Igor Gielow

Igor Gielow: Mourão assusta mundo político com espantalho da intervenção militar

Em artigo crítico aos Poderes e à imprensa, vice estimula teorias conspiratórias, mas que esbarram na realidade

O vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, plantou um espantalho no meio do mundo político brasileiro nesta quinta-feira (14).

Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, o militar da reserva fez uma longa admoestação de todos os envolvidos na crise tríplice na qual o país está imerso, com seus vetores sanitário, político e econômico.

Houve um ensaio de autocrítica sobre a responsabilidade de seu chefe, Jair Bolsonaro, como um dos atores que se tornaram "incapazes do essencial para resolver qualquer problema: sentar à mesa, conversar e debater".

Houve duras críticas aos outros Poderes e à imprensa no artigo, que condensam de forma inteligível as queixas do governo nas últimas semanas, além da preocupação com a economia.

A defesa federativa, com a devida citação à fundação dos EUA, não difere em essência da nota emitida pelo ministro Fernando Azevedo (Defesa) há duas semanas, que refletia a insatisfação da ala militar do governo com o que consideram cerco de Poderes ao Executivo.

Até aí, foi uma típica demonstração do pensamento militar brasileiro acerca da ideia de nação, que rejeita sentimentos autonomistas à la 1932, inclusive com o recibo passado no item Amazônia.

Mourão reclamou do artigo de ex-chanceleres queixando-se de danos à imagem externa do país inclusive pela devastação da floresta, "uma acusação leviana" para ele.

O vice coordena o comitê federal que trata da região, xodó geopolítico dos fardados desde o começo do século 20. Foi talvez o ponto mais unânime entre oficiais-generais da ativa presente no texto, assim como a noção salvacionista que foi despertada do torpor pós-ditadura com o governo Bolsonaro.

Cobrou, como já havia feito, a exposição do contraditório favorável às visões do governo na mídia. Perto dos impropérios usuais de seu chefe, foi cordato e reverenciou o papel da imprensa, um contraponto que gosta de estabelecer.

O debate seria quase acadêmico, não fosse uma advertência inicial, nada casual, de que a pandemia da Covid-19 pode se tornar uma crise de segurança.

O passado de Mourão tornou, aos olhos de muitos, preocupante sua colocação. O corolário dela pode ser aquilo que, enquanto candidato, definiu como a possibilidade de um autogolpe por parte do presidente em cenário de anomia ou anarquia.

Nunca é demais lembrar as assertivas de cunho golpista do vice, hoje visto como uma espécie de contraponto ponderado à balbúrdia representada por Bolsonaro. Em 2015, ele sugeriu o "despertar de uma luta patriótica" ao falar do processo de impeachment de sua comandante suprema, Dilma Rousseff (PT).

Dois meses depois, autorizou, sob seu comando na região Sul, uma homenagem após a morte de Carlos Alberto Brilhante Ustra, ídolo de Bolsonaro e torturador de Dilma na ditadura. Isso lhe custou o cargo, e foi encostado em uma posição burocrática em Brasília.

Em 2017, já no meio da crise política do governo Michel Temer (MDB), Mourão sugeriu em uma palestra que a intervenção militar seria possível caso o Judiciário não desse conta da situação.

Era no fundo, assim como na questão do autogolpe, uma leitura distorcida do artigo 142 da Constituição, que prevê ações fardadas a pedido dos Poderes sob a égide da Carta, nada a ver com a ideia de "intervenção militar constitucional" que frequenta grupos de WhatsApp bolsonaristas.

Imunizado pela quarta estrela sobre o ombro, Mourão deslizou para a reserva em 2018, de onde saltou para o barco bolsonarista.

Pelo grau do temor apresentado na praça, o objetivo político primário do texto foi alcançado.

O supracitado espantalho é o temor de uma intervenção militar. Isso alimenta a teoria de que Bolsonaro estaria tratando a pandemia com desdém para que a crise social se agudizasse tanto a ponto de dar o referido autogolpe.

Uma visão conspiratória alternativa vê no texto de Mourão algo diferente: ele mesmo se coloca como a alternativa à anarquia, com um suposto apoio das Forças Armadas pelo simples fato de ser quem é.

Ambas as visões esbarram na realidade, neste momento ao menos. Não existe coesão fardada para qualquer movimento golpista real. Como a Folha já mostrou, Forças como a Marinha e a Força Aérea não são entusiastas nem da simbiose com o governo, nem do protagonismo do Exército no processo.

O necessário apoio das elites empresariais a qualquer empreitada antidemocrática não parece sair dos nichos mais bolsonaristas.

O próprio presidente tentou dar a receita, tomando carona nos efeitos econômicos da pandemia, falando em live da Fiesp na manhã desta quinta: "É guerra, tem de jogar pesado com governadores", a começar por seu adversário figadal, o governador João Doria (PSDB-SP).

Não se imaginam soluções fora da Carta com a atual geração da cúpula militar. Mas impeachment está na regra, e Mourão é a tal alternativa constitucional sempre lembrada em conversas.

Nesse sentido, seu artigo corre o risco de ser lido como um esboço da versão verde-oliva da Ponte para o Futuro, o programa liberal do MDB que cimentou a viabilidade de Temer entre a elite.

Se ele teve tal intenção, o tempo dirá. Por ora, é conveniente a Bolsonaro que o espantalho permaneça onde está, enquanto ceva o centrão para dizer que impeachment é impossível.

De quebra, visa intimidar um ameaçador Supremo, com inquéritos que ouvem generais e decisões incômodas.


Igor Gielow: Novo ato golpista de Bolsonaro torna obrigatória explicação de militares

Cúpula fardada havia se reunido com o presidente na véspera, levando a dúvidas sobre suas intenções

O presidente Jair Bolsonaro fez seu novo ataque ao Legislativo e ao Judiciário exaltando o papel das Forças Armadas, que segundo ele estão “ao lado do povo”.

Não seria novidade, exceto por um detalhe: na véspera, o presidente havia se reunido com os três comandantes de Forças, o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, e o chefe da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos.

No cardápio posto, segundo a assessoria de Azevedo, “uma avaliação do emprego das Forças Armadas na Operação de Combate ao Coronavírus, além de avaliação de determinados aspectos da conjuntura atual”.

O demônio mora nos detalhes, no caso os tais determinados aspectos. Segundo a Folha ouviu de interlocutores de pessoas presentes ao encontro, o Supremo Tribunal Federal foi duramente criticado pelos presentes.

O motivo, a decisão provisória de Alexandre de Moraes que inviabilizou a indicação de um amigo da investigada família Bolsonaro, Alexandre Ramagem, para a direção da Polícia Federal.

Isso significa que os generais deram amparo à nova intentona retórica do presidente? Aqui há divergências nos relatos disponíveis.

A versão majoritária apontou a crítica fardada, que de resto já tinha sido feita ao considerar Judiciário e Congresso como forças a cercear o Executivo, mas nega que o presidente tenha sido encorajado a novamente desafiar os Poderes.

Uma leitura alternativa diz que o presidente se sentiu autorizado a ultrapassar o sinal novamente.

No ato de 19 de abril, Dia do Exército, o simbolismo era óbvio, mas velado.

Neste domingo (3), Bolsonaro encheu a boca para colocar as Forças Armadas no mesmo bloco que pedia a cabeça do presidente a Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), ataques ao Supremo e, de quebra, espancava jornalistas no Dia Mundial da Liberdade de Imprensa.

Isso abraçando na rampa do Planalto as bandeiras de Israel e dos EUA, além da brasileira, numa cacofonia caótica emulada pelas carreatas da morte vistas em algumas cidades do país.

A terceira leitura, aí feita por políticos, é a especulação acerca do entusiasmo dos militares com aventuras totalitárias.

Isso hoje é improvável. Não se imagina a atual cúpula militar brasileira apoiando fechamento de Poderes, para ficar na caracterização de golpe.

