Folha de São Paulo

Catarina Rochamonte: A confortável pandemia

A questão humanitária torna muito infeliz a frase do deputado Ricardo Barros e faz do impeachment de Bolsonaro uma urgência nacional

Na semana passada, com o número de mortes por Covid no Brasil se aproximando de 300 mil, morrendo mais de 2.000 pessoas por dia, com o sistema de saúde entrando em colapso por todo o país, com milhões de pessoas angustiadas por providências de quem as pudesse tomar; diante da realidade de horrores que invade lares e despedaça as famílias, o deputado Ricardo Barros, líder do governo na Câmara, veio a público dizer que tal tragédia “é uma situação até confortável”.

Talvez por isso o novo ministro da Saúde, o médico Marcelo Queiroga, esclareceu, de imediato, que sua administração será de continuidade e servilismo. Com efeito, se a situação é confortável, por que não deixar como está? A situação é tão confortável e tranquila que, para quebrar a monotonia, Bolsonaro veio, mais uma vez, tumultuar e confundir: lançou suspeita sobre vacinas, pôs em dúvida os números de mortes por Covid registrados pelos órgãos competentes, ameaçou medida dura contra quem tomar medidas contra a pandemia, insinuou estado de sítio e acionou o STF para impedir medidas de proteção sanitária adotadas no Rio Grande do Sul, Bahia e Distrito Federal.

Antes de Queiroga ser convidado para o Ministério da Saúde, a médica Ludhmila Hajjar, que não queria continuidade, expôs seu desconforto com o avanço célere da pandemia, num quadro que chamou de “sombrio”. Em resposta, as trevas do bolsonarismo investiram contra ela com a vileza costumeira e emplacaram o nome escolhido por Flávio Bolsonaro.

A fala infeliz do deputado Barros acerca da situação “até confortável” que vivemos foi proferida um dia antes da morte, por Covid, do senador Major Olímpio. Estão dizendo que essa morte abalou o Congresso. Abalo salutar, mas que traz uma nota de desalento: toda a República já deveria estar maximamente abalada com as anteriores mortes de milhares de cidadãos, compreendendo que o impeachment de Bolsonaro é uma urgência nacional por questão humanitária e de sobrevivência.


Bruno Boghossian: Terremoto nas urnas ainda terá abalos secundários sobre partidos

Com caciques fracos, votação de projetos pode ter negociação custosa no varejo

O terremoto que derrubou velhos políticos e provocou uma redistribuição de forças no Congresso no domingo ainda deve produzir abalos secundários. O poder de caciques, líderes e partidos ficou abalado. A lógica das futuras campanhas eleitorais e da composição de governos será posta à prova.

A estrutura das siglas, a hierarquia e a disciplina se tornaram acessórios nessa disputa. Jair Bolsonaro (PSL) se lançou à Presidência por uma legenda nanica e conseguiu 49 milhões de votos. Em muitos estados, candidatos esnobaram orientações de dirigentes e fizeram campanha com rivais de seus próprios partidos.

Deputados e senadores alinhados com os ideais de uma sigla sempre foram exceções. Ainda assim, as legendas conseguiam garantir a fidelidade de seus quadros com a distribuição de algumas recompensas, como cargos em governos e na estrutura partidária, além do financiamento de suas eleições.

Desta vez, o dinheiro das legendas valeu menos para as campanhas dos candidatos do que as ondas provocadas por figuras como Bolsonaro e Lula. Alguns deputados eleitos pelo PSL mal devem conhecer os integrantes do comando da sigla.

O próximo governo precisará formar maioria em um Legislativo composto por muitos políticos que estão filiados a suas legendas por mera formalidade. O intrépido Kim Kataguiri, recém-eleito deputado pelo DEM, ignorou sua legenda para se lançar à presidência da Câmara. “Não preciso da autorização de ninguém. Meu partido é o MBL”, disse.

Como a influência de líderes sobre as bancadas deve diminuir, a aprovação de projetos dependerá de negociações custosas no varejo, um a um. Na melhor hipótese, parlamentares poderiam cruzar fronteiras partidárias para votar em bloco alguns temas, mas se dispersariam depois.

Por maior que seja o desgaste das siglas, elas dão ao eleitor alguns atalhos para identificar políticos que falam sua língua. Com a degradação dessas estruturas, pode ser difícil encontrar uma mensagem no vozerio.


Bruno Boghossian: Praga e pesticida

Candidato capta frustração do eleitor e exige reflexão sobre eventual governo

Jair Bolsonaro “é o pesticida de que precisamos”, dizem apoiadores do candidato do PSL. Muitos eleitores se convenceram de que uma dose violenta desse veneno é a única forma de exterminar o que veem como pragas da política. É preciso, porém, observar os alertas sobre os riscos do produto, impressos em letras nada miúdas na embalagem.

Bolsonaro captou a enorme frustração dos brasileiros com escândalos de corrupção (em especial do PT) e com a insegurança que domina tanto grandes cidades quanto o interior. O crescimento de sua candidatura na reta final da eleição carrega consigo a necessidade de reflexão sobre seus discursos e práticas.

O presidenciável já emitiu diversos sinais de que gostaria de usar poderes especiais, típicos de governos autoritários, para derrotar seus inimigos. Sob o manto de uma reação firme a esses grupos, ostenta um discurso violento contra opositores, demonstra admiração pelos métodos de torturadores e pede aval para mudar as regras do jogo.

