Cristovam Buarque: Sonhos e exemplos

Os leitores sabem que livros escritos por jornalistas tendem a provocar leituras agradáveis e a não provocar questionamentos intelectuais. Dois livros lançados em Brasília este mês confirmam a primeira afirmação e desmentem a segunda. O livro Borboletas e Lobisomens, de Hugo Studart, é lido com o prazer de uma boa reportagem sobre a Guerrilha do Araguaia; o livro Para onde vai a Igreja?, de Gerson Camarotti, entrevista cinco cardeais brasileiros para saber onde está caminhando a Igreja, sob o papado de Francisco.
Foto: Juanca Guzman Negrini
Foto: Juanca Guzman Negrini

Os leitores sabem que livros escritos por jornalistas tendem a provocar leituras agradáveis e a não provocar questionamentos intelectuais. Dois livros lançados em Brasília este mês confirmam a primeira afirmação e desmentem a segunda. O livro Borboletas e Lobisomens, de Hugo Studart, é lido com o prazer de uma boa reportagem sobre a Guerrilha do Araguaia; o livro Para onde vai a Igreja?, de Gerson Camarotti, entrevista cinco cardeais brasileiros para saber onde está caminhando a Igreja, sob o papado de Francisco.

O livro de Studart descreve a aventura de jovens da cidade embrenhados na selva amazônica, lutando para sobreviver, derrotar um poderoso exército, fazer uma revolução e implantar o socialismo. As duas obras nos provocam para o debate sobre os dogmas e seus fracassos devido à força do tempo, que amarela todos os livros e suas ideias. Camarotti nos passa a aventura de um papa com 80 anos tentando fazer uma revolução e atualizar a Igreja Católica. Os nossos jovens usavam dogmas criados por Marx, Lenin e Mao para derrubar uma ditadura e implantar o socialismo; Francisco e seus cardeais lutam para derrubar preconceitos arraigados há séculos por interpretações da Bíblia.

A ideologia dos nossos guerrilheiros não sobreviveu à duração da própria guerrilha; diante da velocidade como ocorriam as mudanças na realidade, suas ideias ficavam velhas, enquanto eles lutavam por elas. No mesmo tempo em que eles lutavam pela revolução social, outros jovens em universidades ao redor do mundo faziam a revolução científica e tecnológica que transformava o mundo e fazia obsoletas as ideias da revolução guerrilheira; o capitalismo encontrava fôlego, o Partido Comunista da URSS se desfazia e os líderes chineses se preparavam para novos tempos: globalização, robótica, inteligência artificial, crise ecológica, esgotamento do Estado, apartação social, enriquecimento e individualismo de parte dos trabalhadores do setor moderno.

O livro de Studart nos permite perceber como aqueles jovens queriam fazer história, sem perceber o rumo que ela tomava, independentemente deles e dos militares que enfrentavam. Mostra também o heroísmo e a capacidade de sonhar dos guerrilheiros. O autor trata da importância dos sonhos como o alicerce para formar cada guerrilheiro e uni-los na selva com armas na mão. Isso nos faz especular quais os sonhos que motivariam os jovens de hoje para lutar pela construção de um mundo melhor, mais pacífico e mais justo, mais eficiente e mais acolhedor.

Os jovens do Araguaia achavam que isto era possível pela tomada do poder e a estatização dos meios de produção com o Estado controlado pelo partido a serviço do povo. Os jovens guerrilheiros não sabiam que não se consegue fazer uma sociedade justa sem ter uma economia eficiente. Descobriu-se que o Estado serve sempre à minoria que o controla, sejam industriais, sejam latifundiários, banqueiros, militares, juízes ou servidores civis, não importa o partido; descobriu-se também que para ficar no poder o partido e seus militantes são capazes de depredar o Estado, aceitar propinas, destruir a eficiência da economia, tentando enganar ao povo.

Eles nos deram o exemplo de heroísmo e de luta a ser seguido hoje, com novas ideias e novos métodos. Não mais as armas, mas as urnas; não mais estatizar a economia e a sociedade, mas promover a liberdade, construindo uma economia eficiente e assegurando igualdade no acesso à educação e à saúde, independentemente da renda e do endereço da família; respeitando o meio ambiente; promovendo a ciência e tecnologia; sem corrupção e com democracia; não só em seu país, mas em todo o imenso mundo global de hoje.

Studart dedica espaço à pergunta que levou um jovem a sair do aconchego confortável de sua família de classe média em cidades para embrenhar-se na mata inóspita, disposto a morrer e matar. Sua resposta é de que foram os sonhos de mudar o mundo com revolução para construir utopia. Camarotti começa cada entrevista perguntando as razões que levaram o cardeal ao sacerdócio; de todos eles ouviu que tinham sonho de realização espiritual e também exemplo de religiosos e santos. Isso nos leva a perguntar qual o sonho para inspirar os jovens de hoje à vontade de mudar o mundo, e em que exemplo de vida se baseariam para escolher a luta no lugar do conforto.

A principal tarefa dos filósofos e dos políticos de hoje é provocar sonhos coletivos nos jovens para que eles queiram mudar o Brasil e o mundo; e dar exemplo de vida para legitimar os sonhos. (Correio Braziliense – 31/07/2018)

 

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