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Favelas em bairros caros sofrem até 3 vezes mais com incêndios, mostra estudo em São Paulo
Thais Carrança*, BCC News Brasil
"A gente estava dormindo, com as crianças. Começamos a acordar no meio do fogo e foi aquele desespero. Eu tirando minha filha que tem sete meses, é uma bebezinha. Nós começamos a gritar, não deu tempo de tirar nossas coisas. Perdi o botijão de gás, roupa da minha filha, fralda."
O relato é de Vitoria, então moradora da Favela do Cimento, localizada na Mooca, zona leste de São Paulo. Foi colhido pelo portal Brasil de Fato em março de 2019.
"Foram lá, aproveitaram que estávamos dormindo e tocaram fogo no barraco da gente."
Em dezembro daquele mesmo ano, outra reportagem, do jornal Agora, relatava o destino do terreno: "Praças com jardins, canteiros e um pequeno parquinho ocupam o lugar que antes era a favela do Cimento, na Mooca (zona leste), que pegou fogo em março, um dia antes da reintegração de posse, e onde moravam ao menos 50 famílias."
O caso da Favela do Cimento não é isolado. Frequentemente, após incêndios em favelas nos grandes centros urbanos brasileiros, moradores levantam suspeitas de que o fogo teria sido provocado de forma criminosa, para forçar a remoção das famílias pobres do local.
Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada na Câmara dos Vereadores de São Paulo em 2012 chegou a investigar o tema, mas foi encerrada sem consenso, apontando em seu relatório final fatores como "baixa umidade, falta de chuva, sobrecarga de energia em instalações precárias, uso de botijões de gás e de madeira nas construções" como causadores dos incêndios recorrentes.
Diante desse cenário, o economista Rafael Pucci decidiu investigar em seu doutorado no Insper se há fundamentos econômicos para a hipótese de que parte dos incêndios em favelas pode estar relacionada à pressão da especulação imobiliária em áreas valorizadas.
Usando mapas detalhados das favelas da Prefeitura de São Paulo, dados de incêndios do Corpo de Bombeiros e estimando o valor da terra a partir da base de cálculo do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) do município, o economista encontra que os incêndios são até três vezes mais frequentes em favelas localizadas em bairros com propriedades de maior valor.
Ainda segundo o estudo, os incêndios afetam mais favelas em terrenos privados do que em áreas públicas. E os incêndios em áreas valorizadas tendem a ser muito mais destrutivos do que nas demais regiões.
Mesmo controlando para fatores estruturais, como densidade populacional, acesso a eletrodomésticos e condições de infraestrutura — que poderiam justificar uma maior incidência de incêndios acidentais —, os resultados se mostram consistentes, destaca o pesquisador.
"A importância do estudo é apontar para o fato de que esses incêndios estão atingindo muito mais algumas favelas do que outras. E que isso pode ter uma relação com direitos de propriedade e com disputa pela terra", afirma Pucci, em entrevista à BBC News Brasil.
"Dado que isso gera tantos problemas para quem vive nessas favelas, o poder público precisa tomar uma iniciativa e ser mais ativo em tentar entender o que está acontecendo de verdade, e propor soluções que busquem evitar que isso aconteça mais vezes."
Procurada, a Prefeitura de São Paulo não comentou os resultados do estudo, mas destacou suas políticas para habitação e atendimento a famílias que vivem em áreas de risco. Segundo a prefeitura, existem atualmente 1.744 favelas mapeadas na capital paulista e são estimados 399 mil domicílios nesses locais.
A BBC News Brasil também procurou Ricardo Teixeira, vereador licenciado e atualmente secretário Municipal de Mobilidade e Trânsito de São Paulo, que presidiu a CPI dos Incêndios em Favelas na Câmara Municipal em 2012.
"De acordo com os depoimentos ouvidos pelos vereadores, na época em 2012, inúmeros fatores foram responsáveis pelos incêndios em favelas. Podemos destacar os problemas climáticos e elétricos como os principais. Em relação a incêndios criminosos por conta de uma possível especulação imobiliária, não tivemos nenhuma comprovação de que isso possa ter acontecido", disse Teixeira, em nota.
