Hélio Schwartsman

Hélio Schwartsman: Centrão é virtuoso e Moro é petista

O centrão, vale lembrar, é sinônimo da "velha política"

Eu tento ser uma pessoa boa, mas nem sempre consigo. Confesso que experimento um certo prazer —uma "Schadenfreude", diriam os sempre precisos alemães— ao ver bolsonaristas contorcendo seus neurônios para processar a nova aliança do mito com o centrão ou ao se verem obrigados a reclassificar o ex-herói Sergio Moro como um traidor.

O centrão, vale lembrar, é sinônimo da "velha política", que Bolsonaro jurou que não teria vez em sua administração. Circula na internet um vídeo impagável em que o general Heleno, o fiador verde-oliva do governo, arrisca acordes em que sugere que todos os parlamentares do centrão são ladrões. Agora, Bolsonaro ameaça demitir os ministros que resistirem em ceder cargos para esses políticos.

Já Moro, que até alguns dias atrás emprestava à administração sua imagem de campeão da luta contra a corrupção, deixou o governo acusando Bolsonaro de crimes graves. É Moro que mudou ou Bolsonaro que mentiu?

O meu prazer é, de um ponto de vista cristão ou kantiano, condenável, porque se baseia no sofrimento mental por que essas pessoas passam ao lidar com contradições óbvias demais para serem ignoradas --dissonâncias cognitivas no vocabulário da psicologia. E cristãos e kantianos não deveriam extrair prazer da dor alheia. Mas não sou tão kantiano assim e nada cristão. Já que os eleitores de Bolsonaro nos impingiram esse estrupício, é justo que sofram pelo menos um pouquinho também.

Nossa janela para regozijo, porém, é curta. Uma série de trabalhos inaugurados por Leon Festinger nos anos 50 mostra que, quando confrontados com dissonâncias cognitivas, nossos cérebros fazem de tudo para dissolver as contradições e eliminar o sofrimento mental, mesmo que isso signifique criar fabulações e acreditar em mentiras. Em mais alguns dias, os bolsonaristas de raiz jurarão que o centrão sempre esteve do lado do bem e que Moro sempre foi petista.


Hélio Schwartsman: Podemos usar cobaias humanas?

Instituições podem beneficiar-se do risco assumido por indivíduos?

Até onde vai a autonomia das pessoas? Qual o nível de perigo que cada um de nós está autorizado a correr? Instituições podem beneficiar-se do risco assumido por indivíduos?

Ainda não temos uma vacina contra a Covid-19, mas estão em curso várias iniciativas para desenvolvê-la.

Fala-se, não sem uma boa dose de otimismo, em um ano e meio até que uma esteja disponível. O ponto central aqui é que, em tese, seria possível reduzir em vários meses o tempo de testes da vacina se permitirmos que voluntários que a tenham tomado se inoculem de propósito com o vírus para descobrir rapidamente se o imunizante de fato funciona. É ético fazê-lo?

No plano individual, não penso que haja muito espaço para dúvida. Se eu posso tentar escalar o Everest, por que não poderia correr um risco menor participando de um experimento em que me contaminasse propositalmente com o Sars-CoV-2? No primeiro caso, eu atenderia apenas a meu ego alpinístico, no segundo, estaria prestando um serviço à humanidade.

A questão se torna mais complexa quando perguntamos se é aceitável que uma instituição como a ciência, que deve sempre balizar-se por rígidos critérios éticos, participe de uma iniciativa que de algum modo coloque pessoas em perigo.

Eu concordo que, para a ciência, as linhas vermelhas devem ser mais estritas do que para indivíduos. Um experimento que envolva matar diretamente uma pessoa será sempre necessariamente antiético. Mas penso que, se o nível de perigo individual for relativamente baixo e o benefício esperado, alto, a ciência pode aceitar ações altruístas de voluntários, desde que estejam devidamente esclarecidos dos riscos e não se poupem esforços para minimizá-los ainda mais.

Na ética que pauta as investigações científicas, afinal, todas as vidas valem o mesmo e, no atual quadro pandêmico, cada semana de antecipação de uma vacina significa milhares de mortes a menos.