Além disso, não há apoio maciço ao governo na elite econômica, na imprensa e mesmo entre todos os ramos das Forças: Força Aérea e Marinha não têm o mesmo senso de comprometimento com a figura de Bolsonaro que o Exército, fiador de um capitão reformado e renegado.

Pior, os aviadores podem perder o único quinhão a que têm direito no governo, o Ministério da Ciência e Tecnologia, para o PSD, dentro da barganha comandada por Bolsonaro para afastar o fantasma do impeachment.

Ainda assim, a contemporização feita por alguns oficiais ouvidos pela reportagem, de que Bolsonaro se excede sem consequências, fica cada dia mais difícil de ser aceita.

Um oficial-general disse confiar que a população em geral não vê os militares como radicais do bolsonarismo. Talvez, mas a fronteira está cada vez mais turva: ele mesmo admite que a associação é provável.

Para complicar o enredo, um item altamente explosivo no cenário voltou a circular entre os observadores do panorama militar: a substituição do comandante do Exército, general Edson Leal Pujol.

O assunto foi discutido por Bolsonaro em sua reunião no sábado com os comandantes.

Nem tanto por uma troca em si, de resto estranha com o comandante tendo pouco mais de um ano no posto, mas por quem seria o indicado por Bolsonaro: Luiz Eduardo Ramos.

O general, que segue na ativa enquanto exerce a função no Palácio do Planalto, era talvez o mais bolsonarista dos integrantes do Alto Comando do Exército, a elite da elite militar.

Amigo de Bolsonaro quando ambos eram cadetes, dividindo dormitórios, ele sempre foi o número 2 de Azevedo, hoje ministro da Defesa e pivô da ala militar do governo.

Mas sua vinculação sempre foi especial com Bolsonaro. Sua eventual ida para o comando criaria exatamente o oposto do que o general otimista relatou: a ideia de um Exército liderado por uma aliado ideológico do presidente.

Procurado, Ramos negou veementemente a informação. “Não sei de onde isso saiu. Tem uns seis generais mais longevos do que eu na fila”, disse à Folha.

De fato, o general só entra no quesito longevidade para poder assumir a Força no ano que vem. Isso não foi problema no passado: Eduardo Villas Bôas não era o mais longevo ao ser escolhido comandante do Exército por Dilma Rousseff (PT) em 2015.

A retórica inflamada do presidente também tem a ver com o momento específico de seu governo, acumulando 7.000 mortos pelo novo coronavírus e sentindo a brisa do impeachment no ar.

Espectro esse que ronda o Planalto, para ficar na figura de linguagem marxista tão ao gosto do bolsonarismo raiz.

Como disse um almirante, há incertezas demais para garantir que o presidente não será alvo de um processo de impedimento, apesar de seu um terço de apoio no eleitorado.

O nome da equação se chama Sergio Moro. O depoimento de quase nove horas do ex-ministro da Justiça a ouvintes bastante familiarizados com os métodos do ex-juiz da Lava Jato apavora os bolsonaristas.

Qualquer pessoa que já tenha trocado uma mensagem de WhatsApp com Bolsonaro sabe que vulgaridades e sem-cerimônia são o padrão.

Provas que o incriminem talvez estejam no rol também, a depender de como forem interpretadas as conversas.

Isso, somado aos sortilégios que apurações sobre milícias e fake news insinuam sobre o clã presidencial, além do comportamento na condução da crise do coronavírus, alimentam o discurso de Bolsonaro.

O uso feito por Bolsonaro dos militares, ainda mais depois de estar cercado deles, explicita o real drama para a os fardados: a intrínseca conexão com a política, algo que conseguiram evitar durante boa parte do período pós-redemocratização.

O preço de imagem ainda é insondável, mas apenas o fato de serem questionados acerca de seus desígnios evidencia o tamanho do gênio que permitiram sair da garrafa ao se alinhar a Bolsonaro. Os militares terão de responder sobre o discurso golpista do presidente.


Igor Gielow: Ala militar nega golpismo, mas apoia Bolsonaro no embate com Poderes

Presidentes de Legislativo e Judiciário conversaram com ministro da Defesa após ato do domingo

A ala militar do governo negou às cúpulas do Congresso e do Judiciário haver qualquer risco de ruptura democrática por parte de Jair Bolsonaro, mas também fez questão de dizer que considera que os Poderes têm agido de forma a cercear o presidente na crise do coronavírus.

A impressão foi registrada pelos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli. Os três conversaram com o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, ao longo do domingo (19).

Naquele dia, Bolsonaro decidiu após almoçar com os filhos ir encontrar manifestantes pedindo intervenção militar e edição de "um AI-5" em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília.

A cena foi desenhada para chocar o mundo político e supor o apoio dos militares ao governo e a eventuais arroubos autoritários do presidente. Ato contínuo, Toffoli procurou Azevedo, que já foi seu assessor e com quem mantém interlocução frequente.

Tanto o ministro do Supremo como os presidentes das Casas do Congresso, em telefonemas separados, cobraram um posicionamento das Forças Armadas. Azevedo é um ponto de contato tanto com os militares dentro do governo quanto com o oficialato da ativa, de quem é superior hierárquico.

Ouviram a negativa de intenções golpistas e a promessa de que Bolsonaro iria baixar o tom, o que de fato aconteceu na manhã seguinte.

Além disso, o próprio general Azevedo divulgou nota reiterando o comprometimento das Forças Armadas com a Constituição e priorizando o combate ao coronavírus "e suas consequências sociais" —uma deixa não casual, alinhada à ênfase que Bolsonaro faz do impacto econômico da pandemia.

Os interlocutores do ministro da Defesa compreenderam que a ala militar do governo não reprova a irritação de Bolsonaro, ao contrário. Isso alarmou atores políticos em Brasília, que passaram a segunda trocando impressões sobre quais podem ser os próximos passos da crise.

Na avaliação dos fardados do governo, o Congresso tem agido sistematicamente contra Bolsonaro, tolhendo suas iniciativas. O Supremo também colabora com o clima de cerco ao Planalto com suas decisões em prol dos governadores e prefeitos na emergência sanitária.

A visão do presidente na crise vai além: o mandatário máximo acha que estados, liderados por São Paulo do rival João Doria (PSDB), estão aliados a Maia e a setores do Supremo para buscar seu impedimento. Isso o fez subir o tom no domingo, como de resto já previam adversários políticos ao analisar seu isolamento na crise.

Se a ala militar foi compreensiva com o gesto do chefe, o mesmo não se pode dizer da ativa das Forças Armadas. Alguns membros do Alto Comando do Exército, usualmente simpáticos a Bolsonaro, se disseram chocados com o uso simbólico do QG da Força para o proselitismo do presidente.

Assim, é possível dizer que o delicado equilíbrio entre um governo loteado por militares e os fardados da ativa sofreu um abalo significativo. A defesa constitucional feita por Azevedo foi pactuada para acalmar ânimos, mas as fissuras devem continuar.

Do lado dos Poderes, há diferenças de tons. Na romaria de políticos à casa de Maia na noite de domingo, depois negada pelo presidente da Câmara, mais de um dos presentes observou que o deputado estava mais incomodado do que Alcolumbre com a escalada da crise.

Isso se explica porque Maia foi eleito o alvo preferencial das redes bolsonaristas em seu protestos. Mas também há, subjacente, a intenção presumida de Alcolumbre de sair da sombra do politicamente mais denso colega da Câmara.

Já Toffoli, que viu outros ministros se manifestarem contra Bolsonaro no domingo, só fez uma fala sobre o episódio na segunda, quando a situação estava mais clara. Marcou posição, mas como é o árbitro final de muitos conflitos que ainda podem surgir, deverá manter o perfil mais discreto.