"Em 2012, pelo pouco tempo transcorrido, os vereadores membros da CPI não tiveram tempo de aprofundar o relatório e eu deixei claro ao final dos trabalhos que na legislatura seguinte fosse aprofundado o assunto, como fez o estudo do Insper", completou o vereador licenciado.
Favela Praia do Pinto, 1969
As suspeitas de motivação econômica para os incêndios em favela no Brasil são tão antigas quanto os próprios incêndios.
Segundo Pucci, o primeiro incêndio em favela de que se tem registro no país aconteceu em 1969, na favela Praia do Pinto, localizada no bairro nobre do Leblon, no Rio de Janeiro.
"Seu despejo foi incluído num grande programa federal que removeu cerca de 175 mil pessoas de 62 favelas da cidade à época. O governo pretendia destinar a área para novas avenidas e habitações de classe média e alta, mas o processo de despejo começou de forma vagarosa em março de 1969, enfrentando resistência dos moradores das favelas", lembra Pucci, no estudo.
"Em maio, milhares de pessoas ainda aguardavam ser realocadas para projetos habitacionais recém-construídos em outras regiões do Rio de Janeiro, quando um incêndio irrompeu durante a noite, destruindo 1 mil moradias e deixando 5 mil pessoas na rua."
A resposta do governo foi acelerar os despejos e a realocação dos favelados. Os moradores alegavam à época que o incêndio havia sido intencional, servindo convenientemente ao propósito da operação de despejo, relata o pesquisador.
Jornais da época, no entanto, relatam que o fogo teria começado a partir de fagulhas provenientes da queima de tábuas atrás do campo do Flamengo, clube vizinho ao local da favela.
Mais de meio século depois desse caso emblemático, os incêndios em favelas continuam sendo frequentes. Conforme o estudo do Insper, cerca de 800 incêndios destruíram mais de 5 mil moradias em favelas entre 2010 e 2017 na cidade de São Paulo.
Além de tirar a vida de moradores de favela e deixá-los sem suas casas e posses, esses incêndios geram custos ao poder público com moradia temporária e ajuda financeira às famílias atingidas, observa o economista.
Ao desalojar pessoas vulneráveis, sem alternativa de lugar para ir, os incêndios também acabam resultando no surgimento de novas favelas, ainda mais precárias.
Conflito pela terra nas cidades
Rafael Pucci conta que iniciou sua pesquisa em 2016, ano em que, somente até julho, a cidade de São Paulo contabilizou 100 incêndios em favelas. Quatro anos antes, em 2012, uma CPI na Câmara dos Vereadores, com objetivo de apurar as causas e responsabilidades pela recorrência dos incêndios em favelas, também havia colocado o tema em evidência.
"Por conta desse contexto, havia essa hipótese de que os incêndios poderiam ser criminosos, para remover as favelas. Uma parte do meu trabalho então foi tentar entender, do ponto de vista teórico, se isso fazia sentido", diz o economista.
Pucci explica porque relaciona a questão dos incêndios em favela com os conflitos pela terra no campo.
"No campo, vemos conflitos violentos que ocorrem por conta de disputa da terra e isso está relacionado com problemas de direito de propriedade — a terra nem sempre tem um dono muito claro, ou às vezes tem, mas tem a questão do usucapião. Então existe isso no campo e, nas cidades, em princípio, a questão das favelas tem os mesmos elementos", afirma.
Segundo dados do Corpo de Bombeiros da Polícia Militar do Estado de São Paulo, cerca de 30% dos 198 incêndios em favelas registrados em São Paulo entre 2001 e 2003 teriam origem em ação humana intencional, conforme estudo de 2010 da pesquisadora Ana Paula Bruno (FEA-USP), citado pelo pesquisador do Insper.
No entanto, dados do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) levantados pelo economista sugerem que menos de 7% dos casos de incêndios ocorridos em favelas entre 2011 e 2017 chegaram a julgamento.
"Há uma dificuldade de achar a causa dos incêndios porque, quando as favelas pegam fogo, o fogo costuma se alastrar muito rápido", diz Pucci, lembrando que as favelas são compostas de muitos materiais combustíveis, por serem muitas vezes construídas com madeira.
