Fernando Gabeira

Fernando Gabeira: A escolha dos pobres

Apesar do esforço dos deputados, Bolsonaro capitalizou sozinho a ajuda emergencial

A divulgação da pesquisa com aumento da popularidade de Bolsonaro não deveria surpreender tanto. A negação da pandemia de coronavírus, para muitos de nós, parecia um fator de desgaste. Mas nem isso colou, pois 47% dos entrevistados consideram que Bolsonaro não tem culpa pelo fracasso nacional diante da pandemia.

O ponto elementar do aumento do prestígio de Bolsonaro é a ajuda emergencial. No início queria que fosse de R$ 200, mas as negociações com o Congresso acabaram elevando-a para R$ 600. Apesar do esforço dos deputados, Bolsonaro capitalizou sozinho essa extraordinária transferência de renda, que salvou muita gente e em alguns pontos do Nordeste melhorou as condições de vida.

Isso tudo, num momento em que discutimos a democracia e seus limites, deveria ser visto com bastante calma. Em primeiro lugar, é comum em todos os estudos da democracia apontar um apoio maior ao governo em regiões que dependem da assistência oficial. Tem sido assim no Nordeste. De modo geral, é a última região onde os governos perdem força.

Os anos em que a esquerda esteve no poder deram-lhe a sensação de que estava selada entre ela e a população mais pobre uma aliança histórica irreversível. Há muita ilusão nessa ideia. Alguns críticos da esquerda afirmam que ela errou por considerar apenas o aspecto fisiológico da aliança, sem avançar na educação política. Pessoalmente, acho que errou apenas ao enfatizar as melhorias no aumento de um tipo de consumo, deixando de lado alguns avanços que seriam vitais para os pobres, como, por exemplo, o saneamento básico.

Uma questão que se coloca para a democracia é até que ponto as limitações econômicas não transformam em fantasia a ideia de que as pessoas escolhem livremente seu caminho. Ou, em outras palavras, enquanto houver pessoas abaixo da linha de pobreza não há escolha para elas senão tentar escapar dela.

As pesquisas fora do Brasil que mostram a decadência da democracia entre gente da classe média e jovens são eloquentes nesse sentido. Em muitos lugares há uma tendência crescente a aceitar um governo autoritário e mesmo uma ditadura militar. Não é a extrema pobreza que produz esse sentimento. Em muitos casos a decadência da adesão democrática se dá apenas porque foi interrompido o processo de melhoria de vida. Em outros casos, os entrevistados dizem que estão bem de vida, mas abandonam a crença na democracia porque uma cidade vizinha ficou pobre ou porque um bairro próximo apresenta altos níveis de violência.

Em síntese, se setores da classe média orientam suas posições por um pressentimento quanto ao futuro, como questionar que pessoas em extrema dificuldade canalizem seu apoio político diante de algo mais essencial, que é a sobrevivência física?

Certamente outras políticas públicas têm peso na vida dos mais pobres. A de saúde é uma delas. Acontece que neste período de pandemia, apesar da corrupção, houve aumento de vagas em hospitais e uma sensação de que a maioria dos pacientes foi atendida. Alguns erros, como a não hospitalização mais precoce, não chegaram a ser sentidos com clareza. Muito menos a incidência maior de mortes em regiões mais pobres foi politizada, uma vez que a vimos com a habitual resignação diante de problemas estruturais.

Outra política que influencia a vida das pessoas mais pobres é a de educação. No período da pandemia o setor ficou congelado. Mesmo a educação privada sofreu o impacto e conseguiu se sair melhor com o trabalho a distância. Mas também essa diferença foi atenuada pelo fato de que nos acostumamos com o desnível estrutural entre o ensino particular e o público.

Um dos pontos que não foram articulados na análise da pesquisa é até que ponto a política assistencial de Bolsonaro será sustentável. Os dados que complementam a análise mostram que há uma previsão de queda de 11% na atividade econômica do segundo semestre. O País poderá com isso entrar em recessão.

Em que bases o governo consegue ser popular numa recessão? Precisaria de muito mais estudo para formular a saída. O único exemplo de governo que se sustenta apesar do avanço da pobreza é o da Venezuela. Ali se combinam dois fatores importantes. Uma parte da população se sente contemplada. E as Forças Armadas, sócias do chavismo e das benesses do governo, são de uma fidelidade até o momento inabalável.

A decisão de destinar mais dinheiro à Defesa do que à Educação e à Saúde revela que o caminho de se associar às Forcas Armadas Bolsonaro adotou desde o início. O que há de novidade é a ajuda assistencial, que ele sempre considerou uma forma de a esquerda comprar votos, passar a ser a principal esperança de sua sobrevivência política.

A esquerda tem dificuldade de aceitar que as massas apoiem a direita por causa da ajuda assistencial. E a direita sempre atacou o Bolsa Família como se fosse algo que entorpecia não só a escolha política, como o desejo de trabalhar e empreender.

Parece que, em certos casos, pouco importa ser de esquerda ou de direita, a história já está previamente escrita.

*Jornalista


Fernando Gabeira: A metamorfose do mito

Aparentemente, caminho de Bolsonaro é sem pedras. Congresso dá apoio em troca de cargos, eleitores gratos ao novo benfeitor

Se a frase não tivesse uma conotação tão negativa para ele e seus seguidores, diria que Bolsonaro saiu do armário. Melhor então dizer que mostrou sua face e, se quiserem imagem mais antiga, rasgou a fantasia.

Creio que um marco temporal da metamorfose foi a prisão de Fabrício Queiroz. Uma dose de criptonita na veia do mito de milhões de brasileiros que contavam com sua força para derrubar o velho regime e acabar com a corrupção.

Naquele manhã, Bolsonaro despertou não como o personagem de Kafka, sentindo-se uma barata. Percebeu que era apenas mais um animal na floresta de Brasília. Não era do mesmo tipo dos que se financiam com dinheiro de empresas. Mas sabia que seu esquema ficaria evidente para qualquer analista político, independentemente do grau de miopia.

Vários mandatos na família, pouco mais de uma centena de funcionários, uma boa parte fantasma, e estava resolvido o problema financeiro de campanha e melhoria de vida, capitalizando em negócios imobiliários. Era preciso reencontrar o Centrão, um grupo do qual nunca esteve distante. Seus partidos ao longo dos 28 anos de mandato sempre foram fisiológicos. E o Centrão não significa apenas garantia contra impeachment. Há ali toda uma sabedoria de como se dotar de uma pele de elefante para se escudar das críticas.

Bolsonaro sempre foi um combatente ideológico. Ele só adotou o tema da corrupção quando percebeu que essa era a grande fragilidade da esquerda. Nesse ponto, tentei até dizer a ele nas entrelinhas de uma entrevista, Bolsonaro não difere do movimento militar de 64. Eles falavam em combater a subversão e a corrupção. Mas terminaram apoiando Paulo Maluf, numa tentativa de derrotar Tancredo Neves. É um tipo de pensamento onde existem os nossos corruptos e os deles.