Para um participante das tratativas do domingo, a inflexão da ala militar precisa ser acompanhada de perto. Desde que recuperou prestígio no governo, no começo do ano, ela servia mais de anteparo ao radicalismo de Bolsonaro do que de amplificador de crises.

Do ponto de vista institucional, todos parecem convencidos de que não há riscos reais de ruptura, até porque o presidente não tem força para isso —não há amplo apoio social, empresarial ou de militares a quaisquer aventuras.

Mas também é claro o método de Bolsonaro em seus flertes autoritários. O presidente faz um gesto, é repreendido e modera o tom no dia seguinte. Mas a corda foi esticada mais alguns centímetros.

Na opinião desse político, se o presidente se sentir amparado pelos militares do governo, novos episódios são inescapáveis. Com o agravante de que os elementos de mediação evaporam aos poucos.


Igor Gielow: Bolsonaro faz apelo golpista e coloca Forças Armadas em saia justa

Governadores veem ensaio de golpe sem apoio pelo presidente, isolado na crise do coronavírus

SÃO PAULO - A demonstração de apoio do presidente Jair Bolsonaro a uma manifestação que pedia intervenção militar e "um AI-5" na frente do quartel-general do Exército fez a crise política inserida na pandemia do coronavírus subir de patamar.

Como se isso fosse possível, notou um governador de populoso estado ainda no princípio do embate com a Covid-19. A agressividade estava na conta, mas Bolsonaro ainda consegue chocar alguns, a começar por integrantes da cúpula militar da ativa que trocaram mensagens durante o domingo (19).

A escolha minuciosa do local e da data, o Dia do Exército, colocou as Forças Armadas ante um impasse que juravam querer evitar desde que pactuaram apoio tácito ao pleito presidencial de Bolsonaro no segundo turno de 2018. Agora, os fardados terão de se posicionar sobre as intenções de seu comandante nominal.

Bolsonaro foi claro em sua fala: quer uma ruptura ao estilo Hugo Chávez, de "povo no poder", desde que, claro, o poder seja exercido por ele. Olimpicamente isolado dos outros Poderes, seus instrumentos para tal missão são parcos.

Congresso, apesar dos planos mirabolantes de atração do centrão decantados, está fora de alcance. O Supremo Tribunal Federal, que não engole a família Bolsonaro direito desde que o filho Eduardo chutou a necessidade de um "cabo e um soldado" para fechá-lo, idem.

Fritar de forma desastrada Luiz Henrique Mandetta no Ministério da Saúde só levou a outros titulares da Esplanada a certeza de que o próximo poderá ser um deles ou delas.

Logo, nada mais natural que dobrar seu apelo aos militares que, aos poucos, aceitaram serem abduzidos para dentro de seu governo na crença de que poderiam ditar os rumos de um capitão que saiu pelas portas dos fundos do Exército no fim dos anos 1980, insubordinado nato que era.

Para um general ouvido, o presidente apenas quis tensionar o ambiente em um momento de fragilidade, conforme seu estilo. Para o oficial, da cúpula da ativa, as Forças Armadas não farão nada que fira seu papel constitucional.

Outro oficial, de um setor Marinha mais afastado do governo, preferiu a comparação com a tentativa frustrada de autogolpe de Jânio Quadros em 1961, que redundou na renúncia do presidente.

Tal sentimento é compartilhado por governadores de estado, que passaram a tarde trocando impressões sobre o insólito acontecimento deste domingo. Dois deles afirmaram categoricamente que Bolsonaro quer dar um golpe, embora duvidem das condições objetivas para tal.

A união da classe é, como já foi dito, inédita. No sábado, o Fórum Nacional dos Governadores divulgou carta defendendo os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), dos ataques recebidos durante a semana de Bolsonaro.

Os sinais da tibieza bolsonarista são claros. As carreatas em favor das ideias intervencionistas foram mínimas, em termos de adesão. Não houve uma mobilização popular comparável, digamos, à Marcha da Família com Deus pela Liberdade de 1964, para ficar num exemplo extremo.

A família do presidente, essa novidade na vida política nacional, ajudou, postando ao longo do dia em redes sociais apoios dos mais bizarros e ameaçadores: a cereja foi dada pelo vereador Carlos, replicando um vídeo de pessoas atirando em apoio a Bolsonaro. Não é preciso nem semiótica para entender a mensagem.

Se a frustração popular com as limitações da quarentena é compreensível, não havia uma multidão na rua. Havia, sim, as mesmas franjas que pediam "SOS Forças Armadas" nos atos pelo impeachment de Dilma Rousseff em 2016.

São pessoas que acham correto buzinar na frente de hospitais com pessoas morrendo da mesma doença que eles negam a gravidade, sob inspiração de Bolsonaro. Mesmo quem quer encerrar as limitações, sem necessariamente fazer parte do grupo, são só 22% da população, mostrou o Datafolha.

Assim como não há empresariado em massa a favor do governo central. Novamente, a pergunta fica: e os militares?

Não há uma ordem unida entre as Forças, para começar. Não se vê um integrante da Força Aérea com destaque no governo, até porque o "homem do vermífugo", o astronauta-ministro Marcos Pontes, não é considerado da cota fardada apesar de ser militar.

A ativa, após angaraiar prestígio ao governo cedendo quadros, tenta ao longo da crise do coronavírus se distanciar da politização fomentada por Bolsonaro contra governadores, João Doria (PSDB-SP) à frente.

E as manifestações, públicas ou não, têm sido no sentido de que a Constituição será soberana. Bom, em 1964 isso também era argumento, mas os tempos são outros.

A classe política está se sentindo empoderada, para usar o clichê. Depois de ter sido escorraçada pelas urnas em 2018, a instabilidade de um presidente acuado a colocou em evidência. Pesquisas internas de partidos mostram, contudo, que Congresso e Judiciário continuam com suas imagens no chão.

É com isso e com o fato de que as Forças Armadas são ainda vistas com respeito que Bolsonaro conta. A ala militar dentro do governo, o líder Fernando Azevedo (Defesa) à frente, acreditava que seria possível moderar o chefe e conduzir o manejo da emergência sanitária.

Este domingo provou, pela enésima vez, que isso é impossível. Pior, Bolsonaro colocou os fardados em xeque no tabuleiro da política. Isso adensa a crise a um novo nível, e a perspectiva não é das melhores para o isolado mandatário.


Igor Gielow: Bolsonaro ponderado pode ter chegado tarde à crise

Tutela militar sobre o pronunciamento do presidente é evidente até na escolha de frase de efeito

Nem parecia Jair Bolsonaro. O presidente que surgiu no pronunciamento em rede nacional na noite desta terça (31) adotou um tom mais tranquilo, ponderado e sem grandes malabarismos retóricos.

Parece tudo sob medida para servir de vacina contra os murmúrios de crime de responsabilidade em torno de sua condução na crise do novo coronavírus, mas talvez o presidente tenha demorado demais.

Seja como for, depois de falar em "gripezinha" e de supor que seu "histórico de atleta" o tornaria quase imune aos efeitos da Covid-19, como disse no apoplético pronunciamento da terça-feira passada (24), Bolsonaro agora sacou o "maior desafio da nossa geração" para definir a pandemia instalada entre nós.

O termo não saiu do nada. Ele foi tirado da fala do comandante do Exército, Edson Leal Pujol, que em mensagem gravada na semana passada falou em "maior missão de nossa geração", e trai a origem da inspiração do novo posicionamento do presidente.

Se os militares, sejam da ativa ou da ala abrigada no Palácio do Planalto e em outros prédios da Esplanada dos Ministérios, concordam de forma geral que há riscos de instabilidade social associados à crise econômica que quase certamente se agravará com a Covid-19, ninguém estava satisfeito com a posição de Bolsonaro até aqui.

