Fernando Gabeira

Fernando Gabeira: Uma sucessão de facadas

Se as promessas não forem cumpridas, vão todos para o espaço, como foram PT e PSDB. Não existe fidelidade eterna

Quando se comemorava uma renovação pelo processo eleitoral, o passado voltou com dois fortes golpes. Um deles, o mais importante, foi o aumento de 16% concedido aos ministros do STF.

Não creiam que parlamentares votam esses aumentos pelos belos olhos dos ministros. Eles estão pensando em si próprios, pois nesse movimento aumentam também o teto do funcionalismo. Um teto para abrigá-los adiante.

Um dos temas da campanha foi o tamanho do Estado. Ele é um gigante anêmico que não tem o sangue para investir. As manifestações de 2013 denunciaram sua ineficácia; as de 2015, o processo de corrupção que o dominava.

Por que não esperar a reforma da Previdência, o enxugamento da máquina, para reajustar salários no primeiro semestre? Só aí perdemos R$ 6 bilhões. No dia seguinte, os incentivos à indústria automobilística levaram mais R$ 2 bilhões. Nesse caso, para quê? Incentivos para melhorar o motor de combustão que já está pra lá de Marrakech: não tem futuro.

Bolsonaro reagiu de uma forma discreta. Temo que não tenha percebido a extensão do golpe. Aliás, temo mais ainda, que ele não tenha ainda compreendido o caráter parasitário e atrasado da grande máquina estatal.

Não tenho condições de questionar a mudança dos outros, porque também mudo. Mas afirmar que não contingencia o orçamento das Forças Armadas é prematuro. Isso só se faz com a noção bem clara do conjunto. E se houver um gargalo na saúde?

Esses momentos de transição podem ser usados para tentar entender a fase em que entramos. É que na transição acontece pouca coisa, além do anúncio da escolha de ministros e da reorganização administrativa. Às vezes, equipes que entram revelam dados importantes, pois querem mostrar o tamanho do buraco. Suponho que a nova fase vai se basear na luta contra a corrupção, com a presença de Moro, e um pouco mais de segurança. Mas o enxugamento da máquina é essencial.

Há temores de que o processo possa conduzir a uma rejeição futura às ideias liberais. Não creio. Tanto os liberais como os estatizantes não escrevem numa página em branco. Mesmo com a correlação de forças a seu favor, as ideias liberais devem sofrer alguns reparos, adaptações que resultam do próprio debate.

O que me preocupa é que as coisas estão acontecendo no Brasil com um tipo de lógica que me desconcerta. Quando vi aquele exame do Enem que apresentou um dicionário dos travestis, pensei que havia infiltração da direita para confirmar suas teses. Por que não alguma coisa em guarani, em italiano, idiomas falados no país e que envolvem muita mais gente? Parecia uma provocação.

Da mesma forma, quando ouço o ministro Paulo Guedes falar numa possível futura fusão do Banco do Brasil com o Bank of America, temo que um esquerdista infiltrado tenha soprado essa sugestão. Por que dizer isso agora, sem que nenhum estudo, nenhuma negociação preliminar tenha sido feita?

Tanto Bolsonaro como Guedes têm afirmado que o fracasso do seu governo poderia trazer o PT de volta. Dependendo do fracasso e das circunstâncias, pode surgir algo mais radical ainda.

Nada começou ainda. Mas nesses momentos de transição, creio que o presidente deveria brigar mais contra essas benesses de fim de mandato.

O general Heleno disse que o aumento dos juízes era uma preocupação. O governo pode ter sentido assim. Mas as pessoas comuns ficaram indignadas.

O novo governador de Minas venceu com 72% dos votos. Isso é inédito na História. Os eleitores rejeitaram o PT e o PSDB por uma promessa de reforma do Estado.

As forças políticas que sobem agora ao poder o fazem com um apoio de uma frente que amalgama expectativas políticas e ideológicas. Será uma ingenuidade supor que o cimento ideológico possa manter o edifício em pé com mudanças apenas cosméticas na vida real. Se as promessas não forem cumpridas, vão todos para o espaço, como foram PT e PSDB. Não existe fidelidade eterna.

Cada momento tem de ser vivido com a gravidade que merece. Não pretendo antecipar críticas, muito menos torcer contra.

Não me surpreende pauta-bomba em fim de mandato. Sempre foi assim. O que me surpreendeu foi como os novos atores foram polidos e discretos diante desse tipo de facada.


IstoÉ: Bolsonaro representa uma forma de virar a mesa, diz Fernando Gabeira

Por André Vargas, da Revista IstoÉ

Observador da realidade brasileira desde 1979, quando voltou do exílio após a Anistia, o mineiro Fernando Gabeira, 77 anos, foi jornalista, ativista e político, voltando ao jornalismo após o fim de seu quarto mandato como deputado federal pelo Rio de Janeiro, em 2011. Desde 2013, ele apresenta um programa de reportagens que leva seu nome no canal GloboNews. Com passagens pelo Partido Verde (PV), que ajudou a fundar, e Partido dos Trabalhadores (PT), com o qual rompeu, Gabeira crê na reconstrução da esquerda brasileira e dos movimentos sociais sem as amarras petistas. Dono de uma lucidez crítica e desprovida de pudores ideológicos, ele falou sobre os acertos da campanha de Bolsonaro, as conexões de seu populismo com o de Donald Trump, o surgimento de uma nova direita via redes sociais, a relevância do jornalismo diante das fake news e o papel dos militares no novo governo.

O que você achou do resultado geral das eleições?
Não meu surpreendeu. Sua vitória afirmou três pontos. Primeiro, foi uma grande crítica ao sistema político. Bolsonaro representa uma forma de virar a mesa. Depois, uma possibilidade de luta contra a corrupção. E, finalmente, a expectativa de uma política de segurança eficaz. Embora, não necessariamente ele será capaz disso. Bolsonaro apenas apresentou essas ideias com mais ênfase e de forma mais clara para o entendimento popular.

As eleições de Bolsonaro e de Trump foram parecidas?
Há pontos em comum. O principal é a utilização das redes sociais. A seguir, é a expectativa de alcançar o homem comum, colocando-o contra o que dizem ser o sistema. Ambos os políticos se mantêm distantes dos partidos políticos, apesar de Trump ter a força do partido Republicano por trás. Ambos também se mostram distantes da mídia, de especialistas, de técnicos e de intelectuais. Todavia, Bolsonaro fez uma campanha bem modesta. Trump não só tinha muito dinheiro arrecadado, como uma rede de televisão [Fox] grande e conservadora ao seu lado. Por isso, acho que a campanha do Bolsonaro foi mais difícil.

A democracia de coalizão que pautou a Nova República está exaurida?
Tanto que a proposta do vencedor é superá-la por meio da escolha de ministros que sejam técnicos, competentes e independentes de filiações partidárias. Será uma tentativa de superar o modelo anterior, o que é de difícil realização. O novo presidente terá que ser um pouco mais aberto, a ponto de entender que, se houver gente competente e honrada nos partidos para ocupar alguns postos no governo, ele terá que abrir espaço. Um governo não pode discriminar seus políticos. Seria algo extraordinário.

Como o senhor avalia o crescimento político dos evangélicos. Hoje daria para governar sem eles e sua agenda conservadora?
O campo que elegeu Bolsonaro é diversificado. Há os evangélicos e também jovens liberais que fazem apologia do estado mínimo, além de intelectuais e propagandistas de direita que surgiram na mídia e nas redes sociais nos últimos tempos. Os evangélicos sempre estiveram na política, só que agora encontraram um candidato que, além de professar o mesmo credo, parece disposto a aceitar uma série de reivindicações. Algumas podem ser problemáticas, como a ideia recente de transferência da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém. Temos no Brasil uma grande harmonia entre as comunidades judaica e árabe, além de relações comerciais com países do Oriente Médio, grandes compradores de nossos produtos. Isso poderia nos prejudicar.

