do segundo turno], não vamos votar no presidente de uma igreja ou no novo papa, mas no presidente do Brasil. As mobilizações precisam ser laicas, até porque a pessoa eleita vai governar ao longo de quatro anos um Brasil que é plural em termos de religião", completa Romi Bencke.

Matéria publicada originalmente no portal BBC News Brasil


Dom Odilo P. Scherer: Comemorando dom Paulo

É preciso recordar o cardeal Arns porque ele ainda tem muito a dizer ao nosso tempo

Dom Odilo P. Scherer, O Estado de S.Paulo

Comemorar significa, literalmente, trazer à memória juntos, lembrar juntos. Em 14 de setembro de 2021 estaremos comemorando o centenário do cardeal dom Paulo Evaristo Arns, quinto arcebispo metropolitano de São Paulo.

Nascido em 1921, em Forquilhinha (SC), dom Paulo fez seus estudos preparatórios para a vida religiosa nos seminários da Ordem Franciscana dos Frades Menores, sobretudo em Petrópolis (RJ), e foi ordenado sacerdote em 30 de novembro de 1945. Em seguida, fez o doutorado em Letras na Universidade de Sorbonne, em Paris, com uma tese sobre “a arte do livro em São Jerônimo”, tornando-se especialista em literatura cristã antiga, ou patrística.

De volta ao Brasil, foi professor de Filosofia e Teologia em Petrópolis, até ser eleito bispo auxiliar da Arquidiocese de São Paulo, em 2 de maio de 1966, pelo papa Paulo VI. Trabalhou ao lado do cardeal Agnelo Rossi, arcebispo da época, até que, em 1970, Rossi foi chamado a Roma para assumir a condução da Congregação para a Evangelização dos Povos e acompanhar as frentes missionárias da Igreja Católica, sobretudo na África e na Ásia. Dom Paulo tornou-se, então, arcebispo de São Paulo, em 22 de outubro de 1970. Pouco tempo depois, em 5 de março de 1973, foi nomeado membro do Colégio Cardinalício pelo mesmo papa Paulo VI, com quem o cardeal Arns teve sempre grande proximidade e estreita sintonia.

Como arcebispo, dom Paulo procurou renovar a vida da Igreja e dinamizar o trabalho pastoral na arquidiocese, atendendo às circunstâncias e necessidades da cidade de São Paulo, que crescia vertiginosamente e carecia de atenção especial às imensas periferias. Arns procurou traduzir em novas práticas organizativas e pastorais as orientações do Concílio Vaticano II no que se refere à participação do povo na vida e na missão da Igreja. Dedicou atenção especial aos pobres e desvalidos, estimulando o surgimento de numerosas obras voltadas para a promoção da caridade e da dignidade humana.

Sua atuação pastoral em São Paulo se deu em pleno regime militar, quando as liberdades democráticas, o respeito à dignidade humana e aos direitos fundamentais da pessoa foram desrespeitados de forma preocupante. Dom Paulo foi voz firme e respeitada na denúncia desses males e na defesa da dignidade da pessoa e de seus direitos fundamentais. Sua atuação se somou à de muitos que clamavam pelo retorno à normalidade democrática no Brasil.

Não deve ficar em segundo plano a figura de dom Paulo como bispo e pastor dedicado à Igreja. Ele amava seu rebanho e tinha alegria em estar com o povo. Promoveu a evangelização e a organização pastoral, a formação do clero e dos religiosos, incentivou o protagonismo dos leigos para ocuparem com coragem seu lugar na Igreja e na sociedade. Dom Paulo queria a liturgia celebrada com esmero e dignidade, a palavra de Deus anunciada com dedicação e fervor e que o Evangelho de Cristo fosse força e transformação para uma sociedade melhor.

Além da sua palavra fácil e calorosa, dom Paulo escreveu numerosos livros e publicou frequentes artigos e entrevistas. Sua atuação em favor dos direitos humanos e das liberdades democráticas rendeu-lhe prêmios e reconhecimento nacionais e internacionais.

Tendo permanecido por quase 28 anos à frente da Arquidiocese de São Paulo, o cardeal Arns marcou-a profundamente com seu carisma pessoal e suas diretrizes pastorais. Foi um profeta da esperança, conforme o seu lema episcopal, EX spe in spem – de esperança em esperança. Ele nunca renunciou ao sonho de ver um Brasil melhor e um mundo melhor.

Em 15 de abril de 1998, tendo já superando a idade canônica da renúncia ao seu encargo, tornou-se arcebispo emérito, retirando-se da cena pública. Viveu ainda longamente, vindo a falecer serenamente em 2016. Seu corpo repousa na cripta da catedral metropolitana.

Dom Paulo Evaristo Arns é um ilustre personagem que honra a Igreja Católica. Mas também é uma personalidade pública que teve protagonismo singular no seu tempo. Ele agora pertence à História. Na iminência da celebração de seu centenário, estes brevíssimos traços de sua biografia e da trajetória de sua vida têm o propósito de convidar para fazermos juntos a sua memória, daquilo que fez e significou para São Paulo e o Brasil. Muitas iniciativas poderão ser promovidas para lembrar dom Paulo e valorizar o seu legado.

A Igreja de São Paulo recordará o cardeal Arns no ano do seu centenário dando graças a Deus por sua vida e ação e para destacar novamente a herança espiritual que ele aqui deixou. Uma comissão da Arquidiocese de São Paulo está organizando a agenda de eventos e iniciativas para comemorar a efeméride ao longo de todo o ano. A abertura oficial será feita com uma solene celebração eucarística na Catedral da Sé no próximo dia 14 de setembro, às 10 horas, com a presença de representantes da Igreja, autoridades públicas, de outras instituições religiosas, sociais e culturais.

