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O Estado de S. Paulo: Como youtubers bolsonaristas ganham R$ 100 mil mensais com informações privilegiadas do Planalto

'Estadão' teve acesso às 1.152 páginas do sigiloso inquérito dos atos antidemocráticos do STF que investiga a organização e o financiamento das manifestações contra a democracia

Patrik Camporez, Breno Pires e Rafael Moraes Moura, O Estado de S.Paulo

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BRASÍLIA - O sigiloso inquérito dos atos antidemocráticos aberto em abril para apurar a organização e o financiamento de manifestações contra a democracia revela que um negócio muito lucrativo estava por trás dos protestos contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso. Mas o que mais causou surpresa foi a descoberta de que informações usadas por uma rede de canais no YouTube, investigados por promover esses atos no País, saíram de dentro do Palácio do Planalto.

A conclusão consta de inquérito com 1.152 páginas, ao qual o Estadão teve acesso. Após sete meses de diligências, as apurações mostraram os elos e a convivência harmoniosa da Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) com os youtubers do “gabinete do ódio”, núcleo palaciano que adota um estilo beligerante nas redes sociais. No fim da manhã desta sexta, o governo afirmou em nota que  está prestando esclarecimentos à Justiça e chama de 'ilação' ligação com rede do ódio.

A existência desse grupo, com essa denominação, foi revelada pelo Estadão, em setembro de 2019. Trabalhando a poucos metros do gabinete do presidente Jair Bolsonaro, o assessor especial da Presidência da República Tércio Arnaud Tomaz e o Coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, ajudante de ordens, são os interlocutores do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, dono do canal Terça Livre, dentro do Planalto.

Tércio é apontado no inquérito dos atos antidemocráticos como elo entre o governo e os youtubers, que possuem acesso privilegiado a Bolsonaro e informaram faturamento de mais de R$ 100 mil por mês. Integrante do “gabinete do ódio”, Tércio repassa vídeos do presidente e participa de grupo de WhatsApp com os blogueiros para “discutir questões do governo”, segundo disse em depoimento à Polícia Federal. Cid, por sua vez, admitiu que, como “mensageiro” de Bolsonaro, leva e traz recados de Allan para ele. O blogueiro atua como uma espécie de representante das demandas dos demais canais.

A investigação feita pela Polícia Federal em inquérito conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, ainda não terminou, mas já atormenta Bolsonaro por fechar o cerco sobre a militância digital bolsonarista. Até agora, foram ouvidas mais de 30 pessoas, entre as quais o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), apontado como comandante do “gabinete do ódio”, e o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filhos do presidente.

“A propaganda de conteúdo extremista no campo digital culmina, de fato, em ações subsequentes: as manifestações reais contra o Estado Democrático de Direito, criando um ciclo que se realimenta, com a difusão das manifestações pelos canais de internet dos produtores, que, por sua vez, são alardeados e replicados em perfis pessoais de redes sociais de agentes do Estado, gerando mais visualizações (difusores)”, constatou a Polícia Federal, em relatório de 9 de julho.

Não passou despercebido dos investigadores que, no período dos protestos antidemocráticos, alguns com a presença de Bolsonaro, vídeos com títulos apelativos pipocaram nas redes sociais. Nessa lista estavam “Bolsonaro rebate conspiradores”, “Bolsonaro dá ultimato para sabotadores e intromissões”, “Bolsonaro invade STF”, “A Força de Bolsonaro é maior que Congresso e STF”, “Bolsonaro e Forças Armadas fechados em um acordo para o Brasil” e “STF decidiu eliminar Bolsonaro”, como registrou a Procuradoria-Geral da República (PGR).

“Com o objetivo de lucrar, estes canais, que alcançam um universo de milhões de pessoas, potencializam ao máximo a retórica da distinção amigo-inimigo, dando impulso, assim, a insurgências que acabam efetivamente se materializando na vida real, e alimentando novamente toda a cadeia de mensagens e obtenção de recursos financeiros”, disse o vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques, em manifestação ao STF.

Com atos contra democracia, canais bolsonaristas aumentaram inscritos e lucros

Levantamento do Estadão identificou que o número de inscritos de onze canais sob investigação aumentou 27% no total, de 6,7 milhões para 8,5 milhões, entre 1º de março e 30 de junho. O período coincide com o das manifestações antidemocráticas. De julho até o fim do mês passado, quando já não havia mais protestos, os canais cresceram apenas 6%.

Nos interrogatórios, a PF tem questionado se os donos de canais são “laranjas” de terceiros. Foi o que ocorreu no depoimento prestado por Anderson Azevedo Rossi. O criador do canal Foco do Brasil respondeu que não repassa dinheiro recebido de monetização do YouTube a outros. Rossi afirmou, porém, que recebe ajuda de Tércio Tomaz para abastecer a sua página.

