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Guilherme Amado: 72% dos brasileiros não querem flexibilizar acesso a armas. Por que Bolsonaro quer?

Pesquisa mostra que brasileiro não quer mais armas circulando na mão de cidadãos comuns e muito menos com caçadores, atiradores e colecionadores

Uma pesquisa ainda inédita mostrou que 72% dos brasileiros são contra a flexibilização da compra e do uso de armas, objetivo central dos decretos editados por Jair Bolsonaro e parcialmente suspensos por decisão de Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), na segunda-feira 12 de abril. Os números, levantados pelo Inteligência em Pesquisa e Consultoria (Ipec), instituto que substituiu o Ibope Inteligência, são ainda piores para o presidente quando se pergunta a opinião sobre cada decreto em específico. De uma maneira geral, o resultado mostra que o brasileiro não quer mais armas circulando na mão de cidadãos comuns e muito menos com caçadores, atiradores e colecionadores, os chamados CACs. No Brasil que caminha para as 400 mil mortes por Covid e todo ano registra mais de 40 mil homicídios, arma está longe de ser uma prioridade. Mas, se a população não quer mais pistolas, fuzis etc., quem o presidente de fato quer armar?

Na pesquisa do Ipec, 86% se disseram contra a permissão de que cidadãos comuns possam circular com duas armas ao mesmo tempo. Há ainda 81% que desaprovam o aumento de quatro para seis no número de armas que se pode comprar. Outros 88% são contrários à elevação da quantidade de armas que podem ser obtidas por caçadores, colecionadores e atiradores. Foram 2.002 entrevistados pessoalmente, em 143 municípios. A margem de erro é de dois pontos percentuais.

Rosa Weber suspendeu bem mais que isso. O decreto queria acabar com a necessidade de autorização prévia do Comando do Exército para os CACs, a criação da validade do porte de armas para todo o território nacional (hoje, os portes são estaduais), a possibilidade de clubes de tiro comprarem munição em quantidade ilimitada e a autorização para a prática de tiro esportivo por adolescentes a partir de 14 anos, entre outras medidas.

O único segmento de eleitores a que Bolsonaro até hoje não decepcionou foi o mais ideológico, um arco que inclui toda sorte de gente. Terraplanistas, extremistas, religiosos ultraconservadores e, entre outros, amantes de armas. Existe portanto um aceno a essa parcela de seu eleitorado quando ele se empenha para flexibilizar o acesso. Mas existe também o risco concreto de que a intenção vá além disso.

Bolsonaro já deu sinais claros de que não aceitará o resultado de 2022, caso saia derrotado. Questionará a legitimidade da eleição e muito provavelmente seguirá o mesmo roteiro de Donald Trump, afirmando que o pleito foi roubado. O presidente terá ali um tudo ou nada. Sabe que, se não conseguiu um novo mandato estando no cargo, a conjuntura de coincidências que o elegeu em 2018 dificilmente se repetirá. E é também provável que estimule saídas fora da lei para se manter no poder.

Os apoiadores, que, sob seu governo, viram explodir o número de armas que têm em casa vão deixá-las guardadas no armário ao sair às ruas para defender seu presidente?


Guilherme Amado: Senadores de oito partidos falam em impeachment de Bolsonaro por Covid, Veja prints

Em grupo de WhatsApp, conclamados por Tasso Jereissati, senadores de diferentes partidos concordaram sobre a necessidade uma CPI da Covid e de responsabilização de Jair Bolsonaro

Senadores de oito partidos, inclusive integrantes da base aliada, criticaram a postura de Jair Bolsonaro e defenderam a necessidade criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar e responsabilizar a atuação do presidente durante a pandemia.

A coluna teve acesso a prints de mensagens trocadas no sábado 27 no grupo de WhatsApp que reúne os 81 senadores, em que, conclamados por Tasso Jereissati, do PSDB do Ceará, senadores de PSD, MDB, PT, Cidadania, Rede, PROS, Podemos e Republicanos concoradaram com a necessidade de responsabilizar Bolsonaro.

Escreveu Jereissati, às 14h27 deste sábado:

"Senadoras e senadores, o presidente Bolsonaro esteve no Ceará, ontem, sexta-feira, quando cometeu pelo menos dois crimes contra a saúde pública, ao promover aglomerações sem proteção e ao convocar a população a não ficar em casa, desafiando a orientação do governo do estado e ainda ameacando o governo de não receber o auxílio emergencial. Desta maneira a instalação da CPI no Senado tornou-se inadiável. Não podemos ficar omissos diante dessas irresponsabilidades que colocam em risco a vida de todos brasileiros".

A partir daí, começaram os apoios.

"Toda razão amigo Tasso, o PR (Bolsonaro) afronta os governadores que estão na ponta cuidando da saúde nos estados, cabe ao Senado, a Casa da federação, contestar essa ação equivocada do PR JB, que leva a quebra de protocolos e leva à expansão da doença no país", escreveu Otto Alencar (BA), do governista PSD, acrescentando: "O PR receitou cloroquina, depois reconheceu que era placebo, muitos usaram. Aqui na Bahia alguns morreram por parada cardíaca, inclusive um médico morreu, Dr Moisés, de Ilhéus, por parada cardíaca".

"Isto, mestre Tasso. Dói na alma estas coisas. Ainda bem que temos governadores e prefeitos que cumprem seus deveres", criticou Confúcio Moura, do MDB de Roraima.

"Concordo 100%", escreveu Alessandro Vieira, do Cidadania do Sergipe.

"Concordo, Tasso", respondeu a senadora Zenaide Maia, do PROS do Rio Grande do Norte.

"Registrei imediatamente as inconsequentes posturas presidenciais, com o respeito cabível e exigível, ao fazer carreata no dia que se verificara o maior número de óbitos de nacionais", concordou Veneziano Vital do Rêgo, do MDB da Paraíba.

"Esse negacionismo já passou do limite. O Brasil já ultrapassou os 250 mil mortos e vamos ter lamentavelmente próximos dias muito graves em mortes e colapso da rede pública em vários estados", criticou Eduardo Braga, do MDB do Amazonas.PUBLICIDADE

"Concordo e apoio a iniciativa do senador Tasso! Nosso PR tem tido um comportamento totalmente errado em relação a como cuidar dos brasileiros no que diz respeito à pandemia. Desde o início, tudo errado. Não é razoável que depois de tudo o que aconteceu no mundo ele continue nagacionista", escreveu Oriovisto Guimarães, senador pelo Podemos do Paraná.

"Um depoimento que contrapõe a insensatez e dureza de coração de muitos", comentou Mecias de Jesus, líder do Republicanos e eleitor por Roraima, em cima de um vídeo em que o secretário de Saúde de Rondônia critica as aglomerações e faz um apelo pela conscientização.

"Concordo com Tasso Jereissati. Agora mais do que nunca sobejam razões para instalar a CPI", escreveu Randolfe Rodrigues, da Rede do Amapá.

"Uma grande verdade, Tasso! Está na hora", concordou Eliziane Gama, do Cidadania do Maranhão.

"Concordo plenamente. Não há outro caminho", acompanhou Humberto Costa, do PT de Pernambuco.

"Concordo 100% (II). Aqui em Natal, há 'discípulos' até hoje: o prefeito", escreveu Jean Paul Prates, do MDB do Rio Grande do Norte, compartilhando um vídeo em que o prefeito de Natal, Álvaro Costa Dias (PSDB), recomenda o uso de ivermectina, medicamento sem comprovação científica para o combate à Covid-19.


Merval Pereira: Passando do limite

Se havia alguma dúvida de que o presidente Bolsonaro queria ter um sistema de inteligência que o servisse, e à sua família, em termos pessoais, agora não há mais. É devastadora a revelação de Guilherme Amado na revista Época de que a Agência Brasileira de Informação (Abin) fez pelo menos dois relatórios para orientar a defesa do senador Flavio Bolsonaro na tentativa de anular as investigações do Ministério Público do Rio de Janeiro sobre o esquema de “rachadinha” montado por ele e outros deputados estaduais na Assembléia Legislativa do Rio.

O diretor-geral da Abin é ninguém menos que o delegado Alexandre Ramagem, o mesmo que Bolsonaro queria ter nomeado para a direção-geral da Polícia Federal, e foi impedido por decisão do ministro Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal. A alegação para proibir sua nomeação foi evitar o que aconteceu agora. O delegado tornou-se amigo da família quando passou a fazer a segurança pessoal do então presidente eleito Jair Bolsonaro, e a partir daí sua proximidade com o clã tornava sua nomeação potencialmente uma afronta ao princípio da impessoalidade, da moralidade e do interesse público, exigências para a nomeação de servidores.

Justamente no momento em que, por não concordar com a nomeação, o então ministro da Justiça, Sergio Moro, pedia demissão e acusava o presidente Bolsonaro de interferência na Polícia Federal. Aliás, esse caso da Abin já teve um começo escandaloso, quando foi denunciada pelo próprio Guilherme Amado uma reunião no Palácio do Planalto, com a presença do presidente Bolsonaro, do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), General Augusto Heleno, o diretor-geral da Abin, Alexandre Ramagem, com os advogados do senador Flavio Bolsonaro, para discutirem caminhos para a defesa do filho do presidente das investigações do Ministério Público do Rio de Janeiro.

Na ocasião, o ministro Augusto Heleno admitiu que houve a reunião, mas disse que nada foi feito porque verificou que aquela não era uma tarefa que dissesse respeito à segurança institucional do país. Já era escandalosa a reunião em si, mas a garantia de que nao houve consequências dela pareceu satisfazer. Os documentos obtidos pelo repórter da Época, porém, tiveram a autenticidade e a procedência confirmadas pela defesa do filho do presidente, o que colide com mais uma negativa do General Augusto Heleno, que voltou a afirmar que não partiram da Abin tais informações.

Acreditando-se no depoimento do General, e sabendo-se que os documentos vieram da Abin, por WhattsApp, para a defesa de Flavio, é factível acreditar que funciona na Abin uma inteligência paralela que alimenta a defesa do filho de Bolsonaro sem que o chefe da inteligência brasileira tenha conhecimento, o que aumentaria a gravidade do caso.

O caso do filho 04 do presidente Bolsonaro, Renan Bolsonaro, que teve a festa de inauguração de sua empresa de eventos filmada e fotografada gratuitamente por uma firma que tem contratos com o governo federal, é um trambique mixuruca, medíocre, coisa de republiqueta de banana. Comparável com o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, que perdeu o posto porque extorquia uns caraminguás do concessionário do restaurante da Casa.

Tem que punir, não se pode aceitar, mas o caso da Abin é gravíssimo, e passível de impeachment do presidente por improbidade administrativa. É o presidente usando órgãos de investigação do Estado brasileiro para proteger seu filho. E para desmoralizar outros serviços públicos, como a Receita Federal e o Coaf. Não se pode aceitar isso. Estamos vivendo num país em que coisas anormais viram normais.

Houve uma reunião no Palácio do Planalto, no gabinete do presidente, para usar a agência de segurança nacional, instituição do Estado brasileiro, para resolver problemas de acusação de corrupção da família do presidente.

É um coquetel de mal-feitos. Faz contato com a investigação que está sendo realizada no Supremo Tribunal Federal (STF) pela denúncia de interferência na Polícia Federal, dando indícios graves do que estava sendo tramado no entorno do presidente. Quem quiser ligar os pontos, terá uma imagem perfeita do que acontece nesse governo que mistura o público com o privado como nenhum outro.


Guilherme Amado: A Abin e a operação para ‘defender FB’ e enterrar o caso Queiroz

Abin produziu pelo menos dois relatórios de orientação para Flávio Bolsonaro e seus advogados sobre o que deveria ser feito para obter os documentos que permitissem embasar um pedido de anulação do caso Queiroz

A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) produziu pelo menos dois relatórios de orientação para Flávio Bolsonaro e seus advogados sobre o que deveria ser feito para obter os documentos que permitissem embasar um pedido de anulação do caso Queiroz. Nos dois documentos, obtidos pela coluna e cuja autenticidade e procedência foram confirmadas pela defesa do senador, a Abin detalha o funcionamento da suposta organização criminosa em atuação na Receita Federal (RFB), que, segundo suspeita dos advogados de Flávio, teria feito um escrutínio ilegal em seus dados fiscais para fornecer o relatório que gerou o inquérito das rachadinhas. Enviados em setembro para Flávio e repassados por ele para seus advogados, os documentos contrastam com uma versão do general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, que afirmou publicamente que não teria ocorrido atuação da Inteligência do governo após a defesa do senador levar a denúncia a Bolsonaro, a ele e a Alexandre Ramagem, diretor da Abin, em 25 de agosto.

Um dos documentos é autoexplicativo ao definir a razão daquele trabalho. Em um campo intitulado “Finalidade”, cita: “Defender FB no caso Alerj demonstrando a nulidade processual resultante de acessos imotivados aos dados fiscais de FB”. Os dois documentos foram enviados por WhatsApp para Flávio e por ele repassados para sua advogada Luciana Pires.

O primeiro contato de Alexandre Ramagem com o caso foi numa reunião no gabinete de Bolsonaro, em 25 de agosto, quando recebeu das mãos das advogadas de Flávio uma petição, solicitando uma apuração especial para obter os documentos que embasassem a suspeita de que ele havia sido alvo da Receita. Ramagem ficou com o material, fez cópia e devolveu no dia seguinte a Luciana Pires, que voltou ao Palácio do Planalto para pegar o documento, recebendo a orientação de que o protocolasse na Receita Federal. A participação da Abin, a partir daí, seguiria por meio desses relatórios, enviados a Flávio Bolsonaro, com orientações sobre o que a defesa deveria fazer.

No primeiro relatório, o que especifica a finalidade de “defender FB no caso Alerj”, a Abin classifica como uma “linha de ação” para cumprir a missão: “Obtenção, via Serpro, de ‘apuração especial’, demonstrando acessos imotivados anteriores (arapongagem)”. O texto discorre então sobre a dificuldade para a obtenção dos dados pedidos à Receita e, num padrão que permanece ao longo do texto, faz imputações a servidores da Receita e a ex-secretários, a exemplo de Everardo Maciel.

 “A dificuldade de obtenção da apuração especial (Tostes) e diretamente no Serpro é descabida porque a norma citada é interna da RFB da época do responsável pela instalação da atual estrutura criminosa — Everardo Maciel. Existe possibilidade de que os registros sejam ou já estejam sendo adulterados, agora que os envolvidos da RFB já sabem da linha que está sendo seguida”, diz o relatório, referindo-se a José Tostes Neto, chefe da Receita.

O relatório sugere a substituição dos “postos”, em provável referência a servidores da Receita, e, sem dar mais detalhes, afirma que essa recomendação já havia sido feita em 2019.

“Permanece o entendimento de que a melhor linha de ação para tratar o assunto FB e principalmente o interesse público é substituir os postos conforme relatório anterior. Se a sugestão de 2019 tivesse sido adotada, nada disso estaria acontecendo, todos os envolvidos teriam sido trocados com pouca repercussão em processo interno na RFB!”, explica o texto.

A agência traça em seguida outra “alternativa de prosseguimento”, que envolveria a Controladoria-Geral da União (CGU), o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) e a Advocacia-Geral da União (AGU).

“Com base na representação de FB protocolada na RFB (Tostes), CGU instaura sindicância para apurar os fatos no âmbito da Corregedoria e Inteligência da Receita Federal; Comissão de Sindicância requisita a Apuração Especial ao Serpro para instrução dos trabalhos. Em caso de recusa do Serpro (invocando sigilo profissional), CGU requisita judicialização da matéria pela AGU. (...) FB peticiona acesso à CGU aos autos da apuração especial, visando instruir Representação ao PGR Aras, ajuizamento de ação penal e defesa no processo que se defende no RJ”, recomenda o texto, resumindo qual é a estratégia: “Em resumo, ao invés da advogada ajuizar ação privada, será a União que assim o fará, através da AGU e CGU — ambos órgãos sob comando do Executivo”.

Ainda nesse primeiro documento, outros dois servidores federais são acusados pela Abin, o corregedor-geral da União, Gilberto Waller Júnior, e o corregedor da Receita, José Barros Neto.

“Existem fortes razões para crer que o atual CGU (Gilberto Waller Júnior) não executar(ia) seu dever de ofício, pois é PARTE do problema e tem laços com o Grupo, em especial os desmandos que deveria escrutinar no âmbito da Corregedoria (amizade e parceria com BARROS NETO)”, disse o texto.

Um parêntese curioso. Neste trecho, já no fim do documento, a Abin, comandada pelo delegado da PF Alexandre Ramagem, sugere que Bolsonaro demita Waller Júnior da Corregedoria-Geral e coloque no lugar dele um policial federal: “Neste caso, basta ao 01 (Bolsonaro) comandar a troca de WALLER por outro CGU isento. Por exemplo, um ex-PF, de preferência um ex-corregedor da PF de sua confiança”.

O outro documento enviado pela Abin a Flávio e repassado por ele a sua advogada traça uma “manobra tripla” para tentar conseguir os documentos que a defesa espera.

As orientações da agência aqui se tornam bem específicas.

“A dra. Juliet (provável referência à advogada Juliana Bierrenbach, também da defesa de Flávio) deve visitar o Tostes, tomar um cafezinho e informar que ajuizará a ação demandando o acesso agora exigido”, diz a primeira das três ações, chamadas pela Abin de “diversionária”.

Em seguida, o texto sugere que a defesa peticione ao chefe do Serpro o fornecimento de uma apuração especial sobre os dados da Receita, baseando-se na Lei de Acesso à Informação — o que de fato a defesa de Flávio Bolsonaro faria. A Abin ressalta que o pedido deve ser por escrito. “O e-sic (sistema eletrônico da Lei de Acesso) deve ser evitado pois circula no sistema da CGU e GILBERTO WALLER integra a rede da RFB”, explicou a Abin.

E, por fim, o relatório sugere “neutralização da estrutura de apoio”, a demissão de “três elementos-chave dentro do grupo criminoso da RF”, que “devem ser afastados in continenti”. “Este afastamento se resume a uma canetada do Executivo, pois ocupam cargos DAS. Sobre estes elementos pesam condutas incompatíveis com os cargos que ocupam, sendo protagonistas de diversas fraudes fartamente documentadas”, afirma o texto, sem especificar que condutas seriam essas. E cita os nomes de três servidores: novamente o corregedor José Barros Neto; o chefe do Escritório de Inteligência da Receita no Rio de Janeiro, Cléber Homem; e o chefe do Escritório da Corregedoria da Receita no Rio, Christiano Paes. Num indicativo de que Bolsonaro talvez esteja seguindo a recomendação da Abin contra os servidores, Paes pediu exoneração do cargo na semana passada.

Procurado, o GSI negou a existência dos documentos, mesmo informado que a autenticidade de ambos havia sido confirmada pela defesa de Flávio Bolsonaro, e manteve a versão de que não se envolveu no tema. Procurada, a advogada Luciana Pires confirmou a autenticidade dos documentos e sua procedência da Abin, mas recusou-se a comentar seu conteúdo.

A Abin não respondeu aos questionamentos sobre a origem das acusações feitas nos relatórios nem se produziu mais documentos além dos dois obtidos pela coluna. Alexandre Ramagem, diretor da agência, atualmente voltou a ser cotado para comandar a Polícia Federal, caso Bolsonaro seja inocentado no inquérito que investiga se ele queria controlar a corporação ao nomear Ramagem, amigo de seus filhos, para a direção da PF.


Guilherme Amado: Esquerda e direita democráticas têm de acordar

Bolsonaro não vai sair nem abrandar o modo autoritário como governa enquanto Lula não estiver ao lado de Janainas, Renans ou Amoêdos

Quem conheceu a trajetória de Jair Bolsonaro até o Planalto sabia que chegaria o momento em que, uma vez eleito, ele deixaria de lado o falso respeito que, candidato, parecia ter adquirido pelas instituições e voltaria a flertar com uma ruptura institucional, como fazia sem constrangimento na Câmara dos Deputados. A dúvida era somente quando. Bolsonaro despreza a democracia, como mostrou em sua vida pública e agora comprova no exercício da Presidência. Perto de completar um ano e meio no terceiro andar do Planalto, o presidente felizmente não tem força para realizar o que parece ser seu plano: governar sozinho, sem instituições que lhe apontem os erros ou lhe criem obstáculos, mas isso não o impede de, domingo após domingo, seguir tentando.

Por isso, Congresso, Supremo Tribunal Federal (STF), imprensa, sociedade civil e diferentes segmentos organizados, como advogados, médicos, artistas, atletas, professores e operários, entre dezenas de outros, vêm fazendo a contraposição à escalada autoritária do presidente, impondo-lhe os freios próprios da democracia. Em abril, a conduta de Bolsonaro contra a pandemia fez a oposição ser ampliada, reunindo governadores de direita. Na última semana, um novo passo foi dado, com movimentos suprapartidários reunindo um espectro ainda mais diverso de opositores. Parecia ganhar corpo a sonhada frente ampla, de pessoas que podem ter discordâncias políticas, mas convergem sobre a democracia. Eis que Lula, em uma reunião virtual do PT, disse não topar estar ao lado de quem apoiou o impeachment de Dilma Rousseff ou defendeu a reforma trabalhista. À direita, a rechaça ao suprapartidarismo foi acompanhada por Janaina Paschoal, deputada estadual em São Paulo e ex-aliada de Bolsonaro; Renan Santos, coordenador nacional do MBL; João Amoêdo, presidente do Novo; e outros. Os três, a exemplo de Lula, dizem querer a saída do presidente, mas também não topam estar ao lado de quem diverge deles em outros temas. Dizem desconfiar do real interesse por trás desses manifestos.

Os três mais expressivos movimentos que pregam a união entre diferentes são o Estamos Juntos, o Basta! e o Somos 70 por Cento. Inspirado nas Diretas Já, o Estamos Juntos prega a defesa da vida, da liberdade e da democracia. Seu manifesto foi assinado inicialmente por artistas, intelectuais e políticos de campos ideológicos diversos, de Marcelo Freixo, do PSOL do Rio de Janeiro, a Pedro Cunha Lima, do PSDB da Paraíba. É um dos mais diversos: agregou na semana passada até Alexandre Frota, do PSDB de São Paulo, e abriu para adesões na internet. Com isso, já beira 300 mil assinaturas.

O Basta! é organizado por juristas e advogados, majoritariamente progressistas, mas também alguns conservadores. Reúne ex-ministros da Justiça, como José Eduardo Cardozo e José Carlos Dias, o ex-governador de São Paulo Cláudio Lembo, e juristas como Dalmo Dallari, Celso Lafer e Tércio Sampaio Ferraz Junior. Também abriu para assinaturas na internet, e alcançou 50 mil apoios. Cobra respeito à Constituição e às instituições.

O Somos 70 por Cento foi criado pelo economista Eduardo Moreira, e começou como uma hashtag, que se refere ao apoio de cerca de 30% que Bolsonaro apresenta nas pesquisas (embora algumas já indiquem há algumas semanas um “ótimo e bom” mais perto dos 25%). Reúne políticos de variados partidos e celebridades geralmente distantes de debates políticos dessa natureza, a exemplo de Xuxa.

A diversidade de nomes é intrínseca ao propósito desses movimentos. Ninguém espera que Luciano Huck e Marcelo Freixo, ambos signatários do Estamos Juntos, concordem sobre autonomia do Banco Central ou se o empresário brasileiro sofre ou não com o excesso de tributos. Mas os dois certamente concordam que não há previsão constitucional de uma intervenção militar. Concordam que não pode haver agressão de nenhuma natureza a jornalistas. Concordam que é inadmissível um ministro da Educação que pregue a prisão de ministros do STF. Concordam que há uma máquina de destruição de reputações que serve ao método do presidente de governar pelo ódio.

Escrevi faz algumas semanas aqui que a oposição havia ganhado força, com João Doria, Ronaldo Caiado, Wilson Witzel e outros governadores rompendo com Bolsonaro. Naquela semana, Doria e Lula haviam trocado no Twitter palavras que, pela primeira vez em anos, não eram de ofensas mútuas. Foi um escarcéu. Muitos tucanos, petistas e até analistas políticos viram naquilo um erro estratégico das duas partes, defendendo que eles deveriam manter o clima de nós contra eles que, durante duas décadas, como disse Fernando Henrique, lhes tornou a vanguarda do atraso. E que, de certa maneira, contribuiu para a ascensão de Bolsonaro.

Eleitoralmente, de fato, qualquer união é impossível, ao menos por enquanto. Aloizio Mercadante, hoje presidente do braço de estudos do PT, a Fundação Perseu Abramo, disse em entrevista para a coluna, no site de ÉPOCA, que o PT só toparia conversar num segundo turno sobre união com a direita em 2022. No primeiro, admitiu que nem a esquerda estará junto.

“Mas neste momento uma aliança contra Bolsonaro não é sobre eleição”

O presidente não vai sair nem abrandar o modo autoritário como governa enquanto Lula não estiver ao lado de Janainas, Renans ou Amoêdos. Direita e esquerda terão de se unir, tal qual feito em 1992.

O PT hoje é um dos que mais cria obstáculos para essa união. Lula, que em outros momentos, 1992 inclusive, soube fazer pontes, tem insistido no sectarismo e vem colocando sua tropa de choque para alimentar a discórdia com Ciro Gomes, com quem rompeu em 2018. A postura tem recebido críticas entre cabeças coroadas do partido. José Dirceu contrariou-o, em entrevista na semana passada ao UOL, e defendeu o óbvio: se não houver uma aliança sequer na esquerda, com Lula e Ciro voltando a conversar, qualquer avanço será bem mais difícil. Jaques Wagner também foi na mesma linha no Twitter, ao compartilhar uma fala de Ciro e mostrar concordância.

Na direita, também há quem esteja disposto a mudar posturas de décadas em nome de enfrentar Bolsonaro. O tucano Arthur Virgílio, prefeito de Manaus e um dos mais ferrenhos opositores que Lula enfrentou no Senado, decidiu entrar de maneira mais ativa na trincheira pela saída do presidente. “Bolsonaro quer dar um golpe. Não acho que teria apoio das Forças Armadas, até porque os militares não apoiariam alguém tão despreparado para governar como ele. Mas é a hora de procurar quem são os democratas. Mesmo que você seja um ferrenho adversário daquela pessoa, mas ele é um democrata, você deve procurá-lo”, afirmou, admitindo que topa caminhar ao lado do PT, ainda que não eleitoralmente: “Não olhe para 2022. Você tem de olhar neste momento para aliados contra uma tentativa ditatorial. Estou falando de alianças em votações de plenário, manifestações junto à sociedade civil, manifestações para a imprensa. Em política econômica, concordo mais com o Paulo Guedes do que com o PT, mas concordo com o PT em não deixar arranhar a Constituição, em não haver nenhuma mudança que permita a perpetuação deste governo que está aí”.

Por sorte, do outro lado do balcão também há fissuras. As Forças Armadas, embora concordem com Bolsonaro sobre as críticas que ele faz ao STF, não mostram disposição para embarcar numa aventura golpista. Edson Pujol, comandante do Exército, a Força em cujos quartéis a política entrou com mais força, tem exercido um silêncio público estratégico e, internamente, continua preferindo cumprimentar Bolsonaro com o cotovelo. Também parece controlado o risco de que as patentes mais baixas ou as polícias estaduais sejam a mão armada de que Bolsonaro precisaria.

Bolsonaro hoje não tem força para a ruptura institucional que seu filho Eduardo já disse ser só uma questão de “quando”. Enquanto não houver um entendimento mínimo que faça existir uma esmagadora maioria contra o presidente e a forma como ele até agora governou, nada mudará. Não só ele não sairá, como, bem a seu estilo, tensionará mais e mais os limites da democracia. E aí, no momento em que chegar o “quando” de Bolsonaro, poderá ser tarde para os democratas se unirem.


Guilherme Amado: Como Fukuyama, Levitsky e Mounk veem a situação do Brasil

Conversei nos últimos dias com três dos maiores especialistas mundiais em democracias. Suas respostas mostram como a visão do presidente entre a nata da ciência política mundial é ainda pior do que a que grande parte da população brasileira tem hoje

Jair Bolsonaro costuma dizer que jornalistas e analistas brasileiros são demasiadamente críticos com seu governo, por considerar injusto que se apontem os erros de sua gestão e os excessos e irregularidades cometidos por alguns de seus familiares. Mas o Bolsonaro 2020 está muito pior do que o Bolsonaro 2019, e nada sugere que um Bolsonaro 2021 vá ser melhor do que o atual. Não bastasse o descaso com as mais de 25 mil mortes por Covid-19, doença cujo combate ele mais atrapalha que ajuda, o presidente passou, neste ano, a flertar ele mesmo com uma ruptura democrática, volta e meia usando as Forças Armadas como um espantalho, como se colocasse medo no restante da sociedade. Ou se faz o que ele quer, sem Supremo Tribunal Federal ou Congresso se contrapondo, ou ele usa os militares para dar um golpe. É quando esse tipo de comportamento é criticado que o presidente se irrita. Pensando em dar mais pluralidade à análise do governo, conversei nos últimos dias com três dos maiores especialistas mundiais em democracias. Perguntei aos americanos Francis Fukuyama e Steven Levitsky e ao alemão Yascha Mounk como eles veem a crise atual do governo do ex-capitão e o combate à Covid-19 no Brasil.

As respostas mostram como a visão do presidente entre a nata da ciência política mundial é ainda pior do que a que grande parte da população brasileira tem hoje.

Bolsonaro foi detectado por Francis Fukuyama como uma ameaça democrática séria muito antes do que aqui no Brasil. O americano, um dos mais estrelados nomes da Universidade Stanford, na Califórnia, colocou em 2017 o então deputado federal na aula sobre democracia que dá há anos aos alunos da graduação. Bolsonaro era citado como integrante do que ele chama de Internacional Populista, ao lado do húngaro Viktor Orbán, do americano Donald Trump e da francesa Marine Le Pen. Por causa disso, Fukuyama me deu uma entrevista, publicada no jornal O GLOBO exatamente um ano antes de Bolsonaro ser eleito, em que ele afirmava, sem rodeios, que o então candidato era um “populista perigoso”. Foi chamado de comunista pelos seguidores do presidente, o que chega a ser ao mesmo tempo revelador da ignorância do séquito bolsonarista e engraçado: a carreira de Fukuyama foi marcada pelo ensaio O fim da história?, publicado em 1989, onde defendia que o desenvolvimento levara a um fim da história não marxista — ou seja, uma utopia comunista —, mas sim hegeliano, de um Estado liberal com uma economia de mercado.

Fukuyama, portanto, acompanha Bolsonaro há tempos. Não se informa somente pelo que lê na imprensa americana. Tem fontes no Brasil, com quem conversa regularmente para tomar pé da situação, e é provavelmente por isso que impressiona o nível de conhecimento que tem da política brasileira. “Tenho acompanhado os acontecimentos no Brasil com grande preocupação. Meu maior temor é que Bolsonaro vá chamar o Exército para se manter no poder, à medida que sua popularidade afunda”, alertou, fazendo uma ressalva: “A pergunta, para mim, entretanto, é se o Exército vai querer tomar o poder nessas circunstâncias, tendo de lidar com a epidemia e com uma economia colapsada”.

Até aqui, a cúpula das Forças Armadas de fato tem demonstrado seguir o livrinho de 1988. O atual comando do Exército é em alguns aspectos até mais obediente à Constituição do que o anterior. Edson Pujol não tem conta no Twitter nem se mete publicamente em assuntos civis, como fazia Eduardo Villas Bôas, o ex-comandante do Exército que Bolsonaro disse ser “um dos responsáveis” por ele ter sido eleito e cuja filha tem um emprego no Ministério dos Direitos Humanos, com um salário de R$ 10 mil.

Do outro lado da costa americana, o professor de Harvard Steven Levitsky é alguns decibéis mais duro com Bolsonaro. Levitsky escreveu, com Daniel Ziblatt, um dos livros de cabeceira para entender a crise atual das democracias, Como as democracias morrem, em que analisam a eleição de Donald Trump em 2016 e diversos regimes autocratas no mundo, fazendo uma autópsia de como nem só com golpes se mata uma democracia, mas também por meio de líderes eleitos democraticamente, que vão usando artifícios dentro da legalidade para aos poucos restringir liberdades. É o que vem ocorrendo no Brasil, por exemplo, com a liberdade de imprensa, quando jornalistas são obrigados a se retirar da porta do Palácio da Alvorada por não ter mais segurança para trabalhar.

Levitsky avalia que a pandemia está ensinando o preço de eleger populistas. “Populistas como Jair Bolsonaro chegaram ao poder criando sua própria versão da realidade: uma narrativa em que eles são os heróis de que os países desesperadamente precisam e quem deles discorda é um vilão sinistro. Mas, nos últimos meses, muitos países aprenderam como é caro o preço que pessoas comuns acabam pagando por esse voo rumo à fantasia”, analisou, avaliando a resposta brasileira à Covid-19 como entre “as piores do mundo”. “Comparando ao redor do mundo, a resposta do governo brasileiro está, tragicamente, entre as piores. Bolsonaro é um de um punhado de presidentes populistas — Trump é outro — que negaram a seriedade da pandemia e teimosamente recusaram-se a tomar providências para proteger dezenas de milhares de vidas.”

O terceiro com quem conversei foi Yascha Mounk, também professor de Harvard e da Johns Hopkins, em Washington. Seu O povo contra a democracia mostra como governos antissistema querem restituir o poder ao “povo” — com essa nomenclatura, mas referindo-se apenas à parcela da população que mais os apoia —, e ir contra qualquer obstáculo institucional (alô, STF, alô, Congresso!). É a turma verde-amarela que vai para a porta do Planalto aos domingos pedir o fechamento dos dois outros Poderes, ignorando ou fingindo ignorar que é porque existem os outros Poderes e por haver democracia que eles estão ali protestando.

Mounk também é duro ao analisar a resposta brasileira à pandemia. “O Brasil é agora um dos países com o mais alto número de casos de coronavírus no mundo. O vírus ainda está se espalhando pelo país e num ritmo rápido. E a taxa de mortalidade está crescendo todos os dias. O Brasil teria de ter se esforçado em conter o vírus”, criticou.

Para o alemão, a eleição de Bolsonaro foi o evento mais importante da história do Brasil desde o fim da ditadura. No prefácio da edição brasileira de seu livro, em 2019, Mounk já havia sido direto ao prever o que seria o período Bolsonaro: “Pelos próximos anos, o povo terá de lutar pela própria sobrevivência da democracia liberal”. Agora, quando lhe perguntei sobre a situação atual, não poupou adjetivos: “Até um governo competente teria penado para impedir o sofrimento que agora está na casa de tantos brasileiros. Mas o que faz a situação brasileira atual tão triste e revoltante para observadores externos é a inação desavergonhada, temerária e, vamos dar o nome certo, criminosa do presidente”.

Mas nada disso há de importar a Bolsonaro. Certamente Fukuyama, Levitsky e Mounk devem ser petistas empedernidos que querem fazer do Brasil uma nova Venezuela.


Guilherme Amado: O silêncio sem inocentes

Todos se calaram diante da festa de despautérios que foi a reunião ministerial de 22 de abril. Talvez porque, para os 40 ali presentes, fosse só mais um dia como outro qualquer no governo

A reunião ministerial do dia 22 de abril, aquela em que Sergio Moro afirmou ter sido ameaçado pelo presidente, caso não entregasse a ele o comando da Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro, tem tudo para se tornar um retrato sem retoques do que é o governo Bolsonaro. O que já se sabe do encontro, mesmo antes de seu vídeo se tornar público, é de extrema gravidade. O presidente afirma querer trocar a chefia da Polícia Federal (PF) em seu estado para proteger a família e os amigos.

O ministro da Educação defende a prisão dos ministros do Supremo e a dos Direitos Humanos a dos governadores e prefeitos. O chanceler ataca a China e diz que estamos todos sendo tragados pelo… tchan, tchan, tchan… comunavírus. Poderia parecer um esquete da Escolinha do Professor Raimundo não estivessem todos no terceiro andar do Palácio do Planalto, enquanto do lado de fora o país já contava naquele dia quase 3 mil mortos. Mas o episódio traz ainda outro significado grave. Havia ali pelo menos 40 pessoas — isso é o que mostram os 33 registros que o fotógrafo Marcos Corrêa, da Presidência da República, fez naquele dia.

Ninguém se insurgiu contra essa festa de despautérios. Nem mesmo os ministros tidos como os mais técnicos, a exemplo do titular da Economia, Paulo Guedes; a da Agricultura, Tereza Cristina; o advogado-geral da União e agora na Justiça André Mendonça; ou o controlador-geral da União, Wagner Rosário. Todos se calaram diante de tudo isso. Talvez porque o “tudo isso” seja novo para a sociedade como um todo, mas, para os 40 ali presentes, fosse só mais um dia como outro qualquer no governo.

Um ex-diretor da Polícia Federal se surpreendeu, ao saber do teor do vídeo na semana passada, por Sergio Moro não haver citado nada disso até então. Não há surpresa nisso, entretanto. Moro fez parte desse governo por 16 meses, reuniões como essa aconteciam com certa frequência. Ouvir Abraham Weintraub falar em prender os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) ou Damares Alves defender o mesmo para os demais chefes de Executivo não deve ter sido o primeiro absurdo que presenciara. Para ele, provavelmente, era mais do mesmo. E se calou.

O fato de ser mais do mesmo não isenta ninguém ali. Os chineses, principais clientes do agro brasileiro, terão razão se questionarem Tereza Cristina por que ela se calou ao ouvir os presentes culparem a China pelo coronavírus. Do chanceler Ernesto Araújo, ninguém espera mesmo coerência. Mas a discreta ministra da Agricultura poderia ter ponderado que, em que pesem os erros da ditadura chinesa, culpar os chineses como povo pelo vírus poderia suscitar xenofobia. Mas se calou.

Outros ministros que deveriam estar envolvidos no combate à corrupção, a exemplo de Wagner Rosário e de André Mendonça, poderiam ter se somado a Moro e defendido que Bolsonaro não deveria intervir na Polícia Federal nem proteger familiares e amigos. Mendonça, que torce para ser indicado por Bolsonaro para o STF, poderia ter interrompido Weintraub ao dizer que só ditaduras (nem todas) prendem juízes arbitrariamente. Mas nada disso foi feito. Eles também se calaram.

A reunião como um todo foi tensa. Bolsonaro criticou, de maneira dura, a inércia do governo em evitar que pessoas sejam detidas por circularem durante a pandemia em locais proibidos pelos decretos municipais e estaduais. A crítica foi feita no dia em que familiares do deputado federal Luiz Lima haviam sido detidos pela polícia do Rio de Janeiro por violar as regras da cidade, que impedem o banho de mar neste período. Pedro Guimarães, presidente da Caixa Econômica, interveio nesse momento e, em tom exaltado, disse que, se tentassem prender algum familiar seu numa situação parecida com a que ocorrera com a família de Lima, não aguentaria e iria às vias de fato para impedir.

Atacando João Doria e integrantes do governo Witzel, Bolsonaro defendeu a liberdade de ir e vir das pessoas e disse que, diante da inércia de ministérios nesse período, teria de “entrar” nas pastas e demitir quem fosse necessário para fazer valer sua visão. Era mais um recado para Moro.