A investida contra Moro por não conseguir intervir na PF do Rio era destinada exatamente a evitar que sua família e amigo fossem incomodados. Não adiantou, Fabrício Queiroz foi incomodado no refúgio de Atibaia em junho.

Agora não há mais mistério. Bolsonaro abandona a fantasia e sabe que perde também uma fração de eleitores que acreditava em seu programa e consegue constatar que foi para o espaço. Somadas às perdas com o desastroso negacionismo diante do coronavírus, era preciso buscar outro norte, ou outro Nordeste para sobreviver. É uma fórmula consagrada pelas pesquisas de popularidade.

Um instrumento sempre denunciado pela direita como uma forma de compra de eleitores, o Bolsa Família ressurge como tábua de salvação. Por que não inventar um Bolsa Família para chamar de seu?

E lá se vai Bolsonaro com um chapéu fake de boiadeiro cavalgando seu novo destino. Aparentemente, um caminho sem pedras. O Congresso dando apoio em troca de cargos, eleitores agradecidos ao seu novo benfeitor. Mas há nuvens no horizonte. Onde conseguir dinheiro para financiar esse projeto de reeleição que, na aparência, é um projeto social? Pedaladas no Orçamento podem resultar em impeachment. Mas nem sempre.

Será preciso jogar fora duas importantes bandeiras: a racionalização da máquina e a venda de estatais improdutivas. Esta semana já foram para o espaço os responsáveis por elas no governo. Os pilotos saltaram do avião. Como supor que seja possível ratear cargos nas estatais e, simultaneamente, pedir que as forças políticas aceitem sua passagem para a iniciativa privada?

Um presidente apoiado no Centrão não será novidade. Bolsonaro não se interessa tanto pelo Líbano quanto pelas fórmulas do MDB de Temer para manter a fidelidade de deputados em caso de processo. A tendência será a de um governo como os outros, apoiado no toma lá dá cá, e estourando o teto de gastos para sobreviver politicamente.

O perigo não é só a bancarrota. A própria classe média pode de novo se enfurecer e surgir por aí um novo salvador para implodir o sistema e acabar com a corrupção. Conheço esse filme desde as últimas décadas do século passado. Collor, o caçador de marajás, fracassou; Lula, prometendo introduzir a ética na política, acabou se desvencilhando dela.

Não eximo ninguém de sua responsabilidade pessoal. Mas essa armadilha histórica da qual não conseguimos escapar merecia uma reflexão. Nossas elites são intrinsecamente desonestas ou também há algo errado com nosso sistema político?

A sucessão de salvadores da pátria não é um fenômeno qualquer. Com Bolsonaro, ela nos jogou nos perigosos limites da democracia.


Fernando Gabeira: Fúnebre marcha dos 100 mil

Resposta à pandemia nos convida a repensar o país

Desde o início da quarentena escrevo um diário. Nele, apesar da pressa, incorreções e algumas bobagens, analiso os fatos desses meses de coronavírus.

Não sinto tanta necessidade de escrever sobre isto, mais do que faço diariamente. Mas, no momento em que alcançamos a marca de 100 mil mortos, é importante dizer algo fora dos limites. O número redondo lembra-me dos anos 60, quando marchávamos orgulhosamente contra o governo militar.

Os 100 mil de hoje representam também um protesto, só que desta vez contra o descaso e retumbante fracasso de nossa política nacional contra a Covid-19.

O ideal seria sairmos às ruas, os sobreviventes, para protestar por eles. A natureza da pandemia nos obrigou a uma quarentena. Escrevi no diário algumas vezes como isso não apenas entorpeceu nossos músculos, mas mudou a maneira como nos vemos.

O país se transformou num imenso centro espírita, e nós baixamos nos computadores para sessões de conversa que chamamos de lives, mas poderiam também ser chamadas de deads.

Parece que muitos de nós vivem numa parte mal iluminada da eternidade, aparecemos para a conversa, desligamos o aparelho e evaporamos. Não se acaba mais em pizza como antigamente, quer dizer, num descontraído jantar após a reunião, o debate ou conferência.

Leio no livro de Churchill que os piores momentos de nossa vida são aqueles que não aconteceram, aqueles que nos mantiveram preocupados, levaram nosso sono e nunca se apresentaram de fato em nossas vidas.

Isso corresponde ao que diz um personagem de Borges diante da morte: é menos duro enfrentar um perigo do que imaginá-lo e aguardá-lo durante muito tempo.

A Covid-19, nesse sentido, é a pior doença que nunca tive. Certamente há outras mais graves e devastadoras, mas nunca perdi um minuto preocupado com elas.

Os índios no Amapá a consideram uma espécie de doença espiritual, por causa da invisibilidade do vírus. Mas nem por isso deixam de temê-la.

Desde o princípio, luta-se contra a negação do governo. Era apenas uma gripezinha e afirmávamos que, ao contrário, era uma perigosa pandemia. Surgiram os mortos, e o governo achou que seu número estava superdimensionado, diante de todas as evidências de que havia subnotificacão.

Um dos luminares do governo calculou que morreram apenas 800 pessoas e continuou duvidando dos fatos, mesmo quando os mortos já eram 80 mil.

Duvidaram dos caixões, que para eles estavam vazios ou cheios de pedras. Duvidaram do número de covas, vetaram uma dezena de artigos na lei de proteção aos povos indígenas.

Seguimos fazendo lives como ectoplasmas que reaparecem no território virtual para puxar a perna dos vivos que, sem máscara, montados a cavalo, celebravam seu escandaloso idílio com a morte. E daí?

Os tribunais de dentro e de fora do Brasil terão material por muito tempo. A suposição de que essas coisas acontecem e são esquecidas é falsa. Uma política de negação que produziu milhares de mortos, índios, grávidas, é algo que ficará na história e acabará desabando sobre seus autores, por mais velhos e combalidos que estejam no momento em que forem alcançados.

Vivemos num país de curandeiros. Bolsonaro passa seus dias mostrando a cloroquina para todos os seres humanos e animais que encontra pela frente. O ministro da Ciência e Tecnologia gasta 8 milhões para pesquisar um vermífugo chamado Annita, e até audiências foram anunciadas para discutir o poder do alho cru.

E se você perde a paciência, elegância, e pergunta: e naquele lugar, não vai nada? Eles responderão com tranquilidade:

— Algumas doses de ozônio e um cateter bem fino.

Aos poucos vamos saindo da toca, meio ressabiados, contentes em ver quem sobreviveu. Mas a maneira como tratamos a pandemia, as condições de desigualdade em que a vivemos, uns com água e esgoto, outros não, uns com casa confortável, outros espremidos nos barracos, tudo isso coloca em questão o próprio sentido da sobrevivência.

Apesar da solidariedade, do desprendimento dos trabalhadores em saúde, a resposta brasileira à pandemia nos convida a repensar o país.

