Fernando Limongi

Fernando Limongi: Coronavírus evidencia que cartilha de Bolsonaro é delírio de loucos

Neoliberalismo primitivo do presidente e de Guedes vê na redução do Estado o remédio para todos os males do país

Diante da urgência do cenário que se desenha com a eclosão do coronavírus, cientista político considera que a cartilha neoliberal primitiva de Bolsonaro e Guedes, que vê na redução do Estado o remédio para todos os males do país, deve ser ignorada como delírio de loucos e dos que acreditam em mitos.

“Victor Hugo era um louco que se julgava Victor Hugo”, disse Jean Cocteau. Com pequenas adaptações, o chiste se presta para definir o atual ocupante do Palácio do Alvorada: Jair Bolsonaro é o mito inventado por um bando de malucos.

Analistas, por dever de ofício, devem decifrar o comportamento dos políticos, conferindo racionalidade a seus atos. A tentação de atribuir cálculo ao presidente tresloucado é enorme. Diz-se que há método na loucura, que tudo não passa de encenação meticulosamente arquitetada.

Dizer que está mirando 2022 não é senão reafirmar o óbvio. Que político não tem olho voltado para os eleitores e para as próximas eleições? E Bolsonaro nunca escondeu que só pensa em sua reeleição, que esta é sua única preocupação e que, para tanto, precisa abater toda e qualquer liderança, no seu governo ou fora dele, que possa lhe fazer sombra.

Comprou briga com João Doria e Wilson Witzel porque os dois podem enfrentá-lo no futuro. Disto não se duvida. A questão é se fez as escolhas certas e se o seu comportamento destemperado lhe renderá votos.

Para dizer o mesmo de outro modo: para ser reeleito, o presidente tem que cumprir o que prometeu. Mesmos os mais fiéis, mesmo os que acreditam em mitos, precisam ser satisfeitos. E é aí que entra o coronavírus.

O destempero e a insensatez não são novidades. Bolsonaro sempre foi e será assim. O cavalão, como era conhecido no Exército, é indomável. A novidade é o desespero.

A reeleição que dava por assegurada está indo para o ralo com a desorganização da economia. As perspectivas já não eram as melhores antes da epidemia; as promessas da retomada do crescimento não passavam disso, de promessas.

Mas Paulo Guedes (ministro da Economia), tanto quanto Bolsonaro, acredita no mito que criou para si mesmo, o de que seria simples resolver os problemas econômicos do país. Rebento do neoliberalismo original, aluno de Milton Friedman, o ministro acredita que basta diminuir o Estado para que o Brasil experimente um novo surto de crescimento.

O nó da questão estaria na regulação excessiva a tolher a iniciativa empresarial virtuosa. Para a Escola de Chicago, tudo quanto o Estado faz é atender interesses especiais de grupos organizados.

Pode parecer estranho, mas o fato é que o neoliberalismo primitivo tem grande afinidade com o discurso populista. Não por acaso, ao tomar posse, Paulo Guedes encheu os pulmões para dizer que o Brasil era o “paraíso dos rentistas”, que o reino destes verdadeiros parasitas chegaria ao fim.

De forma mais elaborada, em seu discurso de posse, declarou: “Os bancos públicos se perderam em grandes problemas com piratas privados e burocratas políticos. Burocratas corruptos e criaturas do pântano político se associaram contra o povo brasileiro”.

A harmonia do casal Bolsonaro-Guedes foi consumada no altar do populismo, com apelos simplistas em defesa do povo contra elites sanguessugas. Contudo, antes da eclosão da pandemia, Guedes vinha colhendo derrota atrás de derrota. O anúncio do pibinho e das revisões para baixo do crescimento deste ano foram as mais claras delas.

E todos os economistas de prol batiam na mesma tecla: sem reformas não haveria retomada do crescimento. O consenso, contudo, repousava na indefinição da lista de reformas prioritárias e de seu conteúdo. Em um ponto, contudo, quase todos concordavam: a disciplina fiscal não poderia ser abandonada.

E aí veio a pandemia, e qual foi a reposta de Guedes? No mínimo, tão atabalhoada quanto a de seu chefe. Inicialmente, defendeu que não havia motivos para mudar de rumos, que avançar as reformas teria se tornado ainda mais premente. Ou seja, o ministro não viu razões para abandonar a sua cartilha.

Com ou sem pandemia, o remédio seria o mesmo, diminuir o papel do Estado. Quando se convenceu de que alguma medida emergencial seria necessária, só se lembrou de aliviar o lado dos empresários, assinando medida provisória permitindo a suspensão temporária do pagamento de salários.

Enquanto isto, reconhecendo o inusitado da situação, a maior parte dos economistas ouvidos pela imprensa passou a defender programas de transferência de renda para os mais afetados, independente dos seus efeitos fiscais. Momentos extraordinários pediriam medidas excepcionais, e cada um dos entrevistados contribuiu com seu elenco de medidas emergenciais a serem adotadas.

Neste debate, a equipe econômica pouco contribuiu. Foi a voz discordante no novo consenso formado. Guedes saiu de cena, refugiando-se em seu apartamento, ao mesmo tempo em que Bolsonaro armava a sua guerra particular contra o isolamento social e suas repercussões sobre a renda dos trabalhadores impedidos de correr atrás de seu sustento.

Em nenhum momento, tudo indica, sua equipe econômica o instruiu de que havia alternativas, de que os autônomos e desempregados poderiam ser assistidos por programas de transferência de renda.

E se Bolsonaro quer se reeleger, se tem uma estratégia eleitoral, não seria mais apropriado assumir a paternidade dos programas defendidos pelos economistas? A solução da charada é simples: Bolsonaro não o faz porque não é isso o que ouve de seu guru.

Em meio a seu sumiço, o ministro encontrou tempo para se reunir com investidores. Pressionado a se posicionar, afirmou que, como cidadão, apoiava as medidas de isolamento social preconizadas pelo Ministério da Saúde. Por que precisou do adendo “como cidadão”? Qual sua posição como autoridade máxima da política econômica do governo? Evitou entrar em conflito com o chefe ou o apoia?