Por meio do WhatsApp, disse ele, o assessor repassa vídeos de Bolsonaro. Tércio está sempre ao lado do presidente. Filma suas conversas de forma imperceptível e procura flagrar situações que possam constranger quem o incomoda.

Com 2,3 milhões de seguidores no YouTube, Rossi teve uma guinada na carreira desde a ascensão de Bolsonaro. Recebia um salário de R$ 3,5 mil como técnico de informática em sua cidade, Canela, no Rio Grande do Sul. Agora, com os recursos da monetização – a remuneração que o YouTube paga por anúncios publicitários nos canais – faturou com o Foco do Brasil US$ 330.887,08 entre março de 2019 e maio de 2020, o equivalente a R$ 1,7 milhão na cotação atual de câmbio. É um valor aproximadamente 33 vezes maior do que ganhava na função anterior. Rossi chegou a instalar uma sala física do canal em Brasília.

Em depoimento à PF, Tércio negou dar tratamento diferenciado aos donos de canais no YouTube que orbitam em torno de Bolsonaro. Admitiu, porém, ter participado de um grupo de WhatsApp com Allan dos Santos para discutir questões do governo federal. Allan, por sua vez, disse que recebe R$ 12 mil por mês, na condição de “sócio” do Terça Livre, também obtidos por meio de monetização, segundo depoimento prestado à PF. 

Já Fernando Lisboa, do Vlog do Lisboa, fatura de R$ 20 mil a 30 mil por mês. Emerson Teixeira, do canal “Professor Opressor”, informou que tem rendimento mensal de R$ 11 mil. Foco do Brasil, Terça Livre e Vlog do Lisboa veicularam propaganda da reforma da Previdência, paga pela Secretaria de Comunicação (Secom). Exibiram, respectivamente, 57.044, 1.447 e 2.081 inserções publicitárias no YouTube, de acordo com informações enviadas pela Secom à CPMI das Fake News no Congresso, no período de 6 de junho a 13 de julho de 2019.

A lista de canais que difunde o discurso do “gabinete do ódio” inclui ainda a Folha Política, de Ernani Fernandes Barbosa e Thaís Raposo, que informaram rendimento no YouTube de R$ 50 mil a 100 mil por mês. Ao todo, 11 canais, incluindo também o Direto aos Fatos, de Camila Abdo, e o TV Direita News, de Marcelo Frazão, continuam sendo investigados por disseminação de conteúdo contra as instituições. Um deles, da  extremista Sara Giromini, foi excluído do YouTube por ferir normas. Outro, do jornalista Oswaldo Eustáquio, não está mais disponível para acessos no Brasil. Os números de inscritos dos canais que seguem ativos, somados, atingem 9,1 milhões.

Desde a última sexta-feira (27) o Estadão tem pedido uma manifestação da Secom. A reportagem perguntou também se os assessores Tercio Arnaud Tomaz, José Matheus Sales Gomes, Mauro Cesar Barbosa Cid e  Mateus Diniz gostariam de se manifestar, já que são citados no inquérito do STF. Três e-mails foram enviados à Secom, mas não houve resposta.


Sergio Denicoli explica como agem ‘robôs militantes’ e aponta final ‘infeliz’

Pós-doutor em comunicação publicou análise na revista Política Democrática Online de setembro

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

A guerra de narrativa na internet abre um grande campo de atuação para “robôs militantes”, principalmente, no período das eleições. “São eles os novos cabos eleitorais. E nós, eleitores, amamos os robôs, porque eles defendem nossos desejos, mas que os fatos insistem em atrapalhar”, analisa o pós-doutor em comunicação e diretor da AP Exata – Inteligência Digital, Sergio Denicoli, em artigo publicado na revista Política Democrática Online de setembro.

Acesse aqui a revista Política Democrática Online de setembro!

A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília, e todos os conteúdos podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. Em seu artigo, o especialista destaca como as narrativas ganham cada vez mais destaque e poder, principalmente, com a estratégica de mimética, reforço das repetições, provocados pelo conhecidos memes. T

“Há uma pandemia? Basta os robôs dizerem que não é verdade a gravidade da situação, e está decretado o fim da quarentena. A Amazônia está em chamas? Chamem os robôs e os orientem a dizer que isso é uma mentira baseada em um complô internacional, para nos roubar a floresta. Cientistas têm provas? Os robôs não acreditam nelas, porque tudo pode ser contestado com os mais básicos e convincentes argumentos”, exemplifica

Ele pondera que essa história de amor com os robôs pode levar, certamente, a um final “infeliz”. “Enquanto estivermos encantados pelos robôs, estaremos cegos de paixão. E, como Aristóteles mesmo nos disse, ‘a lei é a razão livre da paixão’. Ou seja, ainda estamos muito longe de voltarmos a avistar a firme terra do racional”, afirma. “Mas, quando a paixão acabar, sobrarão os corações despedaçados, ávidos pela verdade, que irá florescer em meio à terra arrasada, onde um dia os sofistas imperaram”, continua.