"Esses incêndios costumam tomar grandes proporções, o que torna mais difícil entender exatamente onde começou. Por consequência, isso dificulta o trabalho de perícia e de identificar potenciais culpados", afirma o pesquisador, para quem esses são alguns dos fatores por trás do baixo número de casos levados a julgamento.
Como o estudo foi feito
Em seu estudo, Pucci opta por analisar especificamente os incêndios na cidade de São Paulo.
Isso por uma questão de disponibilidade de dados e pelo padrão de distribuição das favelas no município, heterogêneo entre vizinhanças com valor da terra distintos e diferentes níveis de gentrificação — expressão usada para o processo de transformação urbana que "expulsa" moradores de baixa renda das vizinhanças, para transformá-las em áreas mais valorizadas.
Com base em dados da prefeitura, o economista mapeia 1.727 favelas de São Paulo, observadas entre 2006 e 2018.
O pesquisador cruza esses dados com informações de todos os incêndios registrados em São Paulo pelo Corpo de Bombeiros do Estado entre 2011 e 2016, e com reportagens publicadas na imprensa sobre incêndios em favelas na capital paulista.
Assim, Pucci consegue mapear os incêndios ocorridos em favelas (551 no total neste período) e também aqueles registrados em outros locais (1.231), que servem como grupo de controle.
Por fim, o pesquisador combina esses dados com o valor da terra, calculado a partir dos valores estimados das propriedades formais do município na base do IPTU, cobrado pela Prefeitura.
O que ele encontra é uma concentração desproporcional de incêndios nas favelas localizadas em vizinhanças com valor estimado da terra mais alto.
"O principal resultado é que, de fato, favelas que têm preço inferido mais alto do terreno parecem ter um número de incêndios maior do que aquele que seria explicado por fatores estruturais. Ou seja, tem um número ali que está acima do que se esperaria se fosse só acidente", diz Pucci.
"É importante deixar claro que, com esse estudo, eu não consigo afirmar nada em termos de intencionalidade. Não é um estudo de criminalística. Mas ele mostra um aspecto peculiar na distribuição desses incêndios."
No estudo, o pesquisador do Insper busca controlar a causa dos incêndios para outras hipóteses, como a de que eles poderiam estar relacionados a uma maior densidade populacional dessas favelas localizadas em terrenos mais valorizados; maior acesso a eletrodomésticos, que poderiam sofrer falhas, provocando incêndios; ou à estrutura mais precária dessas comunidades.
Usando dados do Censo de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de geografia e Estatística), Pucci mapeia o acesso a infraestrutura e a densidade habitacional nas favelas. Ele observa, no entanto, que a distribuição desses fatores é bem mais uniforme entre as diferentes faixas de valor da terra, do que a distribuição dos incêndios.
"Isso sugere que a frequência anormal de incêndios em favelas nos maiores decis de valor das propriedades não são simplesmente uma consequência mecânica de maior acesso à eletricidade, pior infraestrutura e maior densidade", escreve o pesquisador.
Para além de endereçar a questão do direito de propriedade em favelas, Pucci avalia, a partir do resultado de seu estudo, que o poder público deve agir de forma a evitar nova ocupações irregulares.
"É preciso tornar o acesso à moradia formal mais fácil para as pessoas que acabam morando em favela. Diminuir o custo da moradia formal e tomar outras medidas que façam com que as pessoas não tenham que ocupar essas áreas e se expor a esses riscos", afirma.
"É necessário tornar mais acessível a moradia em grandes cidades como São Paulo."
O que diz a Prefeitura de São Paulo
A BBC News Brasil questionou a Prefeitura de São Paulo sobre como ela avalia os resultados do estudo do Insper, que sugerem que os incêndios em favelas podem estar relacionados ao processo de especulação imobiliária no município.
A prefeitura não respondeu a esse questionamento.
A gestão municipal, no entanto, informou que "de 2017 até o momento, mais de 33 mil famílias que viviam em áreas de risco foram beneficiadas com obras de urbanização com a implantação de redes de água e de coleta de esgoto, contenção e estabilização de encostas, criação de áreas de lazer, pavimentação e abertura de ruas e vielas, entre outras intervenções".