O futuro governador do Rio Wilson Witzel (PSC) fala em combate aberto contra o tráfico. Seria por aí?
É preciso distinguir o combate às drogas e o combate aos grupos armados que ocupam territorialmente certas áreas. Há táticas e problemas. Eu apoiei a intervenção federal na Segurança Pública do Rio. Achava que as polícias não tinham mais condições de rechaçar o crime. Parte por falta de equipamento, parte por corrupção, além de outros fatores. A intervenção trouxe alguns parâmetros, com regras de engajamento adotadas no Haiti. Porém, não foram desenvolvidas táticas para enfrentar esses grupos, que também podem ser encontrados no México, em El Salvador e até na Síria. Diante de quem utiliza a população como escudo é preciso políticas mais sofisticadas. Se as forças armadas atingem e matam moradores, acaba-se fomentando um apoio permanente da população ao tráfico.

A campanha eleitoral à Presidência tirou a relevância da cobertura jornalística tradicional?
Não creio, ainda que parte dos candidatos tenha falado diretamente com seus eleitores por meio das redes sociais. É preciso lembrar que grande parte dos temas que as redes discutiram nasceu da cobertura da mídia tradicional. As redes, por si, não podem dispensar a estrutura tradicional de apuração de notícias, pois é daí que tiram a matéria-prima com a qual trabalham e brigam.

O boicote do presidente eleito aos grandes veículos de imprensa é um tiro na democracia, uma maneira de se preservar ou a escolha de um adversário?
Quando ocorre uma situação de crise em que populistas entram em cena, eles tendem a apresentar o conjunto da imprensa, da política, da academia e da Justiça como partes de um sistema, fazendo com que tudo seja visto como um ataque contra a renovação. Creio que a referência que temos que analisar é o próprio Trump, que foi muito mais radical, acusando a imprensa de ser inimiga do povo. Já Bolsonaro falou que a “Folha de S.Paulo” tem que acabar e, em certos momentos, não fala com jornalistas de determinados veículos. Na comparação, os termos de Bolsonaro são mais brandos.

Qual o futuro do jornalismo em tempos de fake news?
Quase todas as grandes empresas jornalísticas tiveram que montar equipes para traduzir as fake news. É indispensável que a sociedade tenha notícias bem apuradas e verdadeiras para que as pessoas e as empresas tomem as decisões corretas. As estruturas profissionais de jornalismo gastam até 30% de seu esforço confirmando informações, algo que não existe na internet. É claro, porém, que existem pessoas nas redes que só acreditam no que querem acreditar. Daí não se pode fazer nada.

Bolsonaro disse ser apaixonado por você. Como assim?
Ele estava fazendo campanha. Antes, convivemos 16 anos na Câmara dos Deputados, atuando em campos diferentes, mas nunca tivemos um atrito. Sempre nos respeitamos e nos unimos quando o tema era corrupção.

Essa mentalidade militar que se apresenta nos postos do próximo governo oferece algum risco?
As Forças Armadas se transformaram nos últimos anos, por isso alguns de seus integrantes ao lado de Bolsonaro podem funcionar como elementos moderadores. A aventura autoritária foi decantada e hoje os militares integram o campo democrático, com uma leitura nova do mundo, sem a Guerra Fria. Muitos quadros militares fizeram assessoria parlamentar, adquirindo uma visão muito clara do que é o mundo político.

Após décadas de avanços sociais e políticos, lhe parece que parte dos brasileiros ficaram mais conservadores?
Essa tendência conservadora sempre existiu de modo latente. O que houve foi um fracasso ético da esquerda no poder, o que colocou, por extensão, em dúvida muitas de suas bandeiras. Outro fator foi o governo de esquerda encaminhar algumas medidas favoráveis às minorias, tentando avançar, sem a consulta permanente à população. Um exemplo é a educação sexual nas escolas. Muita gente prefere que isso seja feito dentro da família. A esquerda fez avanços, sim, mas que acabaram ofuscados pela corrupção, o que fortaleceu uma certa visão de impureza nas lutas sociais e identitárias. Outro ponto é o surgimento, ao largo da imprensa, de pensadores de direita, alguns deles jovens liberais, outros propagandistas religiosos, de redes sociais. O movimento Escola Sem Partido, por exemplo, representa uma reação à presença da esquerda no magistério. Todavia, não acredito que isso deva ser feito com repressão. Defendo a diversidade de opiniões nas escolas.

A violência contra as minorias pode aumentar?
A forma como o tema foi apresentado na campanha suscita tais atitudes. Às vezes, pode-se chegar à violência, como ocorreu pontualmente, em outras, podemos ficar naquele humor violento, como o das torcidas organizadas cantando: “Bolsonaro vem aí para matar viado”. Creio que passada a eleição, essas questões devem entrar em segundo plano, já que teremos discussões sobre Reforma da Previdência, economia, acertos políticos e segurança pública. Tudo isso envolverá o País.

O que você achou da fusão do Ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura?
Se o Meio Ambiente se transformasse em uma agência, não veria problema. O que me preocupa é que as agendas do Meio Ambiente e da Agricultura são muito vastas, por isso acho que não vão ser bem cumpridas. Há também a crítica de que colocaram as raposas cuidando do galinheiro. Isso pode fazer com que nossos produtos agrícolas no exterior sejam boicotados, pois nossos competidores podem se mobilizar. Já houve uma fake news de vaca louca brasileira espalhada no Canadá.

Há saída para a esquerda brasileira?
Claro que há. O governo que começará no Brasil irá liberar muita energia de oposição. Imediatamente após a vitória de Trump, a sociedade americana e os democratas passaram a se mobilizar. A esquerda do partido Democrata ganhou espaço na Câmara com as eleições desta semana. Com isso, quero dizer que a direita será superada, pois haverá alternância no poder. A única dificuldade que vejo na esquerda brasileira, que não há entre parte dos democratas americanos, são essas denúncias de corrupção que aqui não foram objeto de crítica interna. Agora, acho que novas configurações podem surgir. Até o PT pode se transformar. Não está proibido. O caminho está aberto, pois não sabemos que êxitos Bolsonaro obterá. Também acredito que os movimentos sociais, que reúnem lutas de minorias, mulheres, índios e negros, precisam fazer uma crítica sobre sua associação ao PT. Alguns foram cooptados, o que criou uma certa hostilidade que talvez não seja exatamente contra suas causas, mas contra o partido.


Fernando Gabeira: Crônicas do ensaio geral

A fusão de Meio Ambiente e Agricultura suscitaria acusações do tipo raposa tomando conta do galinheiro

Numa antiga peça de Harold Pinter, dois andarilhos entram, de repente, na cozinha de um grande restaurante. Subitamente, começam a ouvir pedidos de pratos sofisticados. Aturdidos, olham para o embornal e percebem que há em suas modestas provisões um pão, uma fruta talvez.

Cada vez que vejo uma equipe nova assumir o governo, lembro-me dos andarilhos aturdidos por sofisticadas demandas a que não podem atender. Quando Bolsonaro apareceu diante da câmera, ao vencer as eleições, tinha apenas uma bandeira do Brasil, levemente torta, colada com durex na parede. No passado, candidatos contratavam hotéis, posavam diante de grandes painéis, e suas imagens eram transmitidas em alta definição.

Isso só aumentou em mim a suspeita de que, apesar de sua força descentralizada na sociedade, a campanha de Bolsonaro era modesta e artesanal. Basta lembrar que, nos últimos dias, todos os principais atores do grupo foram silenciados. Compreendo que isso era para não causar polêmicas. Teoricamente, nos últimos dias, todos falam porque o o objetivo central é persuadir.

Bolsonaro tem noção dos limites. Num culto religioso, ele afirmou que pode não estar bem preparado, mas Deus capacita os escolhidos. Acho que a fé ajuda, suscitando energia, resiliência e até compaixão. Nesse sentido, a fé ilumina.

No entanto, há temas espinhosos que demandam conhecimento, experiência e até um certo talento. A ideia de fundir os ministérios da Agricultura e Meio Ambiente — que Bolsonaro defendeu e depois voltou atrás mais de uma vez — não me parece uma inspiração divina.

Já desenvolvi um primeiro argumento sobre esse tema, afirmando que era muito vasto. O Meio Ambiente cuida desde conceder licenças na área do pré-sal ao monitoramento de um lobo-guará na Serra da Canastra, à redução de emissões de CO2, ao controle da biodiversidade — enfim, como costumamos brincar, não é um meio ambiente, mas um ambiente quase inteiro.

Há um outro argumento. A fusão poderia suscitar acusações do tipo raposa tomando conta do galinheiro. Isso é ruim no exterior. Pode provocar uma resistência nos consumidores. Resistência espontânea ou induzida pelos competidores internacionais.

Paranoia? Uma ponta de paranoia é saudável. Estava no Congresso quando apareceu a falsa notícia no Canadá de que havia doença da vaca louca no Brasil.

Fizemos uma comissão, demos entrevistas, inclusive cheguei a planejar uma viagem ao Canadá. Eu, que sou vegetariano, me vi, de repente, combatendo pela carne brasileira. Daquele grupo, lembro-me de Ronaldo Caiado, eleito governador de Goiás.

Tomar uma decisão dessas apenas nos bastidores, sem consultar estudiosos ou mesmo o agronegócio exportador, não seria o melhor caminho.

Mas nem tudo estaria perdido. O Congresso brasileiro, de alguma forma, será acionado. Uma medida provisória talvez. E nossa tarefa será a de levar o debate para o interior da Câmara, através do Parlamento universal em que se transformaram as redes sociais.

Temos um ponto em comum, que é a luta contra a corrupção. Vamos ter de conversar com os eleitores de Bolsonaro, sobre a nova dimensão da ética: a que diz respeito às futuras gerações.

Não porque eu tema que o planeta acabe, isso não acontecerá . Temo pela vida humana, que pode tornar-se inviável, ser expelida do organismo terrestre.

Assim como Trump, Bolsonaro tende ao ceticismo em relação ao aquecimento global. Acham que o tema foi muito ideologizado. Parcialmente, aceito o argumento. Mas a proposta que solucionaria este problema é usar a ciência como mediação do debate.

Ciência nem sempre significa unanimidade. Senti isso quando da proibição do amianto. Havia cientistas a favor e contra. No caso do aquecimento global, o peso numérico dos cientistas que acreditam é esmagador. Viajando, como faço, pelo Brasil, nem precisaria tanto da ciência, apesar de sua autoridade.

Capitão, fé em Deus. Mas a outra parte do dito popular, pé na tábua, poderia ser reservada para o consenso, como, por exemplo, acabar com a estatal que cuida do trem-bala. Nesse ritmo, acabariam criando uma estatal para a viagem a Marte.


Fernando Gabeira: Sonhos e realidade

Associação entre o PT e as minorias trouxe para elas a desconfiança do homem comum

A vitória de Bolsonaro não é idêntica à de Trump. Mas antes e depois das duas eleições há pontos de contato. Não servem para explicar tudo, mas ajudam.

Um dos livros em que encontro as semelhanças é de Mark Lilla, uma crítica aos liberais com um subtítulo interessante: Depois das políticas de identidade. A julgar pelo livro de Lilla (The Once and Future Liberal: After Identity Politics), a vitória de Trump suscitou o mesmo movimento nos EUA e no Brasil: resistência. Lilla põe essa palavra entre aspas, pois significa uma oposição a tudo o que Trump representa, sem ainda uma visão clara de futuro.

A vitória de uma figura controvertida acabou despertando nos EUA uma grande solidariedade entre os derrotados, campanhas, marchas, abaixo-assinados. Mas ainda são raras aqui, no Brasil, onde Bolsonaro acaba de vencer, as visões críticas do período que abriu o caminho para que ele triunfasse.

Lilla fala no descaminho dos democratas por se terem fixado nas políticas identitárias: mulheres, homossexuais, indígenas e negros. Não que seja contra essas lutas.

Sua análise da campanha republicana mostra que na maior parte do tempo ela se fixava em temas nacionais, que interessam a todos. O exame do site democrata, no entanto, revela grande peso às lutas fragmentárias, que interessam a setores bem específicos do eleitorado.

Lilla considera um erro a fixação nas lutas identitárias porque elas afastam um pouco as pessoas dos temas mais amplos, que envolvem o bem comum. As pessoas mergulhadas nessas lutas têm tendência menor a defender temas nacionais, sair para uma conversa nas ruas sobre o que ele chama o bem comum.

Coincidência ou não, eu já tinha manifestado em artigos a mesma reserva quanto ao alcance das lutas identitárias na eleição brasileira. Também na minha crítica ressaltava a ausência da ênfase no bem comum, só que nos meus textos não usava essa expressão, mas a adesão a um projeto nacional.

Num artigo afirmava que as lutas que ainda chamam das minorias tendem a criar a necessária solidariedade de grupo, regras e objetivos próprios. Mas ela se dá em oposição a uma sociedade que ainda não reconhece esses direitos.

Torna-se muito difícil conversar com o homem comum, encontrar um assunto que mobilize todos, e não apenas alguns setores da sociedade. No caso brasileiro, os três grandes temas nacionais em jogo passaram um pouco ao largo das forças de esquerda. Um deles era a corrupção. A esquerda o subestima de modo geral e o escamoteia especificamente quando o PT é o maior acusado.

Um segundo grande tema nacional foi a segurança. A visão clássica e tradicional da esquerda é condicioná-la à melhoria das condições econômicas, da educação, da renda. Como a expectativa é de respostas em curto prazo, o discurso cai no vazio e é facilmente ironizado.

Um terceiro tema, mais intelectualizado, foi a discussão sobre o tamanho e o papel do Estado na economia. Também aí a perspectiva privatizante pareceu mais atraente. E não só pela teoria. As manifestações de 2013, em parte, revelaram a precariedade dos serviços públicos.

A corrupção também passou a ser uma chave para explicar o fracasso do governo. Tenho a impressão de que é a conversa na rua quando não se tem nada a dizer sobre aqueles temas.

Uma das características da luta identitária é a autoexpressão: sou gay, negro ou indígena e tenho orgulho de minha condição. Isso é irretocável na posição pessoal. No entanto, Lilla observa em seu livro que numa campanha eleitoral não é a autoexpressão que conta, mas a persuasão.

O exemplo que usa para definir o comportamento dos liberais nos EUA talvez seja aplicado também à esquerda brasileira. Lilla compara as eleições à pesca. É preciso acordar cedo e pescar até tarde, lá onde o peixe existe, e não onde você gostaria que estivesse. Se o peixe morde a isca e se debate, dê linha e espere que se acalme.

Mas, para o escritor, os liberais ficaram na praia discorrendo sobre os problemas do mar, sobre a necessidade de a vida aquática abrir mão de seus privilégios. Tudo na esperança de os peixes confessarem coletivamente seus pecados e nadarem mansamente para ser pescados. Se esse é o seu enfoque da pesca, lembra Lilla, o melhor é se tornar vegetariano.

Nesta altura, não se podem comparar totalmente as táticas. No caso brasileiro, se, de um lado, a luta identitária pode ter dificultado um pouco a conquista da maioria, o caminho eleitoral das minorias acabou comprometendo o seu futuro. Isso simplesmente porque no tema central, a corrupção, o PT, embora não seja o único, é o maior acusado. A associação entre o partido e as minorias acabou trazendo para elas também a desconfiança do homem comum.