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Marcus Pestana: Irresponsabilidade e fakenews também têm limites

Volto hoje ao tema do confronto entre liberdade de manifestação e controle social sobre abusos e crimes cometidos nas redes sociais. Confesso que escrevo com uma ponta de revolta e indignação. Por um lado, porque uma fakenews fez a mim e muitas pessoas sofrerem com a antecipação da morte de um grande amigo. Por outro lado, chegamos ao limite da atrocidade, desrespeito e crueldade no caso da criança grávida de 10 anos, que desde os seis é vítima de abuso sexual, exposta publicamente pela suposta líder protofascista Sara Winter. Felizmente, a Justiça, o Ministério Público e o próprio YouTube já tomaram providências para punir exemplarmente os algozes de uma indefesa criança.

No dia 7 de agosto, fiz entrevista no perfil do Instagram @amatutina, sobre os “Engenheiros do Caos” do suíço-italiano Giuliano da Empoli. Há uma vasta literatura recente sobre a crise da democracia. Mas o livro de Empoli desnuda como as plataformas digitais foram manipuladas ilegitimamente no nascimento do movimento italiano “5 Estrelas”, no plebiscito do Brexit, na campanha de Trump e como isto chegou ao Brasil pelas mãos do estrategista-chefe da Casa Branca no início da administração de Donald Trump, Steve Bannon.

A crise da democracia tem como pano de fundo as mudanças da economia capitalista que resultaram numa sociedade mais complexa e fragmentada, os sucessivos escândalos de corrupção mundo afora que desmoralizaram as elites dirigentes tradicionais e o surgimento de novos movimentos fora da órbita do sistema como o ambientalista, o feminista, o LGBT, o antirracista, o evangélico, etc. E o advento das redes sociais que jogaram lenha nesta fogueira permitindo a individualização da participação política e social.

Os “Engenheiros do Caos” patrocinaram, em escala global, o “populismo autoritário”. A revolução digital não carrega, em si, valores éticos e morais. A qualidade do uso das ferramentas digitais está nas mãos de quem as usa.

Giuliano da Empoli mostra em seu livro que os “Engenheiros do Caos” não se preocupam com a verdade ou a mentira, o real ou o irreal, a coerência. Querem apenas e a qualquer custo instrumentalizar as redes, prender audiência, mobilizar seguidores e criar uma corrente de opinião a favor de determinadas ideias e candidatos. Empoli cita um senador americano que disse certa vez: “cada um tem o direito às suas próprias opiniões, mas não aos seus próprios fatos”. Os “Engenheiros do Caos” criam seus próprios fatos.

Como as forças democráticas e progressistas podem enfrentar este monstro sem precisarem se igualar em práticas condenáveis e ilegítimas? Primeiro, como sugeriu um dos nossos maiores youtubers, Felipe Neto, educação digital. Em segundo lugar, construir a rede dos algorítimos e atores do bem e da verdade. Sem fakenews, sem agressividade e promoção do ódio, privilegiando o debate democrático e a promoção de consensos. E usar uma linguagem mais leve, transgressiva, bem humorada, como sugeriram o próprio Empoli no debate com Fernando Gabeira no “Sempre um Papo” de Afonso Borges, com base em experiência de Taiwan na pandemia e dos jovens que esvaziaram comício de Trump através do aplicativo TikTok, e o humorista Marcelo Adnet no Roda Viva. Por último, uma boa Lei de controle social sobre as redes, sem afetar a liberdade de opinião e a privacidade das pessoas.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB – MG))


Fernando Gabeira: Os caminhos do tecnopopulismo

Sem a cloroquina econômica, com o País mais pobre, Bolsonaro cavalgará para onde?

De modo geral já se conhece como triunfam os populistas. Interpretam as frustrações populares em tempos de crise econômica. Criticam o distanciamento das elites e tendem a valorizar a democracia direta: acham que, uma vez submetidos a escrutínio popular, toda a sua agenda é majoritária.

Ainda estamos por construir uma teoria sobre o declínio do populismo porque, em termos históricos, ele acabou de se instalar em bases novas, num contexto transformado pela revolução digital. A pandemia deu-nos uma pista.

Populistas como Trump e Bolsonaro tendem a afirmar que os problemas têm soluções simples. Diante da complexidade do novo coronavírus, não conseguiram reagir, exceto pela negação.

O fato de ambos se terem apegado à cloroquina como uma saída mágica é, de certa forma, compreensível. A existência de um remédio eficaz colocaria um ponto final em todo o drama.