Outras 6 mil famílias recebem auxílio aluguel até o atendimento habitacional definitivo. Ainda segundo a prefeitura, 19,5 mil moradias foram entregues entre 2017 e 2022 em parceria com os governos estadual e federal, e outras 13 mil estão em obras.
A gestão de Ricardo Nunes (DEM) diz ainda que recentemente publicou edital para compra de 45 mil unidades habitacionais, com investimento de R$ 8 bilhões, com objetivo de zerar o banco de famílias que recebem atualmente auxílio-aluguel.
Também citou a criação do programa habitacional Pode Entrar, com previsão para produzir 14 mil moradias até 2024 em parceria com 71 entidades.
A prefeitura não respondeu sobre suas políticas para prevenção de incêndios em favelas, mas sobre o atendimento às famílias atingidas informou que "as equipes da Coordenação de Pronto Atendimento Social (CPAS) realizam atendimentos a emergências em toda a cidade mediante acionamento da Defesa Civil do Município".
"As equipes ofertam encaminhamentos para os serviços de acolhimento da rede socioassistencial da prefeitura, distribuem itens de primeira necessidade e realizam os cadastros das pessoas atingidas, que são repassados aos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) da região da ocorrência, para que possam acompanhá-los e se possível incluí-los em benefícios sociais."
*Texto publicado originalmente no site BBB News Brasil
Potencial de consumo em favelas chega a R$ 167 bilhões em 2022
Gabriela Caseff*, Folha de São Paulo
O potencial de consumo nas favelas brasileiras aumentou. Pesquisa realizada pela Outdoor Social Inteligência mostra que, após recuo em 2021, capacidade de dinheiro movimentado nas comunidades subiu de R$ 159 bilhões para R$ 167 bilhões em 2022.
O levantamento revela ainda que a renda familiar mensal passou de R$ 2.500, em 2021, para R$ 3.036 neste ano.
"A pesquisa indica que existe uma população assalariada e empreendedora que precisa ser tratada como parte da cidade, que tem influência econômica", diz Emilia Rabello, CEO da Outdoor Social.
"São pessoas que trabalham, pagam impostos, têm crédito na praça e não são invisíveis para o sistema financeiro."
A maior parte do dinheiro movimentado nas favelas vai para a habitação, com mais R$ 50 bilhões, seguida pela alimentação dentro do domicílio, que ultrapassa R$ 17 bilhões e, em terceiro lugar, para materiais de construção, que correspondem a mais de R$ 6,5 bilhões.
"Acredito que o que explica esse aumento de R$ 8 bilhões no potencial de consumo, em um ano, é a recuperação econômica, com a população pagando dívidas e ganhando crédito", afirma Rabello.
O levantamento cruza e analisa dados diversos, do IBGE ao Serasa Experian, para mapear a população que mora em áreas denominadas "aglomerados subnormais", onde não há regularização fundiária.
São 6.239 favelas no país onde vivem mais de 11 milhões de pessoas, quase metade pertencente à classe C. Em 2021, eram 12,5 milhões de pessoas.
"A população diminuiu porque houve legalização de territórios, com entregas de título", explica Rabello.
A pesquisa destaca como moradores de favelas podem ser grandes consumidores se tiverem acesso a crédito, empregabilidade e melhores oportunidades para alcançarem estabilidade financeira.
Entre as favelas com maior potencial de consumo no país se destacam Rocinha, Complexo da Maré, Rio das Pedras e Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, segundo levantamento feito em 2020 pela empresa.
Sol Nascente lidera em Brasília, enquanto Paraisópolis e Heliópolis se destacam em São Paulo e Coroadinho em São Luis, no Maranhão.
"Queremos tirar a favela da invisibilidade, pois para muitos ainda é um lugar de violência ou assistencialismo", diz Emilia Rabello.
A Outdoor Social, que atua com veiculação de mídia dentro de comunidades, aposta em pesquisas para mostrar a influência econômica desses territórios.
"O pequeno comércio é pujante nessas comunidades e nenhum empreendedor abre negócio onde não tem consumo", afirma Rabello. "Grandes empresas ficam surpreendidas porque tinham miopia sobre esse público."
Texto publicado originalmente na Folha de São Paulo.