É preciso recordar dom Paulo porque ele ainda tem muito a dizer ao nosso tempo.

CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,comemorando-dom-paulo,70003810473


Dom Odilo P. Scherer: Caminho para a paz - A cultura do cuidado

A prática das obras de misericórdia espiritual e corporal passou ao núcleo da vida cristã

Em sua mensagem para a festa do ano-novo, comemorado pela Igreja Católica como Dia Mundial da Paz, o papa Francisco refletiu sobre um tema recorrente em seus pronunciamentos: a cultura do cuidado das pessoas, do ambiente e da vida. A reflexão foi motivada pelas dificuldades vividas ao longo do ano que passou, com a pandemia de covid-19. E persistem conflitos armados e tensões em várias partes do mundo por causa das desigualdades sociais e econômicas, da crise migratória e climática.

A crise sanitária vivida em 2020 revelou grandes e comoventes movimentos de solidariedade e dedicação ao próximo de muitos profissionais e voluntários. Mas preocupam as formas de insensibilidade, discriminação e fechamento diante da dor alheia e das ações que, em vez de construir pontes, levantam muros de ódio, xenofobia e morte. O papa fala da importância da edificação de uma sociedade “alicerçada em relações de fraternidade”.

A fraternidade, como base das relações humanas, foi tema da recente encíclica de Francisco, Fratelli tutti (Todos sois irmãos). A cultura do cuidado é decorrência e manifestação da fraternidade, levando a construir relações de interesse efetivo pelo bem do próximo e a superar a cultura da indiferença e do descarte, conceitos esses também frequentes nos pronunciamentos do pontífice.

Na sua mensagem sobre a cultura do cuidado como caminho para a paz, Francisco parte de conceitos teológicos e chega a conclusões para a vida cultural, social e econômica. Deus Criador revela-se ao homem como sábio cuidador do universo e de todos os seres, convidando também o ser humano a participar do zelo e cuidado que tem pela obra criada. Em vez de “lobo devorador do próximo” (“homo hominis lupo”, J. Locke), o homem é chamado a ser cuidador do seu semelhante. Por isso, toda forma de injustiça, desprezo e violência contra o próximo é desaprovada pelo Criador. Jesus Cristo deu o exemplo de atenção misericordiosa pelo próximo, colocando-se junto de quem é vítima de qualquer forma de violência, doando sua vida inteiramente pela humanidade.

Dos seus ensinamentos aprendemos que o amor a Deus nunca pode ser separado do amor ao próximo. A prática das obras de misericórdia espiritual e corporal passou ao núcleo central da vida cristã, traduzindo-se em inúmeras iniciativas de atenção às pessoas e socorro em suas mais diversas necessidades e em seus sofrimentos. O crer corretamente em Deus está vinculado estreitamente ao viver ativamente o amor ao próximo, fazendo próprios as suas carências e seus sofrimentos. A figura do bom samaritano, do Evangelho (cf Lc 10,25-37) é paradigmática para a cultura do cuidado, inerente à própria essência do cristianismo.

Desse núcleo central decorrem também os princípios do ensino social da Igreja, voltados para orientar a práxis humana coerente com a fé em Deus e a cultura do cuidado. Primeiros dentre eles são os da dignidade da pessoa e dos direitos próprios de cada ser humano. A realidade da pessoa “exige sempre a relação, e não o individualismo, afirma a inclusão, e não a exclusão, a dignidade singular inviolável, e não a exploração”, afirma o papa (n.º 6). Francisco recorda um princípio ético do filósofo alemão Emanuel Kant para destacar a dignidade humana: “Toda pessoa humana é sempre um fim em si mesma e jamais um mero instrumento utilitário para alcançar outros fins”. Da dignidade de cada pessoa também decorrem os direitos inalienáveis de cada ser humano e os deveres recíprocos do respeito e cuidado de uns pelos outros, especialmente pelos membros mais fracos e vulneráveis da comunidade humana. A pessoa nunca há de ser um mero dado estatístico, ou um meio a usar enquanto há ganho para em seguida descartar.

Da dignidade humana decorre também a noção de bem comum, segundo a qual nossas ações devem sempre levar em conta suas consequências para o próximo e para toda a família humana. Nosso agir deve ser solidário, jamais individualista, fechado e insensível. Por consequência, negócios lucrativos feitos à custa do sofrimento e exploração do próximo, ou que tenham como consequência a doença ou a morte das pessoas, são absolutamente injustos e desumanos.

A cultura do cuidado também inclui o cuidado da natureza e do conjunto do ambiente, como Francisco expôs na sua encíclica Laudato Sì (2015). O mau uso e o descaso em relação à “casa comum” levam a consequências que vão muito além da mera deterioração ou destruição do ambiente: são também fonte de sofrimentos e conflitos, cujo preço maior é pago pelos membros mais vulneráveis da comunidade humana. “Paz, justiça e salvaguarda da criação são três questões completamente ligadas”, recorda o papa (n.º 6).

A mensagem para o Dia Mundial da Paz termina com um apelo para que a cultura do cuidado sirva de bússola no caminho da edificação da paz. Esta é uma construção comum de muitos artesãos da paz, membros de comunidades onde se cuida uns dos outros. Não haverá verdadeira paz sem a cultura do cuidado.

CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO