guerrilha

A emboscada policial que matou Marighella numa esquina de São Paulo

Em novembro de 2013, 44 anos após os tiros na alameda Casa Branca, Marighella foi homenageado no mesmo local, com a presença de Clara

William Helal Filho / O Globo

O Santos de Pelé enfrentaria o Corinthians de Rivelino a partir de 20h15 daquela terça-feira, 4 de novembro de 1969, em São Paulo. Por volta das 20h, quando o fluxo de torcedores rumo ao Estádio do Pacaembu já havia diminuído, um homem magro e alto para os padrões da época, de camisa clara listrada e carregando uma pasta preta, andava sozinho na alameda Casa Branca, no bairro dos Jardins, a três quilômetros da arena esportiva. Torcedor do Vitória do Bahia, revolucionário considerado o maior inimigo da ditadura militarCarlos Marighella estava com a cabeça longe do jogo. Sob a iluminação precária da via, em noite de lua minguante, ele caminhava decidido na direção de um Fusca azul parado quase na esquina com a Rua Tatuí. Não imaginava que aqueles seriam seus últimos passos.

'Marighella': Filme de Wagner Moura estreia na data da morte do guerrilheiro

Primogênito de um imigrante italiano, que desembarcara no Porto de Salvador em 4 de novembro de 1907, e de uma doméstica filha de ex-escravizados africanos, Marighella se lançara no ativismo em 1934, deixando o curso de Engenharia Civil na Escola Politécnica da Bahia para atuar no Partido Comunista do Brasil (PCB)Em mais de três décadas, enfrentou duas ditaduras (Estado Novo e regime militar), elegeu-se deputado constituinte (em 1946), foi preso várias vezes e torturado. Despistou por pouco a morte em mais de uma ocasião.

Já estava na mira da repressão quando, em 1968, recém-desligado do PCB justamente por pregar a revolta armada contra o governo dos generais, Marighella fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN). No ano seguinte, muito influenciado por uma viagem recente a Havana, escreveu o "Minimanual do guerrilheiro urbano" e, já com o AI-5 em vigor, comandou ações como a invasão da Rádio Nacional, em São Paulo, quando leu para os ouvintes um manifesto redigido por ele: "A polícia nos acusa de terroristas e assaltantes, mas não somos outra coisa se não revolucionários que lutam a mão armada contra a atual ditadura militar brasileira e o imperialismo norte-americano". 

Marighella ao ser preso em 1939, durante ditadura do Estado Novo
Marighella ao ser preso em 1939, durante ditadura do Estado Novo | Reprodução

O líder da ALN também conduziu assaltos a bancos para financiar a guerrilha, mas não participou da missão mais ousada do seu grupo. No dia 4 de setembro de 1969, os militantes sequestraram, no Rio, o embaixador americano Charles Elbrick, solto dois dias depois, mediante a libertação de 15 presos políticos, entre eles, os líderes estudantis José Dirceu e Vladimir Palmeira. A ação foi um dos maiores golpes contra o regime. Mas, nos meses seguintes, a polícia e as Forças Armadas tubinaram a repressão, efetuando dezenas de prisões, com sessões de tortura e execuções que desidrataram a ALN, principalmente em São Paulo, onde a organização tinha mais força. Este era um motivos para o líder do grupo, que morava no Rio, ter se dirigido ao "olho do furacão".

De acordo com a biografia "Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo" (Companhia das Letras), de Mário Magalhães, em outubro de 1969, o militante de 58 anos de idade se preparava para levar a guerrilha ao campo, assim como havia feito Fidel Castro em 1959, com a Revolução Cubana. Antes, porém, queria reordenar o grupo na capital paulistana e providenciar a fuga de integrantes mais visados. Os amigos achavam que o líder da ALN, então o "terrorista" mais procurado pela repressão, também deveria deixar o país. Mas isso não estava nos planos dele.

O guerrilheiro ainda estava no Rio quando a ialorixá Antônia Sento Sé contou que pressentira uma "boca de lobo" e aconselhara seu ex-cunhado a não viajar para São Paulo. Mas Marighella ignorou o alerta de armadilha. Ele cruzou a Via Dutra de carro e chegou à cidade no fim de outubro, abrigando-se num apartamento na Rua Martim Francisco, no bairro de Santa Cecília, com a sua mulher, Clara Charf, a Jandira. Ao circular na metrópole, o guerrilheiro não tinha seguranças e nem andava armado. Mas vestia uma peruca e carregava sempre um frasco com duas cápsulas de cianureto. Achava melhor morrer do que ser preso. Não passaria de novo pelas torturas que sofrera na cadeia em 1936, durante a Era Vargas, ou em 1964, quando fora baleado e detido por agentes do governo logo após o golpe militar.

Marighella retirado de cinema na Tijuca, durante prisão em 1964
Marighella retirado de cinema na Tijuca, durante prisão em 1964 | Reprodução/Arquivo

No dia 4 de novembro de 1969, Marighella acordou antes de amanhecer. À tarde, ele deixou o prédio na Martim Francisco após Clara olhar pela janela e avisar que o caminho estava livre. O baiano desceu até a rua e entrou no carro guiado por Antônio Flávio Médici de Carvalho, corretor de imóveis e militante da ALN. Eles foram até um telefone público, de onde Antônio Flavio, orientado pelo líder do grupo, ligou para a livraria Duas Cidades, de propriedade da Ordem dos Dominicanos, de onde o frei Fernando atendeu. "O Ernesto pediu que vocês o encontrem na gráfica hoje às 20h", disse o corretor, de acordo com o livro de Mário Magalhães. O frade respondeu: "Tudo bem", e Antônio Flávio voltou para o carro sem perceber nenhum nervosismo na voz do outro lado da linha.

Carlos Lamarca: O guerrilheiro que marcou infância de Bolsonaro

Na livraria, porém, enquanto o frei Fernando falava com o corretor pelo telefone, estava ninguém menos que o delegado Sérgio Paranhos Fleury, respirando em silêncio no cangote do religioso. Chefe do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), o agente de então 36 anos já era conhecido por ter comandado prisões, sessões de tortura e assassinatos de vários guerrilheiros nos porões do regime. Inescrupuloso e de postura sádica, em meados da década de 1970, o policial seria preso por envolvimento com o Esquadrão da Morte e o tráfico de drogas.

Sérgio Fleury num registro de 1978, aos 45 anos
Sérgio Fleury num registro de 1978, aos 45 anos | Foto de Marcio Arruda/Agência O GLOBO

A polícia já suspeitava da ligação da ALN com frades dominicanos, que prestavam uma série de serviços operacionais para a luta armada. Entregavam mensagens, abrigavam militantes, escondiam armamento e tranportavam guerrilheiros. No rastro desse envolvimento, Fleury prendeu o frei Fernando no dia 2 de novembro, no Rio, junto com o colega frei Ivo. Submetidos a intensas sessões de tortura, eles revelaram como era sua comunicação com Marighella, alvo principal do Dops. Ao desligar o telefone, o religioso, à mercê do delegado, não teve opção a não ser contar para ele que "Ernesto", na verdade, era o tão procurado líder da ALN e que a "gráfica" era o ponto da alameda Casa Branca em frente ao número 800, previamente estabelecido entre eles.

Mariel Mariscot:  O 'homem de ouro' da polícia morto tentando ser bicheiro

Sem saber que os frades haviam "caído", Marighella não imaginava que, nas horas seguintes ao telefonema, enquanto ele cuidava de outros afazeres, as forças do Dops e do Exército armaram, no local combinado com o frade, um cerco que incluía pelo menos sete automóveis cheios de menganas fortemente armados. Na caçamba de uma picape Willys, havia cinco policiais ocultos sob uma lona. Num Chevrolet da década de 1950, Fleury estava acompanhado da agente Estela Borges Morato, de 22 anos, que entrara para a Polícia Civil havia menos de um mês. Os dois fingiam estar namorando no carro parado nas imediações do ponto de encontro dos militantes.

Cena da emboscada de Marighella na Alameda Casa Branca
Cena da emboscada de Marighella na Alameda Casa Branca | Arquivo Público do Estado de São Paulo

Às 20h, Marighella chegou andando pela alameda Casa Branca e viu o Fusca azul parado perto da esquina com a Rua Tatuí. Dentro da pasta preta, havia mil dólares que ele entregaria aos freis Fernando e Ivo. O dinheiro viabilizaria a fuga de dois militantes até o Uruguai, utilizando uma rota oculta operada pelo Frei Betto. O líder da ALN abriu a porta do carona, puxou o encosto do assento para a frente e se acomodou no banco de trás. Imediatamente, diversos policiais cercaram o carro, arrancaram os frades de dentro e apontaram as armas para o guerrilheiro. Depois de ouvir Fleury dando voz de prisão, Marighella tentou alcançar sua pasta, mas levou uma saraivada de tiros. Um dos disparos penetrou seu tórax e arrebentou-lhe a artéria aorta.

Araguaia: O extermínio de comunistas que o Exército tentou esconder

O militante ainda estava respirando quando foi retirado do carro e estendido sobre a rua, enquanto o sangue se esvaía. Ao revistá-lo, os policiais encontraram mensagens escritas em diferentes códigos. De acordo com a biografia de Mário Magalhães, os agentes ficaram surpresos ao ver que o guerrilheiro não estava armado e entenderam que, ao tentar alcançar a pasta preta, o "terrorista", coerente com seu discurso, provavelmente estava interessado nas cápsulas de cianureto. Já em seu livro "Ditadura escancarada" (2002), o jornalista e colunista do GLOBO Elio Gaspari afirma que ele portava um revólver Taurus calibre 32. 

Marighella após ser morto em emboscada comandada por Sérgio Fleury
Marighella após ser morto em emboscada comandada por Sérgio Fleury | Foto de arquivo

Também segundo a investigação histórica de Magalhães, quando o alvo da tocaia já estava anulado, um automóvel Buick preto passou próximo ao Fusca, após "driblar" a interdição da alameda Casa Branca. Os agentes acharam que se tratava de uma reação de guerrilheiros à morte de seu líder e fuzilaram o carro, matando seu motorista, o protético alemão Friedrich Adolf Rohmann, ex-soldado nazista que se mudara para o Brasil em busca de uma vida sossegada após a Segunda Guerra Mundial. Os tiros, que deixaram a lataria do carro crivada de balas, também acertaram a perna do delegado Rubens Tucunduva, deixando-o gravemente ferido, e a cabeça da policial Estela Morato, que morreu três dias depois.

Carlinhos Metralha: Um agente da ditadura condenado na Justiça criminal

Na versão oficial da época, entretanto, Marighella estava armado com uma pistola 9mm, e os policiais foram atingidos por um grupo de "terroristas" que chegaram atirando para vingar o líder morto. A foto acima foi feita depois que os agentes jogaram o corpo de Mariguella, já sem vida, de volta no banco de trás. O guerrilheiro foi sepultado em segredo no cemitério da Vila Mimosa, na presença apenas de coveiros e policiais, na manhã do dia 6 de novembro de 1969. 

Em 1996, o Ministério da Justiça reconheceu a culpa do Estado pela morte de Marighella. Doze anos depois, ficou estabelecido que sua companheira Clara Charf deveria receber pensão vitalícia do governo. Em 2012, após o trabalho de apuração conduzido pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), o então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, oficializou a anistia post mortem do guerrilheiro. Em novembro de 2013, 44 anos após os tiros na alameda Casa Branca, Marighella foi homenageado no mesmo local dos disparos, com a presença de Clara. 

Mariguella. Sepultamento em segredo no cemitério da Vila Formosa
Mariguella. Sepultamento em segredo no cemitério da Vila Formosa | Foto de arquivo/Polícia de São Paulo
Mariguella em 1964, sem camisa para mostrar marca de bala no peito
Mariguella em 1964, sem camisa para mostrar marca de bala no peito | Reprodução

MPF acusa 8 militares e um médico por crimes cometidos no Araguaia

Denúncias foram entregues ao Judiciário depois de 9 anos de investigação por ordem da Corte Interamericana de Direitos Humanos

Vasconcelo Quadros / Agência Pública

  • Para procuradores, não houve confronto, mas assassinatos a sangue frio
  • Condenação esbarra em oposição de instâncias superiores, que apelam para Lei da Anistia
  • Major Curió e coronel Lício Maciel estão entre os acusados pela execução de guerrilheiros

Em dez denúncias encaminhadas ao Judiciário cumprindo parte da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) contra o Estado brasileiro, o Ministério Público Federal resgatou a pauta mais incômoda para as Forças Armadas e o governo do presidente Jair Bolsonaro: a acusação de que, longe da versão de uma guerra na selva difundida pelos militares, o que ocorreu na Amazônia entre outubro de 1973 e final de 1974, na operação conhecida como Marajoara, foram assassinatos a sangue frio, com a ocultação e destruição planejadas dos corpos de oponentes. Oito oficiais e um médico foram identificados e responsabilizados pela execução e ocultação dos corpos de 17 guerrilheiros do PCdoB. As investigações também confirmam que, entre os 68 desaparecidos, 41 foram executados, 32 deles depois de passarem por prisões nas bases militares no circuito da guerrilha. 

As conclusões da Força Tarefa Araguaia (FTA) chega em mau momento para o presidente Jair Bolsonaro – conhecido por exaltar torturadores e a ditadura militar-, que tenta emplacar um juiz na Corte IDH, o advogado Rodrigo Mudrovitsch. Além de jamais ter atuado na área de Direitos Humanos, o advogado defende os ruralistas no processo do Marco Temporal. As eleições estão previstas para acontecer virtualmente entre 10 e 12 de novembro durante a 51ª Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), na Guatemala. 

Foram nove anos de investigação, a maior sobre os anos de chumbo, aberta em 2012 para atender à decisão da Corte IDH, que sentenciou o governo brasileiro a investigar a repressão à guerrilha da Araguaia, responsabilizar os envolvidos e dar uma satisfação às famílias sobre o destino dos desaparecidos políticos. O processo internacional é respaldado pela Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário. Com o tempo de funcionamento já exaurido, caso não seja renovado, a Força Tarefa Araguaia (FTA) encerrará oficialmente os trabalhos esclarecendo menos de um terço dos 62 assassinatos listados na sentença da corte internacional. Pesquisas independentes elevaram esse número para 68. 

A responsabilização criminal dos militares acusados pelo MPF esbarra na resistência da segunda instância da Justiça Federal, especialmente no Tribunal Regional Federal da Primeira Região, o TRF-1, jurisdição do Pará, que tem suspendido ações penais com base na Lei da Anistia de 1979. Em grau de recursos, os casos devem ser discutidos ainda no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF), que também são refratários a mudanças na Anistia.


Os militares acusados

Na lista do MPF, o mais destacado entre os militares que participaram da repressão à guerrilha é o coronel da reserva Sebastião Curió Rodrigues de Moura, o famoso “Major Curió”, denunciado em sete casos e acusado pelo MPF por 14 homicídios. Depois do conflito, o militar permaneceu por quatro décadas com o controle da região, onde administrou o garimpo de Serra Pelada, fundou uma cidade com seu nome, Curionópolis, da qual foi duas vezes prefeito, se elegeu deputado federal e geriu com mãos de ferro a transformação da área da guerrilha numa das maiores províncias minerais do mundo.

Em seguida, vem o coronel Lício Ribeiro Maciel, alvo de três denúncias do MPF e acusado por cinco mortes. Outros quatro oficiais com forte atuação na repressão também foram acusados: José Brant Teixeira, que usava o codinome de “Dr. Cesar”, José Conegundes do Nascimento, “Dr. Cid”, Celso Seixas Marques Ferreira, o “Dr. Brito”, e João Lucena Leal, o “Dr. João”. Curió era o “Dr. Luchini”, e Lício, o “Dr. Asdrubal”. O uso de codinomes era facilitado por documentos falsos, cedidos pelo próprio governo militar, com os quais os oficiais ligados ao então temido Centro de Informações do Exército (CIE), circulavam na Amazônia como se fossem servidores do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O coronel aviador Pedro Cabral, o ex-sargento João Santa Cruz do Nascimento e o médico Manoel Fabiano Cardoso da Costa, este acusado de falsificar um atestado de óbito, completam o grupo de denunciados pelo MPF.

O chefe da FTA, procurador Tiago Modesto Rabelo, disse à Agência Pública que as denúncias representam o que foi possível esclarecer. Nos demais casos, incluindo o do estudante de arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Guilherme Lund, cuja mãe, Julia Gomes Lund, já falecida, encabeça a ação, não foi possível encontrar provas para responsabilizar os matadores. O MPF acha possível, no entanto, que o caso possa ser encerrado com mais uma ou duas denúncias, relacionadas no máximo a um total de 20 desaparecidos, se a autorização de funcionamento da FTA, que cuida especificamente dos crimes e está com prazo já exaurido, for renovada. Em relação aos demais desaparecidos, os casos devem ser arquivados como insolúveis perante a Corte Internacional. 

Mas há uma outra sentença, esta proferida pela juíza federal Solange Salgado, determinando que se abra investigação sempre que surgir um fato novo, além de exigir que o governo brasileiro entregue os corpos. O MPF tem também uma frente cível, que cuida tanto da localização dos desaparecidos quanto da reparação dos traumas gerados em famílias que foram separadas pelo conflito.

A matança

Segundo o MPF, os 17 guerrilheiros foram aprisionados em emboscadas, levados para as bases militares e, esgotados os interrogatórios, um a um ou em grupos transportados de helicóptero até os pontos de execução. Ao reconstituir o episódio, o MPF rompeu a lei de silêncio imposta aos órgãos estatais pela Anistia e, passou a acusar os militares como por um elenco de crimes: sequestros, torturas, assassinatos e ocultação de cadáveres. Duas das dez denúncias foram aceitas pela Justiça Federal, tornando Curió e Lício réus, mas acabaram suspensas pelo Tribunal Regional Federal da Região (TRF-1) sob a alegação de que esbarram na Lei da Anistia recepcionada pela Constituição.

A reconstrução dos episódios foi feita por um grupo de procuradores, com de sete a onze integrantes, que ouviu dezenas de testemunhas oculares, militares que participaram da repressão, camponeses coagidos a se tornarem guias do Exército, além de esmiuçar a vasta bibliografia já produzida sobre o conflito. 

Uma das mais contundentes confissões feitas durante as investigações foi justamente de Curió. Num depoimento surpreendente à juíza federal Solange Salgado no dia 14 de outubro de 2015, em Brasília, ele sustentou que são verdadeiras as informações publicadas no livro Mata! O major Curió e as Guerrilhas no Araguaia, do jornalista Leonencio Nossa, apontando as execuções. “O próprio denunciado Sebastião Curió (…) declarou que autorizou a publicação do livro, tem conhecimento de seu conteúdo e o reconhece como verdadeiro”, anotaram os procuradores da República nas denúncias. Eles fizeram questão de destacar que Curió também “elaborou documentos acerca da ação das Forças Armadas na Guerrilha do Araguaia e, em 20 de junho de 2009, revelou parte de seus arquivos ao jornal “Estado de São Paulo”, tendo afirmado, segundo a reportagem, que o Exército executou militantes. Dos 68 integrantes do movimento de resistência mortos durante o conflito com militares, 41 foram presos, amarrados e executados, quando não ofereciam risco às tropas”, escrevem na denúncia. Curió abriu seu baú para o jornalista e, em entrevistas, narrou os principais episódios do conflito, revelando inclusive execuções das quais participou.

A última aparição pública de Curió foi um encontro com o presidente Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto, em maio de 2020. As imagens mostram o militar numa cadeira de rodas, magro, mas com semblante aparentemente saudável, embora tenha alegado estar doente ao se recusar alguns dias antes a receber um oficial de justiça que tentava citá-lo num dos processos. O militar apresentou um atestado médico afirmando que padecia de várias enfermidades, entre elas insuficiência renal crônica, mal de Parkinson e senilidade, o que o impediria de responder por seus atos. O MPF decidiu, então, ingressar na Justiça com um recurso chamado incidente de insanidade para aferir se o militar tem ou não capacidade mental para responder pelos crimes. Se for aceito pelo Tribunal Regional Federal (TRF-1) sediado em Brasília, uma junta psiquiátrica forense fará o exame de sanidade e encaminha o laudo à justiça. Caso as ações penais resultem em sentença, Curió seria internado compulsivamente num manicômio judiciário ou outro estabelecimento em que se mantenha recluso, que pode ser a própria residência. O advogado do militar, Adelino Tucunduva, disse que Curió, que mora em Brasília, não dará mais entrevistas sobre o caso Araguaia.

A alegação de doenças e de lapsos de memória se tornou recorrente entre os oficiais denunciados. Lício e Brant também apresentaram atestados ao perceberem os riscos de o Judiciário aceitar a tese do MPF e da Corte IDH, para as quais os crimes praticados são imprescritíveis em função do sumiço dos corpos. 

Um precedente ruim para os militares foi aberto em julho deste ano, quando a 9ª Vara Federal Criminal de São Paulo, acatando denúncia do MPF, em decisão inédita, condenou a dois anos e onze meses de prisão o delegado aposentado Carlos Alberto Augusto, ex-agente do Dops paulista, conhecido por Carteira Preta e Carlinhos Metralha, pelo sequestro do ex-fuzileiro naval Edgar de Aquino Duarte, desaparecido em 1971. 

No caso do Araguaia, o MPF identificou com precisão os militares envolvidos em crimes, as circunstâncias e os locais em que se deram cada assassinato. A riqueza de detalhes em cada uma das denúncias formuladas tem a força de documento consistente para cobrar o destino dos corpos. Embora as Forças Armadas até hoje neguem a existência de arquivos, informes e relatórios das ações, produzidos pelos próprios militares, apontam nomes, datas e locais onde os corpos foram deixados no calor das execuções ou combates. Menos de um ano após o encerramento do conflito, em 1975, os mesmos militares comandados por Curió teriam resgatado e destruído os restos mortais de todos os militantes do PCdoB para tentar apagar os vestígios da guerrilha. 

Mas o episódio continua vivo na memória de familiares de cerca de 200 camponeses presos e torturados na mesma operação que exterminou os militantes do PCdoB. Até o movimento rebelde ser abortado, em abril de 1972, os militantes do PCdoB estabeleceram uma convivência de pelo menos seis anos com os camponeses, sem que a imensa maioria destes soubesse dos preparativos para a guerrilha.

Crueldade generalizada

Última das operações, a Marajoara foi marcada por crueldade generalizada. Famílias inteiras que recebiam assistência de saúde e educação, além de orientação agrícola dos militantes do PCdoB foram presas, acusadas de apoiar a guerrilha. O MPF reproduziu relatório em que os militares ressaltam os primeiros resultados da Marajoara: “o inimigo foi surpreendido com a rapidez e com a forma como foi executado o desembarque e infiltração das patrulhas na mata. Em três dias 70% da rede de apoio estava neutralizada. No fim de uma semana o inimigo sofria as primeiras quatro baixas, e já havia perdido três depósitos na área da Transamazônica. O emprego de Helicópteros e Aviões de Ligação deu grande mobilidade à tropa e proporcionou rapidez na ação”, escrevem os agentes. 