Ana Flauzina: Chacina do Jacarezinho impõe que STF dê uma resposta
No último dia 05 de maio, o presidente Jair Bolsonaro declarou no Palácio do Planalto que poderia editar um decreto contra as medidas restritivas impostas por governadores e prefeitos como forma de controle da pandemia. De forma taxativa, disse que a medida não poderia ser “contestada por nenhum tribunal”. À tarde, se encontrou com um de seus aliados políticos, o governador do Rio de Janeiro Cláudio Costa (PSC), no palácio das laranjeiras em reunião a portas fechadas.
No dia seguinte, um banho de sangue inundou a favela do Jacarezinho. Com a justificativa de cumprir mandados de prisão contra 21 suspeitos de envolvimento com tráfico de drogas, a operação se transformou em um massacre após um dos policiais envolvidos na ação ser assassinado. Dos 27 homens mortos pelas forças policiais, apenas 4 eram alvos iniciais da operação. Relatos de testemunhas indicam que o alegado confronto que integra a narrativa policial não se verificou em todos os casos, com pessoas implorando para serem presas e sendo executadas a sangue frio.
Conectar esses dois eventos me parece fundamental para compreendermos o cenário político atual. De um lado, temos um pronunciamento presidencial que dá um recado claro ao Supremo Tribunal Federal, seguindo com a lógica de desgaste institucional que a todo tempo flerta com imposição de um governo militar. De outro, uma cena aterradora de desrespeito a parâmetros constitucionais básicos, em uma ação deflagrada à despeito da decisão do Supremo na ADPF 635, que impõe restrições à realização de operações policiais nas comunidades do Estado do Rio de Janeiro durante o período da pandemia.
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Operação policial mata 25 pessoas no Jacarezinho, em segunda maior chacina da história do Rio
Há claramente uma linha de continuidade entre o pronunciamento e o massacre realizado no curral eleitoral do presidente por agências policiais que contam com muitos de seus adeptos. Fica claro que o recado abstrato que paira no ar clamando por ditadura no plano federal, vai sendo experimentado e publicitado com o aprofundamento do genocídio negro na capital fluminense. Se há ainda dificuldade de se impor uma agenda totalitária em nível nacional, essa toma cada vez mais fôlego em propagandas letais de caráter racista como as que ocorreram no Jacarezinho. O recado dado no pronunciamento se materializa indiscutivelmente na operação policial: quem controla e governa os destinos do povo são as armas, não as togas. O que é sussurrado indiretamente por Bolsonaro é concretizado de forma aberta pelo racismo, com o Supremo sendo exposto por sua incapacidade de conter a barbárie.
A verdade é que a atuação desse governo miliciano, para usar a palavra que qualifica tanto suas práticas quanto os indivíduos que ocupam seus principais cargos institucionais, está assentada em um amplo laboratório de produção de violências. Violências essas produzidas pela adesão histórica das forças institucionais, incluindo o Judiciário, no fortalecimento do apetite genocida contra a população negra: dando base para a formação das milícias, sustentando o discurso social do ódio, garantindo a naturalização do ataque à vida e à liberdade das pessoas negras como um dado quotidiano.
A questão que agora parece se impor é que as consequências perversas do racismo começam a também atentar contra os parâmetros democráticos que protegem as elites. Há muito se denuncia o fato de que o racismo é uma estrutura de poder que foi fabricada e é cultivada para controlar e trucidar pessoas negras. Até aí não há novidades. O que parece escapar à compreensão é que para se conduzir ações genocidas, há uma energia que transforma as instituições em agências de letalidade e restrições de direito. Ao fim e ao cabo, trata-se da construção de um aparato público, em associação a forças privadas, autorizadas a ameaçar, torturar, silenciar, e, claro, matar pessoas, sem maiores consequências entre nós. É esse ethos do racismo, que atropela padrões éticos básicos, direitos e vidas que começa a querer extrapolar para fora das periferias e dar o tom da atuação pública de forma mais ampla nas ameaças presidenciais dirigidas ao Supremo.