O fato é que o ministro resistiu o quanto pôde, recorrendo a inúmeros subterfúgios, postergando a entrada em vigor do plano aprovado pelo Congresso. Provavelmente, para parafrasear um de seus ídolos, vê no programa o início do caminho que leva à servidão. Carlos Bolsonaro, com sua sutileza e tato habitual, foi direto ao ponto: quem defende programas deste tipo são os esquerdistas.

A urgência do cenário que se desenha, contudo, recomenda que Bolsonaro e a ideologia que fundamenta seu governo sejam ignorados, como são ignorados os delírios dos loucos e dos que acreditam em mitos. Aplicando a regra usada pelo presidente para identificar seus filhos, não seria inadequado tratá-lo como o zero-zero, isto é, como um zero à esquerda.

*Fernando Limongi é professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas e do departamento de ciência política da USP.


Fernando Limongi: A política familiar

Um enredo conhecido que já se repetiu vezes sem conta

O dia da família, 8 de dezembro, não foi comemorado pelos Bolsonaro. A efeméride não gerou as esperadas mensagens na rede social, talvez porque os negócios da família, suas amizades e dívidas, tenham ocupado o noticiário. Cheques depositados na conta da futura primeira dama precisaram ser explicados e, como de costume, contabilizados como dívidas pessoais de um velho amigo que se perdeu pelo caminho.

Não é de hoje que os negócios dos amigos e dos familiares são fontes de embaraço para políticos. O enredo é conhecido e se repetiu vezes sem conta.As iniciativas do filho de Lula que ocuparam o noticiário durante a semana estão aí para comprovar. Há sempre um empresário a postos para bancar a aventura em troca das oportunidades que a proximidade com o poder gera.

Magno Malta, o puxador oficial das preces presidenciais, não chegou a ministro porque, para usar a expressão cunhada por Jacques Wagner, começou a se lambuzar com as sinecuras do poder antes mesmo de ocupar o cargo. A generosidade do empresário Eraí Maggi para com Malta, cedendo aeronaves para facilitar deslocamentos do candidato, não foi interpretada como um ato de comprometimento com a defesa da família, da pátria e dos bons costumes. A dupla Malta e Eraí já dava como certo até que emplacariam Adilton Sachetti no Ministério da Agricultura. Malta não resistiu ao escrutínio dos lotados na equipe de transição. Aparentemente, outros tantos aliados de primeira hora não obtiveram o aval da equipe por razões similares. Eraí Maggi, com certeza, não foi o único a investir recursos para usufruir da intimidade do novo núcleo do poder.

Obviamente, políticos e membros da 'entourage' presidencial não se distinguem dos lotados nos demais poderes. Não por acaso, o Conselho Nacional de Praticagem (CONAPRA) se lembrou de incluir os Ministros Luiz Fux, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio entre os convidados a participar do seminário que promoveu em Búzios, no Ferradura Resort. Entre os palestrantes, destacou-se Rodrigo Fux, filho do ministro Luiz Fux, que representa a CONAPRA em causa a ser julgada pelo Supremo Tribunal de Justiça. Ao explicar o papel do prático, o Ministro Marco Aurélio evidenciou porque sua presença era imprescindível: "É um verdadeiro comandante. Ele assume o navio para a entrada no porto. Ele que conhece os aspectos alusivos ao porto, inclusive os canais existentes."

Flávio Bolsonaro, entrevistado pela GloboNews na última terça-feira, comportou-se como um experimentado comandante-prático e expôs com desenvoltura e serenidade os projetos do novo governo. Um desavisado poderia pensar que o senador eleito decidira se filiar à Rede, tantas foram as referências à morte da velha política e à aurora de uma nova era, sob a liderança de Jair. "A forma de fazer política mudou", decretou.

Didático, associou todos os problemas do governo passados à distribuição de pastas ministeriais a partidos: "Se você tem um governo que não tem o loteamento em base de partidos... e isso significa o quê? Que todos os ministérios podem se comunicar, sem se preocupar se está [sic] invadindo o terreno eleitoral de um ou de outro. Um parlamentar que seja de um partido, PX, pode procurar qualquer ministro para levar demandas legítimas para seu estado, para aquele segmento que ele representa, sem se preocupar 'Bom, eu sou do PX, então partido que está no Ministério tal é do PY, então eu não vou ter acesso, não!' Vai ter acesso!"

Eraí Maggi e a CONAPRA sabem que as coisas não são assim tão simples, a começar pelo fato de que recursos são escassos e, portanto, insuficientes para atender todas as demandas. Eraí e a CONAPRA sabem também que a distinção entre os pleitos legítimos e ilegítimos não é uma operação simples e objetiva. Os pleitos dos amigos acabam sendo vistos com mais simpatia que os dos mais distantes, isto sem falar nos apresentados pelos inimigos. Por exemplo, na sua exposição, Flávio Bolsonaro deixou claro que acredita que as demandas apresentadas pelo PT serão rotuladas como ilegítimas.

Paulo Marinho, suplente de Flávio de Bolsonaro no senado, sabe como ninguém a importância das conexões políticas para os negócios. Segundo a Revista Crusoé, o empresário sempre esteve "perto de onde há poder e dinheiro" e, em tom de denúncia, alerta que "já foi próximo até dos petistas."

O faro político do empresário o levou a apostar suas fichas na candidatura dos Bolsonaro, franqueando sua casa para gravações e reuniões políticas, durante e depois da eleição. Nesta aproximação, valeu-se da amizade de Gustavo Bebianno, velho conhecido dos tempos em que trabalhou no escritório Sérgio Bermudes. O advogado é outro bom amigo de Paulo Marinho, na casa de quem se casou, em cerimônia celebrada por ninguém menos que Luiz Fux.

Em razão da sua extensa biografia, Marinho é cotado como o candidato mais forte e natural ao posto de lobista geral do novo governo. Pelas mesmas razões, é visto como fonte segura de problemas futuros para a família Bolsonaro. A amizade pede reciprocidade.