Não sei ainda como as coisas se vão recompor. Se as lideranças minoritárias fizerem uma análise do que se passou, creio que um dos seus passos será libertar-se de governos. Para isso é preciso ter uma nova visão da importância dos recursos materiais na política. O período que se encerra foi marcado por campanhas milionárias. O PT venceu com uma em 2002 e não reaprendeu o caminho da austeridade.

A vitória de Bolsonaro, a julgar pela de Trump, deve suscitar um grande movimento, que até lembrou aos liberais americanos que eles têm mais energia do que suspeitavam.

Aqui, no Brasil, enquanto estiverem gravitando em torno de um partido acusado de corrupção, os simpatizantes da esquerda podem até descobrir uma energia insuspeitada. No entanto, a chance de essa energia se dissolver em vão é muito grande, sobretudo se as pessoas não pararem um segundo para pensar, achando que o momento é como a Quarta-Feira de Cinzas em Salvador, onde todos saem às ruas cantando e dançando as mesmas músicas do carnaval que passou.

Faria bem um tempo de reflexão, estudos e debates. Foi tudo tão rápido e, para alguns, tão surpreendente que, a rigor, nem o governo nem a oposição sabem precisamente o que fazer.


Fernando Gabeira: Uma virada à direita

Ganhar a eleição é difícil; derrotar forças poderosas, mais ainda. Mas dificuldades começam mesmo quando se chega ao governo

A roda rodou. Já vi muitos presidentes, subindo e descendo a rampa. Um deles descendo ao fundo da terra, Tancredo. Collor chegando e saindo de nariz erguido. Lula com tantas promessas.

Itamar, encontrei antes da posse, no Hotel Sheraton. Ele ainda não era o presidente, e eu tentava convencê-lo de que seria. Conheci Itamar desde a Rua Halfeld, a mesma onde Bolsonaro tomou a facada. Era um homem decente, tomava religiosamente uma sopinha ao entardecer. Ousou assinar o Plano Real.

Agora, sobe Jair Bolsonaro. Não foi uma rodada simples, dessas em que PT e PSDB se revezam. Foi mais ampla, como foi a de 64, só que agora sem Guerra Fria, num contexto democrático.

Senti a ascensão de Jair Bolsonaro. Impossível ignorá-la correndo o Brasil, observando as redes sociais. Quando levou a facada em Juiz de Fora, pensei: facada e tiro, quando não matam, elegem.

Se nossa cultura produziu essa certeza, isso quer dizer que a condenação da violência política tende a ser consensual. O presidente eleito deveria encarnar e expressar essa condenação. Não é um conselho, apenas uma leitura do Brasil. Os últimos dias de campanha foram ameaçadores. Prisão, desterro, banir da face da terra. Alta tensão. As universidades podem ser invadidas por ideias, não pela polícia.

O novo governo tem uma agenda brava, e só me resta usar esses meses de transição para estudar melhor e criticá-la com fundamento.

Outro campo de estudo se abre. A frase de Mano Brown — é preciso encontrar o povo — foi endereçada ao PT. Mas não vale também para o sistema partidário, a academia, a mídia, os especialistas? Como reconciliá-los com o homem comum?

Minha atitude com Bolsonaro será a que sempre adotei nos anos de convivência: respeito ao argumentar nos pontos divergentes e estímulo aos seus movimentos positivos. Alguns leitores condenam essa visão, sob o argumento de que normaliza a barbárie.

Mas se era assim com o deputado, por que não seria com o presidente, cujas ações mexem com nosso destino e com a imagem externa do Brasil?

Na minha visão de mundo, é impensável ofender os eleitores que escolheram outro caminho. O pressuposto é apostar na boa-fé da maioria do povo brasileiro.

Farei uma oposição sem truques ou medo, das que não visam ao poder. Apenas um desejo de ver o país retomando democraticamente os trilhos, um pouco também por filhos e netos. A sensação de continuidade ao lado da poesia são os territórios em que desafiamos a morte.

Ganhar a eleição é difícil; derrotar forças poderosas, mais ainda. No entanto, as dificuldades começam mesmo quando se chega ao governo. As qualidades para ganhar a eleição são diferentes das que impulsionam o governo. Para vencer, é preciso falar a linguagem do povo.

O grande talento nesse campo nem sempre nos socorre, quando a necessidade impõe grande esforço intelectual para a tomada de decisões. Da mesma forma, o tom agressivo de campanha é o inverso da generosidade que se espera de um eleito.

Bolsonaro não é um raio em céu azul. O panorama político no Brasil mudou. Pensadores de direita surgiram no cenário. Jovens liberais, propagandistas religiosos ocuparam as redes.

As manifestações de 2013 colocaram na rua multidões com uma aspiração difusa de melhores serviços. As de 2015 afunilaram na denúncia da corrupção, impulsionaram a queda de Dilma.

Uma esquerda, sem élan para se reinventar ou base teórica para vislumbrar o horizonte, tornou-se uma presa fácil no debate de ideias.

Foi uma campanha da era digital. Hoje, todos falam, compartilham. Baixo nível? Talvez. Mais democrático? Sem dúvida. Foi também facada, fake news, acusações, brigas entre famílias, amigos, ansiedade, tentativas de suicídio — um psicodrama nacional.

Fiz tudo para manter a cabeça fria. É natural levar caneladas dos dois lados. Caneladas e balas perdidas são parte do jogo.

Outro dia, alguém escreveu sobre mim: se ficar como ele, peço aos amigos que me ajudem numa eutanásia. Não tenho por hábito contestar essas coisas da rede. Nesse caso, a resposta seria simples: obrigado por morrer em meu lugar. É uma gentileza nesses tempos sombrios.

É preciso viver um pouco mais para ver um país mais tranquilo, fraternal. Não sou ingênuo a ponto de imaginar esquerda e direita de mãos dadas. Não se trata de lirismo. As emoções da campanha ofuscaram um pouco a gravidade de nossos problemas.

Agora, voltamos à vida real.


Fernando Gabeira: As prisões mentais

Bolsonaro terá de moderar retórica. E oposição precisa tomar consciência da situação delicada em que o país entra

Lula está preso, meu caro. Repito a frase de Cid Gomes que ecoou na rede, suprimindo a palavra babaca. Não por correção política. A palavra iguala a estupidez à vagina. Apenas para lembrar, com humildade, como certos sentimentos estão arraigados em nossa cultura e emergem de nosso subconsciente.

A líder da direita francesa, Marine Le Pen, afirmou que algumas frases de Bolsonaro são inaceitáveis na França. Mas não o foram no Brasil.

Humildade aqui significa reconhecer que mudanças culturais levam tempo para se consumar. Não são como uma ponte destruída pela chuva que se reergue rapidamente. Nem mesmo uma nova capital que pôde ser construída no Planalto. Às vezes, atravessam gerações.

Lula está preso. É natural que o PT não aceite isso. Mas a forma de recusar foi chocar-se diretamente com a Justiça, tentar dobrá-la com manifestações, apoio externo e uma inesgotável guerra de recursos legais.

Compreendo que isso era visto como uma forma de acumulação de forças. Mas, na verdade, também acumulou rejeição.

Quando Haddad foi lançado, cresceu rapidamente exibindo a máscara de Lula. No segundo turno, a máscara envelheceu como o célebre retrato de Dorian Gray.

Mas o período que se abre agora será de tanto trabalho, que talvez não tenhamos mais tempo para nos patrulharmos. São tempos complexos, que demandam mais humildade ainda.

Num debate em São Paulo, depois do primeiro turno, confessei como o processo me surpreendeu. As pesquisas indicavam uma grande vontade de renovação. Quando os partidos se destinaram quase R$ 2 bilhões para a campanha, concluí que a renovação seria mínima.

