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Folha de S. Paulo: Pandemia deixou óbvio que vivemos em um país desgovernado, diz Frei Betto

Em novo livro, frade dominicano e escritor faz reflexões sobre Covid-19, memória e política

Fernanda Canofre, Folha de S. Paulo

Os meses de pandemia do novo coronavírus no Brasil têm sido de isolamento para Frei Betto, 76. Dividindo-se entre o convento dominicano, em São Paulo, e um sítio, entre palestras virtuais e a escrita, ele conta que sai apenas esporadicamente para ir a consultas médicas de rotina.

As reflexões sobre os primeiros três meses deste período foram reunidas recentemente em “Diário de Quarentena – 90 dias em Fragmentos Evocativos”, publicado pela editora Rocco.

Este é o mais recente da lista de 69 livros assinados pelo frade dominicano, reunião de ensaios, artigos, registros de notícias sobre o avanço da Covid-19, poemas, memórias da ditadura e de pessoas próximas, como frei Tito, amigo que foi torturado pelo regime.

“Colocar no papel ou computador ideias e sentimentos é profundamente terapêutico”, diz ele, em um dos trechos, onde sugere escrever um diário entre as dicas de como enfrentar a reclusão forçada, lembrando os dias em que foi mantido em solitárias nos Dops (Departamento de Ordem Político Social) de Porto Alegre e de São Paulo.

Apenas no estado de São Paulo, ele conta que ainda foi mantido no quartel-general da Polícia Militar, no Batalhão da Rota, na Penitenciária do Estado, no Carandiru e na Penitenciária de Presidente Venceslau.

A lista de dicas é endereçada a um homem, casado há mais de 20 anos, hipertenso, e que resiste a ficar em casa, para angústia da mulher. Os dois aparecem em entradas variadas pelo diário, e ele acaba contraindo o vírus no decorrer do primeiro mês de uma quarentena que ainda teria muito tempo pela frente.

Ao pedido de entrevista da Folha, Frei Betto preferiu que a conversa fosse por email, pelo qual respondeu sobre a pandemia e questões políticas do cenário nacional, como as eleições municipais e o governo de Jair Bolsonaro (sem partido), a quem chama de BolsoNero, em referência ao imperador de Roma.

Frei Betto, que foi assessor especial da Presidência da República em 2003 e 2004, no governo Lula, diz no "Diário" que a mineirice o preservou de ambições políticas e que o maior erro da esquerda foi o abandono do trabalho de base.

“Lembre-se de que jamais fui militante de qualquer partido político. A meu respeito correm duas lendas sem respaldo na verdade e na realidade: a de que sou sacerdote (sou apenas um religioso leigo) e militante partidário”, ressaltou ele durante a correspondência virtual com a reportagem.

O seu livro mais recente, de um total de 69 publicados, traz textos que o senhor escreveu num período de três meses de quarentena. O senhor acha que alguma lição foi tirada da pandemia? Ficou óbvio que vivemos num país desgovernado, cujos quase 200 mil mortos pela pandemia foram vítimas de um presidente que sofre de tanatomania.

O Brasil voltou a registrar mais de mil mortos em um único dia em decorrência do novo coronavírus. Como estamos encarando essas mortes? Parece que a nossa população sofre também de isolamento psicológico. Esse genocídio, causado pelo descaso do governo, bem como as tragédias de Mariana Brumadinho, deveriam suscitar grandes mobilizações populares, como ocorreu nos casos George Floyd e, aqui, João Alberto. Perdemos a empatia. O sofrimento do outro não dói em nós. Mas devemos guardar o pessimismo para dias melhores.

O senhor se considera otimista, então, hoje? Tudo que os demolidores, como BolsoNero, querem é que percamos o ânimo e fiquemos à mercê de seus arroubos autoritários. Quando constato que, numa cidade conservadora como São Paulo, Guilherme Boulos passou para o segundo turno e teve mais de 2 milhões de votos, a esperança renasce. O bolsonarismo foi o grande derrotado nessas eleições municipais, como será varrido do mapa em 2022.

Em entrevista recente ao jornal argentino Página 12, o senhor disse que as eleições deste ano seriam um termômetro interessante para avaliar o olhar do população. Pela primeira vez desde 1985, o PT ficou sem governo nas capitais. Qual a leitura o senhor faz desse resultado? Enquanto os partidos progressistas não tiverem consenso em torno de um Projeto Brasil, continuarão sem condições de produzir uma alternativa de poder. E precisam retomar o trabalho de base popular. A cabeça pensa onde os pés pisam. ​

Qual foi o erro que levou a esse resultado em 2020? Em 2018, a direita soube manipular muito bem, em especial pelas redes digitais, o antipetismo alimentado pelas tramoias da Lava Jato que fomentaram uma narrativa moralista capaz de induzir muitos a esquecerem os avanços, sobretudo na área social, dos 13 anos de governo do PT. Já em 2020 PT, PSOL e PC do B deveriam ter feito mais alianças. Agora, é hora de retomar o trabalho de base popular e definir estratégias na guerra digital.