Hélio Schwartsman: Um tribunal que não se contém

O fato de o STF ter poder para fazer algo não implica que deva fazê-lo

É com dor no coração que hoje vou defender Jair Bolsonaro. Mais especificamente, vou problematizar a decisão do STF que suspendeu a investidura de Alexandre Ramagem no cargo de diretor-geral da Polícia Federal.

Comecemos pelo que a determinação não significa. Ela não significa um flagrante erro judicial nem uma espécie de golpe de Estado. Vivemos num sistema constitucional que dá ao Judiciário a última palavra em todas as questões que envolvam a interpretação da lei.

Minha objeção é que o fato de o STF ter poder para fazer algo não implica que deva usá-lo. Como já disse aqui diversas vezes, um sistema que confere tamanha força ao Judiciário só funciona bem se seus órgãos de cúpula souberem exercer a autocontenção, em especial nas questões que envolvem a separação de Poderes.

Isso significa, num caso como o de Ramagem, ater-se às exigências formais especificadas em lei, evitando evocar princípios constitucionais vagos e inescapavelmente subjetivos. É verdade que o artigo 37 da Carta diz que todos os atos da administração devem ser pautados pela impessoalidade e pela moralidade, entre outros quesitos. Mas existem no Brasil quase 20 mil juízes. Se cada um deles sentir-se autorizado a ignorar o que a lei inequivocamente especifica para impor sua concepção pessoal de moralidade, o país estará perdido.

Infelizmente, o STF vem adotando o caminho mais intervencionista já há algum tempo. Começou com as prisões do ex-senador Delcídio Amaral e do ex-deputado Eduardo Cunha —ambas em clara oposição à letra da Constituição— e fez escola com os vetos à nomeação de ministros por Dilma Rousseff e Michel Temer.

Isso significa que Bolsonaro deveria estar livre para interferir na PF? É claro que não. Mas o remédio para mais essa iniquidade do ex-militar é um processo por crime de responsabilidade ou por infração penal comum, não o encurtamento dos poderes presidenciais.


Hélio Schwartsman: Brasil fracassa na pandemia

Fracassamos no preparo, nos testes e até na contagem mortos

Hesitei muito antes de escrever esta coluna, mas acho que não há mais como adiar: a forma como o Brasil vem enfrentando a Covid-19 só pode ser classificada como um fracasso completo. Para mencionar apenas os pontos mais essenciais, fracassamos no preparo para lidar com a pandemia, fracassamos em testar nos níveis necessários para identificar os doentes e eliminar cadeias de contágio e fracassamos até mesmo em contar os mortos direito e enterrá-los com dignidade.

Não ignoro que a dificuldade é global. Faltam insumos no mundo inteiro. A carência atinge desde os sempre lembrados ventiladores até reagentes para os testes e itens de proteção pessoal como máscaras e viseiras. Faltam também produtos menos óbvios, como o swab, o "cotonete" usado nos exames moleculares.

Onde estão o governo e os engenheiros de produção? Por que o poder público não negociou com setores da indústria que estão ociosos a conversão de suas linhas para a produção emergencial de alguns desses itens?

Tampouco desconsidero o esforço, com enorme risco pessoal, das equipes de saúde. Minha mulher, Josiane, que é médica intensivista e cardiologista, já pegou o bicho e se recuperou, mas vários de seus colegas estão internados em estado crítico. A incapacidade das autoridades em fornecer equipamentos adequados de proteção custa vidas e desfalca as equipes num momento em que isso não poderia ocorrer.

Profissionais de saúde treinados para atuar em ambiente de UTI são outro gargalo importante.

O mais grave, porém, é nosso fracasso em testar de forma ampla para produzir números que permitam entender o que está acontecendo em cada área do país. Sem boas estatísticas fica impossível planejar os próximos passos, seja para ampliar o isolamento, seja para relaxá-lo, conforme a necessidade. Pior, sem testes em profusão, fica muito mais difícil promover uma estratégia de retomada controlada.