Omitem, é claro, que duas centenas de famílias de camponeses foram presas, torturadas e trancafiadas em buracos abertos nas bases militares. Cerca de dez agricultores foram mortos, outros desapareceram e dezenas deles, coagidos e sob ameaça de execução, foram obrigados a virar guias do Exército e participar dos assassinatos.

“O modus operandi adotado pelos agentes da repressão estatal no Araguaia (…) incluía a posterior ocultação dos vestígios dos crimes cometidos. Neste contexto, após as execuções, os corpos eram identificados e sepultados em determinados locais, de modo precário e às escondidas, ou abandonados na mata, dificultando a localização das ossadas, sem qualquer divulgação do fato ou comunicação aos familiares”, escrevem os procuradores nas denúncias. Eles concluem: “de fato, a ocultação dos cadáveres das vítimas foi cumprida à risca pelas Forças Armadas, tanto que, até os dias atuais, apesar dos esforços empreendidos, ainda não foi possível localizar os restos mortais dos militantes”.

Memórias da Ditadura

Uma das denúncias, de 2019, joga luzes sobre o papel do coronel José Brant Teixeira, o “Doutor César”, apontado pelos camponeses como torturador e mandante de um crime marcado pela barbárie: a decapitação do estudante de física Arildo Aírton Valadão, emboscado num local conhecido como Grota do Pau Preto, em São Geraldo do Araguaia, no dia 24 de novembro de 1973. Ari, como era conhecido, levou um tiro no peito e teve a cabeça cortada ainda em vida, conforme relato de um dos três guias que, coagidos por Brant, executaram o crime e depois andaram quatro dias pela mata para entregar a cabeça do guerrilheiro. “O corpo de Arildo Valadão foi abandonado na mata e a cabeça da vítima foi decepada e entregue ao mandante, José Brant Teixeira, então comandante da base militar instalada no Município de Xambioá/TO”, escrevem os procuradores na denúncia. 

Lotado à época no gabinete do então ministro do Exército, Orlando Geisel, o militar que deu a ordem de extermínio, Brant era um dos elos entre o CIE, a cúpula das Forças Armadas e o gabinete do ex-presidente Emílio Garrastazu Médici, que deu a ordem de extermínio. Brant esteve várias vezes na região, a última em julho de 1974, quando teria feito questão de acompanhar de perto a execução da geóloga Dinalva Conceição Teixeira, a Dina, guerrilheira que virou uma lenda na região, presa duas semanas antes numa emboscada organizada por Curió. “Estou em Brasília. Guarde que essa é minha”, teria dito Brant por telefone ao saber da prisão, segundo conta o jornalista Leonencio Nossa na biografia sobre Curió.

As denúncias do MPF reconstituem os episódios mais fortes do conflito no Araguaia. A última delas, de agosto, trata de um camponês que aderiu à guerrilha e era conhecido como Pedro Carretel. Seu nome verdadeiro, segundo o MPF, é Pedro Pereira de Souza, integrante de um dos três destacamentos organizados pelo PCdoB, o A. Segundo o MPF, Pedro Carretel (apelido que herdara de um tio, Manoel Carretel) já tinha atuação política junto aos camponeses antes da chegada do PCdoB à região. Havia sido preso meses antes da execução e ficara sob custódia num centro de tortura conhecida como Casa Azul, endereço do antigo DNER, hoje sede regional do Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (Denit), em Marabá. “Era profundo conhecedor da região. Foi perseguido pelo Exército e teve sua casa queimada”, registra a denúncia.


LEIA TAMBÉM

Militares teriam levado presos políticos para matar no Araguaia
Com base em cruzamento de documentos com informações de filhos de agentes da repressão, pesquisadora vê evidências de que militantes foram transportados e mortos na região em 1974

ARAGUAIA: o massacre que as Forças Armadas querem apagar
Em meio ao debate sobre o sigilo eterno de documentos, a Pública revisita uma das histórias mais obscuras do período militar: a repressão à guerrilha do Araguaia


O assassinato de Pedro Carretel, no dia 15 de fevereiro de 1974, seis meses depois da prisão, em Brejo Grande do Araguaia, na Fazenda Matrinchã, cujo nome atual é Fazenda Rainha do Araguaia, foi esclarecido em por Curió em declarações para seu biógrafo, cujo teor o MPF considera uma confissão por ele ter confirmado à justiça. Ele ainda relacionou na mesma execução outras três vítimas: o estudante de bioquímica Antônio Teodoro de Castro, o Raul, o estudante de economia Cilon Cunha Brum, o Simão, e o estudante secundarista Custódio Saraiva, o Lauro. Os quatro foram levados para os fundos da posse de um morador conhecido como Manezinho das Duas. Com os pulsos amarrados para trás, obrigados a sentar em fila, foram executados sem chance de defesa. Curió sustenta que o tiroteio foi precipitado pelo barulho de outra patrulha militar próxima ao local escolhido para a matança. “Naquele momento atingi Raul no peito. Lembro que Carretel recebeu tiros no lado esquerdo da barriga. Não gritaram porque não perceberam o momento em que erguemos as armas”, detalhou Curió, acusado de planejar, executar e ocultar o corpo de Carretel.

No mesmo dia, para garantir que os corpos não fossem retirados, o próprio Curió foi às casas de vários moradores para determinar que caçadas próximas à Fazenda Matrinchã estavam proibidas nos três meses seguintes a chacina. Nesse caso Curió foi denunciado por homicídio e ocultação de cadáver.