O que o PT precisa fazer para reverter isso em 2022? E como o senhor vê a figura do ex-presidente Lula nesse contexto? Lula é o mais importante líder popular do Brasil. Tem o papel fundamental de articular esse Projeto Brasil criando, agora, um fórum de partidos e movimentos sociais progressistas.

Lula deveria articular esse projeto em torno de si ou com um novo nome? Quem o senhor vê hoje como sucessor dele? Para 2022 a oposição, se lograr unidade, conta com ótimos candidatos: Lula, Boulos e Flávio Dino são três exemplos. Considero Lula um ótimo candidato a presidente em 2022 [o ex-presidente, porém, hoje está barrado pela Lei da Ficha Limpa]. Quanto ao Projeto Brasil, deverá resultar da articulação entre os partidos progressistas e os movimentos sociais.

Em 2021, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) completa cinco anos. O senhor chegou a dizer que Lula devia estar arrependido por não ter sido ele o candidato em 2014. Continua pensando assim? Sim, Lula deveria ter sido candidato em 2014. Com o patrimônio de dois mandatos presidenciais e 87% de aprovação, o PT não teria que, de novo, começar do zero. Dilma foi bem no primeiro mandato, mas perdeu o rumo no segundo.

Quais lições ficaram destes últimos cinco anos? Fora do povão não há salvação. O afastamento dos partidos progressistas das periferias, favelas e zonas rurais pobres, o refluxo das comunidades eclesiais de base, devido aos pontificados conservadores de João Paulo 2º e Bento 16, abriram espaço, no universo dos marginalizados e excluídos, ao fundamentalismo religioso que alavancou a eleição de BolsoNero.

Temos que fortalecer os movimentos sociais e começar a sinalizar que é uma falácia candidaturas de centro à Presidência da República.

Todos que, agora, se fantasiam de centro são, na verdade, convictos defensores das pautas políticas e econômicas da direita, como a prevalência da apropriação privada da riqueza sobre os direitos coletivos e o 'direito' de as empresas brasileiras sonegarem mais de R$ 400 bilhões por ano. Nenhum deles aprovará uma reforma tributária progressiva, que afete a fortuna dos mais ricos e favoreça os mais pobres.

Bolsonaro sempre tentou se aproximar do voto cristão, de católicos e evangélicos. Como um religioso, o que o senhor acha dessa postura? Ele usa e abusa do nome de Deus em vão. Um presidente que libera armas, que matam, e trava vacinas, que salvam vidas, se compara àqueles que Jesus qualificou de 'sepulcros caiados'.

Em um discurso deste ano na ONU, ele falou sobre "combate à cristofobia". Existe cristofobia no Brasil? Só na cabeça dele, que ainda procura assustar o povo com o fantasma do comunismo, mantém um ministro que passa a boiada por cima de todos os princípios de preservação ambiental e um outro que isola o Brasil, agora órfão da tutela da Casa Branca.

O senhor viveu a repressão da ditadura militar e teve pessoas próximas mortas pelo regime. Como encarou a eleição de Bolsonaro? Como uma tragédia consentida pelo Judiciário, pois como apologista da tortura, da ditadura, do racismo, da misoginia e do golpismo, deveria ter sido impedido de se candidatar.

No último texto que publicou nesta Folha, em outubro deste ano, o senhor critica a decisão judicial que proibia o uso de "católicas" no nome do grupo Católicas pelo Direito de Decidir. O senhor também publicou aqui uma carta de uma neocristã que fez um aborto. Qual a posição do senhor sobre o tema? Aprovo o sistema francês, no qual tudo se faz para evitá-lo mas, em última instância, a decisão é da mulher. Já propus a várias jovens que, surpreendidas com uma gravidez inesperada, vieram ao convento com seu drama de consciência: tenham o filho e tragam aqui que eu crio. Nenhuma, que eu saiba, abortou. E ganhei um monte de afilhados...

O senhor também fez parte do Fome Zero. Como vê a questão do enfrentamento à fome hoje? Um dos escândalos da atualidade é o fato de a Covid-19 já ter matado quase 1,7 milhão de pessoas no mundo, o que provoca fantástica mobilização em busca da erradicação do vírus, enquanto a fome mata cerca de 24 mil pessoas por dia, 9 milhões por ano, e quase ninguém se mobiliza. Por quê? Porque a fome faz distinção de classe, a Covid não.