Diante disso, só se pode constatar que se opor a esse Governo e suas posturas despóticas é, antes de tudo, se opor ao racismo. Há um pacto de solidariedade entre as elites de todos os espectros políticos que sustenta o massacre das pessoas negras como um dado para a manutenção das desigualdades no Brasil. O problema é que o racismo é um cachorro raivoso que gera instituições e práticas perversas. Logo, se os efeitos mais cruéis dessas dinâmicas são sempre sentidos por negros e negras, em tempos de democracia, ditadura oficiosa ou oficial, fato é que as lógicas de tortura, da censura da e morte, tão comuns no dia a dia das periferias brasileiras, tendem a ser também usadas seletivamente contra grupos políticos em momentos de ruptura institucional.
Por isso, no atual contexto político, enfrentar o genocídio negro é uma demanda que passa tanto pela defesa da vida e dignidade das pessoas negras quanto pela preservação do pacto constitucional que salvaguarda a segurança e os privilégios dos setores de elite que se opõe ao governo de Jair Bolsonaro. Isso porque as ameaças do bolsonarismo estão se concretizando, se enraizando e avançando todos os dias para cercear fundamentalmente os direitos dos que habitam as periferias negras nesse país.
Assim, a resposta ao massacre do Jacarezinho, a maior chacina policial da história do Brasil, pauta o poder Judiciário e, consequentemente a democracia, em duas frentes. A primeira, já muito conhecida, é a que questiona se, uma vez mais, a justiça vai atuar de forma conivente e anistiar os responsáveis pelas execuções. A segunda, é a que mede a força do Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal, diante do claro desacato do bolsonarismo frente às suas determinações.
Conforme já declarou Eduardo Bolsonaro, “bastam um soldado e um cabo para fechar o STF”. Ao que tudo indica, o tempo de se verificar a validade dessa afirmação chegou e a forma com que se vai lidar com o caso de Jacarezinho é um termômetro preciso da força ou do completo descrédito do Supremo e da democracia no Brasil.
Ana Flauzina é doutora em Direito e professora da Universidade Federal. Dirigiu o documentário ‘Além do Espelho’, que estabelece uma ponte entre os movimentos negros nos EUA e no Brasil.
Fonte:
El País
Oscar Vilhena Vieira: A exceção como regra
Ao nomear como “Exceptis” a operação que invadiu a comunidade de Jacarezinho, na capital fluminense, na última quita feira (6), o governo já deixava claro que a lei não condicionaria a ação dos seus agentes, antecipando o que se converteu numa das maiores chacinas no do Estado do Rio de Janeiro nas últimas décadas.
O fato é que o ideal civilizatório de que todas as pessoas e, em especial, os agentes públicos (civis e militares) devem pautar as suas condutas pela legalidade jamais se consolidou no Brasil. Certamente, os dois regimes de exceção, fundados na ruptura da ordem constitucional, exercidos por meio do arbítrio e coroados pela impunidade daqueles que cometeram crimes contra a humanidade, não contribuíram para fortalecer, em nossa acidentada história republicana, a noção básica de império da lei.
A incompletude do estado de direito no Brasil transcende, porém, os regimes propriamente autoritários. A profunda e persistente desigualdade, o racismo estrutural e a forte hierarquização social têm se demonstrado obstáculos intransponíveis para que todas as pessoas sejam reconhecidas como sujeitos de direitos e, portanto, tratadas como igual respeito e consideração.
O que a imagem de corpos sempre pretos ensanguentados a cada nova chacina reforça é a realidade bruta de que a lei, nessas plagas, não é para todos. Que no Jacarezinho e nas demais periferias sociais brasileiras vigora um permanente estado de exceção. Que a “ordem” é determinada pelo arbítrio das milícias, do tráfego e, quando necessário, pelo arbítrio dos agentes do Estado.
Mais de três décadas de democracia não foram suficientes para pôr fim a um regime de exceção permanente que se impõe à grande parte da população. A perda de mais de 1 milhão de vidas, vitimadas por homicídios neste período, e a crueldade das experiências de comunidades dilaceradas pela violência, não foram suficientes para que governos democráticos levassem a cabo um plano de reformas das instituições de aplicação da lei, voltado a expandir o Estado de direito para todos os brasileiros.