Os problemas, contudo, chegaram bem antes do esperado e vieram do núcleo familiar do próprio presidente. Os amigos íntimos e de velha data não são tão fáceis de descartar, sobretudo quando trazem consigo marcas indeléveis, como fotos, cheques e a alocação de parentes em gabinetes. As movimentações financeiras de Fabrício de Queiroz, assim como o trânsito das filhas dos motoristas pelos gabinetes de Jair, Flávio e Cláudio mostram que o clã Bolsonaro reza pelo velho e tradicional evangelho da política brasileira.

Onyx Lorenzoni, outro que se viu enredado por práticas políticas que Bolsonaro diz ter vindo para enterrar, socorreu-se de um esquema infantil para traçar a rota de fuga: "Não dá para querer achar que [o governo] é igual ao do PT. Não é, nunca vai ser e os homens e mulheres que estão aqui são do bem. A turma do mal está do lado de lá."

*Fernando Limongi é professor do DCP/USP, da EESP-FGV e pesquisador do Cebrap.


Fernando Limongi: A semana em revista

Dodge defende a categoria como uma líder sindical o faria

"A Constituição é um documento vivo, em constante processo de significação e ressignificação, cujo conteúdo se concretiza a partir das valorações atribuídas pela cultura política a que ela pretende ser responsiva. Por sua vez, tais valorações são mutáveis, consoante as circunstâncias políticas, sociais e econômicas, o que repercute diretamente no modo como o juiz traduz os conflitos do plano prático para o plano jurídico, e vice-versa."

Por meio deste raciocínio tortuoso, o ministro Luiz Fux justificou a suspensão da liminar concedida quatro anos atrás, que, como todos sabem, garantia o pagamento do auxílio-moradia a juízes e promotores de todo o Brasil. Todos sabem também que a decisão do ministro fez parte da negociação que garantiu o aumento salarial da categoria obtido na semana passada. Ou seja, o ato monocrático do ministro Fux nada mais foi que o jeitinho encontrado para que os membros da corporação pudessem engordar seus contracheques. Com a manobra, obtiveram aumento salarial sem o necessário respaldo da lei. Todos, mesmo os mais jacobinos e moralistas, participaram da jogada e receberam o seu.

O despacho do ministro é de uma desfaçatez assustadora. Em última análise, Fux sustenta que juízes têm o direito de interpretar a Constituição para atender às suas necessidades práticas. Assim pensa (e pauta suas decisões) um dos 11 juristas cujo papel institucional é agir como o guardião da Constituição. Por vezes, não há como fugir do chavão: e quem nos guardará dos guardiões?
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"Sem adentrar propriamente no mérito, na legalidade ou na constitucionalidade do recebimento de auxílio-moradia, fato é que esta ação restringe-se ao pagamento ou não do benefício em causa para os juízes, nos termos da legislação que rege a magistratura judicial brasileira, limitando-se o julgado àquelas carreiras."

Este foi o despacho da procuradora-geral da República visando assegurar que os promotores não percam o direito a receber o penduricalho tão arduamente conquistado. Dodge, portanto, atua na defesa dos direitos da categoria que lidera, como uma líder sindical o faria. Mais do que isto, ao se furtar de discutir a legalidade da medida - o que em si só parece indício de que a medida carece de amparo legal -, Dodge escancara que o formalismo é um recurso meramente protelatório. Quando se trata de encher os bolsos da categoria, vale tudo.
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"A corrupção mata. Mata na fila do SUS. Mata na falta de leite. Mata na falta de medicamentos. Mata nas estradas, que não têm manutenção adequada. A corrupção destrói vidas, que não são educadas adequadamente, na ausência de escolas, deficiências de estruturas e falta de equipamento." Com estas palavras, o ministro Luís Roberto Barroso defendeu a manutenção da suspensão do indulto de natal concedido pelo presidente Temer no ano passado.

É indiscutível que a corrupção desvia dinheiro de destinações mais nobres e eficientes. Isto está fora de questão. Contudo, isto não significa que, controlada a corrupção, desaparecerão as filas do SUS, todas as estradas terão manutenção adequada e que todas as crianças serão educadas em escolas bem aparelhadas.

Recursos são escassos e, se a corrupção for eliminada, continuarão a ser. Salários dos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público saem da mesma fonte que paga médicos, repara estradas e custeia a educação. Assim, recorrendo à retórica de que se valeu o ministro, seria possível dizer que penduricalhos garantidos pela interpretação que dá vida ao texto constitucional aumentam as filas do SUS e tiram recursos da educação.
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"Quem é Osmar Terra comparado ao Magno Malta?" A pergunta feita pelo deputado Silas Malafaia procede. Pela vontade de Bolsonaro, Malta seria seu companheiro de chapa e só não ocupou o posto em razão das maquinações de Valdemar Costa Neto.

Bolsonaro continua firme na sua disposição de fugir ao toma-lá-dá-cá das indicações partidárias, privilegiando a competência e a lealdade dos selecionados. Os critérios, contudo, não têm se mostrado suficientes para aplacar conflitos, para decidir se Terra ou Malta é mais preparado para o cargo. Como declarou o presidente, há escassez de cargos e excesso de amigos leais a premiar.

Mas nem todos ficarão no sereno. Com a criação de Secretarias Especiais de Articulação Política, o governo visa assegurar colocação para aliados punidos pelas urnas. Serão duas secretarias especiais, comandadas por Carlos Manato e Leonardo Quintão, cada uma delas com o direito a empregar dez deputados não reeleitos. Pelo que foi noticiado, caberá a estes parlamentares a tarefa de organizar a base de apoio do presidente e garantir a aprovação da reforma da Previdência.
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"Essa que está aí não está sendo justa, no meu entender. Não podemos querer salvar o Brasil matando o idoso." Esta é a opinião de Jair Bolsonaro sobre a reforma da Previdência enviada por Michel Temer ao Congresso. Como é de seu feitio, o presidente eleito saiu pela tangente, quando perguntado sobre detalhes da proposta que defende.