Apesar de ter feito algumas campanhas no território digital, minha reflexão ainda se dava no quadro analógico. A renovação, cuja qualidade ainda é discutível, aconteceu. Com R$ 53 milhões, Meirelles teve menos votos do que o Cabo Daciolo, um exemplo de como os velhos parâmetros foram para o espaço.

As próprias pesquisas que tanto critiquei no passado porque achava que favoreciam Sérgio Cabral, hoje as vejo com nostalgia. Existe informação na pergunta clássica em quem você vai votar.

Mas, para detectar tendências, é preciso um oceano de dados e capacidade de análise. As pesquisas envelheceram, sem que muitos se dessem conta. Mas não apenas elas envelhecem, num mundo em que a inteligência artificial avança implacavelmente.

E é nesse mundo que teremos de navegar. A situação econômica internacional não é favorável como no passado. Nos artigos em que trato de alguns de seus aspectos, começo sempre com o paradoxo: os Estados Unidos, que lideraram uma ordem multilateral, decidiram abandoná-la. Será preciso mais do que nunca acertar os passos aqui dentro. Isso significa gastar menos, fazer reformas.

Quando estava na Rússia, os primeiros protestos contra a reforma da Previdência foram abafados pelo oba-oba da Copa do Mundo. Soube que agora a popularidade de Putin caiu 20 pontos precisamente por causa dela. Em outras palavras, a vida não é nada fácil para quem precisa reformar o Estado e fazer um ajuste fiscal.

Nesse futuro tão nebuloso que nos espera, a tese do quanto pior melhor é atraente, no entanto, pode ser também um novo erro de avaliação.

Quando ficamos muito concentrados nos problemas internos, perdemos um pouco de vista nossa inserção internacional. A imagem do Brasil lá fora mudou. O próprio Bolsonaro começará seu mandato como um dos presidentes mais rejeitados pela imprensa planetária. Ele terá de moderar sua retórica. E quem faz oposição precisa tomar consciência da situação delicada em que o país entra.

A sobrevivência da democracia não está ameaçada. Mas algumas escoriações podem empurrá-la para o viés autoritário que hoje cresce no mundo.

As fake news, por exemplo, sempre existiram, mas hoje têm um peso maior, pelo alcance e velocidade. Utilizá-las sem escrúpulos e denunciá-las no adversário apenas confirma o pesadelo moderno da decadência da verdade.

É muito difícil chamar à razão a quem se considera o dono dela. Os intelectuais condenam as escolhas populares, mas, às vezes, não percebem a sede de sinceridade que há por baixo delas. Pena.


Fernando Gabeira: Novos tempos, nova tática

Esquerda atrelou o destino ao de um homem na cadeia, supondo que estava repetindo a história de Mandela

Manifestações dos leitores são um estímulo para avançar um pouco nesse oceano de emoções eleitorais. Alguns acham que trato de temas etéreos, que não interessam agora. Outros, que sou condescendente com Bolsonaro.

Talvez as pessoas estranhem que me dedique a um cenário pós-eleitoral, pois acho que o resultado do segundo turno é relativamente previsível. Os que me acusam de condescendente não percebem que estou tentando transferir uma experiência de relação com Bolsonaro para oferecer, se não uma tática, elementos de uma tática para o futuro próximo.

Minha experiência é de quem defendeu no Parlamento bandeiras que Bolsonaro ataca. As frases preconceituosas que ele eventualmente dizia são as mesmas que ouvimos nas ruas de todo o Brasil.

Minha relação com ele era de alguém que representava minorias, que até hoje apoio, com alguém que, no meu entender, estava mais perto do espírito majoritário das ruas.

Um ponto de convergência foi aluta contra a corrupção. Aliás, foi essa luta, nome utem pode político, que me permitiu disputar com alguma chance eleições majoritárias.

Minha atitude não foi ade rotular de fascista, misógino, racista ou homofóbico, mas compreender que, por baixo dessas reações populares, existe uma insegurança sobre as mudanças culturais, e é preciso buscar avanços que não provoquem um retrocesso maior. Discussões embaixo nível no Congresso contribuem para abrira Caixa de Pandora na sociedade. Hoje, infelizmente, está aberta.

O primeiro ponto de contato para enfrentara maioria, portanto, é afirmar que movimentos minoritários e culturais não precisam ser coniventes coma corrupção dos partidos de esquerda, ter vínculos com o poder, nem depender financeiramente dele. Delicado também será enfrentar a política ambiental de Bolsonaro, que pretende fundir os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente.

Compreendo que existam interfaces entre agricultura e meio ambiente. Mas os problemas ambientais são muito mais amplos: poluição urbana, destinação do lixo, redução das emissões, e há ainda o mar com seus corais, esperando uma ampla política de proteção.

Um ministro da Agricultura dificilmente seria capaz de cuidar de todos esses temas. Bolsonaro afirma que uma de suas missões é acabar coma indústria de multas do Ibama.

É um erro acenar com isso, embora possam existir multas excessivas ou mal aplicadas. O ideal seria uma política de preparação dos próprios agricultores para que pudessem produzir nas condições mais amigáveis ao meio ambiente.

Isso não é um argumento a penas ecológico, no sentido de preservara produção alongo prazo. As regras internacionais são cada vez mais exigentes: é também uma questão econômica.

Não pensem que não tenho consciência do enorme trabalho que teremos. Desde o princípio, afirmei que a tática da esquerda estava errada. Além de não reconhecer seus erros, atrelou o destino ao de um homem na cadeia, supondo que estava repetindo a história de Mandela.

Ao atrelar o destino a Lula, o PT escolheu o caminho mais difícil. E a esquerda saiu dividida. Ciro talvez fosse um pouco mais competitivo. Ainda assim, a onda era muito forte.

Isso tudo é passado. Estamos quase nomeio do segundo turno. As grandes escolhas foram feitas. Não criei essa situação. Forças poderosas estiveram em choque. É razoável que, prevendo o desfecho da batalha, comece a olhar para afrente, tentando desvendar, a partir da experiência, uma fórmula de lidar com o poder emergente.

Claro que, nos embates que nos esperam, outras posições vão surgir. Creio ter aprendido alguma coisa coma eleição de Donald Trump. Ali ficou claro que era preciso rever a tática, pois as críticas acusatórias só o faziam crescer.

Muita gente se disse surpreendida com o que aconteceu nas eleições. Algumas surpresas sempre acontecem. Mas quantos não quiseram ver, por achar que as coisas estavam se desenrolando de uma forma que não lhes agradava.

Bolsonaro era recebido por pequenas multidões nos aeroportos. Falava de luta contra a corrupção e, embora alguns concordem, foi ele que percorreu o Brasil defendendo-a.

Bolsonaro falava de segurança pública, e não houve um programa de segurança alternativa contra o seu. Vi seu crescimento e notei como os ataques o fortaleciam.

Só me resta agora segurar a onda do jeito que aprendi. Não significa que esteja certo. Apenas uma voz.


Fernando Gabeira: O capitão e o navio

Bolsonaro sentiu que a guerra cultural seria um caminho não só para ampliar votos no Rio, mas para projetá-lo nacionalmente

Não é uma simples segunda-feira de primavera. Neste momento, já se sabe que Bolsonaro venceu o primeiro turno das eleições e mais ainda: como se compõe o novo Congresso.

As pesquisas me divertem. As projeções do segundo turno são exercícios fantásticos. Saber que a rejeição a Eymael caiu de 19 para 13 pontos coloca um enigma de interpretação: o que Eymael fez na semana para reduzir o saldo negativo? Na superfície, ele continua o mesmo Eymael, um democrata cristão: zero por cento.

Imagino que comece hoje uma discussão sobre as causas que levaram Bolsonaro a vencer o primeiro turno. E também a ampla distribuição de culpa entre seus adversários.

É uma discussão importante. Mas, se for isolada do resto, tende amostrar Bolsonaro como um alienígena que simplesmente aterrissou num país em crise.