Os poucos líderes que se propuseram modernizar as policias e o sistema de segurança e aplicação da lei criminal sucumbiram à resistência de interesses corporativos ilegítimos e políticos irresponsáveis, quando não coniventes ou mesmo beneficiários da deterioração do sistema de justiça criminal. O medo do crime abriu um amplo mercado para milícias e poder para maus policiais. Também rende votos para aqueles que oferecem uma solução rápida, fácil, mas, no entanto, incapaz de reduzir a criminalidade.
As políticas do “bandido bom é bandido morto”, da “Rota na rua”, dos “direitos humanos para humanos direitos” e de “armar o cidadão de bem”, que prevaleceram no Brasil nas últimas décadas, com amplo apoio da direita —como fez questão de deixar claro o general Mourão, ao legitimar a operação “Exceptis”— redundaram num retumbante fracasso. Com raras exceções, a constrangedora omissão de liberais e incompetência da esquerda também contribuíram para o fiasco na segurança pública.
A eleição de Bolsonaro e aliados armados, paradoxalmente, premiou justamente aqueles que mais têm contribuído para que a população se encontre refém da criminalidade e da violência de Estado.
A operação “Exceptis” não apenas afronta o Supremo Tribunal Federal, que impediu a realização de operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia, mas também deixa clara a indisposição de determinados setores do Estado brasileiro de se submeter ao império da lei.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/oscarvilhenavieira/2021/05/a-excecao-como-regra.shtml
Política Democrática online faz raio-x da pobreza na maior favela do Brasil
Sol Nascente tem área equivalente a 1.320 campos de futebol do tamanho do que existe no estádio Mané Garrincha
Cleomar Almeida
A reportagem especial da sétima edição da revista Política Democrática online faz um raio-x da maior favela do Brasil. Sol Nascente está localizada na cidade-satélite de Ceilândia, a 35 quilômetros do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto. Vive uma explosão populacional sem precedentes na história, de acordo com estimativas da administração local.
» Acesse aqui a sétima edição da revista Politica Democrática online
A revista é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), vinculada ao Cidadania. Sem infraestrutura básica para a população, Sol Nascente abriga 250.000 pessoas, segundo dados da administração de Ceilândia, a maior cidade-satélite de Brasília. Os moradores são castigados pela falta de serviços de segurança, educação e saúde públicas, por exemplo, conforme relata a reportagem.
Apesar de já ser a mais populosa do DF, a comunidade é a que mais recebe novos moradores de outras regiões do país. Em 2010, abrigava 56.483 pessoas e, naquele ano, só tinha menos habitantes que a Rocinha, no Rio de Janeiro, onde moravam 69.161 pessoas, de acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que deve realizar novo levantamento no próximo ano.
Devido à sua localização em um morro, segundo a reportagem, a favela carioca passou a ter dificuldade para novas explosões populacionais, após registrar surtos de crescimento nas décadas de 1970 e 1980 e no início dos anos 2000. Sol Nascente, que completou 19 anos no dia 11 de maio, tem uma área plana de 943 mil hectares, o equivalente a 1.320 campos de futebol do tamanho do que existe no Estádio Mané Garrincha. Ceilândia, onde fica a favela, terá 448.000 habitantes em 2020, aponta projeção da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) com base em dados do IBGE.
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Cacá Diegues: Flores do mal
Aos ricochetes, a favela se tranca, os meninos não vão para a escola, os pais não saem para o trabalho, as mães choram, como já vi tantas chorarem
É primavera! O sol capricha e brilha de cara para a linha do Equador. Por uns dias, os dias serão iguais nos dois hemisférios, com a mesma duração das noites para igual curtirem trabalhadores e boêmios, atletas madrugadores e poetas crepusculares. Embora, como Verissimo diria, não seja hora para poesia, a cidade floresce, pelo menos a nossos olhos, a pedir para que não seja abandonada.
A primavera chegou, está aí mesmo. Tem bosta no mar, tem lixo na rua, tem o homem armado a pedir seu celular. Mas essa lua é sua e só você a sabe usar, gente dessa cidade.
De arma em punho, o punho cerrado, os bandidos passeiam armados e os soldados os repetem. Ambos se protegem atrás de nós, somos a barreira inútil que impede o fracasso de suas missões. O tiroteio entre a mata e a estrada só atinge a quem está no meio das duas. E dos dois.