O Brasil saiu do mapa da fome em 2014 e, agora, corre o risco de retornar. Segundo a Oxfam, 5,2 milhões de pessoas passam fome no Brasil, sem contar os que não ingerem os nutrientes essenciais, como proteínas e vitaminas.

A fome é o retrato mais cruel da desigualdade social no Brasil. E, apesar disso, o governo Bolsonaro erradicou o Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional] e mantém total indiferença à questão da segurança alimentar, embora o nosso país seja considerado 'celeiro do mundo'.

RAIO-X

Frei Betto, 76
Frade dominicano e escritor, nasceu em Belo Horizonte. Preso duas vezes durante a ditadura militar, foi assessor especial da Presidência da República no governo Lula, de 2003 a 2004, e coordenador de Mobilização Social do Programa Fome Zero. Tem 69 livros publicados. É assessor de movimentos sociais e da FAO/ONU para questões de soberania alimentar e educação nutricional


Frei Betto: A face injusta do Brasil

Direitos humanos não é 'coisa de bandido' como alardeiam os que jamais pensam nos direitos dos pobres. É um dos mais elevados marcos jurídico e moral de nosso avanço civilizatório

Desde a ditadura militar (1964-1985), nunca houve tantos retrocessos nos direitos humanos no Brasil como agora, sob Bolsonaro . Somos governados por autoridades que insistem na impunidade das forças repressivas, o que representa sinal verde para a eliminação sumária de suspeitos ou mesmo de cidadãos insuspeitos, como os nove jovens assassinados pela PM de São Paulo na favela de Paraisópolis , na madrugada de 1º de dezembro. Apenas no Rio, neste ano de 2019, seis crianças foram mortas por “balas perdidas” .

Terras demarcadas são invadidas por mineradoras, madeireiras e empresas agropecuárias. Indígenas são assassinados, entre eles o líder Paulo Paulino Guajajara, no Maranhão, a 1º de novembro, por defender a reserva de seu povo da ação de madeireiros ilegais. Os casos de feminicídio se multiplicam; uma mulher é violentada a cada 4 minutos no país.

O presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo , cuja nomeação está sendo contestada pela Justiça, cospe na memoria de Zumbi, herói quilombola, ao declarar que no Brasil não existe racismo, e que “a escravidão foi benéfica para seus descendentes”... No Paraná, o jornalista Aluízio Palmar é processado por denunciar torturas no quartel do 1º Batalhão de Fronteira, em Foz do Iguaçu. O país tem mais de 12 milhões de desempregados, e o salário mínimo a vigorar em 2020 foi reduzido duas vezes pelo governo.

À beira de fazendas e estradas brasileiras, 80 mil famílias se encontram acampadas. O ex-presidente Lula é condenado sem provas. A mídia crítica ao governo é sabotada mediante o cancelamento de anúncios oficiais, e sofrem ameaças as empresas privadas que nela fazem publicidade de seus produtos. Alunos são incentivados a delatar professores que não rezam pela cartilha do Planalto. O mercado de armas e munições é estimulado pelo governo, que jamais condenou as milícias paramilitares que, ao arrepio da lei, disputam territórios com o narcotráfico.

Além dos direitos humanos, são violados também os direitos da natureza. A floresta amazônica é incendiada criminosamente para abrir espaço ao gado e à soja, enquanto Bolsonaro declara que as queimadas são “um problema cultural” . A Justiça atua com morosidade e leniência na punição dos responsáveis pelas tragédias resultantes do rompimento das barragens de Mariana (MG), em 2015, e Brumadinho (MG), em 2019, que ceifaram 382 vidas. O óleo derramado no litoral brasileiro não é saneado com a urgência e o rigor que a situação exige.

Segundo Marcelo Neri, da FGV, em dez anos o Brasil tirou 30 milhões de pessoas da pobreza. Porém, entre 2015 e 2017, 6,3 milhões de pessoas voltaram à miséria. Nos últimos três anos, a pobreza aumentou 33%. Segundo o IBGE, 58,4 milhões de pessoas vivem hoje abaixo da linha de pobreza, com renda mensal inferior a R$ 406. A lista de excluídos só aumenta: entre 2016 e 2017 subiu de 25,7% para 26,5 o que significa a exclusão de quase 2 milhões de pessoas. Segundo estes dados, 55 milhões de brasileiros passam por privações, dos quais 40% no Nordeste. Enquanto isso, a renda per capita dos ricos subiu 3%, e a dos pobres desceu 20%. Doenças já erradicadas retornaram, e a mortalidade infantil avança sobre as famílias mais pobres.