Bolsonaro já falou em indicar dez ministros do Supremo para criar uma maioria artificial a seu favor, depois recuou. Seu vice admitiu a hipótese de golpe militar para conter instabilidades. Seu assessor econômico propõe mudar métodos de votação de leis para aprovar o que quiser.

Pode-se imaginar que medidas excepcionais são necessárias em momentos de crise, para implantar uma agenda de recuperação e vencer o mal. Mas, via de regra, há poucas garantias de que um governante queira abrir mão de poderes extraordinários depois de conquistá-los.

O discurso do deputado, permeado de comentários de desprezo a mulheres e minorias, alimenta (com razão) dúvidas sobre a proteção de direitos fundamentais e liberdades —incerteza lamentável a esta altura da vida democrática do país.

Bolsonaro pode parecer ideal para atacar aqueles apontados como vilões, mas recomenda-se olhar o rótulo com cuidado. Não é preciso defender a praga para refletir sobre eventuais danos do pesticida.


Pedro Luiz Passos: Visão de longo prazo cria coesão social e nos protege de pregadores messiânicos

Um planejamento com alcance de décadas está na origem dos regimes democráticos e das economias mais prósperas

Com o rol de presidenciáveis se definindo, espera-se dos candidatos, inclusive à Câmara dos Deputados e ao Senado, uma campanha propositiva sobre o que nos falta: uma estratégia de desenvolvimento de longo prazo com foco na prosperidade geral e acima de ideologias e lobbies.

Não se pede o impossível. Planejamento com alcance de várias décadas, baixa ingerência dos governantes de turno, livre mercado e coesão social e política em torno de objetivos nacionais são traços comuns aos países bem-sucedidos.

A Coreia do Sul, por exemplo, se reconstruiu após uma guerra devastadora e atingiu o patamar de país desenvolvido com um plano de metas de 50 anos, atualizado conforme a evolução e mantido com afinco desde seu lançamento, na década de 1970.

Educação de qualidade, sofisticação industrial, ênfase no investimento privado, economia aberta e gestão pública orientada por objetivos e resultados foram os pilares da transformação.

Respeitadas as diferenças culturais e os estágios de desenvolvimento, tais concepções estão na origem do sucesso das democracias da Europa e dos Estados Unidos e das economias emergentes mais prósperas.

No Brasil, planos e programas são lançados e perpetuados sem revisão de resultados. Se um novo governo faz diferente, às vezes só para inserir sua marca política, criam-se outros, sem exame sobre o que falhou no passado. Vão-se sobrepondo planos cada vez mais efêmeros —exceto a estrutura pública de pessoal indemissível e de despesas protegidas pela rigidez orçamentária.

Com tal arcabouço, qualquer presidente só comanda, de fato, menos de 10% da lei orçamentária anual
—uma nesga que encolhe a cada ano por causa do crescimento vegetativo da folha de salários do funcionalismo e dos déficits previdenciários.

Se fizer algo mais, será à custa do Tesouro Nacional, cujo endividamento já engole mais de 70% dos recursos financeiros do país (e continua se expandindo sem contrapartida de um simples alfinete produzido).

As causas do descontrole são múltiplas, mas a falta de um mapa para o progresso civilizatório é a mais relevante. Para quem não sabe aonde ir, qualquer caminho serve e serviu para enraizar o subdesenvolvimento e agravar suas cicatrizes, como a insegurança pública, o crescimento pífio, o Estado capturado por corporações, pobreza e corrupção endêmica.

É imperioso fazer a faxina geral que se traduz nas reformas que estão aí colocadas. Sem elas não teremos chance de respirar e, sem um norte definido, o país fica à mercê de grupos de interesse, que se apropriam do poder de decisão para defender seus privilégios, desconsiderando o bem-estar geral. Assim estamos, e poderá agravar-se muito mais se houver recaída populista.

O plano de longo prazo é fundamental para iluminar o caminho e formar coesão contra desmandos de corporações e de políticos.

É preciso estabelecer as reais prioridades econômicas e sociais, com metas e avaliações periódicas, sob o pano de fundo de instituições robustas que assegurem o pleno funcionamento da democracia e a ponham a salvo de pregadores messiânicos.

Isso pressupõe liberdade de iniciativa, livre expressão, eleições não viciadas e igualdade de oportunidades. Tais premissas podem induzir o retorno do investimento e estancar o abismo que nos separa das economias que já encontraram seu caminho. Se esse for o mote vencedor nas eleições de outubro, aí, sim, poderemos recobrar parte de nossas esperanças.

*Pedro Luiz Passos é empresário, conselheiro da Natura.


Samuel Pessôa: A economia política da Petrobras

Subsidiar grupos não faz parte dos motivos estratégicos ou da função social da estatal

Há algumas semanas meu colega Alexandre Schwartsman, que ocupa este espaço às quartas-feiras, explicou com toda a clareza os motivos de a Petrobras dever fixar o preço do petróleo pelo custo de oportunidade, isto é, pelo preço que ela obtém quando vende o produto no mercado internacional.

Não faz sentido que um produtor de soja a venda no mercado doméstico a preço inferior ao que obteria no mercado internacional.