Marcos Cintra, nomeado secretário da Previdência e da Receita Federal, tampouco tem detalhes a oferecer. Em entrevista à "Folha de S. Paulo", declarou que "evidentemente, ainda não houve discussão em detalhes com o Paulo Guedes, nem com o próprio presidente. O presidente tem emitido sinais que não quer uma reforma previdenciária que gere grandes descontinuidades ou grandes tumultos, quer uma coisa menos acelerada e disruptiva. Então, o que vamos fazer é construir isso e apresentar para o debate."

Em outras palavras, a equipe de transição sequer começou a atacar a questão e, quando o fizer, não será fácil atender as demandas do presidente. O fato é que, fosse outra a disposição dos agentes econômicos, as duas declarações teriam derrubado o índice Bovespa.

*Fernando Limongi é professor do DCP/USP, da EESP-FGV e pesquisador do Cebrap.


Fernando Limongi: O Presidencialismo de delegação

Bolsonaro encontra conforto quando delega a gestão

Continua a montagem do governo Bolsonaro. Boa parte das pastas já foi distribuída e o perfil do governo do capitão ganha nitidez.

Fiel à promessa de campanha, o presidente eleito evitou o que chama de 'toma-lá-dá-cá', recusando-se a 'comprar' apoio dos partidos, por meio da distribuição de pastas ministeriais.

Em editorial, "O Estado de S. Paulo" saudou o princípio adotado para compor o novo governo, decretando a morte do malsinado presidencialismo de coalizão, responsável por "uma parte considerável das desventuras nacionais".

A lógica nem sempre convive bem com a análise política. Pode ser que, no passado, a distribuição de pastas ministeriais visasse tão somente a 'compra' de apoio, numa troca de cargos por votos no Legislativo, sem base em compromissos programáticos.

Mesmo que esta fosse uma descrição acurada do modus operandi dos governos Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer, dela não decorre a impossibilidade do Executivo negociar com partidos em bases programáticas.

Tal raciocínio assume o fisiologismo como característica intrínseca dos partidos brasileiros, sobretudo dos 'partidos de aluguel'. Obviamente, seguidores de Bolsonaro não podem comungar do juízo, pois teriam que incluir o 'programático' PSL.

A inconsistência lógica do raciocínio não para aí. Assume-se que excluir os partidos garantiria lisura à transação. Contudo, cargos podem ser loteados de diversas formas. Se os nomeados representam grupos de interesse ou bancadas setoriais, como a ministra da Agricultura, o mesmo tipo de troca escusa poderia estar por detrás da nomeação.

O realismo político recomenda a leitura da Constituição, onde está dito que leis são aprovadas mediante a maioria dos votos dos legisladores e, no caso de emendas constitucionais, como a reforma da Previdência, por maioria qualificada de 3/5. Assim, se o presidente eleito tem uma agenda política, e esta agenda pede a aprovação de leis, terá que contar com o apoio de uma maioria organizada e consistente no Legislativo.

Em última análise, a suposição de que esta maioria só pode ser obtida à base de fisiologismo nada tem a ver com o grupo com qual se negocia, se com partidos ou bancadas setoriais. Se levados a sério, argumentos deste tipo questionam a legitimidade dos interesses representados pelos parlamentares, das demandas que fazem. Em outras palavras, a crítica ao presidencialismo de coalizão não condena a coalizão ou os partidos, mas a representatividade do Legislativo.

No presidencialismo, de coalizão ou não, sem as concordâncias do Executivo e do Legislativo não se muda o status quo legal. Simples assim. Como o PSL só controla algo como 10% das cadeiras, para obter o apoio necessário para aprovar matérias o presidente terá que contar com votos dos demais partidos de centro e de direita.
A esquerda pode querer fazer uma oposição intransigente, mas não tem cadeiras suficientes para paralisar o governo, pois o PT e seus aliados, em contabilidade generosa, não controlam mais do que 20% das cadeiras.

O fato é que os resultados eleitorais foram francamente favoráveis a Bolsonaro. Nenhum dos presidentes que o antecedeu encontrou condições tão cômodas para implementar seus propósitos. O folclórico MDB, para dar só um exemplo, foi reduzido a pó de traque, isto é, não há partidos com força suficiente para 'chantagear' Bolsonaro.

Até o momento, Bolsonaro e sua equipe ignoraram completamente o Poder Legislativo. O caso do orçamento é paradigmático. A equipe de transição desconsidera o trabalho da CMO, responsável pela elaboração da lei orçamentária que o governo terá que executar no ano que vem. Coisas miúdas e mundanas, como o organograma ministerial, devem ser previstos pela lei. A despeito dos pedidos reiterados do relator da matéria, a equipe de transição não envia as diretivas à comissão.

Voltando ao presidencialismo de coalizão, não é difícil perceber que a competência não oferece um guia completo para todas as decisões presidenciais. Como mostra o caso do Ministério da Educação, a qualificação do indicado varia de acordo com a fonte escutada, se Viviane Senna, a bancada evangélica ou Olavo de Carvalho.

No caso, Bolsonaro quis abrir uma nova franquia do Posto Ipiranga. Como fez com Guedes e Moro, procurou apoio fora de seu círculo restrito para legitimar sua indicação. Entretanto, não foi possível encontrar para algum notável disposto a aderir integralmente ao seu programa para a educação. Sem alternativas, Bolsonaro voltou ao seu círculo íntimo, recrutando o novo ministro entre os ungidos por seu guru.

Para dizer o mesmo de outra forma, não são nada claros os critérios usados para aferir a competência de Ricardo Vélez Rodríguez ou Luiz Henrique Mandetta. No caso deste último, Bolsonaro esclareceu que o conhece há pouco e que não trocaram mais do que algumas poucas ideias. Ainda assim, mesmo contando com informações tão limitadas, Bolsonaro o guindou à posição de Marechal, confiando-lhe a missão de "provar a todos de que a saúde tem jeito com pessoas de bem e apoios dos mais variados."

No início da campanha, sempre que indagado, Bolsonaro não escondia sua falta de preparo e conhecimento sobre economia, educação e saúde. Em mais de uma oportunidade, como na sabatina da CNI, pediu ajuda e deixou claro que estava disposto a deixar que os interesses organizados assumissem a gestão das políticas setoriais.