A gota d´água foi a visita do presidente a comerciantes em área popular do Distrito Federal no domingo (29), um dia depois de ouvir do ministro da Saúde, o engolidor de sapos Luiz Henrique Mandetta, que o isolamento parcial defendido por Bolsonaro "por princípio" não era exequível, nem recomendável.

Naquele ponto, o presidente redobrava a aposta na irresponsabilidade sanitária que vinha marcando sua atuação desde o início da emergência do novo coronavírus no Brasil.

O mal-estar estava colocado e piorou quando ficou claro que os dois pilares do governo, Paulo Guedes (Economia) e Sergio Moro (Justiça), alinharam-se a Mandetta no questionamentos acerca da condução da crise pelo presidente.

Restou a Bolsonaro recuar para sair das cordas. A crítica ao isolamento social por meio de quarentenas foi mantida, mas com um verniz de preocupação com o indivíduo afetado. Se tivesse adotado tal posição e não buscado a polarização extrema, talvez o presidente não estivesse tão acuado agora.

Duas mentiras foram programadas para o discurso, para não perder o costume. Tentar associar a fala do diretor da Organização Mundial da Saúde a uma suposta crítica ao isolamento foi mantido, mas de forma bem menos assertiva depois que a organização negou isso —em resposta a um "test-drive" que o presidente havia feito sobre o tema pela manhã.

Já o congelamento do preço de medicamentos, algo que já é anunciado para abril em qualquer farmácia online de São Paulo, não foi combinado com a indústria. Dada a gravidade da crise da pandemia do Sars-CoV-2, que já matou 201 brasileiros até a tarde desta terça (31), esse é um ponto que não deverá ensejar muito debate.

O pronunciamento até pediu uma "união nacional" entre Poderes, governadores e setores da sociedade. Um avanço, dada a crispação do embate de Bolsonaro com governadores ou o insuflamento feito pelo presidente de atos pedindo para fechar o Congresso, o Supremo e outras delicadezas.

Naturalmente ninguém vai acreditar até que a realidade se interponha, mas parece um avanço. A estabilidade emocional do presidente vem sendo objeto de preocupação de auxiliares, conforme a Folha mostrou, e o pronunciamento em modo ansiolítico deixou aliviados alguns observadores do quadro.

A influência da ala militar do governo e também da ativa das Forças também ficou evidente na quantidade de referências a ações sob o comando do Ministério da Defesa. Guedes e suas medidas pontuais foram citados, mas sem tanta pompa.

Isso tudo indica uma nova etapa do manejo da crise? Talvez, mas, como dito, pode ser tarde. Bolsonaro já perdeu o Congresso e o Supremo, que nunca teve de verdade.

Já a aparente tutela operada pelos militares sobre o presidente, algo que já aconteceu antes e foi refutado depois, é algo muito frágil dado o arcabouço familiar da corte bolsonarista e o temperamento instável do ocupante do Planalto.

A responsabilidade imposta a todos os agentes pela Covid-19 poderá lhe dar tempo, mas as semanas de "gripezinhas" e de barata-voa no governo não deverão ser facilmente substituídas pelo "todo indivíduo importa" e o chamamento a "ações coordenadas".

As panelas em fúria em antigos redutos bolsonaristas de capitais são um eloquente sinal dessa dificuldade.


Igor Gielow: Propaganda do Planalto pede fim de isolamento, e Bolsonaro posta vídeo de carreata anticonfinamento

Presidente joga todas suas fichas na disputa com os governadores e Congresso sobre o coronavírus

SÃO PAULO - A defesa de uma política leniente com a propagação do novo coronavírus no país virou objeto de um vídeo de divulgação institucional da Presidência de Jair Bolsonaro. Nele, a volta ao trabalho de regimes de confinamento é estimulada, contrariando orientações globais sobre o tema.

A peça foi distribuída, em forma de teste, para as redes bolsonaristas. Nela, categorias como a dos autônomos e mesmo a dos profissionais da saúde são mostradas como desejosas de voltar ao regime normal de trabalho. "O Brasil não pode parar", encerra cada trecho do vídeo, inclusive para os "brasileiros contaminados pelo coronavírus".

O primogênito do clã, o senador Flávio (RJ), foi o responsável por dar o chute inicial desta etapa da campanha #BrasilNaoPodeParar, em postagem no Facebook na noite de quinta (26). O filho presidencial é o pivô das investigações criminais acerca de relações entre milícias e a família Bolsonaro.

A página da Secom (Secretaria de Comunicação da Presidência), cujo chefe, Fabio Wajngarten, foi contaminado pelo patógeno, divulgou na quarta (25) a hashtag da campanha.

Além disso, o próprio presidente postou em sua conta no Twitter o vídeo de uma carreata realizada em Camburiú (SC) contrária ao isolamento social recomendado pela maioria dos governos que lidam com a pandemia e pela OMS (Organização Mundial da Saúde).

A ofensiva mostra que Bolsonaro colocou todas suas fichas na hipótese de que a pandemia, que já matou 77 brasileiros desde o primeiro caso registrado há um mês, terá impacto reduzido sobre a saúde pública.

Desde a emergência da questão sanitária, Bolsonaro tem sistematicamente negado a gravidade da infecção pelo vírus que causa a Covid-19. Em oposição a ele, os 27 governadores de estado se uniram em uma frente pedindo recursos federais e medidas para aliviar o impacto econômico da crise.

Os chefes estaduais são liderados não oficialmente por João Doria, o tucano que governa São Paulo, estado mais afetado pela crise. Pelo fato de ser um presidenciável óbvio para 2022, Bolsonaro elegeu Doria como símbolo do que chama de "histeria" em relação à pandemia.

Com efeito, São Paulo é a unidade da federação em que as medidas de isolamento social recomendadas pela OMS estão sendo aplicadas de forma mais rígida, ainda que graduais para tentar evitar um colapso econômico —o estado concentra 40% do Produto Interno Bruto do país.

Os 46 milhões de paulistas estão sob quarentena desde terça (23), e a medida deve evoluir para o isolamento total da população neste momento de expansão do contágio.

Doria e Bolsonaro se enfrentaram em uma videoconferência na qual o tucano criticou o pronunciamento do presidente em que ele criticou medidas como o fechamento de escolas, e recebeu em troca a acusação de estar tentando se promover politicamente.

O fato é que os governadores se alinharam às recomendações da OMS em reunião na quarta que contou com a presença de Rodrigo Maia (DEM-RJ), o presidente da Câmara que tem agido como chefe do Legislativo na crise.

Desde então, Maia concedeu duas entrevistas em que criticou o governo e cobrou ação imediata de Bolsonaro para o envio de medidas emergenciais ao Congresso —sob pena de os parlamentares tomarem as mesmas.

Nesta quinta, multiplicaram-se chamamentos virtuais a carreatas em favor da ideia bolsonarista de que o Brasil deveria voltar à atividade, embora as quarentenas ainda sejam restritas a alguns estados, São Paulo à frente. A ironia é que são carreatas, supostamente formas mais seguras de protestar em tempos de coronavírus.

Muitas convocações estão sendo feitas para a segunda (30), véspera do aniversário de 56 anos do golpe militar de 1964, objeto de adoração de Bolsonaro.

A disputa entre Bolsonaro e os Poderes constituídos isolou o presidente. Primeiro foram os atos do dia 15, no qual manifestantes apoiados pessoalmente pelo presidente pediam o fechamento do Congresso e do Supremo, ainda que o titular do Planalto negasse a intenção.

Foi ali que a emergência do coronavírus somou-se à equação da disputa pelo manejo de R$ 30 bilhões do Orçamento, já que Bolsonaro abraçou pessoas mesmo sob orientação de estar sob quarentena devido ao contato com infectados em sua comitiva de uma viagem aos EUA, Wajngarten à frente. Nada menos que 25 pessoas que tiveram contato com o presidente se contaminaram.