Além da eficiência na gestão da empresa, essa regra de formação de preço justifica-se para evitar o populismo, mal tão comum na América Latina.

Populismo ocorre quando a política cria benefício para algum grupo da sociedade sem explicitar a fonte da receita. Os custos ficam escondidos. Ninguém reclama.

Com o passar do tempo, o desequilíbrio implícito na política produz alguma forma de desorganização da economia, que acaba por gerar regressão econômica e perda de produto.

A regressão econômica acirra o conflito distributivo.

Dado que o movimento inicial já havia sido resposta ao conflito distributivo, o problema se agrava e, portanto, o ciclo se repete. Novos benefícios são concedidos.

A moral da história é que, quando se entra em uma espiral populista, é muito difícil sair dela.
Imagem da sede da Petrobras, no Rio, e uma bandeira com o logo da empresa em primeiro plano
Sede da Petrobras, no Rio - AP Photo/Leo Correa

A saída inflacionária é uma forma de populismo que conhecemos de longa data. Uma vez que adquire certa dimensão, o custo de desinflacionar se torna proibitivo. Acabamos de pagar esse custo.

As heterodoxias de Dilma em seu primeiro mandato nos custaram muito caro.

A mesma lógica opera em relação às empresas públicas.

A tentação para qualquer governante é afirmar que a Petrobras não deve cobrar o custo de oportunidade pelo seu produto.

Utiliza-se a empresa para fazer política social. A Petrobras deve subsidiar o botijão de gás, a gasolina, o querosene de aviação etc. Uma vez iniciado o processo, é difícil reverter. A pressão será sempre para aumentar o subsídio.

O resultado será a piora de desempenho da empresa, o que agrava a capacidade de manter esses subsídios. A produção se reduz, e os problemas se acumulam.

A Petrobras tem o capital aberto, com ações transacionadas em Bolsa, pois a participação privada ajuda a governança e contribui, portanto, para manter a lucratividade da empresa.

Os dividendos da estatal remuneram o Tesouro.

E o Tesouro pode empregar esses recursos para subsidiar o que o Congresso Nacional determinar.

A função social da empresa é garantir a oferta em momentos de extrema carência do recurso estratégico, como guerras ou situações de crise no mercado, como o choque do petróleo dos anos 1970.

Subsidiar grupos não faz parte dos motivos estratégicos ou da função social da Petrobras que justifiquem haver uma estatal petroleira.

O princípio básico que evita o populismo e permite que a sociedade gerencie o conflito distributivo de forma civilizada é que todo programa que atenda a um grupo da sociedade precisa estar em alguma linha do Orçamento do Estado. De forma explícita e clara para que a sociedade possa acompanhar e controlar.
Samuel Pessôa

* Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Marcos Lisboa: Moby Dick

Canibalizada por novos setores, indústria baleeira deixou uma obra-prima

Os Estados Unidos já assistiram muitas vezes à morte de setores que se tornaram obsoletos pelo surgimento de novas tecnologias. Para sua sorte, ao menos até recentemente, a política americana foi pouco sensível às demandas protecionistas dos setores decadentes.

O primeiro grande exemplo talvez tenha sido a indústria baleeira no século 19, cuja história surpreende tanto pela sua relevância esquecida quanto pela combinação de cultura e tecnologia que permitiu o seu crescimento.

Desde o século 17, o óleo obtido com a queima da gordura de baleia começara a ser utilizado para iluminar as principais cidades. O centro dessa indústria foi a pequena ilha de Nantucket, no atual estado de Massachusetts.

A cultura protestante enfatizava a parcimônia e o reinvestimento na própria produção. No caso de Nantucket, predominantemente quaker, o resultado foi o fortalecimento do setor baleeiro mesmo durante a guerra com a Inglaterra em 1812.

A caça às baleias contava com a experiência dos índios locais, os wampanoags. A mão de obra, porém, era insuficiente, o que incentivou a contratação de imigrantes.

A descoberta do maior potencial energético das baleias cachalotes, que habitavam mares distantes, levou a introdução de técnicas que permitiram a queima da gordura em alto mar nos barcos de madeira, permitindo viagens que chegavam a durar três anos.

No século 19, porém, o uso crescente do petróleo e da energia elétrica levou ao abandono do óleo de baleia e à decadência de Nantucket. Fosse nos tempos atuais, talvez estivéssemos assistindo à mobilização de lobbies contrários às novas tecnologias para preservar os baleeiros.

A concorrência induz o desenvolvimento de técnicas mais eficientes de produção, o que permite o aumento da renda e foi fundamental para a melhoria da qualidade de vida nos últimos 200 anos.

A tentativa de proteger setores obsoletos, por mais bem-intencionada que seja, termina por prejudicar o restante da sociedade. O exemplo de Nantucket ilustra a história dos EUA, inclusive na aceitação da decadência da indústria baleeira, canibalizada por novos setores.

A indústria esquecida deixou uma obra-prima, Moby Dick, de Herman Melville, recheada de personagens notáveis e conturbadas, em meio a passagens surpreendentes.

No capítulo três, Ishmael fica assustado ao saber que dividiria a cama com um jovem canibal na hospedaria lotada.