Isso tende a omitir seu papel pessoal. Bolsonaro foi o deputado mais votado no Rio, em 2014. Ele teve 464 mil votos, cerca de 6% do total, um feito extraordinário em eleições proporcionais. Naquele momento, ele já estava em ascensão batendo, principalmente, em duas teclas: corrupção e segurança pública.

Sua proposta em segurança tem uma vantagem sobre todas as outras. Reconhece a limitação do Estado e envolve o indivíduo, que teria sua própria arma. Já a critiquei e propus uma outra forma de participação social: a informação, através dos novos recursos tecnológicos.

Concordamos num ponto em que os outros silenciaram: sema adesão da sociedade, fica difícil atenuar o problema da violência. Bolsonaro sentiu também que a guerra cultural seria um caminho não só para ampliar seus votos no Rio, mas para projetá-lo nacionalmente.

Percebeu também que não bastava brigar com Jean Wyllys para se popularizar. Ele encontrou um flanco: a educação sexual nas escolas. Bolsonaro sabe que a maioria das famílias quer ter a primazia de educar sexualmente os filhos.

Ao lançar cartilhas e distribuí-las sem o controle das famílias, a esquerda tornou-se vulnerável porque pareceu querer substituir a orientação familiar, em vez de negociar com ela.

Ainda vou escrever muito sobre Bolsonaro, inclusive sobre os 16 anos em que estivemos juntos em algumas comissões da Câmara, divergindo nos costumes e concordando na denúncia da corrupção.

A grande dificuldade com Bolsonaro é que, essencialmente, é anticomunista e tende a combater todas as lutas lideradas pela esquerda, como se tivessem sido inventadas por ela. Ele tem dificuldade em distinguir direitos humanos e exploração ideológica, movimento das mulheres das visões radicais, meio ambiente e ameaça à propriedade privada e, no caso amazônico, cobiça internacional.

Algumas de suas ideias sobre meio ambiente, sobretudo as de fundo nacionalista, são compartilhadas pelas Forças Armadas. Será, portanto, um tema que demanda muita sensibilidade para evitar que se reproduza aquela profunda divisão do tipo nós e eles, brasileiros e lacaios do imperialismo.

Em outras palavras, o estigma que a esquerda criou, na economia, para quem defende a abertura ao capital estrangeiro tende ase repetir, agora, na esfera ambiental nocam poda cooperação planetária. Só que as pancadas virão da direita.

Com todas essas divergências, creio que será possível estabelecer um diálogo. Pessoalmente, sempre conversei com Bolsonaro ao longo de 16 anos.

Nos seus primeiros discursos na Câmara, ele pedia minha prisão porque eu era um sequestrador do embaixador americano. Ele queria reproduzir o debate sobre a luta armada. Os tempos eram outros, tínhamos um novo país para construir.

A esquerda me considera um traidor que ocupa um espaço na lata de lixo da história. Sou aquele jogador que já foi do time e a torcida vaia sempre que toca na bola.

Mas esquerda e direita são forças missionárias que tentam universalizar seu conceito de boa vida. Numa sociedade complexa como a nossa, precisamos reconhecer as diferenças e navegar com cuidado, administrando os problemas recorrentes.

A ideia de um país dominado pela Bíblia ou pelo “Capital” de Marx não deixa de ser legítima. Apesar da importância que ambos dão aos seus textos, eles são apenas um modesto guia. O mundo ultrapassa os velhos esquemas mentais. Ou, em linguagem bem brasileira: o buraco é mais embaixo.


Fernando Gabeira: Uma campanha à deriva no mundo

A política externa é nacional, não pode ser definida por uma visão estritamente partidária

Mais ou menos conforme previa, a situação internacional teve pouco peso na campanha de 2018. Não se parou para pensar na sua complexidade e nas consequências no futuro próximo do Brasil. O tema ficou reduzido às relações com os países vizinhos: a Venezuela ocupou o centro, uma vez que seu drama atravessa a fronteira.

É um debate desconfortável para a esquerda, que apoia Maduro, pois milhões de pessoas na estrada julgam com os próprios pés o governo bolivariano. Mas se olhamos um pouco mais amplamente, há outros traços que favorecem a esquerda. A ascensão de Donald Trump já se dava num quadro de relativo declínio da supremacia americana, atenuada pela tática do soft power de Obama.

Trump optou por um caminho isolacionista, cortando vínculos multilaterais e abrindo mais espaço para a China, que o ocupa com rapidez. Embora expresse o temor dos americanos com a globalização, Trump ainda vive um processo de aprendizado, cheio de erros.

Os chineses, a julgar pela visão de Henry Kissinger, planejam por gerações, a escala de tempo de seu projeto é algo que supera de longe os planos de um só presidente. Além de ocupar os espaços abertos pelos EUA, a China se aproxima da Rússia, que, por sua vez, ampliou seu poderio militar. Um dado dessa força foi o anúncio de Putin sobre as novas armas nucelares, em março de 2018.

Consegui perguntar a alguns candidatos sobre a relação com a China, que já é o maior parceiro comercial do Brasil e vive um momento de expansão. Existe um debate sobre o papel da China como investidora em países da África. Alguns consideram que ela exerce um forte poder político por meio da presença econômica, interferindo até nos marcos regulatórios. Outros afirmam que a fragilidade desses países não pode ser atribuída à ação chinesa, mas ao precário sistema jurídico local. Este argumento é interessante, porque os europeus parecem abertos e até felizes com a atração dos capitais chineses.

Essa questão ficou mais ou menos no ar, a partir de um consenso de que o capital chinês é bem-vindo. Bolsonaro afirmou que os chineses podem comprar e vender no Brasil, mas não comprar o Brasil. Não ficou claro se sua restrição é apenas à compra de terras ou se falava de um Brasil menos material do que o chão, matas e rios.

A verdade é que a correlação de forças muda no mundo e o peso econômico da China será cada vez maior. Mas não é conveniente subestimar não só o poder econômico, mas a influência cultural norte-americana.

Se olharmos a guerra cultural que se travou na campanha entre esquerda e direita, veremos que ela não é só influenciada pelos norte-americanos, como também se entrelaça com o debate de lá. Vários artistas americanos opinaram sobre a eleição brasileira por encontrarem pontos de identidade com a luta que travam contra Donald Trump.

China e Rússia não veriam com bons olhos manifestações de gays e mulheres em seu território. Nesse campo cultural, ambas se colocam num campo oposto ao que se chama de visão de esquerda no Brasil.

A esquerda soube se aproximar das lutas identitárias e carimbá-las como uma decorrência de sua visão de mundo. Pessoalmente, reconheço que tive um papel nisso.

Mas algumas dessas lutas em outro contexto, como o russo, por exemplo, nascem no reduto liberal. E é compreensível, porque quase todas elas tratam, no fundo, de liberdades individuais.

Na campanha brasileira as coisas não aparecem com nitidez. De um lado, uma aliança entre conservadores nos costumes e liberais na economia. É um encontro que tende a produzir faíscas. Em recente entrevista, Vargas Llosa criticou o economista liberal Paulo Guedes por se associar a Bolsonaro. Ele acha que são visões incompatíveis.

De outro, na esquerda, a análise da queda de Dilma parece ter concluído que era preciso não apenas ganhar as eleições, como tomar o poder. O que significa reduzir os poderes que a confrontaram: Justiça e imprensa. Dificilmente a tendência autoritária na visão de governo não se chocará com as pessoas que votaram apenas porque temiam Bolsonaro.

Para mim, todas essas peças que se juntam e se opõem precisam ser mais bem avaliadas. Minha conclusão momentânea é que, no poder, só uma direita soft ou uma esquerda soft evitariam a turbulência.

Li uma frase engraçada sobre eleições: são como um bufê, você não pode pedir um ovo frito. Mas depois das eleições, quem sabe? O vencedor será o presidente de todos os brasileiros. Nem todos cabem no figurino dos ideólogos.