Hélio Schwartsman: Cuidado com as comparações

É preciso atenção para não cair em armadilhas que podem causar confusão

Jornalistas adoramos rankings e comparações entre países —e por bons motivos. A contextualização costuma ser uma rota eficaz para a compreensão. É preciso, porém, cuidado para não cair na armadilha das comparações que confundem mais do que esclarecem.

É o caso, infelizmente, das tabelas e gráficos que põem lado a lado o número de casos e de mortes por Covid-19 em vários países. Esses dados, frise-se, são importantes para uma série de mensurações, mas a comparação direta deles revela pouco.

O ponto central é a testagem. Como cada país tem uma política diferente de testagem, o número de casos confirmados e outros indicadores que dependem dele, como a morbidade por 100 mil habitantes e a taxa de letalidade, se tornam incomensuráveis. Um país que só teste doentes graves terá, por definição, uma letalidade alta, enquanto um que vá atrás até de pacientes assintomáticos apresentará um índice mais baixo (e mais próximo do real). Há que considerar ainda que diferentes países estão em diferentes fases da epidemia.

Contar só os mortos em vez dos doentes diminui o espaço para o erro, mas não o elimina. É difícil desaparecer com o cadáver, mas dá para fazer muita bagunça com a causa da morte. O governo da Bélgica, por exemplo, afirma que a alta mortalidade por Covid-19 registrada no país se deve à transparência com que apresenta os números. Ele contabiliza na coluna dos óbitos todos os casos suspeitos, mesmo sem confirmação laboratorial.

Uma comparação objetiva do desempenho de cada país poderá ser feita depois que epidemiologistas, de posse dos dados relevantes, como o excesso de mortes e os resultados das investigações sorológicas, traçarem o quadro completo de como cada nação se saiu.

O que dá para dizer por ora é que países que conseguiram evitar o colapso dos sistemas de saúde estão lidando melhor com a crise do que os que deixaram suas UTIs lotarem.


Hélio Schwartsman: O vírus chinês

Doenças mudam, mas o ser humano continua o mesmo

As doenças mudam, mas o ser humano continua o mesmo. Duas de nossas obsessões são equiparar nossos inimigos a agentes infecciosos e batizar agentes infecciosos com o nome de nossos inimigos. Não surpreende, portanto, que representantes da direita nacionalista se apressem em culpar a China pela Covid-19. Numa só tacada, acham o seu bode expiatório, que ainda calha de ser comunista.

A história da sífilis se encaixa nessa tendência de forma tão conspicuamente bem documentada que adquire uma dimensão até cômica. Infectologistas ainda debatem a real origem dessa doença, que adquiriu características epidêmicas na Europa no século 16. Mas não há dúvida de que ela era uma arma de propaganda perfeita contra inimigo ou desafetos.

Os franceses rapidamente a batizaram de "mal de Nápoles", enquanto os italianos a chamaram de "mal francês" ou, no bom latim corrente à época, "morbus gallicus". Cada nação que era afetada pela moléstia a denominava com o objetivo de responsabilizar o outro. "Mal germânico", "mal polonês", "mal espanhol" e "mal cristão" foram alguns dos nomes que o treponema recebeu.

O termo "sífilis", que soa quase poético, foi cunhado justamente num poema, escrito em 1530 por Girolamo Fracastoro, sobre a história do jovem pastor Syphilus, que recebeu uma doença horrível --a sífilis-- como punição por ter insultado Apolo. Fracastoro é um daqueles gênios do Renascimento, que antecipou a teoria do contágio por partículas infecciosas e criou o termo "fômites", usado até hoje em infectologia. Mas Fracastoro também era italiano e, por isso, intitulou seu poema "Syphilis sive morbus gallicus", que se lê "Sífilis ou o mal francês".

Obviamente, essa guerra de palavras nada fez para conter a epidemia, que só foi parcialmente controlada quando a ciência desenvolveu medicamentos eficazes. Entre seus impulsos atávicos e a ciência, fique com a ciência.


Hélio Schwartsman: E a África, gente?