E responder em conjunto a essa fúnebre marcha dos 100 mil.


Fernando Gabeira: Os caminhos do tecnopopulismo

Sem a cloroquina econômica, com o País mais pobre, Bolsonaro cavalgará para onde?

De modo geral já se conhece como triunfam os populistas. Interpretam as frustrações populares em tempos de crise econômica. Criticam o distanciamento das elites e tendem a valorizar a democracia direta: acham que, uma vez submetidos a escrutínio popular, toda a sua agenda é majoritária.

Ainda estamos por construir uma teoria sobre o declínio do populismo porque, em termos históricos, ele acabou de se instalar em bases novas, num contexto transformado pela revolução digital. A pandemia deu-nos uma pista.

Populistas como Trump e Bolsonaro tendem a afirmar que os problemas têm soluções simples. Diante da complexidade do novo coronavírus, não conseguiram reagir, exceto pela negação.

O fato de ambos se terem apegado à cloroquina como uma saída mágica é, de certa forma, compreensível. A existência de um remédio eficaz colocaria um ponto final em todo o drama.

Mas, como se diz no Brasil, o buraco era mais embaixo. A complexidade da pandemia exigia respostas nacionalmente integradas, aliança com a ciência médica, uma visão mais flexível de gastos na emergência, solidariedade pelo sofrimento das pessoas.

Tanto Trump como Bolsonaro foram incapazes de cumprir esse roteiro. A insensibilidade talvez seja o fator mais impactante no seu fracasso.

No entanto, a pandemia foi o elemento inesperado que precipitou a demonstração da falsidade da tese de que os problemas dos países são muito fáceis de resolver desde que se eleja o homem certo para o papel. Trump já sentiu os efeitos e corre o risco de ser derrotado nas eleições. Bolsonaro, também assustado, saiu em campanha eleitoral, apesar da distância no tempo.

Nem sempre há pandemias. Porém a rapidez com que os acontecimentos se desenrolam é um fator que sempre ajudará a demonstrar que as soluções não são simples e isso encurtará a vida política dos populistas.

No caso brasileiro, existe um fator tradicional. Quase todos os eleitos prometem combater a corrupção. Alguns, no curso de seu governo, como foi o caso de Collor e mesmo de Lula, acabam sendo envolvidos em denúncias.

Bolsonaro trazia um potencial explosivo na sua prática anterior à chegada ao poder. É o método que utilizou para contratar funcionários em seu gabinete e nos de seus filhos.

As investigações prosseguem no seu mandato. Não têm o poder de derrubá-lo. Mas o obrigam a negociações, a buscar apoio em juízes que certamente pedirão algo em troca por seus favores. O resultado disso é que, por necessidade, Bolsonaro tem de se conciliar com as forças que, na campanha eleitoral, ele insinuou que combateria.

De modo geral, o populismo se escora na democracia direta e afirma que para realizá-la é preciso remover os obstáculos institucionais. Bolsonaro não conseguiu demolir o STF e o Congresso. A prisão de Fabrício Queiroz foi um marco que o fez compreender que precisaria de ambos. Daí partiu para um acordo com o Centrão no Congresso e a distribuição de cargos, como sempre se fez no Brasil.

A bandeira anticorrupção foi para o espaço. Só restava agora empunhá-la contra seus adversários, governadores que também são potenciais candidatos à Presidência.

Ao compreender que o movimento não passaria numa área do eleitorado, Bolsonaro precipitou o mergulho no passado. Não mais combateria a corrupção, exceto na retórica, mas iria apoiar-se nos setores mais fisiológicos do Congresso e concluiria sua transição buscando novos eleitores, escorado no clientelismo, e não mais em demandas de coerência. Sua viagem ao Nordeste, montado a cavalo e usando um chapéu fake de vaqueiro, é a expressão visual de sua metamorfose.

Outro fator que tem peso é a relação dos tecnopopulistas com a imprensa profissional. Eles a incluem no sistema decadente que pretendem destruir. Consideram-na um lixo desprezível e articulam sua comunicação por meio das redes sociais e pequenos veículos que possam comprar com sua verba publicitária. A tática é insultá-la sempre que possível, produzir fatos e oportunidades negativas que possam despertar sua indignação, imperando em suas páginas e telas pela crítica que provocam.

Há duas brechas nessa tática. A primeira delas é que a complexidade da pandemia revitalizou a importância de uma imprensa profissional, associada à ciência, produzindo informações confiáveis para atenuar o desastre sanitário. A segunda brecha é também vital. Apostar apenas nas redes sociais como um espaço em que vale tudo.

Não é mais tão fácil como no passado. Grandes empresas ameaçam retirar sua publicidade se não houver controle do discurso do ódio. E agências especializadas vasculham os perfis inautênticos. O Facebook já derrubou muitos ligados à defesa de Bolsonaro e ataques aos seus adversários.

Ainda faltam elementos essenciais nessa análise. Um deles é a própria economia. O populismo floresceu porque há muito não se sentia um crescimento real do padrão de vida. Enquanto a vida melhorava, era tolerável a relativa distância das elites em relação ao povo. Sem a cloroquina econômica, com o País mais pobre, Bolsonaro cavalgará para onde?


Fernando Gabeira: Fake news, injúria e conspiração

Decretaram minha morte e reclamam por eu não ter levado a sentença a sério

Notícias falsas, injúrias, teorias da conspiração, quase todas as semanas, sobem ao topo da pauta política no Brasil.

Nas redes, muito se falou do ataque a Felipe Neto, depois de sua aparição no “New York Times” criticando o governo Bolsonaro. A velha acusação aos comunistas, comem criancinhas, ganhou uma versão atualizada contra Felipe.

No campo editorial, tive a oportunidade de ler “A máquina do ódio”, um livro de Patrícia Campos Mello sobre fake news e violência digital no mundo. Ela conta, entre outros casos, a carga injuriosa que sofreu quando denunciou manipulação digital nas eleições de 2018.

Nem sempre foi assim no Brasil. Nesses tristes momentos de tecnopopulismo, costumo dar uma olhada na bela coletânea intitulada “Duelos no serpentário”, coligida por Alexei Bueno e George Ermakoff.

Trata-se de uma antologia de polêmicas intelectuais no Brasil, de 1850 a 1950. Havia alguma ironia, insultos aqui e ali, mas eles passavam dias, noites, escrevendo suas teses, sob a luz de lamparinas. O problema era convencer com ideias.

A polêmica gramatical entre Rui Barbosa e Carneiro Ribeiro sobre o texto do Código Civil, se impressa no conjunto, daria um livro de mil páginas, capaz de entediar gerações inteiras de estudantes. Houve polêmicas para definir se o cinema falado era melhor que o cinema mudo. Vinicius de Moraes participou dela.

Em relação a esse período da história, talvez tenhamos regredido às medievais canções de maldizer e escárnio. Ou, mais que isso, entramos num campo que só o estudo da injúria pode abarcar.