Quanto à política externa, que ficará ainda por ser mais bem discutida, é essencial que seja compreendida como algo nacional e não definido por uma visão estritamente partidária. Não só porque a estreiteza exclui um consenso interno mais amplo. É que a complexidade do mundo assim o exige.

No passado, quase nunca discutíamos o papel do Brasil no mundo. Pelo menos, antes de avaliarmos que mundo é esse a que nos referimos. Se a campanha não fizer isso no segundo turno, certamente o problema reaparece no ano que vem.

Um dos pontos que devem ser muito bem pesados é a política ambiental. Bolsonaro tem proximidade com Trump nesse tema. Porém adotar a mesma política no caso brasileiro significa um grande impacto internacional.

Certamente foi grande o impacto da saída dos EUA do Acordo de Paris, por exemplo. A importância dos norte-americanos na política ambiental decorre muito de sua importância econômica, seu papel na redução de emissões. No caso brasileiro, qualquer passo atrás será visto com sobressalto. É como se uma potência ambiental deixasse de se unir ao esforço planetário para atenuar as mudanças climáticas.

Tudo isso em véspera de eleição fica um pouco em suspenso como uma camada de pó. Quando a poeira baixar... Vamos esperar o que dizem as vozes de domingo. São o farol que vai clarear o novo pedaço do caminho.


Fernando Gabeira: Primeiros dias do novo mundo

Período que vem por aí é muito difícil. Você não inveja os vencedores, a economia patina, o Congresso não se renova

Outro dia, uma simpática leitora me escreveu, dizendo que eu estava em cima do muro. Não é exatamente isso o que acontece. Estou na mesma posição que estarei depois das eleições: independência crítica.

Não gosto de muros, tanto que, quando caiu o de Berlim, mudei-me para lá com a família, para acompanhar as consequências. Nem todo muro dá para aceitar. Nas eleições municipais do Rio, recusei a alternativa que a maioria dos eleitores me apresentou.

Recusá-la agora não significa desrespeito às grandes multidões que escolhem Lula ou Bolsonaro. Pelo contrário, uma oposição consciente pode ser uma forma de valorizar essa escolha.

A amiga pede que eu rejeite apenas Bolsonaro. É ameaçador para a democracia. Ela leu nos jornais que o PT, ao contrario, tem um forte compromisso com a democracia.

Respeito sua posição e a dos jornalistas. No entanto, era deputado federal no período do mensalão. Discutir com fantoches comprados pelo governo era para mim um arremedo de democracia.

Creio que passa por aí nossa divergência. No meu entender, a ameaça à democracia não se resume hoje ao clássico golpe militar, com tanques na rua. Ela pode ser subvertida por dentro, envenenada aos poucos.

Talvez a amiga precise de um pouco de paciência não só comigo, que não aceito esse muro, como também com as pessoas que realmente estão ainda em cima dele, por indecisão. Se ajudar, recomendo o livro de John Gray — “A alma da marionete, um breve ensaio sobre a liberdade humana” — que acaba de ser lançado aqui. Entre outras coisas, ele diz: “não é a autoconsciência, mas a divisão de si mesmo que nos torna humanos.”

Isso não quer dizer que não fazemos escolhas. Caso contrário, não estaríamos onde estamos hoje. Lembro que há pouco mais de 20 anos brincava sobre o tema, com Luís Eduardo Magalhães. Ele, presidente da Câmara; eu, o único deputado do PV. Ele dizia, para me ironizar: como vota sua bancada? Eu dizia: a bancada tem apenas uma pessoa, por sinal bastante dividida.

Compreendo que a pressão é natural. Muitos artistas já estão mergulhados no dilema de declarar voto.

Infelizmente, não sou artista, mas apenas alguém com uma experiência política de pouco mais de meio século. Minha análise me conduz à oposição, não importa o que sair desse duelo entre Lula e Bolsonaro.

Só que, nas circunstâncias nacionais, terá de ser uma oposição construtiva e cuidadosa, exatamente porque me preocupo com a democracia.

Há algum tempo que procuro conhecer os programas de governo do PT e de Bolsonaro. São vagos o bastante para não rejeitá-los em bloco, mas contêm várias armadilhas.

Na verdade, não há ainda programa real de governo. Há intenções, acenos contraditórios. A necessidade de seduzir o centro ainda pode trazer novidades.

O choque de personalidades ofuscou o confronto entre programas. Não só os que estão no muro como os que recusam o dilema eleitoral representam um estímulo para que os candidatos sejam mais explícitos em suas propostas, moderados em sua retórica.

Mesmo com um conhecimento precário dos verdadeiros programas, esquerda e direita terão muitas dificuldades para implementá-los. Como impor uma agenda liberal a um país dividido, como impor uma agenda como a dos anos petistas?

Não, se conseguirmos deter a intolerância entre os contrários. Mas outra busca é possível: deter a intolerância contra quem simplesmente não toma o partido de um dos lados.

Ao invés, é essencial evitar a potencial tragédia no choque entre eles.

O período que vem por aí é muito difícil, desses em que você não inveja os vencedores. A economia patina, o Congresso não se renova, e as eleições sempre trazem grandes expectativas.

Não esperava encarar isso nos primeiros anos de democratização. Mas é preciso olhar de frente. Para mim, o Galeão não é saída porque leio o outro nome dele, Antonio Carlos Jobim, e me lembro da beleza e do talento que o país abriga.

Será apenas uma longa fase de sufoco.


Fernando Gabeira: Duelo ao entardecer

Os moderados foram engolidos pela onda. Isso não significa que não terão importância no futuro

“Satanás, pegue tudo o que é seu e deixe esta nação.” Esta frase do Cabo Daciolo diante da fogueira era apenas um lembrete de que estas eleições parecem um sonho dentro de sonhos.

Posso imaginar o Satanás, posso vê-lo retirando seus pertences como um passageiro após a aterrissagem. Não consigo imaginar o que Satanás tem de carregar, esse tudo o que é seu.

Não tenho tempo para divagar sobre isso. Prefiro esperar a saída dele e, ao me dar conta das coisas que estão faltando, possa concluir que foram levadas por Satanás.

Outro dia, algumas pessoas me xingavam na rede. E não eram as mesmas de sempre. Descobri que foi um delírio do Ciro Gomes.

Numa entrevista a um repórter de esquerda, ele confessou que salvou Lula do mensalão e que para isso falou com várias pessoas. Eu, inclusive. Nunca houve essa conversa. Trabalhava na CPI dos Sanguessugas, que, aliás, foi bastante dura. Ciro contou essa história para impressionar o PT. Já foi punido porque o PT lançou Haddad.

E as pessoas que me xingaram, essas também estão perdoadas porque carregam o fardo cognitivo de acreditar em bravatas de campanha.

Vamos à realidade que também parece um sonho: as pesquisas apontam para um duelo entre dois líderes populares, um na cadeia, outro, no hospital.

Claro que o duelo entre os dois envolve visões diferentes de mundo, conflitantes realidades. Eles apenas encarnam fortes correntes na sociedade

Tanto Lula quanto Bolsonaro, além de suas personalidades, representam também o êxito da comunicação verbal, com seus encantos e defeitos.

São nomes falados em todo o território nacional. Escapam do círculo relativamente pequeno do universo político e se entendem com quem querem se entender.

Às vezes, um milionário, estimulado por marqueteiros, faz uma investida, mas descobre logo que o mar é imenso, quantos não morrem alguns metros além da praia? Ao que tudo indica, os dois personagens encarnam multidões, ávidas por mudanças e pela continuidade.

Depois de anos de dominação da esquerda, a grande interrogação do processo é saber se continua ou dá lugar às forças de oposição que cresceram no combate ao governo petista.

Isso me parece a realidade. Mas, como o processo é imprevisível, o fato de se encarnar em duas pessoas aumenta sua imprevisibilidade.