Após parágrafos angustiados, a sua empatia recheada de bom senso leva-o a concluir: “Que confusão é essa que estou fazendo... ele tem a mesma razão para me temer que tenho para ter medo dele. Melhor dormir com um canibal sóbrio do que com um cristão bêbado”.
Marcos Lisboa

* Marcos Lisboa é presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.


Folha de S. Paulo: Petistas pediram habeas corpus para Lula ao saber quem era juiz plantonista

Deputado Paulo Pimenta (RS) disse que recebeu toque de que Rogerio Favreto, que foi filiado ao PT, seria o responsável no TRF-4

Por Marina Dias e Catia Seabra, da Folha de S. Paulo

Os autores do pedido de libertação do ex-presidente Lula já previam uma derrota, mas articularam uma ação minuciosa para desgastar a Justiça e tentar converter em ganho político qualquer decisão contra o petista.

Os deputados Paulo Pimenta (PT-RS), Wadih Damous (PT-RJ) e Paulo Teixeira (PT-SP) elaboraram estratégia para que o pedido de habeas corpus fosse analisado necessariamente pelo desembargador Rogério Favreto, crítico a Sergio Moro no TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4a Região) e o plantonista da corte entre os dias 4 e 18 de julho.

O cálculo dos petistas foi premeditado: no início da semana passada, um amigo avisou Pimenta de que a escala de plantões havia sido publicada no site do TRF-4 e que Favreto, amigo de longa data do deputado, seria o responsável pelo tribunal no segundo fim de semana deste mês.

Pimenta então procurou Damous, ex-presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) do Rio, e disse que era preciso elaborar uma medida que pudesse cair nas mãos do magistrado. Na quarta-feira (4), decidiu-se pelo habeas corpus em reunião na sala da liderança do PT na Câmara.

“Sou do Rio Grande do Sul. Conheço as pessoas. Alguém me deu o toque. Olhei no sistema e vi [que Favreto seria o plantonista]. É público”, relatou Pimenta, sem dar detalhes sobre a identidade do amigo.

A previsão dos deputados era a de que a decisão de Favreto, favorável a Lula, seria cassada em poucas horas, mas que episódio ilustraria a tese de que o Judiciário age para prejudicar o ex-presidente.

Já a ação de Moro que, de férias em Portugal, telefonou para delegados da Polícia Federal e pediu que não cumprissem a ordem do desembargador foi contabilizada como uma espécie de bônus político para o petista.

“Pudemos demonstrar que a Lava Jato é uma organização que atua dentro do Judiciário, com relações políticas, e que seu objetivo é impedir que Lula seja solto”, disse Pimenta.

A defesa formal do ex-presidente foi sondada e não reagiu bem. Os advogados queriam que o recurso fosse feito de outra maneira, em outra data, visando menos o ganho político, e mais o judicial.

Os parlamentares petistas decidiram, então, tocar a proposta sem o aval dos defensores de Lula e impetraram o recurso no TRF-4 após o início do plantão de Favreto.

Na sexta (6), o expediente do TRF-4 encerrou-se às 14h, em razão do jogo do Brasil na Copa e, assim, qualquer pedido protocolado a partir deste horário ficaria com Favreto.

Como mostrou a Folha, Lula estava cético quanto à possibilidade de sair da prisão desde a primeira decisão do desembargador e disse, ainda no meio da manhã de domingo (8), que nunca acreditou que a determinação fosse ser realmente cumprida.

Durante reunião nesta segunda (9) em São Paulo, dirigentes da sigla elaboraram um calendário de mobilizações pelo país e houve quem defendesse que o partido coloque na rua o quanto antes um programa com 13 pontos que dialogue com o eleitor.

As medidas devem extrapolar a defesa de Lula e tratar da ideia de que libertar o ex-presidente é libertar o país de políticas que retiram direitos dos trabalhadores.

A tese mais repetida foi a de que Moro ficou muito exposto ao se manifestar, de férias, contra a soltura do ex-presidente e que agora é preciso investir na imagem de vitimização de Lula para que sua força política seja refletida nas pesquisas e, principalmente, repassada a um candidato petista quando ele for declarado inelegível pela Justiça Eleitoral.

Preso ou solto, Lula permanece ficha suja e assim impedido de concorrer na eleição presidencial.

A cúpula do PT decidiu também entrar com nova representação contra Moro no CNJ (Conselho Nacional de Justiça), pedindo o afastamento do juiz. A anterior, referente à quebra do sigilo telefônico da então presidente Dilma Rousseff, foi arquivada na semana passada.

Segundo a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, o partido entrará com uma representação na Corregedoria da Polícia Federal contra os agentes que mantiveram Lula preso.

Entenda hora a hora o vaivém de decisões sobre a libertação de Lula

SEXTA, 6
19h32 - Os deputados petistas Paulo Teixeira, Wadih Damous e Paulo Pimenta protocolam um pedido de libertação do ex-presidente Lula no TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região). Outras solicitações foram feitas às 19h43 e às 19h59. Como nesse horário já havia começado o plantão da corte, os pedidos vão para o juiz plantonista Rogerio Favreto, e não para o relator da Lava Jato no tribunal.