Muitos países africanos que têm mais ministérios do que leitos de UTI 

Sem uma vacina que possa ser aplicada em larga escala, essa pandemia só vai acabar depois que a maioria dos terrestres tiver sido contaminada pelo Sars-Cov-2 e tornar-se imune a ele. Não vou considerar aqui a hipótese mais trágica, mas que não pode ser inteiramente descartada, de que infecções prévias não confiram proteção pelo menos parcial ao paciente.

Isso significa que, a menos que sua confiança na chegada relativamente rápida da vacina seja de 100%, as políticas de isolamento social que a grande maioria dos países abraçou precisam ser fortes o suficiente para evitar o colapso dos sistemas de saúde, mas não tão draconianas que impeçam o aparecimento gradual da chamada imunidade de rebanho.

O ritmo em que devem ocorrer tanto o isolamento como a retomada só pode ser calculado em nível local, levando em consideração itens tão variados como a capacidade da rede hospitalar e da realização de testes, a adesão da população às recomendações sanitárias, perfil demográfico, densidade urbana, hábitos de interação social etc.

Se tem lógica para a Suécia, onde mais da metade das residências é ocupada por apenas um morador, adotar uma forma mais relaxada de distanciamento —grande parte das infecções ocorre dentro de
casa—, essa mesma abordagem pode revelar-se desastrosa numa favela brasileira, onde quatro ou mais pessoas vivem num único cômodo, sem água corrente para a lavagem das mãos.

E a coisa pode ficar ainda pior. O que fazer no caso dos muitos países africanos que têm mais ministérios do que leitos de UTI? Não estou exagerando. Dez países africanos não têm nenhum ventilador; outros quatro contam com não mais que meia dúzia. Neste caso, a carência é tamanha que o próprio objetivo de proteger o sistema de saúde perde parte do sentido. Pode-se ainda defender o isolamento na esperança de que surja a vacina ou um remédio eficaz, mas aí já vira mais aposta do que gestão.

Hélio Schwartsman é jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".


Hélio Schwartsman: É ético torcer para que Bolsonaro adoeça?

Ele continua a atrapalhar o trabalho das autoridades sanitárias
 
Ele fez de novo. Em plena pandemia, participou de um protesto com pauta golpista e provocou aglomeração. Ao final de seu discurso, apareceu uma tossezinha suspeita. A pergunta que se impõe é se é ético torcer para que Bolsonaro contraia uma forma grave de Covid-19 e deixe de atrapalhar o trabalho das autoridades sanitárias.

A resposta depende do tipo de ética que você abraça. Para o consequencialista, que valora as ações pelos resultados que elas produzem, até a morte de um líder inepto pode ser classificada como positiva, se ela, por exemplo, acarretar mais vidas poupadas do que perdidas. O bonito das éticas consequencialistas é que elas são perfeitamente igualitárias. A vida do presidente vale o mesmo que a de um mendigo viciado em crack.

Assim, aqueles que estão convencidos de que a atitude de Bolsonaro, ao fragilizar o isolamento, resultará em mais doença e mais mortes estão filosoficamente legitimados a torcer para que ele experimente o seu "resfriadinho".

Embora eu creia que o consequencialismo é mais consistente do que os sistemas éticos rivais, é fato que ele não é inteiramente satisfatório. Poucos julgarão ética a conduta do médico que sacrifica um paciente saudável para, transplantando seus órgãos, salvar cinco vidas.

E isso abre o flanco para éticas deontológicas, que são aquelas que definem princípios fundamentais, como os de não matar ou não fazer nem desejar mal ao próximo, e os convertem em regras fortes. Nessa matriz, acalentar mesmo secretamente um pensamento de morte envolvendo o presidente já cheira a pecado.

Como disse, meus instintos são consequencialistas, mas tenho um lado, que podemos chamar de humanista ou até de carola, que faz com que me repugne a ideia de torcer pelo sofrimento ou a morte de alguém, por mais desprezível que seja essa pessoa. É claro que, se Bolsonaro insistir, meu lado nerd acabará dobrando o humanista.

*Hélio Schwartsman é jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".