Em outras seis denúncias, Curió é acusado também pelas mortes de outros 13 guerrilheiros, em cuja lista estão Raul e Simão, mortos junto com Pedro Carretel. Seu nome está ligado aos episódios mais marcantes do conflito, como a execução de Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, ex-tenente do Exército e engenheiro de mina, primeiro militante que chegou à área e o mais temido pelos militares; e, da estudante de medicina (RJ) Lucia Maria de Souza, a Sônia que, mesmo emboscada e cercada por uma patrulha, reagiu, ferindo gravemente o coronel Lício Maciel e o próprio Curió. Na lista de crimes atribuídos pelo MPF a Curió estão ainda as execuções do estudante de química Hélio Luiz Navarro Magalhães, o Edinho; a estudante de ciências sociais Maria Célia Corrêa, a Rosa; o metalúrgico Daniel Ribeiro Callado, o Doca; o estudante de astronomia (UFRJ) Antônio de Pádua Costa, o Piauí; a estudante de geografia Telma Regina Cordeiro Corrêa; o secundarista André Grabois, filho do comandante da guerrilha, Maurício Grabois, também desaparecido; o contador João Gualberto Calatrone, o Zebão; o camponês Antônio Alfredo de Lima; e, a geógrafa Dinaelza Soares Santana Coqueiro, a Maria Diná.

O coronel Lício Maciel é acusado de participar dos assassinatos do militante do PCdoB Divino Ferreira de Souza, o Nunes, André Grabois, João Gualberto Calatrone, Antonio Alfredo de Lima e Lúcia Maria de Souza, pelos quais Curió e outro militar de peso, o coronel José Conegundes do Nascimento também são responsabilizados. 

A Guerrilha do Araguaia é um capítulo à parte na história dos anos de chumbo. Organizada logo em seguida ao golpe de 1964, eclodiu em 12 de abril de 1972 com o ataque militar, foi o mais forte movimento da esquerda armada de resistência à ditadura, exigindo o envolvimento das três forças militares e o emprego de algo em torno de 5 mil homens. Os militares sabiam com clareza que naquela região inóspita estavam os quadros mais capacitados da esquerda e temiam que, se não fosse abortado, o movimento conseguisse em algum momento reunir força popular para mais à frente ameaçar a sobrevivência do regime ou, no mínimo, criar uma zona liberada em boa parte da Amazônia. A espinha dorsal da guerrilha, distribuídas em três destacamentos, instalados numa área com 6.500 quilômetros quadrados entre o Pará e Tocantins (mais de quatro vezes o tamanho da cidade de São Paulo) era formada por quadros orgânicos de peso do PCdoB, entre 18 e 20 homens, que receberam treinamento militar na China, daí a razão do foco ser considerado de viés maoísta.

A envergadura do movimento, que sobrevivera a três campanhas, explica a ordem de Orlando Geisel para que nenhum guerrilheiro saísse vivo da área quando, em outubro de 1973, foi deflagrada a Operação Marajoara, usando as forças especiais do Exército bem armadas contra guerrilheiros já em precárias condições de sobrevivência. Hoje octogenários, com as denúncias do MPF, esses militares são acusados de serem autores de crimes e testemunhas oculares de uma história de horror sobre a qual as Forças Armadas tentam colocar uma pedra em cima.

Fonte: Agência Pública
https://apublica.org/2021/10/mpf-acusa-8-militares-e-um-medico-por-crimes-cometidos-pela-ditadura-no-araguaia/


Morte de Lamarca completa 50 anos e atuação na guerrilha ainda incomoda militares

Pressões políticas e jurídicas mantêm em suspenso definição sobre a reparação financeira à viúva e aos dois filhos do capitão

Vinícius Valfré, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Há exatos 50 anos, em 17 de setembro de 1971Carlos Lamarca era metralhado sob a sombra de uma baraúna, no sertão da Bahia. A história do capitão do Exército que desertou para participar da luta armada contra a ditadura ainda provoca desconforto. As Forças Armadas não aceitam a anistia concedida em 2007. Até o presidente Jair Bolsonaro tenta inserir na própria biografia uma suposta contribuição decisiva à captura do combatente.

Pressões políticas e jurídicas mantêm em suspenso a definição sobre a reparação financeira à viúva e aos dois filhos de Lamarca, quase dez anos depois da lei criada no governo de Fernando Henrique Cardoso, em 2022, que permitiu o pagamento de indenizações a famílias de perseguidos políticos. O processo que discute a indenização entrou na pauta de uma das turmas do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, nesta semana, mas o julgamento acabou adiado, sem data para ser retomado. A depender do desfecho, o caso ainda pode ir ao plenário e, em seguida, às instâncias superiores.

LEIA TAMBÉM

MP investiga demolição do busto de Lamarca em Cajati

ctv-3fv-carlos-lamarcass
O militar Carlos Lamarca ensina pratica de tiro a funcionarias do Bradesco, devido a onda de assaltos a bancos Foto: OSWALDO LUIZ PALERMO/ESTADÃO CONTEÚDO/AE

Desde 2015 a reparação financeira à família Lamarca está suspensa por decisão do primeiro grau da Justiça Federal do Rio, com determinação para o ressarcimento dos valores recebidos. Duas ações semelhantes, que depois passaram a tramitar unidas, questionam os benefícios. Uma é assinada pelos clubes Militar, da Aeronáutica e Naval, que defendem interesses de militares da reserva. A outra foi movida pelo advogado João Henrique Freitas, hoje chefe da Assessoria Especial de Jair Bolsonaro e presidente da Comissão da Anistia.

A mesma comissão, em 2007, reconheceu como anistiados o capitão Lamarca; a viúva, Maria Pavan; e os filhos César e Cláudia. Determinou o pagamento de R$ 100 mil a cada um deles, a título indenizatório, uma reparação econômica à viúva, de R$ 902 mil, a promoção do capitão a coronel e a fixação da pensão em valor correspondente ao ganho de um general de brigada.