DOMINGO, 8
9h05 - O juiz Rogério Favreto, plantonista do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, determina em despacho a soltura do ex-presidente Lula. Entre os argumentos, está a falta de fundamentação da ordem de prisão, de abril, que não especifica os motivos para o petista ser preso. Também cita, como "fato novo", a condição de pré-candidato à Presidência dele

11h49 - Petistas protocolam petição reclamando da demora para o cumprimento da decisão de soltura e da ausência de delegado na sede da PF

12h05 - Sergio Moro, que condenou Lula em primeira instância, escreve em despacho que Favreto é "autoridade absolutamente incompetente" para determinar a soltura de Lula. Se a polícia seguir a ordem, diz o juiz paranaense, estará descumprindo decisão da turma do TRF-4 que ordenou a prisão.

12h44 - Favreto reitera, em despacho, a ordem de soltura afirmando que qualquer agente pode liberar o ex-presidente. Também afirma que o descumprimento acarreta em "responsabilização de descumprimento de ordem judicial"

14h13 - Relator da Lava Jato no TRF-4, João Pedro Gebran Neto, que votou pela condenação de Lula em janeiro e pela prisão assim que não houvesse mais recursos no caso do tríplex na corte, publica despacho determinando que a PF não solte o ex-presidente. "A decisão proferida em caráter de plantão poderia ser revista por mim, juiz natural para este processo, em qualquer momento", escreveu.

16h12 - Favreto expede nova ordem, determinando a soltura de Lula no prazo de uma hora e contestando o documento de Gebran. Ele escreveu ainda que vai levar o caso de Moro ao Conselho Nacional de Justiça.

19h30 - O presidente do TRF-4, Carlos Thompson Flores, dá a palavra final no caso: Gebran, como relator da Lava Jato no tribunal, tem a prerrogativa de decidir sobre o assunto, ainda que a situação tenha ocorrido em um plantão. Com isso, Lula permanece na prisão.


André Singer: O putsch dos caminhoneiros

Enfraquecida e acuada, Presidência criou o mais perigoso vazio desde a redemocratização

No futuro, pesquisadores irão contar como, de fato, se deu o desarme da bomba autoritária que rondou o Brasil na boleia de um caminhão desgovernado entre a manhã da sexta (25/5) e a da terça (28). Na noite anterior às quatro jornadas semicaóticas, a Presidência da República, enfraquecida e acuada, havia feito concessões e firmado um acordo com os revoltosos. No entanto, durante 96 horas nada se mexeu, criando o mais perigoso vazio desde a redemocratização de 1985.

Parada, a nação assistiu grupos condicionarem a liberação das estradas a uma “intervenção militar”. Enquanto a sublevação ganhava o comando do espetáculo, um silêncio sepulcral emanava das instituições. Apenas quando o pior tinha passado, forças políticas saíram da letargia para defender o regime democrático.

No meio da paralisia, o desconcerto era tamanho que cheguei a pensar tratar-se de mera encenação temática para comemorar os 80 anos do putsch integralista contra Getúlio Vargas. Mas diferentemente de 1938, quando tentaram tomar o palácio presidencial à força, os manifestantes de 2018 não gritavam anauê nem usavam o sigma na camisa uniformizada. Contavam, porém, com um candidato a presidente que, em alguns cenários, beirava os 20% das intenções de voto, enquanto Plínio Salgado, líder das tropas de assalto verdes, só chegou a 8,3%, em 1955.

Convém notar, igualmente, que os atuais defensores da ditadura não se encontram (ainda) estruturados em milícias com treinamento militar, como ocorria com os integrantes da Ação Integralista Brasileira (AIB). O uso da violência, contudo, vem-se tornando recorrente. Tiros sobre a caravana de Lula no sul, disparos contra membros do acampamento de Curitiba e a pedra que matou um motorista em Rondônia na quarta (30) constituem indícios suficientes.

Também a proximidade entre civis e militares chamava a atenção. Assim como o capitão Olympio Mourão Filho —futuro detonador do golpe de 1964— era o chefe do estado-maior da milícia integralista, há generais da reserva que apoiam Jair Bolsonaro.

Mas de repente, sem que fosse necessário prender as lideranças do levante, a normalidade começou, lentamente, a se restabelecer. Será que o anúncio, pela presidente do STF, de que em três semanas seria julgada a ação relativa ao parlamentarismo teve algum papel indireto na desmobilização das rodovias? Ou, apenas, como escreveu o jornalista Bruno Boghossian, “os políticos alinhados à farda querem assumir o poder pela porta da frente” (eleições)?

Por ora, ignorantes, fiquemos com a impagável frase de Michel Temer: “Graças a Deus estamos encerrando essa greve”. Só a Deus.

André Singer é cientista político e professor da USP, foi porta-voz e secretário de Imprensa da Presidência no governo Lula.


Folha de S.Paulo: Conselheiro de Ciro, Mangabeira Unger cobra apoio da esquerda

Filósofo diz que seria 'cúmulo da irresponsabilidade política' se PT não apoiasse o pré-candidato do PDT

Por Gustavo Uribe, da Folha de S. Paulo

Considerado o guru de Ciro Gomes, o filósofo Roberto Mangabeira Unger não vislumbra no cenário atual a chance de o PT participar da coalizão vencedora caso não apoie o PDT.