Em suma, Bolsonaro constrói um governo balcanizado e compartimentalizado. É meio cada um para um si, sem a coordenação de uma liderança unificadora, autorizada a resolver os inevitáveis conflitos entre os titulares das pastas.

O presidente eleito encontra conforto quando delega a gestão. Por enquanto, este foi o modelo adotado para distribuir pastas ministeriais. Nasce o presidencialismo de delegação. Tem tudo para dar errado.

*Fernando Limongi é professor do DCP/USP, da EESP-FGV e pesquisador do Cebrap.


Fernando Limongi: O epicentro do terremoto

Sistema partidário foi implodido fora do Norte e Nordeste

O sistema partidário brasileiro ruiu. A estrutura partidária que emergiu da transição foi seriamente abalada pelos resultados da última eleição. A vitória de Bolsonaro, assim como as de Wilson Witzel e Romeu Zema para os governos do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, anunciam novos tempos. A despeito das críticas recorrentes, o fato é que o país tinha uma estrutura partidária estável e o resultado das eleições seguiam parâmetros conhecidos. Sabe-se lá qual quadro partidário emergirá com as vitórias do PSL, PSC e do NOVO.

A partir de 2006, os resultados das eleições presidenciais adquiriram contornos regionais claros, sendo possível distinguir dois grandes redutos eleitorais, o do PT, cujas bases se localizavam nas regiões norte e nordeste, e o do PSDB, com maior penetração eleitoral nas demais regiões do país. A cada nova eleição, o contraste entre estes dois redutos foi ganhando contornos mais nítidos, chegando a seu ponto mais alto em 2014.

Se olhada apenas do ponto de vista da distribuição regional dos votos, a eleição de 2018 não foi inteiramente diversa das anteriores, já que o desempenho de Bolsonaro seguiu de perto o de Aécio, enquanto o de Haddad espelhou o de Dilma. De fato, o presidente eleito conquistou o reduto eleitoral do PSDB, ao passo que o PT foi capaz de preservar sua área de influência. As mudanças ocorridas, contudo, vão além.

A relação entre as votações obtidas por Bolsonaro e pelos candidatos eleitos ao governo nos estados das regiões sul, sudeste e centro-oeste foi notada em diversas análises. Zema e Witzel são os casos mais conspícuos, mas não os únicos. O fato é que, nos redutos eleitorais do PSDB, praticamente todos os candidatos situacionistas aos governos estaduais foram derrotados. João Doria é a exceção que confirma a regra, pois colou em Bolsonaro e se comportou como um candidato de oposição. O colapso do PSDB em seu reduto, portanto, vai muito além do fracasso de seu candidato presidencial. O partido e seus aliados perderam o controle sobre as eleições estaduais.

No nordeste, deu-se o inverso. Na maioria dos estados, sobretudo nos mais populosos, governadores aliados ao PT cumpriam seu primeiro mandato e, portanto, puderam concorrer à reeleição. Além disto, quase todos, chegaram à eleição com alta popularidade e, ajudados por estas condições favoráveis, foram capazes de montar chapas praticamente imbatíveis. Em dois estados, no Maranhão e no Ceará, os governadores reuniriam em torno de si coligações que contavam com nada mais, nada menos que dezesseis partidos. Ou seja, os governadores não deixaram espaço à oposição, garantindo assim uma reeleição tranquila e sem maiores sustos. As coligações montadas na Bahia e no Piauí foram um pouco menores, mas igualmente avantajadas e com os mesmos resultados práticos. Em resumo, na maioria dos estados do nordeste, a oposição foi incapaz de montar uma coligação de peso capaz de ameaçar a reeleições dos governadores. A retirada da candidatura de ACM Neto ao governo da Bahia exemplifica o ponto.

Assim, ao contrário do que se deu com o PSDB, o PT conseguiu manter a força em seu reduto eleitoral, mas o fez, e este é o ponto que precisa ser enfatizado, contando com os votos controlados pelos governadores alinhados ao partido. E não se deve esquecer que, em mais de uma ocasião, estes mesmos governadores criticaram abertamente a prioridade que o partido deu à candidatura presidencial de Lula. Em outras palavras, o partido sobreviveu no nordeste porque os governadores da região adotaram estratégias próprias, calcadas em seus próprios interesses eleitorais.

Obviamente, é impossível saber qual teria sido a votação de Haddad na região sem a contrapartida das candidaturas aos governos estaduais que o apoiaram. A análise dos resultados urna à urna mostra forte correlação positiva entre as votações aos governos estaduais e à presidência na região, relação bem mais forte do que se viu em 2014. No mínimo, portanto, a votação em Haddad foi partidária. Além disto, é incontroverso que os governadores teriam votações expressivas mesmo se o PT não tivesse candidato à presidência e que, por outro lado, Haddad teria menos votos na região se não contasse com o suporte dos governadores. Colocando as questões nestes termos, pode-se relativizar a influência de Lula na votação de Haddad.

No restante do país, em especial nas regiões sul e sudeste, a votação de Haddad foi para lá de inexpressiva, mesmo entre os eleitores de menor nível educacional, isto é, mesmo entre os votantes tradicionais do partido. Nestes estados, o PT não conseguiu montar palanques locais para dar suporte a seu candidato presidencial. Em geral, os candidatos do partido ao governo foram apoiados apenas pelo PCdoB.

Em suma, a estratégia eleitoral do PT o confinou ao nordeste, que sobreviveu graças à força eleitoral de governadores, que desconsideraram a orientação nacional do partido. O partido se isolou politicamente, ao insistir em uma candidatura juridicamente inviável, a de Lula.

De outro lado, o PSDB chegou dividido à eleição entre uma ala que privilegiava a associação com o governo Temer e outra que apoiava movimentos de renovação que impulsionavam a candidatura de Luciano Huck.

Assim, se houve um terremoto nestas eleições, seu epicentro esteve no centro-sul e foi precedido pela implosão dos grandes partidos.

*Fernando Limongi é professor do DCP/USP, da EESP-FGV e pesquisador do Cebrap.