Depois, Bolsonaro conseguiu galvanizar os governadores contra si, e perdeu o apoio de alguns neste meio, como Ronaldo Caiado (DEM-GO), um dos símbolos da antiga direita que estavam ao lado do presidente.

Com tudo isso, a peça da Presidência, ainda não chancelada para veiculação, entra como novo pedaço de lenha na fogueira da queda de braço entre Planalto e estados, no qual o Congresso está ao lado dos governadores.


Igor Gielow: Fala de Bolsonaro sobre crise é monumento ao radicalismo irracional

Presidente mistura agressão política e medicina de WhatsApp em hora de crise aguda

Uma característica acompanha Jair Bolsonaro desde que ele era visto como um delírio de meia dúzia de apoiadores, antes da campanha eleitoral de 2018: a mentalidade de cerco, de bunker.

O agora presidente sempre pautou seu processo decisório, caótico, pela necessidade de criar uma rede de proteção baseada na existência do proverbial inimigo aos portões. Ora era o "sistema", ora era a mídia, ora eram os outros Poderes.

Uma vez chefe do Executivo, provou-se por diversas vezes incapaz de assumir responsabilidades em momentos de crise, transferindo-as para esse Grande Outro hostil. Cambaleou até aqui, ainda mantendo respeitável apoio de um terço do eleitorado.

O pronunciamento da noite desta terça (24), no qual apareceu quase sorridente ao anunciar um futuro radiante de vitória da "nação brasileira" sobre versão local da pandemia do novo coronavírus, coroa esse movimento com uma dose extra de radicalismo quase insana —como se isso fosse possível. É um monumento ao pior que o bolsonarismo representa.

Após passar uma semana acuado pela reação à sua irresponsabilidade sanitária do dia 15, quando desceu para a galera que alegremente pedia o fechamento do Congresso e do Supremo do outro lado da praça dos Três Poderes, Bolsonaro parecia estar se controlando.

Por influência da ala militar do governo, pela enésima vez chamada a tentar colocar ordem no playground do Planalto, o presidente reduziu o grau de ataques a governadores e evitou a puerilidade ao tratar do coronavírus, que já matou 46 cidadãos governados por ele e vai matar muitos outros.

Uma coisa é discutir a racionalidade e o tempo certo de aplicação de medidas restritivas, como está sendo feito de forma escalonada em São Paulo, motor da economia nacional. É preocupação lícita. Outra coisa é brincar com o tema e falar estultices científicas acerca do efeito do vírus sobre crianças.

Ora, os pequenos podem se contaminar. Elas apenas morrem bem menos e, óbvio, são vetores do patógeno. O presidente usou rede nacional para emular um raciocínio primo daquele segundo o qual "tudo bem, só os muito velhos morrerão".

Bolsonaro teve a pachorra de aplicar uma lição de medicina de WhatsApp, ao dizer que se, se teve contato com o vírus, nada lhe ocorreu devido ao seu "histórico de atleta". Se desenvolvesse a Covid-19, seria novamente "uma gripezinha, um resfriadozinho".

É inacreditável que, neste momento, o presidente use o púlpito eletrônico que lhe é facultado para renovar os ataques à imprensa, aos governadores, e aos ditos alarmistas. Refazer a narrativa, dizendo que estava preocupado desde o começo, mas "sem histeria", vá lá, é do jogo. Não sei se engana mais alguém.

O som ensurdecedor de panelas e buzinas Brasil afora se fez presente novamente, especialmente em nichos bolsonaristas clássicos, mostrando que a infiltração na imagem presidencial sugerida por pesquisa do Datafolha tem uma avenida a percorrer.

O mundo parece hoje estar se dividindo entre duas classes de pessoas que ocupam lugares que já foram de líderes.

De um lado, os apocalípticos, amparados no fato de que as quarentenas são a única forma conhecida de reduzir a expansão do contágio —embora não haja certeza do que acontecerá uma vez que elas são levantadas; saberemos em breve em Wuhan.

Do outro, os integrados, para ficar na figura do ensaísta Umberto Eco. Esses são liderados por Donald Trump, que quer ver seus EUA "back to business" na Páscoa, Bolsonaro e o pânico de que uma recessão destrua seus planos de reeleição, e mesmo esquerdistas como o mexicano López Obrador e seu apego a abraços. Populismo não tem coloração ideológica.

No meio, como em todo o debate acerca da polarização mundo afora, a população e alguns governantes que ainda buscam agir racionalmente enquanto a ciência tenta entender melhor a natureza desse novo inimigo.

Por tantas incertezas, não é impossível que o vírus entre mais ou menos rapidamente no rol de riscos aos quais aceitamos nos submeter todo dia em que saímos de casa. Se isso for rápido, excelente, ainda que o preço a pagar seja ver Bolsonaro esbravejar com olhar maníaco uma vitória que nunca lhe pertenceu.

Se não for, a conta do impacto da epidemia lhe será debitada por uma população crescentemente insatisfeita. Na realidade, ela parece que já o está sendo de qualquer forma. A aposta de Bolsonaro é saltar no escuro, novamente, apoiado no irracionalismo político e pessoal.

*Igor Gielow é repórter especial, foi diretor da Sucursal de Brasília da Folha. É autor de “Ariana”.


Igor Gielow: Crise do coronavírus precisa de coordenação, não de disputa política

Bolsonaro deveria ler exemplos de outras pragas da história antes de brincar com a Ceifadora

pandemia do novo coronavírus está entre nós. Como tudo o que acontece no Brasil nos últimos anos, até o novo rolê da Ceifadora foi abduzido por uma polarização política extremada e imbecil.

O exemplo mais vistoso, claro, é o já clássico episódio em que Jair Bolsonaro correu para o abraço entre os seus apoiadores, todos eivados de nobres intenções patrióticas como fechar o Congresso ou purgar o Supremo com fogo.

O presidente é irresponsável, mas o que dizer dos manifestantes? Tudo indica que eles são a franja na qual Bolsonaro está se equilibrando com um pé, enquanto o outro supõe que o uso pregresso de coturno lhe dará imunidade eterna junto aos militares no governo.

O ensurdecedor silêncio dos fardados até aqui parece falar por si. Voltando ao “povo”, aspas compulsórias, aquele que foi às ruas domingo (15) parece tomado por uma variante inversa da histeria criticada toda hora pelo presidente no tocante à lida com a crise. Agia como se não houvesse nada de estranho no ar.

Pestes e governos têm um longo histórico. No ano 165, uma virulenta praga abateu-se sobre os domínios de Roma —provavelmente varíola. Só que à frente do império estava Marco Aurélio, um dos mais celebrados líderes da história.

Ele não conseguiu debelar a histeria popular, os cristãos usados como bodes expiatórios da praga que o digam, assim como os judeus medievais durante a Peste Negra (1347-1351).

Mas tomou ações decisivas: subsidiou enterros para tirar cadáveres pobres das ruas, defendeu suas fronteiras com gladiadores quando os soldados pereciam, vendeu propriedades imperiais para custeio. A praga subsistiu, mas Marco Aurélio virou exemplo de tenacidade ao lidar com as adversidades.

Hoje, o novo coronavírus virou moeda de barganha política. Os Poderes espicaçados por Bolsonaro no domingo (15) se uniram para apoiar o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e suas propostas. É parte de disputa maior, mas uma calcada na única causa que importa agora.

Não será surpresa se Mandetta cair. Bolsonaro já o achava muito próximo de João Doria (PSDB), que governa o maior e mais afetado estado brasileiro. Agora, o vê em reuniões com seus diletos adversários da Câmara, Senado e Supremo.

tucano paulista, presidenciável óbvio para 2022, tem tomado o cuidado de separar Mandetta de Bolsonaro na condução da crise no estado —que, ao contrário do presidente, tomou como tarefa pessoal. O mesmo tem ocorrido em outros estados, de forma algo mais atabalhoada.