Jorge Luis Borges escreveu a bela “História universal da infâmia”. Nas suas obras completas é possível encontrar também algumas notas sobre a injúria, uma categoria específica de agressão.

É um texto curto, intitulado “Arte da injúria”. Segundo Borges, o agressor deverá saber, conforme advertem os policiais da Scotland Yard, que qualquer palavra que diga pode ser voltada contra ele.

O sonho dele, portanto, é ser invulnerável. Isso foi escrito na década dos 30, muito antes da internet, que trouxe o conforto do anonimato.

O roteiro da injúria em Borges passa pelas ruas de Buenos Aires. O agressor sempre adivinha a profissão da mãe dos outros e quer que mudem para um certo lugar que pode ter diferentes nomes. Em português, é possível conciliar os dois tipos de injúria enviando a pessoa para um lugar que, em linguagem amenizada, é a ponte que partiu.

Ao longo de sua análise, Borges descobre que, nas “Mil e uma noites”, célebre texto árabe, há um xingamento que se tornou popular: cão.

E chega aos que parecem mais sofisticados e certeiros como este: “Sua esposa, cavalheiro, sob o pretexto de trabalhar num prostíbulo, vende artigos de contrabando”.

Borges destaca também a injúria mais esplêndida feita por alguém que não tinha contato com a literatura. Ele descreve um homem chamado Santos Chocano, dessa maneira: “Os deuses não consentiram que Santos Chocano desonrasse o patíbulo, nele morrendo. Aí está vivo, depois de ter fatigado a infâmia”. O personagem me lembra um pouco velhos políticos que ganham uma espécie de pele de elefante depois de tantas pancadas pela vida afora. Cansam até o xingamento.

Mas os insultos contra as pessoas que têm outra atividade costumam ser devastadores para suas relações familiares, de amizade e a própria autoestima. Sou solidário com elas e desejaria ver algo na lei que acabasse com a invulnerabilidade do agressor.

Pessoalmente, não guardo ressentimentos, sobretudo agora nessa idade. Não me ameaçam de morte, simplesmente afirmam que já morri e não me dei conta. Decretaram minha morte em algum momento do passado e reclamam por não ter levado a sentença a sério.

A idade também protege um pouco contra a repetição do mantra “viado e maconheiro". A maconha restou com alguma vitalidade. Sempre que escrevo algo que lhes desagrada ou parece estapafúrdio, dizem que fumei maconha estragada.

Ainda bem que sou de paz. Poderia acusá-los de apologia às drogas. Se as ideias estapafúrdias e equivocadas são fruto de maconha estragada, isso significa que a de boa qualidade traz limpidez e justiça ao pensamento.

Não se discute mais como antigamente. E eles estão com um enorme estoque de cloroquina para se preocupar com outra droga.

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Fernando Gabeira: Bibliotecas em chamas

Índios mais velhos são depositários do conhecimento, numa cultura oral

Escrever sobre índio é nadar contra a corrente porque os editores do passado achavam o tema um tédio, os políticos pensam que dá azar e, no cotidiano, costumamos chamar de programa de índio a algo desinteressante, sem graça.

O velho líder caiapó Raoni esteve internado em estado grave e teve alta. Não é Covid, mas a dor universal de perder a mulher com quem viveu muitos anos está derrubando o guerreiro.

Conheci Raoni em Altamira. Documentei sua amizade com o cantor Sting e com Anita Roddick, dona da Body Shop. Era uma segunda descoberta europeia dos índios brasileiros, reunidos ali para protestar contra a usina de Belo Monte. Agora os viam também como defensores da floresta.

Os viajantes do século XIX, meu tema de estudo, eram fascinados pela curiosidade de conhecê-los. O príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied e o grande pintor Rugendas, por exemplo, estiveram no Brasil, mas os procuravam em qualquer ponto do mundo novo. Max, desculpe tratá-lo com essa intimidade, navegou longamente pelos rios norte-americanos, contraiu escorbuto, mas não perdia a chance de conviver com os índios.

Rugendas sofreu um acidente na Argentina, um raio o atingiu. Desfigurado e com dores crônicas, sentiu a proximidade de índios, cobriu o rosto disforme com um manto negro, tomou uma dose de morfina e cavalgou alguns quilômetros para pintá-los. E que lindas cores reproduzia em seus desenhos.

O governo brasileiro acha que os índios devem ser integrados. Um pouco como o Weintraub, mas não tão agressivo como ele, que dizia odiar a expressão “povos indígenas”.

Na verdade, esse é um sonho de liquidação cultural. No momento em que a Covid-19 avança pelas aldeias, é também uma destruição física. Já morreram 500 e, de um modo geral, os mais velhos. São os depositários do conhecimento, numa cultura oral. O jornal “El País” descreveu precisamente essas mortes: é como se fossem inúmeras bibliotecas pegando fogo.

O governo não quer dar nem água potável para eles. Os ianomâmis e os ye’kwanas, lá na fronteira com a Venezuela, estão acossados por garimpeiros. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, já advertiu o governo brasileiro duas vezes. Na primeira, foi respondida apenas de uma forma muito geral, insatisfatória.

O fotógrafo Sebastião Salgado fez uma campanha para que os índios fossem protegidos na pandemia e pela expulsão dos invasores de suas terras.

Não repercutiu aqui como merecia. Apesar do que pensa o governo, a Constituição, em dois artigos, reconhece seus direitos não só culturais, como também territoriais.

O STF, através do ministro Luís Roberto Barroso, tenta fazer valer o texto da lei, e não os delírios destrutivos do governo. Creio que é necessário advertir para o que se passa lá fora e seus desdobramentos. A imagem do Brasil está desgastada pela política ambiental. E também pela política sanitária, considerada um desastre até pelo presidente das Filipinas, um exemplo asiático do modelo Bolsonaro.

Esses dois desgastes convergem na questão indígena, onde os temas sanitários e de defesa da Amazônia se associam.

Bolsonaro foi questionado no Tribunal Internacional pelo PDT pela sua omissão na pandemia. Como é de se esperar em nossa cultura, o partido esqueceu os índios em sua denúncia.

A única juíza brasileira que atuou no Tribunal Internacional, Sylvia Steiner, ao mostrar que o esforço do PDT não teria êxito, lembrou que a situação dos índios brasileiros era algo que poderia levar Bolsonaro ao banco dos réus em Haia.

De fato, o artigo que define genocídio prevê a destruição parcial ou total de uma etnia. Foi por causa disso que o Tribunal aceitou a acusação contra o presidente sudanês Omar al -Bashir.

É preciso um esforço nacional para evitar que a pandemia devaste as populações indígenas. Nossa transmissão de vírus e micróbios, algo que os aniquila desde os tempos coloniais, precisa ser controlada. Se isso acabar em Haia, sinto que nossa cultura também será julgada, por não termos conseguido deter o processo.