Em entrevista na segunda (7), ele afirmou que o pré-candidato não servirá de "instrumento do PT" e disse acreditar que, mesmo com a atual resistência dos petistas, a sigla deve chegar a um momento de "realismo político".

Na área econômica, o professor da Universidade Harvard, que lançará em breve dois livros no Brasil, prega mudança no controle de gastos, taxação de lucros e dividendos e alterações na legislação trabalhista.

Folha - A esquerda passa por um forte desgaste de imagem. Por que ela seria eleita neste ano?
Roberto Mangabeira Unger -
A candidatura de Ciro não deve ser apenas projeto de centro-esquerda. Deve ser um projeto que se ofereça como veículo político ao agente social mais importante do país, que chamamos de emergentes.

Mas a fragmentação da esquerda não inviabiliza seu retorno ao poder?
Há um problema concreto: um partido dentro da chamada esquerda ou centro-esquerda se acostumou a uma condição hegemônica e a tratar os outros como satélites. Seria o cúmulo da irresponsabilidade política que esse partido não apoiasse alternativa com maior potencial de chegar ao poder.

O PT tem chance de chegar ao poder se não fizer uma aliança com Ciro?
Não vejo no quadro atual. Agora, a candidatura do Ciro é de longe a nossa melhor, senão a nossa única opção. Ciro jamais será instrumento do PT. É agente de um projeto transformador que as forças comprometidas com um produtivismo inclusivo têm a responsabilidade histórica de apoiar.

Mas o próprio Ciro afirmou que as chances de o PT ser vice dele são próximas a zero. Ele não tem contribuído com a desagregação?
Eu não sou tão pessimista quanto o Ciro a esse respeito. Eu acho que não só deve, mas pode chegar o momento do realismo político, em que nossos aliados compreendam a sua responsabilidade histórica.

O senhor disse no passado que considera Ciro uma espécie de "outsider". Como ele pode sê-lo se tem origem em uma das principais oligarquias do Ceará?
Eu não usaria "outsider". Não tem essa de se fantasiar de "outsider" ou "insider". As particularidades do Ciro podem ser agora úteis ao país.

A defesa de Lula diz que o petista é vítima de "lawfare", ou seja, uso ilegítimo de recursos jurídicos. O conceito se aplica a ele?
A condenação me parece injusta, baseada em um conjunto frágil de provas indiciárias. A elite jurídica não pode assumir a condução do país. Ela tem um papel que é desestabilizar os acertos oligárquicos e abrir espaço para a energia cívica.

O teto dos gastos aprovado pelo Congresso Nacional precisa ser alterado?
O teto como construído é uma camisa de força para substituir a base real do realismo fiscal. Quiseram impor o sacrifício sem as oportunidades. Devemos ter regras de contenção fiscal, mas não devem ser genéricas que não distingam entre o que é estratégico e o que não é e o que é custeio e o que é investimento.

Ciro deve manter ou revogar a reforma trabalhista?
A reforma nos moldes em que foi adotada é um exemplo clássico da erosão dos direitos do trabalho. É inaceitável defender os interesses da minoria organizada contra os interesses da maioria desorganizada e usar o imperativo da flexibilidade como pretexto para jogar a maioria na precarização.

Há no PDT a defesa que Ciro seja domesticado para o mercado financeiro. Ele é domesticável?
Jamais, a meu ver, será.

A carga tributária deve ser elevada?
Com completa honestidade intelectual, entendo que o Brasil terá de manter alta carga tributária, combinando tributos progressivos, como a tributação de lucros e dividendos, com tributação neutra e indireta do consumo. Quem diz que nós podemos reduzir a carga tributária de forma compatível com o realismo fiscal está mentindo.


João Pereira Coutinho: Profetas da desgraça

Nos 200 anos do nascimento de Marx, um homem livre não precisa de falsos profetas

Karl Marx nasceu 200 anos atrás e ainda não morreu. Eis, em resumo, a tese da efeméride. Lemos ensaios, de esquerda ou de direita, e todos parecem convergir nesse ponto: hoje, somos filhos de Marx e a sua análise do sistema capitalista não envelheceu uma ruga.

Respeito a sabedoria alheia. Mas desde já confesso a minha incapacidade para avaliar cientificamente Marx. Essa incapacidade não lida apenas com o fato óbvio de Marx ter servido de inspiração para regimes criminosos. Meu problema com Marx é outro: olho para ele como um profeta, não como um filósofo e muito menos como um cientista.

A culpa não é minha. É de Raymond Aron, que dinamitou a ponte marxista para sempre. Mas, antes de Aron, apareceu Adam Smith com uma observação que nunca entrou na cabeça estreita de Marx: a “sociedade comercial” (expressão de Smith), antes de ser o mais eficaz mecanismo de produção de riqueza que a humanidade já conheceu, começa por ser uma resposta à própria natureza humana.

Existe nos seres humanos uma propensão para “negociar, permutar ou trocar uma coisa por outra” de forma a “melhorarem a sua condição”.

Naturalmente que esse “sistema de liberdade natural” (outra expressão de Smith) pode ser subvertido e corrompido —basta olhar ao redor. Mas os abusos do sistema não provam a iniquidade desse sistema; provam, apenas, a iniquidade de vários agentes do sistema, para os quais devem existir leis gerais e punições exemplares.