Maria e César vivem hoje em Portugal. Claudia, no Brasil. Procurados, não quiseram comentar a data histórica nem o processo que se arrasta na Justiça. Sem ligação com as bandeiras de Lamarca, os três se exilaram em Cubapouco antes de ele optar por combater a ditadura, em 1969, e foram monitorados pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), no exterior e depois do retorno ao Brasil.

ctv-nvs-carlos-lamarca
O capitão do Exército Carlos Lamarca, morto em 17 de setembro de 1971. Foto: Fabio Motta/Estadão Conteúdo/AE

Os advogados do Clube Militar esperam a manutenção da decisão de primeiro grau. “A expectativa que a gente tem é a de que seja mantida a sentença. Pelo nosso entendimento, o que ocorreu é que o ex-capitão cometeu deserção e furto de armamento. Não foi afastado das fileiras do Exército por perseguição política, mas por crimes julgados pela Justiça Militar”, comentou Alexandre Fortes da Costa.

Por sua vez, o presidente da Comissão de Anistia em 2007 Paulo Abrão afirma que, independentemente do “juízo de valor” das práticas de Lamarca, é “dever” do Estado promover a reparação. “Me parece muito sintomático que estejamos em pleno 2021 criando obstáculos para complementar o ciclo da reconciliação nacional.”

Caçada. Lamarca é um dos adversários da ditadura mais lembrados por Jair Bolsonaro, para quem a figura histórica não passa de um terrorista da pior espécie que matou um tenente do Exército enquanto fugia de um cerco. Como deputado, dedicou entrevistas e discursos contra o ex-militar. Na disputa à Presidência em 2018, apresentou a versão de que embrenhou-se nas matas de Eldorado, região do Vale do Ribeira, onde cresceu, na caçada a Lamarca. “Eu participei da luta armada no Vale do Ribeira, na caça do Lamarca (...). Esse grupo do Lamarca era o mesmo grupo da Dilma Rousseff”, disse, em entrevista ao Roda Viva, em julho de 2018.

Em 1969, Lamarca fugiu do quartel, no bairro de Quitaúna, em Osasco (SP), numa Kombi carregada de fuzis e metralhadoras. No ano seguinte, ele e mais sete guerrilheiros da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) passaram em fuga por Eldorado. Jair Bolsonaro tinha 15 anos recém completados. O presidente narra que os militares que participaram de confrontos com Lamarca na cidade ganharam prestígio. E foi deles que recebeu recomendações para seguir a carreira militar. Ainda que Bolsonaro tenha oferecido alguma contribuição – algo do que não existe registros, e considerado pouco crível por especialistas –, quase nada adiantou. Lamarca ainda estaria livre por quase um ano e meio.

ctv-mhq-procura-se-carlos-lamarca
Reprodução de foto do arquivo público de cartaz com os dizeres "procura-se" e com a imagem de Lamarca. Foto: André Dusek/Estadão Conteúdo/AE

Anistia. Ministro da Justiça à época em que a anistia foi concedida a Lamarca, Tarso Genro afirma que a condição foi atestada não a partir dos feitos do ex-capitão, mas por conta do tratamento dado a ele pelo Estado. “O assassinato de Lamarca foi feito fora das regras da própria ditadura. Portanto, ele tem que ser anistiado. Sofreu a punição máxima, assassinato a sangue frio”, diz. “Com essa formulação, queríamos criar uma concepção dialógica dentro da transição, para que ocorressem duas coisas: as pessoas que sofreram as agruras da perseguição fossem assistidas e as pessoas que se comportam fora da legalidade do próprio regime fossem responsabilizadas”, ressalta. “O que ocorreu, apesar do nosso esforço, foi o contrário.”

Homenagens na Bahia

O 17 de setembro é feriado em Brotas de Macaúbas e em Ipupiara, cidades vizinhas localizadas no sertão da Bahia, a cerca de 600 quilômetros de Salvador. Foi nessa região que Lamarca escreveu seu último capítulo e entrou para o imaginário local.

Assim como ele, por exemplo, o sindicalista José Campos Barreto também é lembrado e homenageado até hoje. Natural de Brotas, Zequinha, como era conhecido, liderou importantes greves em Osasco (SP) no fim dos anos 1960 e, mais tarde, integrou os quadros da VPR. Ele e Lamarca foram capturados juntos, após dias de fuga pela caatinga à base de rapadura.

Uma grande operação liderada pelo major Nilton Cerqueira foi montada para dar fim a ambos, mortos a tiros em um distrito de Ipupiara e expostos em um campo de futebol da comunidade de Brotas.

ctv-4hh-carlos-lamarcac
O corpo do guerrilheiro Carlos Lamarca, morto no Bahia, após ser capturado em operação comandada pelo major Nilton Cerqueira. Foto: Arquivo/Estadão Conteúdo/AE

Irmão de Zequinha, Olderico Campos, 73, conta que os militares espalharam muitas “fake news” para convencer os locais a darem informações que levassem ao paradeiro de ambos. “A elite da repressão veio toda para Brotas, o ponto central deles foi aqui. Eles colocavam na cabeça das pessoas que Lamarca tinha uma bomba que, se soltasse, não sobraria uma pessoa, uma cabeça de gado, num raio de 20 quilômetros”, lembra.

Sabendo da perseguição ao irmão, Olderico, com 23 anos, chegou a trocar tiros com os militares. Foi ferido na mão e no rosto e torturado na propriedade da família. O irmão Otoniel, de 20 anos, foi morto a tiros. Aposentado e dono de uma pequena propriedade rural, Olderico conta que costuma receber admiradores de Lamarca e Zequinha que visitam a região para reconstituir os últimos passos e render homenagens à dupla. “Eu tenho admiração profunda por aquela força, intelectual e física. Eu não ia brigar com o esquadrão da morte por qualquer coisa, não é? Considero Zequinha como vivo. Nenhum dos dois, nem Zequinha nem Lamarca, a gente chama de finado”, disse.