O curioso é que nada disso era oficialmente o tema da reunião, convocada para que fosse feita a apresentação do programa Pró-Brasil, que prega a participação do Estado na retomada econômica. Daí a imagem, ao fundo das fotos, da logomarca do projeto, aquela só com crianças europeias. Desenhado por Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, e abraçado pelos ministros da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, e das Minas e Energia, Bento Albuquerque, o Pró-Brasil foi alvo da crítica de Paulo Guedes durante a reunião, que já chegara para o encontro irritado. Pouco antes do começo, quando Marinho tentou falar com Guedes privadamente, o chefe da equipe econômica respondeu que não conversaria mais em particular com o colega, só com testemunhas. Tudo já estava tenso antes mesmo de começar.

“A quem interessa esconder tudo isso? Aos ‘patriotas’, segundo o general Augusto Heleno, que foi ao twitter dizer que é um ‘ato impatriótico’ pedir que o vídeo seja tornado público”

“Pleitear que seja divulgado, inteiramente, o vídeo de uma Reunião Ministerial, com assuntos confidenciais e até secretos, para atender a interesses políticos, é um ato impatriótico, quase um atentado à segurança nacional”, escreveu Heleno, na quarta-feira 13.

Na visão torta de patriotismo do ministro, o certo parece ser que os governantes possam, a portas fechadas, ameaçar outras instituições, tramar a privatização da Polícia Federal e, sem compromisso com os fatos, considerar que milhares morrem não por causa de uma doença altamente contagiosa, mas devido a uma terrível orquestração comunista. E que diabo de assunto confidencial é esse, discutido entre 40 pessoas, em meio a assessores de imprensa, fotógrafo, cinegrafista e ajudantes de ordem?

Voltando ao terreno da lógica, o inquérito sob o comando de Celso de Mello já conseguiu concluir que o presidente queria intervir na Polícia Federal no Rio de Janeiro. Há notícia de pelo menos um inquérito em que seu filho, Flávio Bolsonaro, era alvo. Na PF como um todo, havia uma série de interesses outros para fazer o presidente querer ter um amigo como Alexandre Ramagem na direção, alguém que, como ele mesmo disse, dividia com ele seus pães com leite condensado. Os investigadores querem, entretanto, avançar mais na caracterização dos possíveis crimes em que o presidente possa ter incorrido. Não haveria, ainda, certeza para uma denúncia, o que não chega a ser um problema, considerando que há menos de três semanas de inquérito.

Mesmo que do ponto de vista jurídico o encontro do dia 22 ainda não seja a bala de prata para Jair Bolsonaro, politicamente ele foi muito ruim. Coincidentemente ocorrida na data do Descobrimento do Brasil, a reunião escancarou a leniência de seus ministros com o autoritarismo, o descompromisso com a democracia e a falta de respeito à ciência. O silêncio de cada um ali é tudo, menos de inocentes.


Guilherme Amado: O ódio como método

Podia-se pensar que uma ameaça autoritária não chegaria aonde chegou, mas agora vê-se que ela continuava ali, submersa

A escalada do autoritarismo de Bolsonaro tem sido num ritmo tal que pode fazer parecer, ao menos aos que acreditaram numa equivalência nesse quesito entre ele e o PT, que tudo isso é novo. O ódio sempre foi método para Bolsonaro. Foi por meio dele que se destacou na multidão, indo a programas de TV popularescos. Foi por meio do ódio que conseguiu se diferenciar de Ciro, Alckmin, Amoêdo, Marina e de outros que batiam em Lula, mas não tanto quanto ele, não da maneira como fazia, de forma que transmitisse a quem estava exaurido, espumando como ele, que só Bolsonaro poderia derrotar Fernando Haddad. Tem sido por meio do ódio que o presidente tem trazido o país até aqui.

Nos 16 meses de governo, não houve uma semana em que o presidente não expressou sua raiva. Um adversário, uma minoria, um antigo aliado, um artista, um jornalista. Odiar é sua profissão de fé. E isso não brota do nada, como se em geração espontânea. O ódio é cultivado. Bolsonaro é consequência de um ódio coletivo, ruminado nos anos do petismo e de seus erros atrozes que fizeram aumentar a ira dos que sempre rejeitaram a esquerda e despertar, entre os que apoiaram Lula, o rancor por terem sido enganados. Mas o presidente também é causa. Ao perceber que algum tema pode dividir mais o país, atiçar o fígado de seus apoiadores, pinça-o e, com sua tropa digital, mobiliza parte do país em torno daquilo — da cloroquina ao golden shower.

A Editora Âyiné lançou em abril no Brasil o livro Contra o ódio, um dos mais prestigiados da filósofa alemã Carolin Emcke, premiada em 2016 na Feira de Frankfurt com o Prêmio da Paz, como uma forma de apelo à tolerância. A Alemanha descrita por Emcke quatro anos atrás muito se parecia com o Brasil de então e mais ainda com o de agora. “Algo mudou na Alemanha. Agora se odeia de forma aberta e descarada. Às vezes com um sorriso no rosto e às vezes não, mas na maioria das vezes sem nenhum escrúpulo. As cartas de ameaças, que sempre existiram, hoje são assinadas com nome e endereço. Delírios violentos e manifestações de ódio expressos na internet se escondem cada vez menos atrás de um pseudônimo”, escreveu a intelectual, uma das mais importantes hoje na Europa, surpreendendo-se com o renascimento do ódio num país que deu aula sobre o assunto.

O mesmo vale para o Brasil. Podia-se pensar que uma ameaça autoritária não chegaria aonde chegou, mas agora vê-se que ela continuava ali, submersa. Aliás, o ódio não é uma exclusividade da direita, nem de ditadores. Lula também incitou o ódio, em grau infinitamente menor do que Bolsonaro, e lucrou eleitoralmente muito mais quando foi mais paz e amor do que raivoso. Mas nenhuma comparação é justa nesse ponto. Não houve governante recente no Brasil que tenha feito do ódio seu modus operandi, como o atual.

As redes sociais do presidente e de seus filhos — Flávio Bolsonaro menos, registre-se — destilam raiva. Entre obsessões, teorias da conspiração ou simples implicâncias com o objetivo de debochar, difamar, humilhar, eles têm alvos permanentes e circunstanciais. Carlos Bolsonaro posta quase diariamente uma foto de João Doria dançando com uma calça colada, querendo insinuar sabe-se lá o quê. O vídeo gera diariamente ondas de comentários homofóbicos. A jornalista Patrícia Campos Mello, que foi à Justiça para processar Jair Bolsonaro pela ofensa de tê-la chamado de prostituta, foi perseguida por bolsonaristas incitados pelas ofensas do presidente. O mesmo ocorreu durante anos com Maria do Rosário e Jean Wyllys. Goste-se ou não dos dois, Bolsonaro e seus comentários odiosos transformaram a vida de ambos em um inferno. Jean Wyllys perdeu sua liberdade. Maria do Rosário até hoje sofre constrangimentos públicos e é vítima na internet de difamação devido ao ódio engendrado.

Criou-se uma atmosfera de repúdio ao respeito pelo outro. A coisa virou de cabeça para baixo. Parece que quem desrespeita os outros, vocifera insultos e preconceitos, deve se orgulhar.

“Quem sente ódio passa uma segurança muito maior hoje do que quem defende a tolerância e o respeito. Bolsonaro não titubeia em sua raiva”

E mostrou isso na semana passada. Na terça-feira 5, a empresária Marluce Gomes, uma das que agrediu os enfermeiros na Praça dos Três Poderes, foi à porta do Palácio da Alvorada para assistir ao stand-up de horror que o presidente faz todos os dias. A empresária é a que, nas imagens da agressão aos enfermeiros, aparece com uma bandeira do Brasil como capa de super-heroína. Naquele dia, já sabendo que é formalmente investigada pelo Ministério Público do Distrito Federal, foi ao palácio pedir apoio de Bolsonaro.

“Se houve agressão, foi verbal, coisa que eles fazem o tempo todo conosco. Houve zero agressão”, disse o presidente a ela.

Não é possível saber a que ato em específico Bolsonaro fazia referência ao falar na agressão. Entre 1º e 3 de maio, profissionais de diferentes áreas apanharam todos os dias de bolsonaristas.

No Dia do Trabalho, uma enfermeira foi sacudida por um irado apoiador do presidente. No sábado 2, em frente à Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, um cinegrafista de uma afiliada da TV Record foi empurrado. No domingo, as vítimas foram os jornalistas Dida Sampaio, Orlando Brito, Fábio Pupo, Nivaldo Carboni e o motorista Marcos Pereira, integrante da equipe de reportagem do jornal O Estado de S. Paulo. Sampaio levou um soco no estômago. Brito, de 70 anos, foi empurrado.

Bolsonaro, na mesma conversa com os apoiadores, à porta do palácio, defendeu-se dizendo que não é responsável pelas agressões físicas — à verbal, em sua própria fala, expressou apoio. Mas o presidente tem responsabilidade, sim, na agressão física. Ela é resultado de sua permanente perseguição a de quem dele discorda ou a quem o incomoda.

De novo, sem novidades no front. O acervo de expressões preconceituosas e por vezes criminosas do presidente é vasto, em três décadas vivendo da política. Sempre é bom relembrar, embora tudo tenha sido sempre noticiado.

Contra os gays. “A maioria é fruto do consumo de drogas”, disse em 2014 ao jornal El País. “Seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui: prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo”, afirmou, em 2011, à revista Playboy. “O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um coro ele muda o comportamento dele”, disse, em 2010, à TV Câmara.

Contra os negros. “Fui num quilombola (sic) em Eldorado Paulista. O afrodescendente mais leve lá pesava 7 arrobas. Não fazem nada! Acho que nem para procriadores servem mais”, disse, em 2017, numa fala contra quilombolas que o levaria a ser denunciado por racismo no Supremo Tribunal Federal, acusação que foi recusada na Primeira Turma com os votos de Luiz Fux, Marco Aurélio Mello e, veja só, Alexandre de Moraes.