Mas mesmo Bolsonaro percebeu o rumo tomado. Apesar de manter suas falas inconsequentes sobre o coronavírus, ele mandou Paulo Guedes (Economia) amarrar um pacote improvisado que, se não resolve problemas fulcrais da crise, ao menos dá uma impressão pública de ação.

Nesta terça (17), o governo russo criou um fundo específico para apoiar motoristas de aplicativo, “frelancers” em geral e outras pessoas que vão perder renda sem nenhum colchão de proteção. Falta pensar em algo assim, na ponta.

De todo modo, as postagens dos filhos presidenciais começaram a se transformar de ironias sobre reuniões passadas dos adversários visando provar desleixo inexistente para listagens na linha “veja o que o governo está fazendo”, chamadas para “cooperação internacional” e por aí vai.

O momento exige coordenação. Se Bolsonaro deixar Mandetta trabalhar, sua muito boa interlocução com São Paulo pode ser um modelo a seguir —ressalvando que as condições médias do sistema de saúde paulista são melhores do que aquelas registradas do Rio para cima, o que exige esforços redobrados.

Outro item indispensável é transparência. A famosa gripe espanhola de 1918-19 só ganhou esse nome porque foi na Espanha, país sem censura à imprensa por não estar na Primeira Guerra Mundial, que saíram as primeiras manchetes sobre o tema.

Nos EUA, cadáveres eram empilhados e os jornais falavam em alarmismo estimulado pelo inimigo.

A transparência acompanha também a ciência, item sem o qual não se atravessa uma emergência dessas. Um interessante estudo publicado em 2009 no prestigioso Jornal de Doenças Infecciosas Emergentes, dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, mostra bem isso.

Um grupo de cinco pesquisadores liderados por Katerina Konstantinidou comparou as reações governamentais a surtos de peste bubônica nos séculos 17 e 18 nas ilhas então controladas por Veneza no mar Jônico e na costa grega adjacente, ora parte do Império Otomano.

Os venezianos, escaldados pela horrenda passagem da Ceifadora no século 14, que matou talvez três quintos de sua população, haviam desenvolvido as primeiras medidas sanitárias contra a doença.

Mesmo sem saber que ela era causada pelo bacilo Yersinia pestis, morador de pulgas de ratos trazidos por navios de rotas do mar Negro, Veneza intuiu que a higiene pública e a quarentena (lá inventada) podiam salvar vidas. Três séculos depois, aplicaram isso a suas ilhas, Corfu à frente, com sucesso.

Na costa logo ao lado, foram dois séculos de mortandade e pestilência, devido à má administração colonial dos otomanos. Apesar de notáveis em vários campos científicos, os sultões em Constantinopla mantinham até o fim do império em 1922 um astrólogo-chefe para ser consultado quando a coisa apertava: guerra e peste.

Claro que não estou sugerindo que o astrólogo mais famoso do bolsonarismo esteja por trás da belicosidade da seita em relação à ciência ou às reações apopléticas de um presidente isolado politicamente. Mas olhar para exemplos passados, a começar pelos desta mesma pandemia, ajudaria a melhorar a qualidade da resposta federal à crise. ​

*Igor Gielow é repórter especial, foi diretor da Sucursal de Brasília da Folha. É autor de “Ariana”.


Igor Gielow: Supremo se une ao Congresso contra Bolsonaro

Crise do coronavírus vira palco de reação coordenada após presidente ir a ato contra os Poderes

A decisão de Jair Bolsonaro de juntar-se a manifestantes que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal gerou uma reação coordenada por parte dos Poderes sob ataque.

A pedido do presidente do Supremo, Dias Toffoli, e do ministro Luiz Fux, os presidentes Rodrigo Maia (Câmara, DEM-RJ) e Davi Alcolumbre (Senado, DEM-AP) receberam nesta segunda (16) o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, para discutir medidas acerca da pandemia do novo coronavírus.

No domingo (15), Bolsonaro surpreendeu ao surgir na praça dos Três Poderes e, descumprindo ordens sanitárias já que estava em isolamento por ter tido contato com infectados em sua viagem aos EUA, confraternizou-se com integrantes do ato. Ao longo do dia, fez postagens de apoio ao protesto.

Ele foi criticado por políticos e infectologistas, dado que neste momento a recomendação oficial é a de evitar aglomerações e contato físico, e só respondeu dizendo que poderia fazer o que bem entendesse, negando estar a atacar outros Poderes.

O ato deu um novo sentido à já aguda crise política, que residia centrada na disputa entre Executivo e Legislativo pelo manejo de R$ 30 bilhões do Orçamento.

Agora, o papel moderador que o Judiciário vinha exercendo, exceto nos episódios em que Bolsonaro foi admoestado pelo decano Celso de Mello, mudou.

No Palácio do Planalto, a informação recebida é de que não haverá mais a tolerância tácita que marcava a presidência Dias Toffoli, que buscava o papel de esteio institucional em tempos de extrema crispação entre os Poderes.

Toffoli transitava bem no governo por meio de sua ligação com o general Fernando Azevedo, ministro da Defesa e seu ex-assessor especial.

Crises foram mediadas e o ministro deu decisões polêmicas favorecendo, por exemplo, o senador Flávio Bolsonaro (RJ), primogênito do presidente e investigado entre outras coisas por ligação com milicianos.

Os militares, que na tríade principal do governo têm Azevedo, Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Walter Braga Netto (Casa Civil), têm mantido silêncio sobre a escalada da crise.

Nesta segunda, os três generais que serviram juntos sob o comando de Azevedo se reuniram, mas oficialmente para falar sobre o temor do espaçamento da pandemia na fronteira entre Venezuela e Roraima.

A presença de Fux no encontro desta segunda é indicação de continuidade, dado que pelo rodízio do STF o ministro assumirá o lugar de Toffoli. Também de unidade, dado que os dois togados não comungam exatamente das mesmas linhas de pensamento na corte.

Inicialmente, a ideia não é forçar mais o conflito —isso caberia a Bolsonaro, que mesmo nesta segunda voltou a falar de forma desafiadora a Maia, que até aqui foi o fiador do único grande sucesso legislativo do governo, a reforma da Previdência.

O presidente disse abertamente que estava sendo isolado, alvo de um golpe, de que há rumores de impeachment no ar. Nas redes sociais, seus filhos Eduardo (deputado por SP) e Carlos (vereador pelo PSC carioca) ativamente denunciaram uma suposta campanha contra seu pai.

Rodrigo Maia prefere seguir a linha propositiva, como fez ao convocar seus pares para aprovar quaisquer ações emergenciais em relação ao coronavírus.

Medidas econômicas terão ambiente para prosperar, desde que com o selo do Congresso —deixando o protagonismo desejado por Paulo Guedes (Economia) na lateral.

Maia não quer ser visto como um Eduardo Cunha, o então deputado emedebista que presidia a Câmara e patrocinou pautas-bombas fiscais contra Dilma Rousseff (PT) no ano que antecedeu o impeachment da presidente.

Por outro lado, deu seu recado na semana passada ao deixar passar um acréscimo de R$ 20 bilhões no Orçamento com o Benefício de Prestação Continuada, uma clássica pauta-bomba.

A crise sanitária tornou-se o palco da aceleração do isolamento de Bolsonaro, que crescentemente fala em tons messiânicos, supondo um apoio popular unânime a seu projeto que não é aferido em pesquisas de opinião.

Além do mau exemplo do domingo, Bolsonaro tem insistido em que o coronavírus não é tão perigoso quanto parece, ignorando aspectos epidemiológicos que não têm a ver com a taxa de letalidade do patógeno.

O presidente tentou interferir diretamente no trabalho de Mandetta, que foi deputado pelo DEM-MS. Na semana passada, ele ficou contrariado com a ida programada do ministro para São Paulo, onde se encontraria com o governador João Doria (PSDB) e seu time.