A principal homenagem anual parte da Igreja Católica. O bispo da Diocese de Barra, Dom Luiz Cappio, 74, que ficou conhecido nacionalmente pelas greves de fome que fez contra a transposição do Rio São Francisco no início dos anos 2000, organiza uma procissão seguida de missa acompanhada por moradores de Ipupiara. Por iniciativa do sacerdote, foi construído no local em que os dois foram mortos o Memorial dos Mártires, em homenagem a Lamarca, Zequinha e outros quatro filhos da cidade que lutaram contra a ditadura. “Fazemos isso há aproximadamente 20 anos. Sempre tem pessoas de fora, a palavra é aberta. As pessoas dão seus testemunhos”, destacou o religioso. “No começo houve resistências, mas hoje já faz parte da opinião pública de toda aquela região o valor dessas pessoas.

”NOTÍCIAS RELACIONADAS

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,morte-de-lamarca-completa-50-anos-e-atuacao-na-guerrilha-ainda-incomoda-militares,70003842886


Cristovam Buarque: Sonhos e exemplos

Os leitores sabem que livros escritos por jornalistas tendem a provocar leituras agradáveis e a não provocar questionamentos intelectuais. Dois livros lançados em Brasília este mês confirmam a primeira afirmação e desmentem a segunda. O livro Borboletas e Lobisomens, de Hugo Studart, é lido com o prazer de uma boa reportagem sobre a Guerrilha do Araguaia; o livro Para onde vai a Igreja?, de Gerson Camarotti, entrevista cinco cardeais brasileiros para saber onde está caminhando a Igreja, sob o papado de Francisco.

O livro de Studart descreve a aventura de jovens da cidade embrenhados na selva amazônica, lutando para sobreviver, derrotar um poderoso exército, fazer uma revolução e implantar o socialismo. As duas obras nos provocam para o debate sobre os dogmas e seus fracassos devido à força do tempo, que amarela todos os livros e suas ideias. Camarotti nos passa a aventura de um papa com 80 anos tentando fazer uma revolução e atualizar a Igreja Católica. Os nossos jovens usavam dogmas criados por Marx, Lenin e Mao para derrubar uma ditadura e implantar o socialismo; Francisco e seus cardeais lutam para derrubar preconceitos arraigados há séculos por interpretações da Bíblia.

A ideologia dos nossos guerrilheiros não sobreviveu à duração da própria guerrilha; diante da velocidade como ocorriam as mudanças na realidade, suas ideias ficavam velhas, enquanto eles lutavam por elas. No mesmo tempo em que eles lutavam pela revolução social, outros jovens em universidades ao redor do mundo faziam a revolução científica e tecnológica que transformava o mundo e fazia obsoletas as ideias da revolução guerrilheira; o capitalismo encontrava fôlego, o Partido Comunista da URSS se desfazia e os líderes chineses se preparavam para novos tempos: globalização, robótica, inteligência artificial, crise ecológica, esgotamento do Estado, apartação social, enriquecimento e individualismo de parte dos trabalhadores do setor moderno.

O livro de Studart nos permite perceber como aqueles jovens queriam fazer história, sem perceber o rumo que ela tomava, independentemente deles e dos militares que enfrentavam. Mostra também o heroísmo e a capacidade de sonhar dos guerrilheiros. O autor trata da importância dos sonhos como o alicerce para formar cada guerrilheiro e uni-los na selva com armas na mão. Isso nos faz especular quais os sonhos que motivariam os jovens de hoje para lutar pela construção de um mundo melhor, mais pacífico e mais justo, mais eficiente e mais acolhedor.

Os jovens do Araguaia achavam que isto era possível pela tomada do poder e a estatização dos meios de produção com o Estado controlado pelo partido a serviço do povo. Os jovens guerrilheiros não sabiam que não se consegue fazer uma sociedade justa sem ter uma economia eficiente. Descobriu-se que o Estado serve sempre à minoria que o controla, sejam industriais, sejam latifundiários, banqueiros, militares, juízes ou servidores civis, não importa o partido; descobriu-se também que para ficar no poder o partido e seus militantes são capazes de depredar o Estado, aceitar propinas, destruir a eficiência da economia, tentando enganar ao povo.

Eles nos deram o exemplo de heroísmo e de luta a ser seguido hoje, com novas ideias e novos métodos. Não mais as armas, mas as urnas; não mais estatizar a economia e a sociedade, mas promover a liberdade, construindo uma economia eficiente e assegurando igualdade no acesso à educação e à saúde, independentemente da renda e do endereço da família; respeitando o meio ambiente; promovendo a ciência e tecnologia; sem corrupção e com democracia; não só em seu país, mas em todo o imenso mundo global de hoje.

Studart dedica espaço à pergunta que levou um jovem a sair do aconchego confortável de sua família de classe média em cidades para embrenhar-se na mata inóspita, disposto a morrer e matar. Sua resposta é de que foram os sonhos de mudar o mundo com revolução para construir utopia. Camarotti começa cada entrevista perguntando as razões que levaram o cardeal ao sacerdócio; de todos eles ouviu que tinham sonho de realização espiritual e também exemplo de religiosos e santos. Isso nos leva a perguntar qual o sonho para inspirar os jovens de hoje à vontade de mudar o mundo, e em que exemplo de vida se baseariam para escolher a luta no lugar do conforto.

A principal tarefa dos filósofos e dos políticos de hoje é provocar sonhos coletivos nos jovens para que eles queiram mudar o Brasil e o mundo; e dar exemplo de vida para legitimar os sonhos. (Correio Braziliense – 31/07/2018)