Contra seus adversários políticos. “Deveriam ter sido fuzilados uns 30 mil corruptos, a começar pelo presidente Fernando Henrique Cardoso”, afirmou, em 1999, mesmo ano desta: “Pau de arara funciona. Sou favorável à tortura, tu sabe disso. E o povo é favorável também”. “O erro da ditadura foi torturar e não matar”, disse em 2016. Dois anos depois: “Vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre”.

Erra quem prega o olho por olho. Serenidade e razão são mais poderosos. Em seu Contra o ódio, Emcke lembra que quem enfrenta o ódio com mais ódio já foi manipulado, aproximando-se daquilo que aqueles que odeiam desejam que a pessoa se torne. “O ódio só pode ser combatido com o que escapa aos que odeiam: observação cuidadosa, diferenciações contínuas e dúvidas sobre si mesmo. Isso requer desmontar o ódio pouco a pouco em todas as suas partes.” Requer racionalidade, fatos, debate inteligente. Sem omissão.

Lima Duarte nesta semana emocionou os brasileiros que tem vísceras, ao falar nisso. O ator de 90 anos homenageou Flávio Migliaccio, o brilhante colega que, aos 85 anos, se matou na segunda-feira 4. Lima lembrou o “hálito putrefato” de 1964, o “bafio terrível de 1968” e, sem dar nome ao miasma do Brasil de 2020, em que o vírus e o ódio se aliam, lembrou Bertolt Brecht e Os fuzis da senhora Carrar, escrita em 1937 em meio à Guerra Civil Espanhola. Teresa Carrar não quer que os filhos sigam para a guerra e tenham o mesmo destino do marido, morto anos antes. Por isso, esconde seus fuzis. Lima, como se cobrasse posicionamento de quem se cala, citou a frase de Pedro Jáqueras, irmão da Senhora Carrar, que ele interpretou no Teatro de Arena: “As pessoas que não querem assumir nenhuma culpa acabam lavando as mãos em bacias de sangue”.


Guilherme Amado: O fisiologismo à Bolsonaro

O abraço escancarado no centrão não chega a surpreender: a exemplo da guerra à corrupção, o fim do fisiologismo sempre foi só discurso

O Palácio do Planalto fez uma caçada no domingo 19 ao telefone dos ex-deputados Roberto Jefferson e Cristiane Brasil, pai e filha, expoentes do centrão, mesmo que hoje sem cargo. Jair Bolsonaro queria falar diretamente com Jefferson, curioso para saber o que o pivô do mensalão revelaria mais tarde numa live sobre um suposto plano de Rodrigo Maia para derrubar o presidente da República. Bolsonaro logo soube o que pretendia o ex-companheiro de Câmara e partido. Jefferson está disposto a fazer com Bolsonaro o mesmo que fez com Fernando Collor e com Michel Temer: ao perceber a decadência de um governo e a fragilidade política de um presidente, estender a mão. Atacaria Rodrigo Maia, sem apresentar fato que sustentasse o tal golpe por vir, em troca disso.

Claro que se trata de uma aproximação despretensiosa, baseada nos mais elevados princípios da República. De cristão para cristão. Mas quis o destino que o namoro, para usar a terminologia presidencial, se desse na mesma semana do divórcio litigioso com Sergio Moro. A saída do símbolo da Lava Jato — para o bem e para o mal — e a entrada de Jefferson para a base do governo foram simbólicos de uma ruptura na prática com algo que Bolsonaro só fez no discurso, ao longo da vida parlamentar e também como presidente: o tal do combate à corrupção. Embora sua eleição tenha ocorrido em parte no embalo do papo de enfrentar o crime de colarinho-branco, nunca houve de fato um esforço do presidente para tanto. O abraço escancarado no centrão de Jefferson, Valdemar Costa Neto, Arthur Lira e Gilberto Kassab tem ocorrido sem constrangimento. O que não chega a surpreender: a exemplo da guerra à corrupção, o fim do fisiologismo sempre foi só discurso.

O bolsonarismo só havia tirado da cartola um novo tipo de fisiologismo, desde a formação inicial do governo. Ou não é fisiologismo nomear militares porque são militares e não necessariamente pela qualificação técnica? Evangélicos por serem evangélicos? Um veterinário sanfoneiro para a presidência da Embratur? Uma blogueira para coordenar o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional? Um deputado investigado por criar candidaturas laranjas como ministro? Tentar emplacar o filho — o filho — como embaixador nos Estados Unidos? Bater o recorde de emendas parlamentares liberadas para aprovar a reforma da Previdência? Nada disso difere de aceitar um indicado do centrão.

Mesmo o centrão tem cargos desde o começo. Basta perguntar a qualquer líder dos novos partidos com relação direta com Bolsonaro — PP, PTB, Republicanos, PSD — sobre o que o DEM, esse também do centrão, vale lembrar, tem ou já teve no governo. Foi o único a ter três ministérios, Agricultura, Cidadania e Saúde, até a saída de Luiz Henrique Mandetta. Embora a legenda diga que os ministérios não são indicações da cúpula partidária, é inevitável lembrar que só a sigla com as presidências do Senado e da Câmara teve tantas pastas. O partido nomeou ainda para o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). No Ministério da Saúde, o ex-deputado José Carlos Aleluia (DEM-BA) ganhou uma assessoria e o também ex-deputado Abelardo Lupion (DEM-PR) uma diretoria.

Roberto Jefferson foi um dos poucos réus políticos do mensalão que admitiu ter pego dinheiro: R$ 4 milhões pagos pelo PT. Ficou um ano em regime fechado e depois cumpriu a pena em casa. Hoje, é réu na Justiça Federal do Distrito Federal, acusado de integrar uma organização criminosa no governo Temer, para a concessão de registros sindicais em troca de propina — acusação que ele refuta. Seu plano, agora, é levar Bolsonaro de volta ao PTB.

Bolsonaro foi do PTB de Jefferson, bem como foi também do PDC, PPR, PP, PFL (hoje DEM), PSC e, ufa, do PSL. O delator do mensalão acha que o partido deve voltar a ser o lar do presidente. “Estou do lado do capitão. Faço a defesa dele de coração, com minha alma, brandindo a espada sagrada que tenho em defesa do legado que recebi de meus antepassados”, disse à coluna, afiado em jeffersonês castiço. Perguntado se quer cargos, é rápido no gatilho: “Sabe qual cargo eu quero do governo Bolsonaro? Quero trazer para o PTB o cargo de presidente da República. Eu quero que Bolsonaro venha para o PTB. Ele já foi do partido e tem tapete vermelho para voltar com o grupo dele. Bolsonaro vai conhecer um partido de verdade, de homens de verdade, que não correm da luta”.

Até outro dia, pouco antes de Bolsonaro bater recorde no número de pedidos de impeachment em tão pouco tempo — já foram 31, em 15 meses de governo — a relação entre centrão e bolsonaristas não era, ao menos publicamente, boa. “Deus nos livre e guarde do centrão”, escreveu a bolsonarista Bia Kicis. “Eu sou contra qualquer acordo com o centrão”, defendeu Alê Silva, também defensora do governo. “Nos foi colocado na mesa pelo centrão duas opções. Uma verdadeira chantagem. Não vamos ceder”, bradou Luiz Lima, outro do PSL pró-Bolsonaro. Mas os três deputados federais foram às redes sociais nesse tom antes da agonia de Bolsonaro fazê-lo rifar Moro para controlar a Polícia Federal e insistir numa conexão com os partidos de centro.

Agora, o que está se tentando formar é uma só base, que vai congregar bolsonaristas e centrão. Sem rubor de nenhuma parte e com o beneplácito de generais com assento no Planalto, a exemplo dos ministros Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos e Walter Braga Netto.

A militância digital parou da noite para o dia de atacar o centrão nas redes sociais. “Virei rei nas redes sociais de meu estado. Não apanho mais”, contou, pedindo sigilo, um dos líderes partidários que se sentou com Bolsonaro e que está pleiteando um dos cargos que era do DEM.

Agora longe dessa turma, Moro perdeu quase todas as batalhas que travou em seus 15 meses de governo. Saiu menor do que entrou e maculou sua biografia, podendo impactar até o destino jurídico de Luiz Inácio Lula da Silva. Ainda se espera, afinal, do voto de Celso de Mello, que pode desempatar o 2 a 2 do pedido de anulação da sentença de Lula, que tramita na Segunda Turma do STF sob o argumento de que Moro se mostrou publicamente parcial ao integrar o governo do opositor do homem que prendera. Ao deixar o cargo, disse estar à disposição do país, no que alguns políticos viram um sinal de que entrará para a política — o que ele segue negando.

Enquanto Moro estuda seu futuro, as peças do xadrez bolsonarista se movem rápido. Uns sempre mais rápidos do que outros. Disse Roberto Jefferson à coluna, referindo-se à mais poderosa deputada bolsonarista hoje e até outro dia afilhada de Moro: “A Carla Zambelli, por exemplo, é uma moça honrada. Tenho a maior admiração por ela”.


Guilherme Amado: A democracia em quarentena

Há justificativa neste momento para vetar aglomerações, fechar igrejas e limitar o direito de ir e vir. Mas a vigilância é fundamental

Direito de livre assembleia proibido, ir e vir restrito, liberdade de culto com limitações. O coronavírus parece também ter obrigado a democracia a entrar em quarentena, com o mundo afundado em um misto de medidas necessárias para vencer a pandemia, mas também tentativas de líderes autoritários de se aproveitarem dela para ganhar mais poder e populistas que, usando a recorrente tática de vender soluções fáceis para problemas complexos, mais atrapalham do que ajudam seus países no combate à doença.

Scholars especializados no tema têm acompanhado com preocupação o impacto que o enfrentamento ao vírus pode ter na democracia de diversos países, muitos já convivendo com retrocessos nos últimos anos. Desde 2006, mais países veem suas democracias erodindo do que outros as têm fortalecido. De acordo com a Freedom House, organização sem fins lucrativos baseada nos Estados Unidos e que monitora os avanços e recuos das democracias de todo o mundo, 64 países se tornaram menos democráticos e somente 37 se fortaleceram em 2019. A perspectiva para este ano é que esse número seja ainda maior, por causa da pandemia.