Tenho a impressão de que essas grandes tendências se movem de uma forma tão autônoma que não vejo espaço para a ação individual detê-la, embora ache que os candidatos devam continuar lutando, os eleitores votando no que acharem o melhor etc.

Mas, por via das dúvidas, creio que o mais prudente é se preparar para uma nova realidade, onde uma dessas forças será a vencedora.

Em termos eleitorais, os moderados foram engolidos pela onda. Isso não significa que não terão importância no futuro. Apesar de tudo, a moderação é a única força capaz de empurrar os vencedores para a ideia de um projeto nacional mais abrangente, superar o clima nostálgico de Guerra Fria que envolve os contendores.

Apesar dos excelentes livros sobre o declínio da democracia, esse enredo foi vivido intensamente no Brasil. O Congresso, de baixo nível, tende a não se renovar. O Supremo se desgastou ao vivo e a cores.

Cabo Daciolo convida para uma luta contra principados e potentados. Adoraria estar junto, mas dificilmente terei tempo na vida real.

O cenário que se desenha não é o melhor para um grande projeto de reconstrução. No entanto, precisamos sair dessa maré. De qualquer forma, a nova conjuntura vai inspirar cuidado. Esta palavra é sempre associada aos mais velhos.

De fato, na juventude, cuidado não era assim tão valorizado. Pura irresponsabilidade? Parcialmente, por acreditar na destruição construtiva, uma vontade de virar a mesa.

Assim como Satanás, segundo o Cabo Daciolo, tem que preparar suas coisas e deixar a nação, fico me perguntando que coisas tenho de juntar para a fase que se aproxima.

Uma delas, certamente, é saber que, apesar de sua decadência, não podemos passar sem a democracia, que, por sua vez, precisa evoluir.

A realidade está aí. É possível se perguntar onde tudo começou, dizer “bem que avisei”, buscar os culpados. Suspeito que não nos dará tempo para divagações. Em outras palavras: apertar os cintos.


Fernando Gabeira: Pão, pão, queijo, queijo

É com a realidade que está aí que teremos de construir nossos sonhos, ainda que modestos

Ando muito pelo Brasil, mas não faço pesquisas. Nem pergunto em quem o interlocutor vai votar. Apenas converso. E com isso vou formando um quadro que, às vezes, é confirmado pelas pesquisas que dizem ter estreita margem de erro.

Faz algum tempo que tento me acostumar com a realidade que vem pela frente, um confronto polarizado entre dois líderes populares, Lula e Bolsonaro. Como um está na cadeia e o outro no hospital, a eleição ganha um tom de realismo fantástico. É preciso abstrair a dimensão romanesca e cair na realidade: um dos dois será vitorioso, com todas as consequências que isso implica.

Senti no Nordeste que Lula tem muita força. Na Bahia, sobretudo, um sentimento de gratidão a Lula e a popularidade do governo local indicam uma supremacia da esquerda. No Norte, Sudeste e Sul, ouço muito o nome de Bolsonaro. Se o que vi tem o valor de uma pesquisa espontânea, minha inclinação é supor que a aspiração de mudança está encarnando nele.

Às vezes tendo a imaginar se essa imensa resistência ao governo de esquerda não se parece com o susto que os franceses tiveram com o Maio de 1968, optando pela volta de De Gaulle.

Não vejo o momento que virá pela óptica dos anos 60 no Brasil, pelo menos não o descreveria como Roberto Campos ao analisar a queda de Goulart e a tomada do poder pelos militares. Para ele, a alternativa eram anos de chumbo ou rios de sangue. E também não é, como às vezes dizemos brincando, um dilema entre Venezuela e Filipinas. O presidente das Filipinas é um peso-pesado no gênero. E um destino venezuelano é altamente improvável. Maduro não se aguentaria tanto tempo se não tivesse cooptado as Forças Armadas com empregos que rendem muito aos generais. No Brasil isso seria diferente.

Ainda assim, descartando modelos mais assustadores, viveremos uma situação delicada. As duas forças em presença são dificilmente conciliáveis.

Nos Estados Unidos, apesar da rivalidade, em alguns e raríssimos momentos democratas e republicanos reconhecem o interesse nacional. Já a polarização brasileira, de uma certa forma, reduziu as chances de um esboço de projeto nacional para enfrentar a crise e reconstruir o País. Certamente cada uma das partes tem o seu. Mas ele dificilmente atravessa os limites dos seus entusiasmados seguidores.

O estímulo ao equilíbrio deve vir da sociedade, mas isso não é fácil quando a maioria dos eleitores pende para uma visão mais radical. O discurso do equilíbrio é sentido como uma das formas de manter o sistema político-eleitoral. As expectativas são muito maiores.

Num posto de gasolina da estrada, um homem com um longo chapéu de palha me disse: “Voto no Bolsonaro porque é preciso virar a mesa”. Nesses momentos sinto a fragilidade dos instrumentos com que deveríamos contar quando o presidente assumir: Congresso e Supremo Tribunal.

O Congresso, na verdade, é a força sobre a qual a sociedade ainda pode exercer uma influência maior. Ainda assim, com discretíssimas mudanças será sentido mais como parte do problema do que como solução.

O Supremo... Bem, o Supremo todos sabemos que está parcialmente empenhado em neutralizar a Lava Jato. Cada vez que concede um habeas corpus, liberta um condenado, desmembra um processo para tirá-lo de Curitiba, está alimentando o desejo de uma renovação pela direita.

Vejo um amplo jogo de grandes forças sociais e, diante dele, poucas as chances da intervenção individual. Reconheço que vivemos num país com alto nível de imprevisibilidade. Mas, com os dados que tenho, creio que a tarefa será cada vez mais pensar os próximos passos, estabelecer um roteiro de redução de danos. É uma tarefa para todos os que querem sair do atraso, incluídos os eleitores mais moderados dos dois líderes.

Ultimamente têm surgido alguns livros no Brasil sobre a decadência da democracia, que não sofre mais golpes de Estado, mas simplesmente transita para regimes autoritários. Os livros são ótimos, porém o cenário dos últimos anos no Brasil é um livro aberto. Várias vezes o Congresso votou projetos absurdos sabendo que estava cavando um abismo maior entre os políticos e a sociedade. Os escândalos de corrupção, que levaram um grupo para a cadeia e deixaram seu principal aliado agonizando diante da pressão policial, tudo isso contribui para um desencanto geral com o sistema político-partidário.

Não se trata de um “bem que avisei” ou de caça aos culpados, apenas uma constatação importante de como será difícil a nova fase.

Se uma visão mais moderada perder a batalha eleitoral, e isso me parece provável no momento, não terá perdido com isso a sua importância. Ela pode ser um fio de esperança para que surja um projeto de reconstrução mais consensual. E ser uma espécie de algodão entre cristais, lembrando que a guerra fria acabou e é necessário superar os grandes dilemas ideológicos para recuperar o tempo perdido.

A polarização entre dois líderes populares de certa forma simplifica e torna o processo mais caloroso ainda. Mas revela como surgem os líderes nacionais no Brasil democrático. Eles simbolizam também a força da comunicação oral. São capazes de transmitir a mensagem que a forma literária dos intelectuais não consegue.

Claro que seu discurso também é lido, perpassa os jornais e revistas. No entanto, é a linguagem oral, com seus erros, hesitações e exageros, que consegue chegar ao coração dos eleitores em escala nacional. Outros podem usá-la sem êxito. Entra aí um outro fator importante: o papel do indivíduo, sua trajetória e personalidade.

Poderia divagar muito sobre o dilema brasileiro. Poderia até desejar que não fosse assim. Mas seria perda de tempo. Se não estou muito equivocado, essa é a realidade que está aí. E é com ela que teremos de construir incessantemente nossos sonhos, ainda que modestos.