Marx nunca entendeu essa necessidade básica da nossa natureza comum. Mas entendeu outra necessidade, provavelmente mais forte: somos seres religiosos por definição. O que significa que o declínio da fé tradicional deve ser compensado por outra fé —ou, como diria Raymond Aron, por uma “religião secular”.

Lemos os textos de Marx e é impossível não vislumbrar na prosa uma espécie de mimetismo teológico da mensagem judaico-cristã.

Primeiro, a condenação de um mundo corrupto, onde o pecado original é substituído pela exploração capitalista sob a forma da mais-valia.

Depois, a certeza milenarista de que esse mundo alienante irá soçobrar sob o peso das suas próprias contradições.

Finalmente, a adoração do proletariado como rosto do messianismo redentor.

O apelo de Marx é religioso, não racional. Com uma vantagem sobre as religiões tradicionais: o paraíso será na Terra, não no distante reino dos céus. Como resistir a essa profecia?

Muitos não resistiram —e Lênin, a partir dos textos sacros, ergueu a primeira igreja. Outras se sucederam —com as suas liturgias, heresias e fogueiras.

Mas a derrota do marxismo não se explica apenas pelos trágicos resultados. Nos países realmente capitalistas, onde Marx antecipava o início da revolução, o proletariado preferiu um papel mais modesto no grande drama da humanidade. Para que destruir o sistema quando era possível se beneficiar dele?

A social-democracia respondeu à pergunta, chamando os trabalhadores para o jogo democrático; ampliando o papel do Estado nas áreas sociais; e redistribuindo a riqueza disponível.

O proletariado de Marx só existiu na imaginação dele. Na realidade, o que existiu foi uma classe de escravos nas “democracias populares” —e uma nova classe burguesa nas democracias liberais.

Aliás, se dúvidas houvesse, bastaria citar outra efeméride do ano corrente. Falo do Maio de 68. Ou, como defende Mitchell Abidor, dos vários maios de 68.

Em artigo para o jornal The New York Times, Abidor relata a sua experiência como autor de uma história oral sobre o período. Entrevistou todos os atores principais: trabalhadores, estudantes, agricultores. E concluiu que todos desejavam coisas diferentes.

Os estudantes, com o mesmo fervor religioso dos marxistas, desejavam a reinvenção do mundo em termos vagos, delirantes, violentos.

Os trabalhadores que Abidor escutou desejavam “o pão e a manteiga”: as coisas tangíveis que permitem a cada um “melhorar a sua condição”.

Como afirma uma das trabalhadoras fabris que o autor entrevistou, era doloroso ver os estudantes a incendiar carros quando o verdadeiro “proletariado” sabia que eram precisas muitas horas de sacrifícios para comprar um.

Nos 200 anos do nascimento de Marx e nos 50 anos do Maio de 68, talvez a conclusão seja a mesma: um homem livre não precisa de falsos profetas. Apenas de lucidez e coragem para enfrentar e reformar o mundo sem esperar o paraíso na Terra.

* João Pereira Coutinho é escritor português e doutor em ciência política.


Reis Friede: Foro especial, um contraponto

Diferentemente do que pensam aqueles que pugnam pelo fim da prerrogativa de foro, a solução reside em aprimorar o sistema de Justiça criminal

Não obstante a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que restringiu o foro por prerrogativa de função inerente aos senadores e deputados federais, o tema deve ser analisado com prudência.

Efetivamente, o instituto em questão não pode ser extinto com base em argumentos desconectados das razões de sua criação histórica. Conforme se observou, há quem defenda a extinção do foro para qualquer autoridade, tais como ministros de Estado, governadores, juízes e promotores, sob o argumento de que o atual modelo ofende o princípio da isonomia e serve de estímulo à corrupção e à impunidade.

Tal raciocínio confunde a razão do instituto com o tema ineficiência —problema que, invariavelmente, atinge o Judiciário como um todo.

Diferentemente do que pensam aqueles que pugnam pelo fim da prerrogativa de foro, a solução reside em aprimorar o sistema de Justiça criminal, criando-se as estruturas necessárias para o cumprimento das respectivas competências, como o estabelecimento de varas federais especializadas e vinculadas aos tribunais superiores para o processamento de tais ações penais.

Tudo isso é possível sem que se altere profundamente o modelo previsto na Constituição.

Quando senadores e deputados federais são julgados por ministros do STF, o que se objetiva é assegurar que o julgador não sofra influência no desempenho de sua função jurisdicional. Afinal, sabe-se que determinadas pessoas dotadas de poder tendem a pressionar, ainda que veladamente, os juízes.

Para tanto, elas são capazes de lançar mão dos mais sórdidos expedientes, inclusive o de monitorar a rotina diária de um magistrado e de seus familiares. O próprio juiz federal Marcelo Bretas foi alvo de investidas intimidatórias.

Da mesma forma, seria estranho imaginar que um juiz pudesse julgar, com independência, um desembargador, pois aquele depende do voto deste para inúmeras questões, inclusive para eventual promoção na carreira. Igualmente, como um desembargador poderia julgar, com isenção, uma apelação criminal interposta por um ministro do Superior Tribunal de Justiça junto a um Tribunal Regional Federal, uma vez que o mencionado apelante, em seguida, participará da sessão destinada a escolher, dentre os desembargadores, aquele que integrará o STJ?