E quanto aos nossos animados militantes de direita, lembro que não adiantará insultar o Tribunal pela internet nem fazer grandes bonecos representando seus juízes. E os nervosos generais que ameaçam com golpe certamente não devem fazer planos para invadir a Holanda. Um oceano líquido e mental nos separa.


Fernando Gabeira: Os caminhos na tempestade

As coordenadas para tirar o Brasil da crise chocam-se com a visão de mundo de Bolsonaro

O foco de nossas discussões hoje no Brasil tem sido o governo: atacar ou defender o que está aí, arranjos para derrubar ou manter Bolsonaro de pé.

No entanto, há uma crise de grandes proporções no horizonte. Não importa quem estiver em Brasília, enfrentará um enorme desafio para simultaneamente amparar os mais vulneráveis e fazer o País andar.

Para o economista Armínio Fraga, é profundo o tamanho do buraco. Ele calcula que será necessário, em recursos, o equivalente a oito pontos do PIB para sairmos dessa.

Nesse ponto é que uma reflexão política pode ajudar. O governo segue dois caminhos perigosos. Ambos tornam a tarefa mais difícil.

A visão atrasada da política ambiental pode ser um obstáculo decisivo, pois consegue, ao mesmo tempo, afugentar investidores internacionais e desvalorizar os produtos brasileiros lá fora. Ou, no limite, até tornar alguns inviáveis.

A política sanitária negacionista completa esse quadro. O desempenho brasileiro no combate ao coronavírus também não ficará barato para a Nação. Pontualmente, o mercado da carne foi atingido. Mas o turismo dificilmente se recupera rápido. O fato de sermos uma região onde o vírus não é controlado significa inúmeros transtornos, que repercutem até na dificuldade do Flamengo de contratar um técnico de futebol no exterior.

A existência de um governo com essas características torna a tarefa de recuperação, com a demanda de recursos que implica, gigantesca, quase impossível.

O ponto central no momento é a reforma tributária. O pulo do gato é um imposto sobre transações eletrônicas, bastante aceleradas sobretudo depois que a pandemia se instalou no País. É uma CPMF adaptada às condições da nova situação criada pelo coronavírus e que, de certa maneira, já se verificava como consequência da revolução digital.

Aí reside outro nó político. Como convencer a sociedade, devastada pela crise sanitária, a pagar um novo imposto, ela que já o recusou em outras circunstâncias?

A única possibilidade de atenuar a resistência será um esforço visível do governo para reduzir os custos da máquina. Nos cálculos de Armínio Fraga, isso poderia representar três pontos do PIB, sem perda de eficácia da máquina.

A própria ordem dos fatores dificulta essa saída. O governo, primeiro, pensa em introduzir um novo imposto. Só depois, possivelmente, falará em reforma administrativa. Mesmo assim, não se conhece em detalhes o que ele pensa sobre isso. Haveria mesmo uma racionalização convincente da máquina, uma certeza cristalina de custos menores pela prestação dos serviços públicos?

A previsão é de que, mesmo sem orçamento de guerra em 2021, o governo seja pressionado a gastar. A dívida no longo prazo torna-se problemática e a tendência será buscar dinheiro com prazos cada vez mais curtos.

Tudo isso é um grande problema no médio prazo. Uma razão a mais para pedir uma verdadeira política ambiental, uma guinada no negacionismo sanitário, uma ampla reforma da máquina administrativa.

Mas que sucesso teriam essas demandas num governo que cultiva o isolacionismo e a negação?

Breve teremos eleições nos Estados Unidos. Existe uma possibilidade concreta de vitória de Joe Biden. Bolsonaro embarcou cegamente na canoa de Donald Trump.

Esse deslumbramento provinciano é inadequado para um presidente do Brasil. Mas agora já aconteceu. Existem quadros na diplomacia brasileira que poderiam atenuar o impacto negativo dessa política. Mas o atual ministro é o símbolo dessa política que vê em Trump a salvação dos valores ocidentais – embora quase todos saibamos que, se dependessem de Trump, os valores ocidentais já estavam destruídos.

Quando articulo todos esses elementos de análise, concluo que dificilmente este governo tem condições de superar a crise no horizonte.

Derrubá-lo num movimento traumático abalaria em muitos dos seus eleitores a confiança na democracia. Daí não vejo outro caminho senão abordar a crise com propostas positivas e, simultaneamente, mostrar aos eleitores bem-intencionados que não há solução com Bolsonaro. As coordenadas para tirar o Brasil da crise chocam-se diretamente com sua visão de mundo.

Quanto mais rápido se completar esse movimento, mais tempo teremos para abordar a crise de forma criativa, aplicando no futuro não só as lições do passado, mas, acima de tudo, aquelas que se tornaram evidentes durante a pandemia.

As diferenças sociais no Brasil não podem apenas ser combatidas com a ideia de que é preciso aumentar o consumo de eletrodomésticos e carros. Existe um consumo de qualidade que pode surgir de um eficaz serviço público: saneamento, educação, sistema de saúde universal e bem equipado.

A enorme potencialidade do Brasil, popular, intelectual, científica, enfim, todos esse fatores que o governo despreza precisam estar juntos de novo não apenas para derrubá-lo, mas para enfrentar seu legado negativo no processo de reconstrução. São dois momentos diferentes, reconheço. Mas deveriam estar, dentro do possível, entrelaçados, pois nunca atravessamos uma tempestade tão perfeita.


Fernando Gabeira: A política da negação

A máscara é uma imposição do coronavírus que ameaça Bolsonaro com a impotência

Há anos que não se fala mais esta frase: Freud explica. No entanto, infelizmente, em 1936, Freud contou numa carta a história que explica a terrível passagem da pandemia de coronavírus pelo Brasil.

De acordo com a lenda, quando o rei Boabdil recebeu a notícia de que a cidade de Alhambra, capital de seu reino, estava para ser dominada pelo inimigo, ele queimou a carta e decapitou os mensageiros.

Freud afirma que, ao queimar a carta e decapitar os mensageiros, o rei Boabdil negou uma realidade desagradável: a queda de sua cidade. Um fator determinante no comportamento do rei era a necessidade de combater um sentimento de impotência. Ao queimar a carta e decapitar os mensageiros, ele tentava mostrar seu poder absoluto.

Quando o coronavírus chegou ao Brasil, Bolsonaro afirmou que iria abalar a economia e arruinar o seu governo. O coronavírus transfigurou-se numa gripezinha.

Numa live com o querido embaixador Marcos Azambuja e Mary Del Priore, a historiadora me lembrou que o termo negacionista em história surgiu quando, depois da Guerra, alguns intelectuais de extrema direita negaram a existência dos campos de concentração e do Holocausto.

Uma das vantagens da quarentena é ficar perto dos livros. Encontrei na estante um livro em que dois intelectuais americanos revisam a história moderna dos EUA usando o conceito da negação.