Fernando Limongi: Ouviram do Ipiranga

Moro incorporou-se de corpo e alma ao projeto de Bolsonaro

Bolsonaro continua em campanha. Levantamento feito pela Folha de São Paulo mostrou que o ataque ao PT foi o tema dominante de suas entrevistas pós-vitória. Vale a comparação com Dilma que ignorou Aécio e anunciou que sua prioridade seria o combate à corrupção, que não deixaria 'pedra sobre pedra, doesse a quem doesse'. Como se vê, acusá-la de estelionato eleitoral é injusto.

Bolsonaro e seu fiel escudeiro Paulo Guedes parecem não se terem dado conta de que a eleição acabou e que agora lhes cabe a dura tarefa de ser governo. O Czar da economia sugeriu uma 'prensa' no Congresso, demonstrou descaso absoluto pelo orçamento em elaboração e afirmou que contrariar suas ideias seria contribuir com o retorno do PT ao Poder.

Eduardo Bolsonaro, requintado como de costume, afirmou que o próximo presidente da Câmara "tem que ter um perfil trator, porque a gente sabe como vai ser a oposição da esquerda". Contudo, se olhasse os números, o deputado concluiria que a esquerda foi batida nas urnas, que não terá força para barrar projetos do governo, incluindo os que exigirem quórum qualificado.

Até o momento, a despeito da profusão de propostas disponíveis, Guedes não se deu ao trabalho de apresentar detalhes de seu projeto para reformar a previdência. Propôs uma 'prensa' no Congresso por propor, um ato reflexo de quem tem o costume de tratar apenas com subordinados obedientes.

Mas o Czar precisará mudar seus hábitos e costumes para entender que seu posto, com ou sem a chancela Ipiranga, pede que ouça parlamentares eleitos pela sociedade para representá-la, parlamentares tão legitimamente eleitos pelas urnas quanto seu comandante.

De concreto, tudo que se ouviu de Guedes foi que ele teria sido o emissário do convite a Sergio Moro. Ou seja, o folclórico Posto Ipiranga virou uma franquia. Com a adesão de Moro, a equipe de Bolsonaro passou a contar com dois nomes de peso, celebridades com brilho próprio, capazes de ofuscar as notabilidades de aldeia -- Onyx, Bebianno, Malta e outros menos votados-- que cercam o presidente. O choque entre estes corpos de grandeza e órbita distintas é uma questão de tempo, crônica de uma morte anunciada.

O convite e o aceite de Moro dominaram o noticiário da semana. Provavelmente, este foi o mais alto e último ato da campanha de Bolsonaro. O magistrado incorporou-se, se é que já não o havia feito antes, de corpo e alma ao projeto político do presidente eleito. Na chegada, mostrando sua disposição para jogar para o time, perdoou Onyx Lorenzoni pelas propinas recebidas. Com certeza, o veterinário não será o único a receber o tratamento complacente reservado aos amigos que, imediatamente, deixam de ser brasileiros como os demais. Como declarou Bolsonaro no hospital, a questão central é a ideologia, não a corrupção.

O antipetismo radical e o conservadorismo moralista colocaram o capitão e o magistrado no mesmo barco. Moro não mostrou qualquer dificuldade para apoiar as propostas de Bolsonaro para a área da segurança pública, área em que se dará o verdadeiro combate ao crime organizado. Moro declarou ser favorável à redução da idade penal, ao porte de armas por civis e ao relaxamento do excludente de ilicitude.

Este último item é a mola mestra da proposta de Bolsonaro para a segurança pública. Seu ponto de partida se encontra na declaração do General Heleno, para quem "direitos humanos são para humanos direitos. Essa percepção muitas vezes não tem acontecido. Estamos deixando a desejar no combate à criminalidade". Ou seja, há dois tipos de cidadãos, os direitos e os 'vagabundos' e a aplicação da lei deve levar em conta esta distinção fundamental. Aceita tal premissa, segue a conclusão de Wilson Witzel: "Também tem de morrer. Está de fuzil? Tem de ser abatido". A visão de Bolsonaro - basta ver suas manifestações sobre a chacina da Candelária - segue a mesma toada.

Guardadas as devidas proporções, estes são os princípios que Moro usou ao privilegiar prisões preventivas como estratégia de combate à corrupção. Se o juiz está convencido do crime, não há porque adiar a execução da pena, pois tudo que resta à defesa é recorrer a chicanas legais para protelar a decretação da prisão. A possibilidade de o juiz formar juízo equivocado e agir de forma arbitrária é desconsiderada. E, no caso da Lava Jato, esta convicção passou a ser compartilhada com a Polícia Federal, como mostram os casos movidos contra as universidades federais de Santa Catarina e Minas Gerais.

Bolsonaro e os governadores eleitos no Rio e São Paulo querem que princípios análogos orientem a ação da polícia no combate à criminalidade. A premissa básica é a mesma: tudo que restaria aos 'vagabundos' seria a protelação da execução de suas penas. A diferença, contudo, é que caberá à autoridade policial fazer o julgamento e definir a pena que, no limite, pode ser a execução sumária. Em uma palavra, 'vagabundos' mereceriam ser tratados como cidadãos de segunda classe e como tais, na visão de Witzel, passíveis de serem abatidos com "tiros na cabecinha".

Moro classificou esta e outras ideias do presidente eleito e seus aliados como moderadas e razoáveis. Ao fazê-lo, deixou claro que sua adesão ao governo tem raízes profundas, que é um conservador convicto e engajado e que, enquanto tal, defende dotar de poderes excepcionais as autoridades encarregadas de reprimir o crime organizado.

Ou seja, Moro e os conservadores a quem aceitou servir desconsideram a conhecida máxima liberal, aquela que diz que o poder corrompe e que o poder absoluto corrompe de maneira absoluta. A proposta Bolsonaro para a segurança pública, em última análise, dota a autoridade policial de um poder ilimitado. Não há um pingo de razão e moderação neste tipo de proposta. Antes o contrário.

Não é a primeira vez que se ouvem brados vindos do Ipiranga. No de 1822, o conservadorismo autoritário prevaleceu sobre os princípios liberais.

*Fernando Limongi é professor do DCP/USP, da EESP-FGV e pesquisador do Cebrap.