Para Bolsonaro, isso cacifaria o tucano, agora um rival aberto visando a disputa presidencial de 2022. Mandetta alegou que não poderia deixar de coordenar esforços com o estado mais populoso e que concentra o maior número de infectados pelo coronavírus. E viajou a São Paulo, sob protestos.

O governador, que chamou o presidente de ausente na crise e foi dos primeiros a criticá-lo pelo ato de domingo, não poupa elogios a Mandetta e ao Congresso, numa sinalização vista por aliados e adversários como a de posicionamento de batalha.

Nesta terça, um ex-aliado de Bolsonaro cooptado por Doria, o deputado Alexandre Frota (PSDB-SP), irá protocolar um pedido de impeachment do presidente. Ninguém levará muito a sério, mas o instrumento ficará à disposição de Maia, para análise eventual.


Igor Gielow: Bolsonaro abre guerra aos Poderes com irresponsabilidade sanitária

Cenas insólitas deste domingo fazem conversas sobre impeachment deixarem de ser tabu

O ato de irresponsabilidade sanitária do presidente Jair Bolsonaro fez confluir de vez a crise política com o Congresso com a emergência da chegada da pandemia do novo coronavírus ao Brasil.

Neste domingo, o mandatário máximo saiu do isolamento recomendado devido à possibilidade de estar infectado com o coronavírus para confraternizar com apoiadores do ato contra o Congresso e Supremo. Uma cena insólita em todas as suas dimensões.

Enquanto governadores de estado e dirigentes de empresas se digladiam com dilemas diários acerca da dramaticidade das medidas contra o vírus, Bolsonaro achou por bem estimular aglomerações, abraçar pessoas e tirar selfies com seus celulares.

Nada surpreendente, a examinar a folha corrida do bolsonarismo no trato com a ciência —das franjas terraplanistas às políticas ambiental e educacional oficiais.

A pregação da ignorância antiacadêmica é um dos motes entre aqueles aderentes mais fanáticos da seita presidencial. Mas o que se viu neste domingo foi um patamar acima.

O grupo de WhatsApp dos governadores, uma espécie de termômetro do espírito dos estados ante a lida com o Planalto, fervilhou com mensagens unânimes de desaprovação dupla. Primeiro, do ato em si, e segundo, da ligeireza com que o presidente trata uma ameaça à saúde pública.

Entre outros políticos, ouviu-se até referência à lei 1.079/50, que prevê os crimes de responsabilidade que podem levar ao impeachment.

Lá há referências a “tentar impedir de qualquer modo o funcionamento” do Congresso, “opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do Poder Judiciário” e a violar direitos sociais fundamentais, como a saúde.

A rigor tudo vago, claro, mas não é preciso muita criatividade para encaixar as peças. Isso não significa que Bolsonaro corre o risco de ser impedido imediatamente. Mas é certo que o tema deixou de ser tabu, passados pouco mais de três anos do episódio com Dilma Rousseff (PT).

O fator de crise econômica, antes ausente de forma aguda, ameaça tornar-se preponderante à medida que o fechamento radical de grandes países europeus sugere um novo estágio da turbulência global.

Já o vetor ruas não pôde ser aferido de forma correta neste domingo, já que as aglomerações haviam sido inicialmente desestimuladas pelo próprio presidente —pelo visto, de forma dissimulada, num papelão que incorre na falta de decoro também presente na lei 1.079.

Assim, não foi possível saber o grau de adesão. Certamente não foi baixo do ponto de vista de pulverização, já que houve carreatas aqui e ali em vários estados. Na avenida Paulista, em São Paulo, havia claramente pouca gente.

Pode-se asseverar, contudo, uma coisa: se havia uma pessoa contaminada nas aglomerações notadas, quem estava por perto correu risco.

Em termos numéricos, Bolsonaro parece só poder contar com seus apoiadores mais fiéis, talvez um terço do eleitorado, talvez menos. Seja como for, é preciso tomar cuidado com relatos de obscurantismo explícito e tomá-los como majoritários.

Como ele resolveu redobrar a aposta contra o Congresso e o Judiciário, apesar de achar que já havia sido dado “um tremendo recado ao Parlamento”, é de se supor que a contabilidade presidencial só veja o conflito aberto como forma de lidar com as outras forças políticas do país.

Se a opção for essa, a agenda das pautas-bombas e da irresponsabilidade fiscal já ensaiada pelo Congresso estará pronta à sua espera. Paulo Guedes ficará pregando aos ventos a necessidade de reformas que dificilmente virão.

A pandemia parece agora acelerar essa dinâmica, a exemplo do que ocorreu politicamente em outros países.

O bolsonarismo se guia, como já foi dito, por uma pulsão de morte, pela fé em conflitos apocalípticos e no destino messiânico da liderança forjada na violência daquela esquina em Juiz de Fora.

Com a tempestade perfeita acionada pela pandemia na vida real e na economia, terá oportunidade única para testar ao limite suas motivações, salvo a hipótese de um surto de racionalidade de última hora abater-se sobre o país.


Igor Gielow: Motins estimulados pelo governo apontam politização dos quartéis

Confraternização do chefe da Força Nacional com PMs no Ceará acende alerta nos estados

Desde que as Forças Armadas cristalizaram a aliança com Jair Bolsonaro, já com o segundo turno da eleição de 2018 em curso, o risco da militarização da política foi cantado em prosa e verso.

Se tal movimento é praticamente impossível de negar, apesar do esforço da cúpula do serviço ativo para tentar distanciar-se de seus inúmeros membros no primeiro escalão do governo, seu corolário ainda era visto mais como uma hipótese assustadora do que como realidade.

Até aqui. A mão inversa da politização dos quartéis parece ter virado uma avenida, e o ponto de inflexão é o empenho do governo no estímulo velado aos motins policiais.

O tema estava na boca de governadores de estado ouvidos pela Folha nas duas últimas semanas, devido aos rumos da mobilização policial no Ceará —cujo saldo de 241 homicídios é um monumento à irresponsabilidade da gestão pública do país.

O malabarismo do ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública), que admitiu o óbvio (greve de policial é ilegal) para sapecar uma esperteza retórica (os policiais parados não seriam criminosos), acendeu luzes de alerta.

Elas se transformaram numa piscante árvore de Natal com o complemento feito pelo coronel Aginaldo Oliveira, da Polícia Militar do Ceará por origem, na chefia da Força Nacional por oportunidade.

Ele se esqueceu da distinção e chamou os amotinados de “gigantes” quando deveria estar enquadrando seus pares.

Oficiais da ativa e pelo menos dois governadores lembraram, nesta terça (3), que o último homem em missão semelhante que resolveu confraternizar com rebeldes acabou em desgraça —ninguém menos que o “general do Lula”.

Conhecido como G. Dias, o general Marco Edson Gonçalves Dias foi figura carimbada durante os oito anos de mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. Chefe da segurança presidencial, era boa-praça e chamava a atenção com sua lustrosa calva.

Após o fim do governo, ele foi chefiar uma tropa na Bahia. Em 2012, eclodiu um motim de PMs no estado. Num dado momento, na linha de frente, ganhou um bolo como presente de aniversário e resolveu bater um papo com a tropa aquartelada.

Prometeu-lhes anistia, ganhou uma remoção para um cargo burocrático seguido de uma ida expressa à reserva. Como diz um general que acompanhou o episódio à época, foi feito de exemplo.

Eram outros tempos. Para piorar, Oilveira integra a animada corte do bolsonarismo federal. Casou-se recentemente sob os olhares de Moro.

De branco a seu lado, a deputada Carla Zambelli (PSL-SP), uma das expoentes da bancada do selfie que emergiu das redes sociais estridentes para o Congresso em 2018.