Hélio Schwartsman: Previsões pós-pandêmicas

Temos a tendência de reagir exageradamente a crises que evoquem ameaça existencial

Leio com doses iguais de interesse e ceticismo as opiniões de filósofos, cientistas políticos e economistas sobre as grandes mudanças sociais que a pandemia deixará como herança. É claro que algumas coisas vão mudar. Como dizia Heráclito, nunca tomamos banho duas vezes no mesmo rio. Mas receio que previsões feitas no olho do furacão carreguem uma probabilidade ainda maior do que o normal de dar com os burros n’água.

Humanos temos a tendência de reagir de forma exagerada a crises que evoquem algum tipo de ameaça existencial. E temos bons motivos para isso. Todos os que caminhamos hoje sobre a Terra somos descendentes diretos daqueles que não brincavam com o perigo, ainda que eventualmente tenham pagado mico por correr da própria sombra. Nossos parentes mais relaxados não deixaram progênie.

Aqui temos de tomar cuidado para não misturar as estações. O fato de termos uma propensão inata ao superdimensionamento não implica necessariamente que haja histeria com a Covid-19, como sugere o presidente. É preciso separar nossos impulsos valorativos daquilo que efetivamente sabemos sobre a doença, que é pouco.

As estimativas para os parâmetros epidemiológicos do vírus variam enormemente. Podemos estar tanto diante de um cenário em que a Covid-19 se mostrará de três a quatro vezes pior do que uma gripe sazonal até algo mais próximo da gripe espanhola. Realmente, não se sabe ainda.

O que já dá para descartar é que estejamos lidando com uma peste negra, que ceifou 1/3 da população da Europa e da Ásia no século 14. Essa, sim, foi uma epidemia que deixou marcas profundas e duradouras na sociedade. Outros surtos produziram efeitos reais, mas bem mais sutis.

A imagem que me vem à cabeça é a dos motoristas apressados. Depois que veem um acidente grave na estrada, costumam respeitar os limites de velocidade, mas o bom comportamento só dura alguns quilômetros.

Hélio Schwartsman é jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".


Hélio Schwartsman: Dá para ignorar o presidente?

Não é simples para a imprensa aderir à estratégia de tornar Bolsonaro insignificante

Respondo hoje à provocação do leitor Jean Claude Villari: “Está muito claro que nosso presidente não é capaz de fazer leituras de cenários, por mais simples que sejam. Comete erros muito graves e inadmissíveis. A minha pergunta é por que a imprensa cede tanto espaço a essa figura?”.

Villari está entre os que acham que a mídia deveria somar-se a forças como Congresso, STF e até parte dos ministros que promovem uma espécie de boicote informal da Presidência, fazendo gestões para minorar os estragos que o voluntarismo irresponsável de Bolsonaro produz.

A causa é justa, mas receio que o papel institucional da imprensa seja um pouco diferente do das outras forças citadas. Não é tão simples para os meios de comunicação aderir à estratégia de tornar o presidente insignificante.

A missão da imprensa é dupla. De um lado, devemos proceder a uma espécie de curadoria da informação, zelando por sua veracidade, exatidão e relevância. Boa parte das declarações de Bolsonaro não passa por nenhum dos três filtros. De outro, precisamos registrar os principais acontecimentos do dia, sem tentar exercer poderes censórios. O jornalismo é, como diz o chavão, o primeiro rascunho da história.

Enquanto Bolsonaro era só um deputado do baixo clero, não era difícil ignorar as estultices que nunca deixou de proferir e noticiá-las apenas quando batiam algum recorde. Agora que é o presidente, é mais complicado adotar essa política. Sua caneta tem força.

Os dois objetivos da imprensa nem sempre são compatíveis, o que frequentemente nos deixa numa sinuca de bico. Se dermos ênfase à primeira missão, falhamos na segunda, e vice-versa. Penso que erraremos menos se noticiarmos sem filtros tudo o que o presidente diz e faz. Pode-se até argumentar que foi a insistência da mídia em divulgar seus desatinos que possibilitou a articulação de forças que vai tornando a crise mais administrável.