Fernando Limongi: Anos de chumbo

Aos derrotados cabe cobrar dos eleitos respeito às leis

"Ninguém poderia esperar que um candidato marxista venceria uma eleição pelo voto universal, secreto e burguês." Esta, a manchete do conservador "El Mercúrio" após a vitória de Salvador Allende no segundo turno da eleição presidencial chilena de 1970.

Urnas continuam a produzir resultados inesperados, difíceis de tragar para os derrotados. É da natureza da democracia: nenhuma opção pode ser descartada de antemão. O eleitor é soberano e não precisa explicar porque fez esta ou aquela escolha.

O paradoxal é que Bolsonaro foi eleito por um método pelo qual não tem o menor apreço. A sua rejeição à democracia vai além da desconfiança que nutre às urnas eletrônicas, que acredita serem programadas por petistas infiltrados no TSE e teleguiados por uma central sediada no Equador. A rejeição é mais profunda: Bolsonaro prefere um regime militar.

Em um de seus últimos programas de TV, o locutor afirmou que o governo Bolsonaro corrigiria os erros dos últimos 30 anos. Ou seja, os desacertos começaram quando os militares cederam o poder aos civis e a Constituição foi reescrita. A rejeição ao PT é parte da condenação do regime no qual o partido cresceu e chegou ao poder. Quando entrou na política, Bolsonaro queria fuzilar FHC.

Na cabeça do presidente eleito, formatada nos anos 60 do século passado, corrupção e dissolução moral seriam traços indissociáveis de regimes democráticos. O transplante do discurso da Guerra Fria para o mundo atual pediu algumas adaptações, mas o ideário do capitão continua pautado pelo "perigo vermelho". Nas suas categorias, esquerdistas não passam de vagabundos, isto é, merecem o mesmo tratamento que bandidos. Foi isto que prometeu fazer ao discursar para seus seguidores reunidos na Paulista.

Eduardo Bolsonaro, seu filho e deputado reeleito, pelo que disse em vídeo vazado, não dispensaria tratamento diverso ao Supremo Tribunal Federal, se este viesse a criar embaraços. Para os Bolsonaro, não há nada que não possa ser resolvido por cabos e sargentos armados - e isto sem querer desmerecer cabos e sargentos, apressou-se em esclarecer o deputado reeleito. Para dizer o mínimo, Eduardo Bolsonaro desaprova delicadezas e requintes próprios às relações civis. O cartão de visitas do deputado vem com os dizeres: "E aí, vai encarar?".

Os excessos verbais de domingo retrasado e o vídeo do filho custaram alguns votos a Bolsonaro, como as pesquisas do meio da semana captaram. Foi o que bastou para que o capitão adaptasse seu discurso, visando garantir a vitória. Em entrevista, pregou a conciliação, afirmando que governará para todos, que nunca lhe havia passado pela cabeça perseguir ninguém.

O episódio revela o oportunismo eleitoral do capitão. Não há razão alguma para acreditar no "Bolsonaro paz e amor" do meio da semana. Quando sincero, quando não calcula votos a ganhar, o capitão diz que vai varrer do mapa todos os que não rezam por sua cartilha. Foi isto que ensinou ao filho que, por sua vez, passou a mensagem adiante aos seus estudantes. É assim que, de acordo com o credo do presidente eleito, autoridades deveriam proceder.

No início da disputa, Bolsonaro não mostrou qualquer disposição para moderar seu discurso e fazer concessões. Entrevistado no "Roda Viva", fez questão de declarar, entre risos, sua idolatria por um torturador. Em geral, candidatos radicais não ganham eleições. Sem moderação, sem conquistar o centro, sem acordos e concessões, não se obtém a maioria dos votos. Bolsonaro não fez uma coisa nem outra e, ainda assim, venceu a eleição.

Só há uma explicação para o paradoxo: o candidato foi favorecido pelo atentado que lhe garantiu exposição na mídia sem fazer campanha. Foi um presente, uma dádiva salvadora. Bolsonaro cresceu nas pesquisas enquanto lutava pela vida em uma cama de hospital.

Foi silenciado pelas circunstâncias. Sua única esperteza foi mandar que seus colaboradores fizessem o mesmo. E, assim, operando no modo silencioso, o candidato atraiu para si todas as insatisfações e rejeições acumuladas nos últimos anos.

Bolsonaro não reviu suas posições para obter votos, apenas as escondeu. A votação expressiva obtida no primeiro turno lhe garantiu a possibilidade de se manter calado, evitando debates e o compromisso com propostas concretas.

Assim, Bolsonaro chega à Presidência porque pode jogar parado, porque pode deixar o que realmente defende debaixo do tapete. Perdeu votos quando sentiu a faixa no ombro e deixou de esconder o que pensa e o que pretende fazer. Não precisou fazer concessões para ganhar e não será após a vitória que encontrará razões para fazê-lo.

Não há pílula a dourar. O resultado da eleição é o anúncio de um desastre. Assumirá a Presidência um cidadão sem qualquer preparo para o exercício do cargo e que chancela em gênero, número e grau as palavras que seu filho pronunciou no vídeo vazado. Este, o presidente escolhido para exercer o poder por quatro anos.

O pequeno grupo que o cerca não oferece garantias de que a sobriedade e a ponderação prevalecerão. Pouco se sabe sobre seus auxiliares e menos ainda das propostas concretas que defendem. A revoada dos usuais amigos dos amigos em busca de influência junto ao governo já começou. Está aberta a temporada de captura da máquina pública pelos interesses organizados.

Quanto à economia, sabe-se apenas que o candidato contratou um guru para conquistar a simpatia do mercado. Gurus, como também se sabe, vendem terrenos no paraíso para conquistar seguidores. Para gerir a economia pede-se mais do que a fé nas leis de mercado e a adesão à responsabilidade fiscal.

Serão anos difíceis. A alternativa que resta aos derrotados é cobrar dos governantes eleitos serenidade e respeito às leis. Só assim, daqui a quatro anos, encontraremos urnas, e não cabos e sargentos, nas seções eleitorais.

*Fernando Limongi é professor do DCP/USP, da EESP-FGV e pesquisador do Cebrap.