Mas, onde muitos só veem janelas para o autoritarismo ganhar espaço, há quem aposte também na oportunidade que a Covid-19 está dando para as populações perceberem quão perigoso é entregar o comando do país a um populista.

Na Hungria, o primeiro-ministro Viktor Orbán agora pode governar por decretos. Em Israel, o Parlamento e tribunais foram fechados, e Benjamin Netanyahu conseguiu adiar seu julgamento por corrupção por dois meses. Na Sérvia e na Turquia, veículos pró-regime deram voz a falsos especialistas que defenderam que suas populações são geneticamente protegidas do vírus. No México, López Obrador abriu mão da máscara e do álcool em gel e se apegou a imagens religiosas, sugerindo que os governados fizessem o mesmo, e demorou a admitir a gravidade do problema. No vizinho Estados Unidos, enquanto a governista Fox News culpava o Partido Democrata por espalhar medo, Donald Trump também passou por diversas fases, da banalização da doença à tentativa de criar o rótulo de “vírus chinês”, desaguando agora numa guerra à Organização Mundial da Saúde (OMS).

Por aqui, Jair Bolsonaro embarcou forte na onda negacionista. Perdeu três semanas batendo na tecla da “gripezinha”, pregando contra o isolamento, enquanto um de seus filhos e sua tropa digital escolhiam a China como bode expiatório. Não deu certo. O Datafolha apontou que 76% da população concorda com a quarentena como está sendo feita hoje, e houve um esforço diplomático de diferentes instituições para apaziguar as relações com a China. Diante do fracasso das duas tentativas iniciais, Bolsonaro apostou em badalar a cloroquina e a hidroxicloroquina como as soluções para a Covid-19, novamente à revelia da comunidade científica mundial e de seu próprio ministro da Saúde. E, ao menos para sua popularidade, deu certo.

Depois de dias enfraquecido nas redes sociais, começou uma reação. Segundo medição da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas, antes de o presidente e seus apoiadores concentrarem esforços na promoção da cloroquina e na associação da imagem de Bolsonaro a ela, a base bolsonarista representava apenas 12,3% das interações em torno do coronavírus no Twitter. A oposição tinha 59,6%. Ainda que possa ser uma vantagem momentânea, colou o discurso do “remédio de Bolsonaro”, maneira pela qual a militância passou a chamar os dois medicamentos. De acordo com medição da consultoria Bites, também na análise do sentimento dos internautas nas redes sociais, até às 21 horas da quarta-feira 8, eram 249 mil menções associando a cloroquina a Bolsonaro, pouco menos da metade de todos os tuítes de brasileiros sobre o coronavírus naquele dia. Os bolsonaristas saíram-se bem na ação para criar a percepção de que o presidente estava certo desde o começo, quando defendeu a cloroquina no combate à Covid-19 — o que, ressalte-se, ainda não é comprovado pela ciência.

Medidas severas para combater a pandemia, ainda que infrinjam temporariamente liberdades e direitos, não são por si só antidemocráticas.

Na Áustria, o ministro da Saúde tentou editar um decreto de Páscoa que autorizaria a polícia a entrar nas casas para checar se as famílias estavam se reunindo em almoços do feriado religioso. Uma medida como essa, um recurso extremo, não faria sentido sem o consentimento do Parlamento. Não à toa, o Ministério da Saúde austríaco desistiu após protestos da oposição e da sociedade civil.

No Brasil, algo desse tipo foi a tentativa de Bolsonaro de mudar a Lei de Acesso à Informação, praticamente suspendendo-a durante a pandemia, o que não só dificultaria a capacidade da sociedade de fiscalizar o poder público, como restringiria o direito à informação, fundamental para que a população esteja preparada para se prevenir e enfrentar a doença. O contrapeso dos outros Poderes se fez necessário. O Supremo Tribunal Federal suspendeu o efeito imediato da Medida Provisória que mudara a lei e o Congresso provavelmente alterará seu teor nas próximas semanas.

Autor de O povo contra a democracia, uma das bíblias para entender a ascensão do populismo autocrata, o alemão Yascha Mounk, professor em Harvard, é o âncora semanal de um dos mais interessantes podcasts para quem gosta de debates aprofundados sobre política. Em The good fight, disponível gratuitamente no site de Mounk, ele conversa com professores, jornalistas, diplomatas e outros profissionais envolvidos no debate sobre os rumos da democracia mundo afora. No último episódio, Mounk recebeu Daniel Ziblatt, também professor de Harvard, coautor de outro livro essencial para entender o populismo de direita atual, Como as democracias morrem. Os dois avaliam na conversa que a pandemia poderá atrapalhar os autocratas populistas que já estão no poder, quando táticas de usar bodes expiatórios falharem e os cidadãos perceberem a falta que fazem instituições fortes e sérias funcionando.

“Essa situação (a pandemia) favorecerá a oposição aos governos. Vai prejudicar os populistas que já estão no cargo. Acho que na verdade reduz as chances de reeleição. Pode enfraquecer alguém como Jair Bolsonaro, no Brasil”, analisa Mounk.

Blatt lembra que a crise econômica poderá enfraquecer quem já está no poder. “Essa crise de saúde torna-se uma crise econômica. Isso é bem provável. Isso vai enfraquecer dramaticamente tanto Bolsonaro quanto Trump”, afirma, lembrando que os populistas que estão na oposição, a exemplo da França, podem sair fortalecidos, se forem enxergados como alternativa.

As próximas semanas mostrarão quanto tempo vai durar o sucesso do discurso salvacionista da cloroquina. E se saberá se o Brasil está no grupo de países em que a pandemia fortaleceu o populismo ou naquele em que mais pessoas perceberam que não existem remédios milagrosos para problemas complexos.


Guilherme Amado: A democracia engasga

Na semana anterior ao Carnaval, que em outros tempos sempre foi uma contagem regressiva para a folia, o país voltou algumas casas no jogo democrático

Quando escrevi, na coluna passada, sobre a pesquisa que a socióloga Esther Solano vem fazendo sobre o bolsonarismo, a democracia brasileira estava um pouco mais forte. Analisei como Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade Complutense de Madri, havia identificado, a partir de entrevistas com bolsonaristas moderados de classes C e D, os atributos antissistêmico, antipartidário/antipetista, anti-intelectual, religioso e militar que motivaram o voto desse segmento em 2018. Decidi voltar ao tema na coluna desta semana por três razões.

Primeiro, percebi que, por falha minha, houve incompreensão de alguns leitores sobre o que é esse tipo de pesquisa, usada não só nas ciências sociais, mas também no marketing, na produção cultural e em diversos outros campos.

Voltei a ele também porque, ao ler os comentários de leitores da coluna no Instagram sobre um vídeo que mostra livros da biblioteca do Planalto empilhados no chão, percebi que ali estavam outros testemunhos ainda mais reveladores do bolsonarista como ele é. Mas, sobretudo, voltei ao tema porque concordo com o que meu colega Helio Gurovitz escreveu algumas edições atrás em ÉPOCA: a imprensa tem o desafio de buscar entender por que, apesar de tudo, cerca de um terço do país segue apoiando Bolsonaro. E o “tudo” só fez aumentar nos últimos dias.

Nesta quinta-feira 20, dia do fechamento desta edição de ÉPOCA, torço para que chegue logo a hora do desbunde, e que samba, frevo e pagode engulam a radicalização política que ganhou ainda mais ritmo desde a terça-feira 18.

Naquele dia, Jair Bolsonaro acordou ofendendo a jornalista Patrícia Campos Mello de maneira misógina e covarde, em mais um stand-up comedy de agressividade na porta do Palácio da Alvorada. Horas mais tarde, graças a um descuido numa transmissão ao vivo via Facebook da cerimônia de hasteamento da bandeira no Planalto, o ministro Augusto Heleno, um ex-fardado que tem trabalhado para escalar o ódio no país, foi flagrado aconselhando Bolsonaro a convocar o “povo” contra o Congresso, a que acusou de chantagear o governo.

Na quarta-feira 19 as bordoadas continuaram. Soube-se que, imiscuindo-se no jogo político, Sergio Moro tirou da gaveta a autoritária e anacrônica Lei de Segurança Nacional, criada na ditadura para perseguir opositores, e a empregou em “plena democracia” contra um de seus mais ferrenhos... opositores. No mesmo dia, como em Macondo, o senador Cid Gomes (PDT) peitou policiais amotinados em Sobral, Ceará, subiu numa retroescavadeira e, ao tentar invadir o batalhão local da Polícia Militar, foi baleado com dois tiros. Ciro Gomes dirigiu-se a Eduardo Bolsonaro no Twitter para afirmar que a ação de seu irmão Cid era contra a tentativa de milícias controlarem o Ceará, como, segundo Ciro, “os canalhas” da família Bolsonaro teriam feito com o Rio de Janeiro.

O barata-voa da esquerda merece uma análise mais detida, que ficará mais para a frente. Voltemos aos bolsonaristas e ao porquê de, apesar de tudo, apesar de uma semana como esta, o apoio ainda subsistir. Para isso, selecionei alguns comentários feitos por leitores claramente defensores do presidente sobre o vídeo, publicado no domingo 16 no site de ÉPOCA, que mostra livros da Biblioteca da Presidência da República empilhados sem nenhum cuidado num corredor, para dar lugar à obra que abrigará a sala da primeira-dama Michelle Bolsonaro. Como a colunista Bela Megale, de O Globo, mostrara dias antes, o Planalto decidira diminuir a centenária biblioteca, criada no governo de Wenceslau Braz (1914-1918) e especializada em ciências sociais, Direito, economia e administração. Provavelmente, muitos dos livros mostrados no vídeo eram, portanto, edições de décadas ou séculos.

Cerca de 700 comentários pipocaram no Instagram da coluna ao publicarmos as imagens. Além do contumaz repositório de ira, eles formaram um retrato fidedigno do bolsonarismo em sua essência. Curiosamente, apareceram ali o anti-intelectualismo, o antipartidarismo/antipetismo, a negação do sistema, a influência religiosa e a militar.