Aos ricochetes, a favela se tranca, os meninos não vão para a escola, os pais não saem para o trabalho, as mães choram, como já vi tantas chorarem, mesmo diante de uma câmera. Tudo isso se tornou normal, desinteressante para quem pode se desviar do horror pela hipnótica beleza da Vista Chinesa e, se tiver mais tempo, pelo encanto das Paineiras. A Rocinha que se dane, ninguém tem nada a ver com isso. Nem mesmo seus próprios moradores.
Mas leio no jornal que agora está tudo bem. A autoridade local anuncia que treina os professores para salvar seus alunos, quando começar “o tiroteio que mata nossas crianças até dentro das escolas. (...) Firmamos parceria com a Cruz Vermelha, que oferecerá um curso para orientar nossos educadores sobre como proceder em situações de conflito”. É meio como oferecer um curso de natação àqueles emigrados que atravessam o mar Mediterrâneo em barcaças frágeis.
As escolas privadas, mais sofisticadas, desenvolvem “protocolos de segurança” para seus alunos, criando até passagem subterrânea para que, no fim do dia, deixem as aulas como personagens de um “Indiana Jones”. Agora sim, está tudo bem. Que tais sábios ouçam as gargalhadas da cidade; gargalhadas que, apesar de tudo, espero que ela não tenha desaprendido.
Porque a cidade sempre soube rir, mesmo com bosta no mar e lixo nas ruas, mesmo que a lua se negasse a mostrar-se por tantas noites de tão densas nuvens. Nunca por conformismo, sempre por apenas humor e inspiração guerreira para marchinhas de carnaval, onde dizíamos que, na cidade que nos seduz, de dia falta água e de noite falta luz. É que tínhamos, para nos compensar, o futuro diante de nós, logo ali.
Esta cidade seria o coração deste país do futuro. Futuro que ninguém tiraria de nós, que estava garantido por nossa própria e firme certeza, pelo que de nós todos esperavam. Vivemos tantos anos dessa ilusão, que mal percebemos quando o futuro passou por nós e nos deixou no passado. E descobrimos que nem esperança tínhamos mais o direito de alimentar. Ou para nos alimentar.
Tínhamos tanta esperança nas UPPs! Mas agora o secretário estadual de Segurança nos ensina que “a UPP foi uma tentativa ousada demais, (...) nós fomos ousados demais e talvez estejamos pagando um preço caro por essa tentativa de levar a paz a todas as áreas, inclusive as mais carentes”. Que dizer, não merecemos nada que seja superior à nossa carência, à nossa insignificância.
Na maçonaria, o general Mourão promete tirar novamente os militares dos quartéis. Nos acenou com um novo 1964 e, quem sabe, mais 20 anos de sofrimento geral, bem distribuído entre a população. Contra a previsão do general Mourão, os candidatos que pintam para a mudança democrática de 2018 trocam de nome mas não são nada diferentes dos de antigamente. Caminhamos alegremente para a mesma coisa.
Pela ausência de futuro, o que está em volta de nós se tensiona no passado que mais curte. A política se desmaterializa, sem pique nem referência para, ao menos, podermos torcer por alguma coisa. O que julgávamos moribundo renasce como numa sessão espírita em que os santos que baixam só sabem falar de suas querelas de um passado longínquo.
Renascida na ausência de outra coisa mais nova, a esquerda se radicaliza no culto sem conteúdo do amor ao passado populista. E a direita se organiza popularmente, pela primeira vez na história do país, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, sem vergonha de dizer seu nome. E, em tal tensão, não existe mais centro. Ou, melhor dizendo, o que podia ser um centro parece, com seu nariz empinado, querer apenas voar, todo empombado, acima do bem e do mal.
A cidade, como o resto do país, vive todas essas misérias. Mas gosto dela mesmo assim, minha cidade louca que já foi tão delicada, berço de Nem, mas de Cartola também, cidade de bambas e de bombas, tão linda e tão depravada. Gosto tanto dela, mesmo assim.
Em vez de nos satisfazermos com a culpa do Rogério 157, será que a ninguém ocorre tentar mudar o mundo que permite o tiroteio na Rocinha e salvar nossa cidade da tristeza que destrói?
* Cacá Diegues é cineasta