Fernando Limongi: O príncipe e a fera tosca

A vitória dos conservadores, em boa medida, é por W.O

Os conservadores derrotarão os progressistas, pois somente um erro grosseiro tiraria a vitória de Bolsonaro. Esta é a forma como Luiz Philippe de Orleans e Bragança, em artigo publicado na Folha de São Paulo, caracteriza as eleições do próximo domingo. O deputado federal eleito pelo PSL se identifica como 'tetraneto de D. Pedro II, administrador, empresário e cientista político pela Universidade de Stanford (EUA), com pós-graduação pelo Insead (França)'. Como se sabe, o tetraneto foi cogitado para compor chapa com Bolsonaro, mas foi preterido para neutralizar possíveis tentativas de impeachment.

No passado, explica o tetraneto, os progressistas obtiveram sucessivas vitórias. "Desde 1995, com o governo FHC, que ideias progressistas vêm galgando espaço no poder público." O recuo dos conservadores teria se intensificado, mas não iniciado, durantes os governos Lula e Dilma. Ou seja, para o príncipe conservador, FHC, Lula e Dilma seriam farinhas do mesmo saco.

"Vivemos o esgotamento da hegemonia progressista", afirma o tetraneto. A ascensão de Bolsonaro à presidência será o fim de uma era, uma era marcada por uma "busca aflita pela justiça social". Mas se a busca pela justiça será abandonada, o que teremos no lugar? Qual o programa dos conservadores?

Do ponto de vista eleitoral, os progressistas foram postos para correr. Nos estados do sul, sudeste e centro-oeste não há progressista com chances de vitória. Não faltam aprendizes e oportunistas prontos a se colar a Bolsonaro para chegar ao poder. Associar-se aos progressistas, ao PT ou ao PSDB, é pedir para perder.

Mas é preciso ter clareza. Os progressistas estão sendo derrotados por um time desconjuntado, mal ajambrado, reunido às pressas, sem consistência, formado por herdeiros presuntivos, artistas pornôs, jornalistas com credenciais contestadas, juízes com histórias mal contadas etc. Para os mais velhos, a referência ao Exército Brancaleone é inevitável.

O fato é: não se perde para adversário tão improvisado e fraco sem cometer erros e mais erros. Witzels, Zemas e Dórias não teriam se destacado sem o acúmulo de erros das lideranças políticas. Para ser claro: o que estamos observando é antes a derrota dos progressistas do que a vitória dos conservadores. Em boa medida, é uma vitória por W.O.

Basta lembrar que, não mais do que dois anos atrás, Bolsonaro disputou a presidência da Câmara dos Deputados e recebeu exatos quatro votos. Nem seu filho se deu ao trabalho de comparecer para sufragá-lo. Até muito pouco atrás, o capitão era um figura politica tão folclórica quanto a do Cabo Benevenuto Daciolo. Sua ascensão meteórica se deve ao vazio criado pela luta aberta entre os progressistas, ao suicídio coletivo que se esmeraram para produzir. Não fosse assim e Bolsonaro não teria crescido justamente quando parou de fazer campanha.

A chance oferecida pelo segundo turno não foi aproveitada. A briga nas hostes progressistas não parou. Como crianças, cada lado pede que o outro reconheça sua culpa, que foi que ele que começou e que, sem as necessárias desculpas, não fará as pazes. A infantilidade reinante chega a ser patética. E a briga se estendeu para o interior de cada bloco, como atestam as acusações públicas de Alckmin a Dória e as de Cid Gomes ao PT.

Já faz um bom tempo que os progressistas não se veem como integrantes de um mesmo grupo, mas seus adversários sabem bem quem estão derrotando. Como afirmou o tetraneto, sairão de cenas os que acreditam que as "leis devem ser criadas para fazer justiça social e buscar atingir a igualdade sempre que possível em todos os aspectos da sociedade."

O príncipe está coberto de razão: foram estas as ideias mestras a ditar as políticas públicas e a ação do Estado desde a redemocratização. É contra este movimento, é contra esta direção dada às politicas que Bolsonaro se insurge.

O tetraneto, contudo, não foi capaz apresentar o programa positivo dos conservadores. O máximo que conseguiu foi afirmar sua crença na existência de uma ordem social natural: "O aprendizado para todos é que os avanços da sociedade se devem mais em função das ações da própria sociedade, e não dos mandos e desmandos da legislação."

Sabe-se lá o que o príncipe quis dizer com isto, mas sabe-se com certeza que a ordem social nada tem de natural, que conflitos sociais não se resolvem 'sem os mandos e desmandos da lei.'

O fato é que o discurso de Bolsonaro vai muito além deste conservadorismo edulcorado. O tetraneto lança mão de perguntas retóricas para enfrentar a questão: "Mas será que o medo dos progressistas é justificável? Veremos um retrocesso nas nossas relações sociais com os conservadores no poder?"

O príncipe acredita que os temores de retrocesso como a intolerância e o recurso à violência contra adversários seriam infundados: "O conservadorismo não é intolerante muito menos retrógrado; é simplesmente natural e evolui conforme as gerações de maneira livre."

De novo, difícil saber o que seja evoluir de maneira livre, mas sabe-se que um dos cotados a ocupar o Ministério da Educação acredita que a evolução natural das espécies deve ser banida das escolas. Poderia haver evidência mais clara de retrocesso? Não sei se Dom Pedro leu Darwin, mas sabe-se que era um entusiasta da ciência.

O fato é que quem forma juízos a partir das informações disponíveis tem razões de sobra para temer. O líder dos conservadores está longe de ser o moderado razoável que o tetraneto procura vender. Basta lembrar que, no Roda Viva, já em campanha, Bolsonaro fez questão de registar sua idolatria ao Coronel Brilhante Ustra. Precisa mais? Há algo mais bárbaro e repugnante que a tortura?

No mundo do faz de conta, beijos de princesas castas transformam sapos horrendos em príncipes garbosos. No mundo real, não há varinha de condão que transforme feras toscas em seres civilizados. O retrocesso será inevitável.

*Fernando Limongi é professor do DCP/USP, da EESP-FGV e pesquisador do Cebrap.