Michael Milburn e Sheree Conrad, em “Políticas da negação”, revivem episódios como a Tempestade no Deserto e o Massacre de My Lai, em que morreram 400 vietnamitas.

Como estão no campo da psicologia, analisam também o comportamento de figuras-chave na política americana, Ronald Reagan, por exemplo, a partir de sua tendência a negar a realidade.

Não pesquisei os dados da infância de Bolsonaro, como fizeram os americanos com seus políticos. Os biógrafos podem fazer isto no futuro. O singular em Bolsonaro é que ele é muito expressivo e direto, não é tão necessário assim o mergulho na infância.

Ele se apegou à economia porque via na sua crise o declínio do próprio poder. Não era o único caminho. Se aceitasse a realidade do coronavírus e se dispusesse a dar o melhor de sua energia para atenuar seu impacto, estaria hoje em melhor condição.

Jacinda Ardern, na Nova Zelândia, aceitou a realidade e tornou-se a maior líder do pais nos últimos 100 anos.

A negação do coronavírus por Bolsonaro é um dos processos mais corrosivos na história contemporânea. Ele desmontou o Ministério da Saúde, em plena pandemia, e o ocupou com militares.

A Ciência e a Medicina pareciam para ele como mediações débeis e inadequadas, e de fato o são quando se quer substituir a realidade por um desejo. Como o coronavírus não existia como perigo, ele participou de manifestações, saudou as pessoas e circulou sem máscara.

Dizem os relatos que Bolsonaro considerava usar máscara “coisa de viado”. É frequente a associação do poder com a masculinidade. A máscara é uma imposição do coronavírus que o ameaça com a impotência e a castração.

Aqui nem precisa do Freud para explicar. Sua filha Ana Freud trabalhava com o tema e costuma citar o caso de um menino que, na fantasia, tinha um leão que só gostava dele. Ele passeava com o leão entre as pessoas e se divertia com o fato de ficarem assustadas. Não havia razão para isso: afinal, o leão era inofensivo, desde que mantido sob controle.

Era a forma de o menino negar seus impulsos agressivos contra o pai e, mais ainda, se proteger da ansiedade da castração diante de um inimigo tão mais forte. É possível compreender aí como parece estranho para Bolsonaro ter medo do coronavírus. Afinal é, na sua fantasia, apenas uma gripezinha, uma chuva que acaba molhando a todos.

Essa profunda dissociação da realidade nos custou um preço muito alto em vidas humanas e, ao contrário do que pensa Bolsonaro, reduziu nossas chances de recuperação econômica.

A presença de militares no Ministério da Saúde para fortalecer essa fantasia infantil de Bolsonaro equivale ao termo que usamos em política: o Exército bate palmas para maluco dançar.

É um genocídio, como diz Gilmar? Ou não chega a ser um genocídio, como diz a maioria? Em qualquer hipótese, digo eu, não há consolo.


Fernando Gabeira: Cólera e algoritmo

Batalha para combater Bolsonaro tem de ser travada no universo em que ele venceu

O Facebook jogou Bolsonaro no mar com sua rede de 88 contas.

Ele é o primeiro presidente gestado no mundo virtual. Isso explica muito sua ascensão. Mas explica também as redes sociais.

O Facebook foi pressionado pelos anunciantes. A rede pode se desfazer dos discursos de ódio mais grosseiros. É difícil manter as pessoas presas na coleira eletrônica só para consultar os “likes”, numa incessante busca de reconhecimento.

A verdade, além de ser em certos momentos tediosa, propaga-se muito lentamente. Mark Twain disse: “Uma mentira pode dar a volta ao mundo enquanto a verdade leva o mesmo tempo para calçar os sapatos.” Esta citação está no livro “Os engenheiros do caos”, de Giuliano da Empoli. Ele disseca as eleições influenciadas por algoritmos, medo, fake news e teorias da conspiração.

Bolsonaro está na lista. Embora o autor não o compare com os outros, é possível dizer que é menos sofisticado do que o Movimento 5 Estrelas, na Itália, que é controlado diretamente por uma empresa digital, que detém inclusive as senhas dos candidatos eleitos.

Da mesma forma, Bolsonaro não teve os recursos do grupo que conduziu a campanha do Brexit e mergulhou num oceano de informações, produzindo com elas milhões de mensagens pessoais, de acordo com as tendências do destinatário. O Brexit protege a caça para o caçador, defende os animais para o ecologista.

Bolsonaro é apenas um avatar dessa arquitetura caótica. Como os outros, aspira a uma democracia direta, investe contra um sistema, mergulha em todos os temas que possam gerar barulho e rancor, mente e desmente com facilidade e orgulha-se de suas gafes que o identificam com o homem comum.

Poderia escrever muito sobre como se elegeu e como era quase impossível para a política tradicional neutralizá-lo. Ele transitava num universo especial que muitos ignorávamos, ou simplesmente rejeitávamos.

Mas o tempo e o espaço são curtos para descrever a gênese. O importante é saber como nos desfazemos dele. A proposta de uma frente democrática é apenas um verniz institucional. Funciona para acalmar as forças tradicionais, relevando o passado e olhando para a frente.

Mas a verdadeira batalha para combater Bolsonaro tem de ser travada no universo em que ele venceu, com atores e a lógica do mundo digital. Isso significa usar fake news, teorias conspiratórias ou disseminar o ódio? Certamente não. Mas não será fazendo tediosos comícios eletrônicos que vamos romper a barreira. Será necessário usar a criatividade, a irreverência e a alegria, novas formas mais compatíveis com esse mundo revolucionado pela internet.

O livro de Da Empoli conclui sua análise com um trecho do discurso de John Maynard Keynes, após a Primeira Guerra, endereçado a jovens liberais na sua summer school: “Quase toda a sabedoria dos nossos homens de Estado foi erigida sobre pressupostos que eram verdadeiros numa época, ou parcialmente verdadeiros, e que o são cada dia menos. Nós devemos inventar uma sabedoria para uma nova época. E, ao mesmo tempo, se queremos reconstruir algo de bom, vamos precisar parecer heréticos, inoportunos e desobedientes aos olhos dos que nos precederam.”

O autor de “Os engenheiros do caos” afirma que vivemos uma política quântica em que a realidade objetiva não existe. Cada coisa se define provisoriamente em relação a outra coisa, cada observador determina sua própria realidade.

Discordo parcialmente. O exemplo que ele usa como típico da época não me é estranho. É uma frase de Zuckerberg: se nos interessamos pelo esquilo agarrado na árvore mais do que pela fome na África, o algoritmo dará um jeito de nos bombardear com a história de roedores do bairro e eliminar o que se passa do outro lado do mundo.

Aos 18 anos, foi a minha primeira lição de jornalismo no livro de Fraser Bond: “Se morre um cão na nossa rua, isso é mais importante que um terremoto na China.”

Pois bem: comeram um morcego por lá no final de 2019, e o mundo está virado. Ainda há necessidade de conectar o discurso coletivo com o maior número de bolhas.