Alguém pode apontar que Oliveira não é um oficial das Forças Armadas, e sim um policial. Cabe lembrar: PMs são forças de reserva e auxiliares do Exército, como define o artigo 144 da Constituição.

O militarismo de sua estrutura não é um detalhe, é o seu DNA. E a empolgação dos sacerdotes de missa negra do bolsonarismo pelo ideário policialesco é vista por integrantes dos dois corpos (o policial militar e o militar) como uma forma de legitimação.

Muitos oficiais e, principalmente, os mais jovens consideram o “ethos” vigente uma resposta ao suposto desprezo pela autoridade policial por parte das forças de esquerda que governavam o país —todas egressas do combate à ditadura de onde o arcabouço filosófico da PMs surgiu.

Nesse caldeirão, a frase de Oliveira com o beneplácito explícito de Moro e silencioso de outro superior, o secretário nacional de Segurança, general Guilherme Theophilo (aliás, ex-candidato a governador pelo PSDB do Ceará derrotado pelo petista ora sob pressão) soa natural.

Obviamente, não é, ou ao menos não deveria ser.

Se é verdade que a incompreensão da realidade dos policiais é uma marca registrada de partidos de esquerda, isso não significa que pessoas encapuzadas e armadas devam ser louvadas como meras trabalhadoras atrás de direitos.

Dois barris de pólvora se destacam: Minas Gerais, onde Romeu Zema (Novo) prometeu um aumento nababesco e inexequível de 41%, e Espírito Santo, terra em que Renato Casagrande (PSB) foi pela mesma linha.

Nos domínios capixabas, as feridas do motim de 2017 ainda não cicatrizaram, e o caso tem sido acompanhado com muita atenção em São Paulo.

No maior estado do país, o governo João Doria (PSDB) adotou uma retórica constante de valorização do trabalho policial —gerando inclusive as críticas previsíveis.

Por ora, a cúpula da segurança do estado vê a situação sob controle, mas há apreensão. Uma contaminação paulista do movimento nacional mudaria o status da crise.

Ninguém falará isso em público, mas entre aliados do tucano há o temor de que Bolsonaro busque desestabilizar o rival certo na eleição de 2022.

A tensão segue, num momento em que a fase mais aguda do embate entre Congresso e Planalto parece estar cedendo —embora não se saiba ainda o que será feito do ato do dia 15 em favor do governo e contra o resto.

Mal parafraseando T.S. Eliot, essa é uma crise que, tendo começado com um estrondo na forma de dois tiros de amotinados no peito do senador Cid Gomes (PDT-CE), não parece caminhar para o fim apenas com um sussurro


Igor Gielow: Manifestação pró-Bolsonaro explicita incômodo nas Forças Armadas

Volta de militares à ribalta é acompanhada de dúvidas sobre seu papel institucional

A modorra momesca acaba nesta quarta (26), tecnicamente, mas o feriado foi rico em maquinações para manter o caldeirão de sortilégios da política brasileira em um animado banho-maria.

Vários ingredientes estão à mesa, a começar pelo cerco da epidemia do novo coronavírus e a acabar pelo falatório do bolsonarismo, mas um deles se destaca: o clima de indigestão que se abate sobre as Forças Armadas brasileiras.

A minuta é conhecida: elas desprezavam Bolsonaro, se aproximaram do candidato, selaram um pacto com o vitorioso, estrearam com pompas no governo, foram achatados pelo chefe e pelo olavismo, ressurgiram e agora voltaram ao centro do palco.

Só que nem todo o alto oficialato está de acordo com o roteiro apresentado.

Há queixas aqui e ali sobre o sinal dado ao mundo político quando o Planalto foi ocupado de vez por generais de quatro estrelas, dois deles da ativa, isso para não falar em dois almirantes do mesmo escalão em outros postos.

A pressão foi assimilada pelo novo chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, que resolveu antecipar sua ida à reserva do Exército, marcada para o meio deste ano.

Mas esse movimento expôs um ponto central do mecanismo que liga o poder civil ao militar hoje, o general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo).

Ele segue na ativa, agregado ao cargo civil, como se diz no jargão. Ele já foi recomendado por colegas para ir para a reserva, mas sua data de baixa da ativo é junho de 2021 —um milênio na escala temporal de Brasília, então pelo sim, pelo não, ele prefere ter a possibilidade de voltar à Força.

Ramos ganhou o posto de general mais influente junto ao presidente Jair Bolsonaro e é parte da correia de transmissão que começa em Braga Netto e vai até o general Fernando Azevedo, ministro da Defesa e ex-chefe de ambos os oficiais no Comando Militar do Leste, e dali para a ativa.

Essa relação aberta tem causado incômodo. Dois generais, um almirante e um brigadeiro de topo de carreira, além de dois políticos muito próximos da área de defesa, comentaram que há riscos institucionais colocados.

Dois deles verbalizaram o raciocínio. Se hoje há militares na ativa do governo, eles trabalham para sustentar politicamente Bolsonaro. Isso é um sinal à tropa. Como ficaria se, por exemplo, o PT voltasse ao poder encarnado em algum poste de Lula em 2022? Eles dariam continência e voltariam para o quartel sem chiar?

É uma composição do Tinhoso. Não há nada de errado em gente fardada assumir postos civis, mas os limites parecem ultrapassados.

O Alto Comando do Exército tem tentado passar todo tipo de sinalização de que se mantém fora da política, como a ida de Braga Netto à reserva mostra, mas é insuficiente.

A porteira foi aberta, como a discreta inserção da Marinha no combinado prova. Não por acaso, não se ouve um pio da Força Aérea, a entidade mais sub-representada no primeiro escalão —a rigor, o astronauta Marcos Pontes (Ciência e um amontoado de coisas) não deve ser considerado cota dos brigadeiros.

O risco de contaminação reversa é decantado: quem conhece a caserna vê ampla simpatia entre os mais jovens ao bolsonarismo militante. Isso para não falar na sindicalização do sentimento, por assim dizer, nos motins ilegais de policiais Brasil afora.

Dadas as circunstâncias, talvez essa volta da ala militar fosse boa notícia se resultasse na retirada de protagonismo dos apopléticos olavistas do poder. O problema é que o velho coronavírus do bolsonarismo infectou o antigo decano da turma verde-oliva no Planalto, o general Augusto Heleno.

Em declínio de influência, ele resolveu jogar a institucionalidade inerente ao seu gabinete para o espaço e convocou o povo para ir às ruas contra o Congresso.

A coisa fermentou ao longo do feriado, na forma de tuítes dos filhos do presidente e a consequente replicação por um exército de robôs, fiéis e desalmados como aqueles soldados de terracota de Xian.

Isso levou a um impasse desagradável, dado que além de participar do governo, a ala militar viu seu antigo líder descambar para o conflito com outro Poder. Bolsonaro colocou panos quentes, mas o demônio está fora da garrafa e, como dito acima, ele encontra eco entre vários estratos militares.

Assim, a manifestação marcada para o dia 15 de março, em favor de Bolsonaro e inspirada pelo palavrão bradado por Heleno contra o Parlamento, se tornará outro ponto de inflexão da tortuosa crônica do papel dos militares no governo.

Não foi apenas um alto oficial que sugeriu a substituição de Heleno por outro general, o linha-dura Antônio Miotto, que irá para a reserva no meio do ano.

Atual comandante militar do Sul, ele é visto como um líder combatente nato, mas com zero tato político. Não se sabe, contudo, o grau de seu bolsonarismo —assume-se que menor do que o de Heleno, mentor da candidatura de um insubordinado capitão reformado desde quando ela era piada de salão em Brasília.

Seja como for, o ar está saturado nos meios militares. Não estamos em nenhum ponto de ruptura à la 1964, mas obviamente esta é uma situação longe de normal. Acomodação é necessária, mas no horizonte não se veem atores com tal perfil nesta hora aguda.