O anti-intelectualismo saltou aos olhos. “Parabéns! A primeira-dama Michelle merece, tem feito nos dias de hoje muito mais para o Brasil do que esses livros”, defendeu um leitor. “Esses livros já estão empoeirados há muito tempo. Primeiro, no governo petista ninguém lia, (...) porque não sabem ler”, disse outro. Um terceiro foi mais duro: “Tem é de botar fogo nisso. Livros velhos só servem para juntar pó”.

Solano defende em sua pesquisa que professores e intelectuais são intermediadores da transmissão do conhecimento e, como todo intermediador, colocado em xeque pelo bolsonarismo. Também é assim com o político profissional e com o jornalista. “Por que devo aceitar uma política conduzida por políticos profissionais? Por que devo aceitar verdades científicas e acadêmicas validadas por intelectuais? É a negação daqueles que tradicionalmente atuaram como mediadores entre os indivíduos, o conhecimento e a participação política”, escreveu a socióloga em “Elementos do bolsonarismo”, artigo ainda não publicado e que resume uma parte da pesquisa, feita em fevereiro e março de 2019.

Naqueles dois meses, Solano fez 24 entrevistas em profundidade — uma técnica de pesquisa qualitativa que busca, a partir de uma interação presencial de horas com o entrevistado, entender aspectos de um assunto que os números são incapazes de mostrar. Foram escolhidos brasileiros C e D com um mesmo perfil. “Escolhemos o que chamamos de bolsonaristas moderados, que votaram em Bolsonaro, mas não são os mais radicalizados. É aquela pessoa que não tem uma adesão total e já demonstra certo arrependimento”, explicou Solano.

A rotulação da academia e do intelectualismo como de esquerda ou petista também aparece nos comentários, como mostra essa sequência, de três leitores diferentes: “Já que o pessoal que vota em Lula é intelectual, esses livros devem ensinar somente uma coisa, a roubar”; “Os livros de valor o Lula já roubou todos”; “Livros que o Lula fingia ler”.

Outros comentários nas redes da coluna trazem também exemplos da influência religiosa e militar na concepção de mundo do bolsonarista, o que também é abordado na pesquisa de Solano. Estaria em curso uma cruzada moral, com os valores familiares cristãos em xeque. A sociedade viveria uma crise de valores causada por não ter a religião como bússola. “Mil vezes um evangélico batendo em minha porta do que um bandido protegido pelo PSOL pulando meu muro”, escreveu um leitor, desta vez no Facebook, ao comentar uma notícia sobre parlamentares evangélicos. “Antes uma bancada da Bíblia que uma bancada comunista”, afirmou outro na mesma seção de comentários. Já os fardados, com autoridade e disciplina, seriam capazes de impor respeito. “Com a graça de Deus. Coloca o Exército nas ruas, vai ficar bom demais”, defendeu uma leitora, numa nota sobre o crescimento do número de militares na Esplanada. “Verde-oliva na área. Qualquer reclamação, falar com os generais”, comemorou outro.

Comentários assim e pesquisas como a de Solano mostram quais são algumas das razões, portanto, que motivam quem segue apoiando Bolsonaro. Gestos como o do presidente, atacando uma jornalista; de Moro, usando uma lei da ditadura para intimidar um opositor; ou de Heleno, incitando o presidente contra o Congresso de políticos profissionais que “chantageiam”, atendem a anseios de parte da população. É o que o cientista político alemão Yascha Mounk aborda no ótimo O povo contra a democracia.

Ainda que outras entrevistas em profundidade feitas por Solano, em setembro do ano passado, tenham apontado decepção desses bolsonaristas moderados, pesquisas quantitativas seguem mostrando o apoio de um terço dos eleitores, sem variações expressivas, para cima ou para baixo. Enquanto isso, Bolsonaro continua dobrando a aposta, cada vez mais ministros vão se radicalizando e nossa democracia vai aos poucos engasgando. Que os dias de Momo nos ajudem a recobrar o fôlego.


Guilherme Amado: Duas agendas incompatíveis

O crescente afastamento de Jair Bolsonaro da agenda de combate à corrupção pode lhe criar um grande problema para 2022

A divulgação na quinta-feira 23 de que o Brasil chegou a sua mais baixa colocação na série histórica do Índice de Percepção da Corrupção, medido pela Transparência Internacional (TI), confirmou o que especialistas no combate ao crime de colarinho branco comentaram sobre o que foi 2019. No diagnóstico traçado pela organização, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário colaboraram para o resultado — agora, o Brasil está na 106ª posição do ranking —, mas nenhum dos Três Poderes contribuiu tanto quanto Jair Bolsonaro.

Eleito com um forte discurso anticorrupção, o presidente atuou contra pilares do sistema de combate à corrupção, alguns que, de 2014 para cá, permitiram a inédita prisão de ases do poder político e econômico. Ao ver a polícia e o Ministério Público baterem à porta de Flávio Bolsonaro, o presidente mudou sua convicção — talvez porque não fosse tão consolidada como ele dizia ser — e deu uma guinada de 180 graus. Atropelou algumas instituições, interferiu em outras, falou abertamente em usar a lei de abuso de autoridade contra quem investigava seu filho, e, ao fim do ano, sancionou a figura do juiz de garantias, um trecho do pacote anticrime que, embora assegure a independência do juízo de um caso, inevitavelmente aumentará a morosidade da Justiça.

O crescente afastamento da agenda bolsonarista da agenda de combate à corrupção, entretanto, pode lhe criar um grande problema para 2022. Se o eleitor de Bolsonaro não o identificar mais com essa pauta, em quem votará o sujeito que foi no 17 em 2018 mas pouco se importa com o fantasma da ameaça comunista, a ditadura gayzista ou a esfericidade da Terra?

Para muita gente, a resposta a essa pergunta atende pelo nome de Sergio Moro.

Moro ainda diz que não vai ser candidato a nenhum cargo em 2022. Mas as movimentações por ele não param. O Aliança pelo Brasil, tão logo seja constituído, espera filiá-lo, com o objetivo de que ele seja candidato a vice de Bolsonaro em 2022. Um lance bem mais ousado seria o que o Podemos, do senador Alvaro Dias, paranaense como Moro, vem tentando. O partido está de portas abertas para o ministro da Justiça disputar a Presidência da República contra Bolsonaro em 2022. Dias já tratou do assunto mais de uma vez com Moro, na tentativa de mostrar ao ministro da Justiça que ele tem mais estatura política que Bolsonaro. Até agora, o ministro tem feito a egípcia. Não diz se toparia uma filiação, seja no Aliança, seja no Podemos, mas também não fecha nenhuma porta.

O entorno de Moro, entretanto, comunga cada vez mais da percepção de que as agendas do ministro e de Bolsonaro são incompatíveis.

Os prejuízos causados pela atuação do Palácio do Planalto ocupam três páginas do documento. As suspeitas de corrupção envolvendo Flávio Bolsonaro, o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, e o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra, são citadas como exemplos que constrangeram o primeiro ano de Bolsonaro, mas uma radiografia mostrou todas as investidas. “Os primeiros dez meses de seu governo não mostraram nenhum progresso na implementação de uma agenda anticorrupção. Pelo contrário, uma série de decisões do Executivo mostrou sinais de interferência política em órgãos-chaves da luta contra a corrupção, como a Polícia Federal, a Receita Federal e a Procuradoria-Geral da República”, escreveu a Transparência.

“A interferência política na Polícia Federal cresceu. Os superintendentes ameaçaram fazer uma renúncia em massa, na sequência da substituição de Ricardo Saadi, o chefe da Superintendência Regional do Rio de Janeiro”, criticaram os especialistas da organização, referindo-se ao levante na PF contra a tentativa de Bolsonaro de domar a corporação. Não foi a única. Até a cabeça do diretor-geral da polícia esteve a prêmio. E Moro precisou ameaçar se demitir para salvá-lo.

As investidas contra a Receita Federal também constam da análise da TI. As demissões de Marcos Cintra e de João Paulo Martins da Silva, o secretário da Receita e seu vice, além de Ricardo Pereira Feitosa, chefe da Inteligência Fiscal da Receita, foram registradas: “Bolsonaro expressou publicamente seu descontentamento, acusando a Receita de mirar negócios de sua família com escrutínio excessivo. Até uma multa imposta a uma pequena irregularidade fiscal cometida por seu irmão foi colocada como justificativa para as mudanças”.

A demissão de Roberto Leonel do comando do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e, depois, a abertura da possibilidade de nomear comissionados na nova Unidade de Inteligência Financeira (UIF) também foram citadas pela Transparência — lembrando a contribuição de Dias Toffoli, cuja liminar paralisou durante meses o Coaf e centenas de casos de combate ao crime organizado.

O quarto ponto registrado pela TI foi o esvaziamento do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). “A interferência política ficou evidente quando Bolsonaro retirou indicações de dois novos conselheiros selecionados tecnicamente pelos ministros da Justiça e da Economia e indicou outros candidatos, nomes negociados com senadores como barganha por votos para que seu filho Eduardo Bolsonaro tivesse apoio para se tornar embaixador nos Estados Unidos”, analisou a Transparência.

Em praticamente todos esses momentos, Moro e Bolsonaro se chocaram. Quase nunca em público — exceto uma vez, em agosto, quando Bolsonaro disse que, em seu governo, mandava ele.

O ano de 2020 vai testar os limites do ex-juiz. Um bom termômetro disso será novembro, quando Bolsonaro terá de indicar alguém para o Supremo Tribunal Federal, para a vaga que será aberta com a aposentadoria de Celso de Mello. Se o presidente não indicar Moro, ele deveria ao menos conversar com seu ministro, explicar por que não o escolheu, ou consultá-lo sobre os nomes, como geralmente o presidente faz com o titular da Justiça. Indicar outro e ignorá-lo completamente poderá consolidar em Moro a impressão de que, para Bolsonaro, ele é só um boneco de posto de gasolina. Daqueles que o gerente só tira do armário quando precisa atrair clientes.