Segundo Da Empoli, na política quântica não tem mais valor essa frase de Daniel Patrick Moynihan: “Cada um tem direito às próprias opiniões, mas não não aos seus próprios fatos.”

Pelo menos alguns fatos deveriam ser propriedade coletiva, para tornar possível a sobrevivência no caos.


Fernando Gabeira: Também sou brasileiro

Estamos tentando segurar a onda dessa grotesca vulgaridade do governo

As noites de quarentena são marcadas por sonhos. Quem conta com eles para melhor se conhecer, acorda tentando recompor lances, faces, atmosfera, interpretando, enfim.

Esse esforço ontológico se amplia no café da manhã, aurora da dura realidade cotidiana: não importa quem eu seja, também sou brasileiro.

Os jornais dizem que brasileiros não podem entrar nos Estados Unidos. Não podem entrar na Europa. Em tempos de pandemia, isto significa que não soubemos cuidar da vida. Dizem também os jornais que 29 fundos de pensão ameaçam não investir no Brasil enquanto continuar o processo de devastação da Amazônia. Isto quer dizer que não cuidamos dos nossos recursos naturais, não nos importamos com a vida dos índios, das plantas e dos bichos.

Paulo Guedes disse que nossa imagem negativa é produzida pela ação de alguns brasileiros. Esqueceu-se de um deles, Jair Bolsonaro. A visão de mundo de Bolsonaro, sua política ambiental e seu desprezo pela gravidade da pandemia são alguns dos fatores que arrasaram nosso prestígio no exterior.

O Brasil sempre exalou vida, alegria, música exuberante e talentosos intérpretes. O próprio Guedes e Bolsonaro participaram de um espetáculo devastador para nossa imagem: uma live em que é tocada no acordeom a “Ave Maria” de Schubert.

Isso correu mundo. Em Portugal, foi tema de debate num programa de TV. Um dos debatedores, consternado com a qualidade do espetáculo, disse: qualquer brasileiro com mais de cem de QI deve estar envergonhado. A hipocrisia da homenagem aos mortos na pandemia, a qualidade do intérprete, a própria live, eram uma visão rastaquera do Brasil.

Não trabalho com critérios de QI, nem conheço bem as diferenças entre seus números. Imagino que Paulo Guedes, a julgar pela admiração da elite brasileira, tenha um dos índices mais elevados.

A impressão que tive dele na reunião de 22 de abril não é boa. Não tanto por se inspirar num ministro da Economia nazista, nem por propor trabalhos militarizados para os jovens. O que me chamou a atenção foi ouvi-lo dizer que leu oito livros para cada uma das experiências de reconstrução alemã.

Nelson Rodrigues, quando alguém argumentava com números e frações, 50,2, por exemplo, perguntava: para que os quebrados? No meu caso, perguntei a mim mesmo, por que uma simetria tão rigorosa de leitura? Não seria algo para impressionar a maioria de iletrados em torno da mesa?

Paulo Guedes está enganado. Estamos tentando segurar a onda dessa grotesca vulgaridade do governo brasileiro. Quando se faz o movimento Stop Bolsonaro lá fora é para mostrar que nem todos os brasileiros compartilham essas ideias retrógradas.

Paulo Guedes apontou para nos representar no Banco Mundial um homem que diz odiar a expressão “povos indígenas”. Essas duas participações, uma no campo da estética, outra, no da economia, são suficientes para que se olhe no espelho e pergunte: serão mesmo os outros brasileiros que comprometem nossa imagem no exterior?

Os liberais brasileiros têm uma longa relação com o autoritarismo. Alguns de alto nível, como Milton Campos e Pedro Aleixo, tentaram ser discretos no seu escorregão histórico.

Os liberais na economia parecem topar tudo por seu projeto. Assim como os estatizantes também topam. Se dependêssemos do radicalismo dos primeiros, estávamos sem um instrumento essencial nessa crise: o SUS. Se dependêssemos dos estatizantes radicais, não teríamos privatizado as telecomunicações e nem amenizado o impacto da pandemia.

Guedes, Bolsonaro e os militares precisam saber que também somos brasileiros e que grande parte de nosso poder depende da arte, da diplomacia da paz, de uma respeitada legislação ambiental.

Eles demoliram nosso soft power para colocar no seu lugar essa caricatura de imagem que se transforma em piada nos programas de TV em Portugal, em irritação no norte da Europa.

Eles riscaram o Brasil do mapa mundial. Deveriam ter a lucidez de renunciar e deixar que o recoloquemos. Não é só uma questão narcisística de imagem: é de nossa sobrevivência que se trata.

Já não podemos sair, os capitais dos fundos de pensão não querem entrar, daqui a pouco boicotam nossos produtos no exterior. Por que não se reúnem na intimidade para ouvir o presidente da Embratur tocar a “Ave Maria”? Há espaço para tudo aqui dentro. Mas nem tudo representa o Brasil.


Fernando Gabeira: A morte e a morte da democracia

Ela é comida pelas beiradas, como vírus que invade, gradativamente, seu pulmão até que pare de respirar

É preciso retomar o tema da democracia ameaçada. A prisão de Fabrício Queiroz conteve o avanço da extrema direita. Muitos interpretam o perigo de golpe apenas como um blefe de Bolsonaro, um delírio que agora se dissolve.

São pessoas sensatas que me perguntaram quando soei o alarme se eu não estava exagerando.

De uma certa forma, abordei este tema num artigo de fim de semana. Lembrei a tensão nas democracias europeias dos anos 30 e as pequenas pausas que surgiam entre elas. Muitos as interpretavam como o fim dos problemas, um novo período de paz.

Não tenho nenhuma intenção de comparar a extrema direita brasileira com a Alemanha nazista. Isto serviria apenas para reforçar a ideia de que exagero. Minha preocupação é apenas analisar a pausa. Ela pode ser aproveitada para se avançar na defesa da democracia ou pode ser considerada como o fim de um período de hostilidades.

Muitos imaginam o golpe de estado clássico: tanques saindo dos quartéis e ocupando pontos estratégicos, Congresso e STF fechados. É uma espécie de tiro no coração da democracia. Acontece que, nos últimos anos, cresce o consenso de que a democracia é comida pelas beiradas, como um vírus que invade, gradativamente, seu pulmão até que pare de respirar.
Essa lenta e sistemática derrubada da democracia brasileira está em curso. Não há tanques na rua, nem censores dentro dos jornais.

Mas a informação de qualidade está sob intenso fogo. O IBGE teve contestado seus dados sobre desemprego; a Fiocruz, invalidada uma pesquisa sobre consumo de drogas; o Inpe, decapitado por seus informes sobre o desmatamento na Amazônia. O próprio Bolsonaro tentou, mas não conseguiu, suspender a Lei de Acesso à Informação.