Hélio Schwartsman: Bolsonaro, a ciência e a ética

Nossas decisões são inapelavelmente determinadas pela ética ou pela falta dela

Hoje eu vou dar uma de filósofo chato e preciosista. Tornou-se um lugar-comum afirmar que Bolsonaro age contra a ciência e que suas atitudes diante da pandemia de Covid -19 são absurdas. Concordo que são absurdas, mas receio que não seja tão simples carimbá-las como anticientíficas.

Não me entendam mal, sou fã da ciência. É a ela que devemos quase todos os desenvolvimentos que tornaram a existência humana menos miserável nos últimos séculos. Mas, se quisermos usar os conceitos com algum rigor, a ciência nunca nos diz como devemos atuar.

Quem chamou a atenção para o problema foi David Hume (1711-1776). Para o filósofo, existe uma diferença lógica fundamental entre proposições descritivas, que são as que a ciência nos dá, e proposições prescritivas ou normativas, que são as que se traduzem em decisões de como agir. Nós nunca podemos extrair as segundas diretamente das primeiras. Esse passo necessariamente envolve valores, que não são do domínio da ciência, mas da ética.

Isso significa que a ciência só vai até certo ponto. Ela nos esclarece sobre o comportamento de vírus novos em populações suscetíveis, alerta para a força avassaladora da curva exponencial e vai nos municiando com os parâmetros epidemiológicos do Sars-Cov-2, sobre os quais ainda paira muita incerteza. O que fazemos com essas informações, porém, já não é da alçada da ciência.

Muitas vezes, os cenários traçados pelos especialistas são tão desequilibrados que não deixam margem a dúvida. A escolha sobre o que fazer se torna simples aplicação do bom senso. É o caso da adoção do isolamento social nesta primeira fase da epidemia. Em outras tantas, porém, sobrepõem-se camadas adicionais de complexidade, que precisamos sopesar à luz de valores.

O ponto central é que nossas decisões devem ser informadas pela ciência, mas são inapelavelmente determinadas pela ética —​ou pela falta dela.


Hélio Schwartsman: A avó de todas as vacinas

Corrida em busca de uma vacina contra a Covid-19 é notável

Nossa melhor esperança para uma volta à normalidade é o desenvolvimento de uma vacina contra a Covid-19. Há uma verdadeira corrida mundial por um imunizante. Apenas três meses após a identificação da doença, surgiram vários candidatos a vacina, alguns dos quais já estão sendo ministrados a humanos para testar a segurança e a intensidade da resposta imune.

É um feito notável, considerando que avanços em pesquisas de novas vacinas costumam medir-se em anos, não em meses. Ainda assim, não temos nenhuma segurança de que poderemos contar logo com um imunizante, se é que o Sars-Cov-2 é um vírus “vacinizável”. Nem todos são. Um prazo muito repetido na imprensa é o de um ano e meio a dois anos para um produto que possa ser usado em escala comercial.

Enquanto isso, na blogosfera nerd norte-americana, já há quem cogite apelar para a variolação. Para os muitos leitores que não devem estar familiarizados com o termo, a variolação é o ancestral das vacinações. Historicamente, consistiu em inocular pessoas com uma dose baixa do vírus da varíola, o que normalmente produzia uma infecção branda, mas que ainda assim proporcionava imunidade.

Da China medieval à África do século 20, foi praticada em diferentes épocas em várias partes do mundo. Caiu em desuso depois que Edward Jenner desenvolveu a primeira vacina de verdade contra a doença, no final do século 18.

A ideia de inocular propositalmente o Sars-Cov-2 em voluntários parece hoje maluca, mas, dependendo de como a epidemia evoluir, poderá deixar de ser. Meu receio, se a proposta dos passaportes de imunidade —que, diga-se, faz todo o sentido— prosperar, é que gente vulnerável que precisa desesperadamente trabalhar adote uma forma selvagem de variolação, expondo-se ao vírus sem preocupar-se com a dose no contágio nem com o necessário isolamento posterior, o que só agravaria a situação.