Subsiste, ainda, uma questão que precisa ser analisada com precaução. Refiro-me à falta de maturidade apresentada por certas pessoas que exercem cargos de elevada importância no cenário estatal.

Efetivamente, haverá casos em que juízes inexperientes vão se ver diante da incumbência de decidir questões relevantes para o país. Por sorte, os juízes que estão à frente da operação Lava Jato —Sergio Moro e Marcelo Bretas—, além de serem experientes e competentes para o mister, são magistrados com mais de 40 anos de idade e ostentam mais de 15 anos de carreira.

A prevalecer a tese pela extinção da prerrogativa de foro, não haveria impedimento para que julgamentos de autoridades fossem conduzidos por juízes de primeiro grau com pouquíssima experiência, notadamente quando, na condição de substitutos e recém-empossados, precisassem decidir temas de grande repercussão, tendo em vista o titular da vara se encontrar de férias ou de licença médica.

Um julgamento de impacto conduzido por um juiz inexperiente poderia levar a um resultado processual não apenas tecnicamente equivocado mas, especialmente, influenciado pela mídia ou pela opinião pública.

* Reis Friede é mestre e doutor em direito, é desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) e professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército


Marta Suplicy: Focar e ousar para transformar

O incêndio e o desabamento no largo do Paissandu revelam mais do que a falta de moradia digna e a especulação imobiliária no centro da capital

Buenos Aires se refez ao renovar Puerto Madero, região abandonada havia mais de cem anos. Paris foi posta abaixo, virando um enorme canteiro de obras por 20 anos, fazendo a glória do prefeito Haussmann (1809-1891) e da Cidade Luz!

Foram processos diferentes e distantes do que me atrevo a formular, mas ilustram que cidades são organismos vivos, e chega um momento em que é "aquele" para iniciar uma ação ousada de transformação. São Paulo pode e, entendo, deve ser repensada amplamente. Não será algo terminado em poucos anos, mas apontará, como o fizeram seus dois últimos Planos Diretores, para uma cidade humana e do século 21.

O incêndio e o desabamento no largo do Paissandu revelam mais do que a falta de moradia digna e a especulação imobiliária no centro da capital. É uma falência maior, e exige uma resposta que pode ser legado do jovem prefeito.Diferentemente de quem critica, considero importante uma força-tarefa da prefeitura para vistoriar 70 prédios invadidos na cidade. Não é uma situação fácil de administrar, pois a maioria das famílias se nega, por motivos variados, a ir para os abrigos da prefeitura. Porém, o poder público não pode mais se omitir.

Isso não é abonar a ideia de culpar vítimas e colocá-las para fora. É tornar mais seguro e humano o espaço, enquanto se tomam providências.

Não é justo transferir todas as responsabilidades para os mais vulneráveis, e o bolsa-aluguel de R$ 400 não aluga nada no centro. É o mesmo que encaminhar as pessoas para novas invasões (aliás, esse é o custo que os "coordenadores" de invasão cobram).

A cidade é de todos e tem de ser pensada que, quanto maior for o mix de classes, pessoas de diferentes tribos e ofertas, mais dinâmica, interessante e segura ela se tornará. No mundo, todo centro frequentado é mais seguro.

Embora pouco cuidado e perigoso, nosso centro é onde o cidadão ainda consegue trabalho, seja ou não informal, pois transitam milhares de pessoas num ambiente pulsante.

Tenho visitado locais que aguardam regularização fundiária: não têm água, esgoto, luz nem escola. Demoram-se duas horas para chegar a um trabalho. Nesses cenários, entende-se bem por que as pessoas preferem viver mal e correndo riscos no centro do que morar nas franjas da cidade, longe de tudo.

Como reverter? Como diz o urbanista Nabil Bonduki, relator do Plano Diretor, em artigo nesta Folha, os governos já têm "um arsenal de instrumentos" legais para viabilizar a habitação social no centro, mas, de fato, as últimas gestões não enfrentaram esse problema.

São necessárias a efetiva descentralização de gestão e a participação popular, além de ideias como a do retrofit (reabilitar edifícios subutilizados para novos usos); o capital privado reformar prédios e a prefeitura repassar diretamente aluguel social.

O Campos Elíseos Vivo, como apresenta Raquel Rolnik, une ações de urbanismo, serviço social, cultura e saúde, utilizando terrenos e imóveis vazios; é um exemplo possível.

Jorge Wilheim (1928-2014), na elaboração do Plano Diretor (2002), e a nossa gestão (2001-2004), em relação à zona leste, propusemos soluções que passam pela criação de emprego: planejar qualificação, oportunidades e diminuir a necessidade de mobilidade para o centro.

O cidadão tem de encontrar o que precisa mais próximo de si. E deve ser escutado. Se não é possível habitação a todos no centro, vamos tornar a periferia mais atraente: a posse do terreno, a possibilidade de empregos pensados e planejados pelo poder público, postos de saúde, escolas e creches adequadas, a utilização da internet para melhorar a produtividade e a qualidade de vida.

É possível!

* Marta Suplicy é senadora pelo MDB-SP; foi prefeita de São Paulo (2001-2004), ministra do Turismo (2007-2008, governo Lula) e ministra da Cultura (2012-2014, governo Dilma)