É como se as luzes de um edifício fossem sendo apagadas gradativamente. Na Fundação Palmares já não é possível contestar o racismo. O governo já não defende a diversidade cultural. Somos todos filhos de um mesmo Deus. Nas palavras do Weintraub: “Odeio a expressão povos indígenas.”

Três mil militares ocuparam a administração civil. No Ministério da Saúde desalojaram técnicos num momento em que se luta, e se perde, contra uma pandemia que já levou mais de 50 mil vidas. As armas são vendidas em maior escala, na medida em que cai o controle do Exército.

Na preservação ambiental, as luzes já se apagaram há muito. Na escuridão, crescem o desmatamento, o garimpo ilegal, a grilagem. Não se respeitam as leis, e os funcionários que tentam aplicá-las são demitidos.

O avanço de um golpe clássico foi contido pelo STF. Mas ele foi propagado em faixas que pediam intervenção militar com Bolsonaro na Presidência. Frequentaram essas manifestações, além do presidente, generais no governo e o ministro da Defesa.

Foi preciso prender extremistas e investigar as contas de deputados que financiam as manifestações. O Congresso não se manifesta. Está escondido atrás das togas dos ministros, esperando que canalizem sozinhos a agressividade digital bolsonarista.

Um Congresso que tem medo de tuítes sairia correndo ao ver o primeiro fuzil. Mas é preciso contar com ele.

Felizmente, a sociedade começou a acordar. Manifestos surgiram em vários setores. Esboços de frentes vão se formando aqui e ali. Há sempre quem se ache o rei da cocada e não aceita certos parceiros. Mas o rumo geral é de união.

Apesar da pandemia, surgiram as primeiras manifestações de rua. De um modo geral, pacíficas, um ou outro choque com a polícia, uma solitária faixa pedindo ditadura do proletariado, rompendo o tom.

Seria importante interpretar a pausa apenas como um tempo que se ganha para se organizar, não relaxar, achando que as coisas se resolvem sem nossa intervenção. Uma semana depois da prisão de Queiroz, o TJ do Rio já concedeu foro especial a Flávio Bolsonaro e pode anular não só a prisão, como trazer o processo à estaca zero.

Daqui a pouco, volta toda a onda agressiva e vamos nos perguntar o que fizemos na pausa. As democracias europeias vacilaram inúmeras vezes, mas acabaram vencendo no final. Mas os analistas sempre se perguntam se a vitória não poderia ter vindo mais cedo, poupado mais vidas.

Mesmo em dimensões desarmadas, o preço da vitória depende da maneira como interpretamos as relativas calmarias, se alimentamos ilusões conciliatórias ou compreendemos que, cedo ou tarde, a batalha se dará.


Fernando Gabeira: Do tamanho de um cometa

A gigantesca tarefa de evitar um golpe é, infelizmente, apenas uma. Há ainda a tarefa de solidariedade

Ironicamente, um governo machista que cultua armas pode descrever seu maior abalo com um poético símbolo fálico: um pênis do tamanho de um cometa. Foi assim que Fabrício Queiroz descrevia o futuro que esperava o grupo em torno de Bolsonaro.

Ironicamente, Fabrício se escondeu no sítio de um amigo em Atibaia. E a operação que o encontrou foi denominada Operação Anjo, em homenagem ao advogado da família Bolsonaro, acusado, no passado, de bruxaria.

O Brasil é um desafio para os romancistas. A tempestade perfeita acabou se abatendo sobre Bolsonaro: inquéritos sobre fake news e manifestações ilegais, militantes presos, deputados com sigilo bancário quebrado.

E, finalmente, a prisão de Queiroz. Não era o homem mais procurado do país. Mas era o mais solicitado. De todos os cantos brotava a pergunta: onde está Queiroz? Queiroz estava escondido na casa do advogado da família Bolsonaro. Para uma operação no nível de segredo de Estado, é de um amadorismo comovente.

A exposição dessas operações suspeitas de Bolsonaro talvez o enfraqueça nas Forças Armadas, bicho-papão com que ele nos ameaça a cada momento. Os militares têm aceitado tudo. Desde os ataques à República até a necropolítica de Bolsonaro na pandemia de coronavírus. Nos ataques à Proclamação da República pelo menos ficaram calados, não os endossaram. Mas a política de Bolsonaro é executada por um general da ativa que quer nos entupir de cloroquina porque seu líder assim o determinou.

A sorte é que nem sempre acertará no alvo. Confunde hemisférios e coloca o Nordeste acima da linha do Equador, e chama Rio Branco de estado. Sua imprecisa pontaria geográfica talvez nos ajude a sobreviver.

Também entre os que esperavam um combate à corrupção, Bolsonaro vai se enfraquecer. Aliás já estava se enfraquecendo com a queda do Moro. Caiu nos braços do centrão e agora vem à tona o esquema de Queiroz e seus milicianos.

Não creio, entretanto, que a situação ficou menos tensa. Ao contrário. Quem se sente encurralado tem mais chances de buscar ações desesperadas.

Antes da queda de Queiroz, comecei a escrever um artigo partindo de uma frase de Skakespeare em Hamlet: “Ai ai de mim por ver o que vejo.”

Era um artigo para lembrar que falhamos na pandemia, apesar do tempo de preparação. Perdemos mais gente, empregos e tempo por causa de nossa incapacidade nacional.

Estamos às vésperas de um novo desafio: uma profunda crise econômica e social. Onde Paulo Guedes vê um futuro brilhante, vejo suor e lágrimas, mais suor do que lágrimas, adaptando a famosa frase de Churchill aos trópicos.

A gigantesca tarefa de evitar um golpe é, infelizmente, apenas uma. Há ainda a tarefa de solidariedade e construção da mínima rede social num país que se dissolve.

Costumo dar como exemplo Paraisópolis. Imagino que sejam contra Bolsonaro, pois estive lá e vi como sofreram com a violência policial. Agora na crise, conseguiram uma ambulância, médicos, lugares para isolamento, criaram um sistema defensivo. Eles sabem que são tarefas do Estado, mas não podem esperar.

Uso esse pequeno exemplo para mostrar que em escala nacional não basta a grande batalha para derrotar o projeto autoritário de Bolsonaro. É uma luta que tomará tempo e, enquanto isso, o país continuará sangrando.

Tenho andado pouco pelas ruas. Mas percebo um número maior de gente em dificuldade. Conheço muitos moradores de rua do meu bairro. Alguns documento com fotos ao longo dos anos.

Nas poucas saídas, percebi que mudou a população de rua. Procuro alguns que conhecia e suspeito que morreram. Ao mesmo tempo, surgiram muitos novos, famílias inteiras.

A pandemia ainda nem acabou, e estamos diante de uma situação em que não podemos perder de novo. A imagem no exterior se evaporou. Nosso soft power — cultura, simpatia, natureza — foi para o espaço. O Brasil se isolou.

Mas ainda não desapareceu. Dai a histórica dimensão da tarefa. O único consolo é acreditar que a história não coloca problemas que as pessoas não possam resolver.