Somos uma nação rica, muito rica. Mas sumamente injusta. O PIB brasileiro é de R$ 6,3 trilhões, suficiente para garantir R$ 30 mil per capita/ano para cada um dos 210 milhões de habitantes. Ou R$ 10 mil por mês para cada família de 4 pessoas.

Direitos humanos não é “coisa de bandido” como alardeiam os que jamais pensam nos direitos dos pobres. É um dos mais elevados marcos jurídico e moral de nosso avanço civilizatório. Embora sejam violados sistematicamente por quem se proclama democrata e cristão, são irrevogáveis. Resta, agora, a ONU convocar os países a elaborar e assinar a Declaração Universal dos Direitos da Natureza, nossa “casa comum”, na expressão do papa Francisco.

*Frei Betto é escritor, autor de “Minha avó e seus mistérios” (Rocco), entre outros livros.


Frei Betto: Face autoritária do neoliberalismo

Por paradoxal que pareça, a lei se tornou ferramenta do neoliberalismo para enfraquecer a democracia. O Estado de Direito vem sendo demolido por dentro, de modo a servir apenas aos interesses da elite. O tão esperado abalo do neoliberalismo, a partir da crise financeira de 2008, não ocorreu. Ao contrário, ele se fortalece com novas estratégias.

O neoliberalismo é mais do que imposição de políticas de austeridade, privatização do patrimônio público, ditadura dos mercados financeiros. Ele implica uma racionalidade de abrangência mundial, que vai da economia de mercado à subjetividade das pessoas. Anula a soberania dos países aos submetê-los aos ditames do FMI, do Banco Mundial e da União Europeia. Demarca a linha divisória entre a parcela da Humanidade com acesso ao consumo e a imensa multidão excluída até mesmo de direitos elementares, como alimentação, saúde e educação.

O neoliberalismo já não necessita fazer concessões ao Estado de bem-estar social, pois desapareceu a ameaça comunista. Já não precisa posar de democrata. Agora, a imposição de um único modelo econômico deve se coadunar com a imposição de um único modelo político, o autoritário, de modo a favorecer a acumulação do capital e conter a insatisfação de amplos setores da população sem direito aos bens essenciais à vida digna.

Os estrategistas do neoliberalismo sabem que suas políticas causam exclusão e sofrimento. Sabem também que é preciso conter a insatisfação dos excluídos, de modo a evitar a explosão que resultaria em caos político ou revolução. Assim, canalizam a miséria e a pobreza para o alívio virtual da religião, tornando-a, de fato, “ópio do povo”, capaz de aplacar a revolta e incutir espírito de sacrifício. Concentram o ressentimento e a descrença na democracia, e transformam em bodes expiatórios partidos e políticos críticos ao neoliberalismo. Fazem convergira baixa auto estima e a atual tendência à adoção de pautas identitárias para um amplo sentimento de identidade nacional marcado pela xenofobia.

Em suma, encobrem as causas dos males sociais, e recobrem seus efeitos com ideologias que, ao tornar opacas as causas, acirram os ânimos diante dos efeitos. Por isso, o neoliberalismo mostra agora a sua face mais autoritária, coma construção de mu rosque separam nações e etnias; a supremacia do poder executivo sobre o legislativo e o judiciário; a desinformação via redes digitais; o culto à pátria; e a ofensiva descarada contra os direitos humanos.

Por outro lado, reduz impostos para os mais ricos, precariza as relações de trabalho, suprime políticas sociais, corta investimentos na educação, acelera as privatizações e considera estorvo aos interesses do capital a proteção socioambiental.

Henry Giroux qualifica de “fascismo neoliberal” essa formação política caracterizada por ortodoxia econômica, militarismo, desprezo por instituições e leis, ódio aos artistas e intelectuais, repulsa ao estrangeiro pobre, desconsideração pelos direitos e pela dignidade das pessoas, e violência para com os adversários.

As reformas propostas pelo novo neoliberalismo, como, no Brasil, a trabalhista e a previdenciária, tendem a extinguir as redes de proteção social: sindicatos, ONGs, movimentos populares, e instituições corporativas (OAB, ABI, CNBB etc.) de defesa dos princípios democráticos.

Como reagem os vencidos? Articulam as forças de oposição e se posicionam em favor de democracia? Antes fosse. De fato, os vencidos são como moscas presas no globo da lâmpada, cegos pelos encantos da sociedade de consumo. Não conseguem encontrara saída e sofrem por estarem ali presos. Reagem ao se abster nas eleições, refugiar-se em suas bolhas digitais, dar apoio a quem vocifera em tom bélico. Toda raiva é a violência introjetada na alma.

Resta aos críticos saírem de suas redomas acadêmicas para ajudar os vencidos a descobrir que possuem um a força capaz de virar o jogo e instaurara democracia.