Mas, como se diz no Brasil, o buraco era mais embaixo. A complexidade da pandemia exigia respostas nacionalmente integradas, aliança com a ciência médica, uma visão mais flexível de gastos na emergência, solidariedade pelo sofrimento das pessoas.

Tanto Trump como Bolsonaro foram incapazes de cumprir esse roteiro. A insensibilidade talvez seja o fator mais impactante no seu fracasso.

No entanto, a pandemia foi o elemento inesperado que precipitou a demonstração da falsidade da tese de que os problemas dos países são muito fáceis de resolver desde que se eleja o homem certo para o papel. Trump já sentiu os efeitos e corre o risco de ser derrotado nas eleições. Bolsonaro, também assustado, saiu em campanha eleitoral, apesar da distância no tempo.

Nem sempre há pandemias. Porém a rapidez com que os acontecimentos se desenrolam é um fator que sempre ajudará a demonstrar que as soluções não são simples e isso encurtará a vida política dos populistas.

No caso brasileiro, existe um fator tradicional. Quase todos os eleitos prometem combater a corrupção. Alguns, no curso de seu governo, como foi o caso de Collor e mesmo de Lula, acabam sendo envolvidos em denúncias.

Bolsonaro trazia um potencial explosivo na sua prática anterior à chegada ao poder. É o método que utilizou para contratar funcionários em seu gabinete e nos de seus filhos.

As investigações prosseguem no seu mandato. Não têm o poder de derrubá-lo. Mas o obrigam a negociações, a buscar apoio em juízes que certamente pedirão algo em troca por seus favores. O resultado disso é que, por necessidade, Bolsonaro tem de se conciliar com as forças que, na campanha eleitoral, ele insinuou que combateria.

De modo geral, o populismo se escora na democracia direta e afirma que para realizá-la é preciso remover os obstáculos institucionais. Bolsonaro não conseguiu demolir o STF e o Congresso. A prisão de Fabrício Queiroz foi um marco que o fez compreender que precisaria de ambos. Daí partiu para um acordo com o Centrão no Congresso e a distribuição de cargos, como sempre se fez no Brasil.

A bandeira anticorrupção foi para o espaço. Só restava agora empunhá-la contra seus adversários, governadores que também são potenciais candidatos à Presidência.

Ao compreender que o movimento não passaria numa área do eleitorado, Bolsonaro precipitou o mergulho no passado. Não mais combateria a corrupção, exceto na retórica, mas iria apoiar-se nos setores mais fisiológicos do Congresso e concluiria sua transição buscando novos eleitores, escorado no clientelismo, e não mais em demandas de coerência. Sua viagem ao Nordeste, montado a cavalo e usando um chapéu fake de vaqueiro, é a expressão visual de sua metamorfose.

Outro fator que tem peso é a relação dos tecnopopulistas com a imprensa profissional. Eles a incluem no sistema decadente que pretendem destruir. Consideram-na um lixo desprezível e articulam sua comunicação por meio das redes sociais e pequenos veículos que possam comprar com sua verba publicitária. A tática é insultá-la sempre que possível, produzir fatos e oportunidades negativas que possam despertar sua indignação, imperando em suas páginas e telas pela crítica que provocam.

Há duas brechas nessa tática. A primeira delas é que a complexidade da pandemia revitalizou a importância de uma imprensa profissional, associada à ciência, produzindo informações confiáveis para atenuar o desastre sanitário. A segunda brecha é também vital. Apostar apenas nas redes sociais como um espaço em que vale tudo.

Não é mais tão fácil como no passado. Grandes empresas ameaçam retirar sua publicidade se não houver controle do discurso do ódio. E agências especializadas vasculham os perfis inautênticos. O Facebook já derrubou muitos ligados à defesa de Bolsonaro e ataques aos seus adversários.

Ainda faltam elementos essenciais nessa análise. Um deles é a própria economia. O populismo floresceu porque há muito não se sentia um crescimento real do padrão de vida. Enquanto a vida melhorava, era tolerável a relativa distância das elites em relação ao povo. Sem a cloroquina econômica, com o País mais pobre, Bolsonaro cavalgará para onde?


Hélio Schwartsman: Estupro jurisdicional

É fácil ver que o caminho escolhido por Alexandre de Moraes, no caso das fake news, não passa no teste kantiano da universalização da regra

É preocupante a pretensão do ministro Alexandre de Moraes, do STF, de fazer com que suas decisões no chamado inquérito das fake news valham não apenas para a operação brasileira de empresas como Facebook e Twitter mas também para a internacional. Aqui, o ministro extrapola sua jurisdição e o faz com um viés autoritário.

É fácil ver que o caminho escolhido por Moraes não passa no teste kantiano da universalização da regra.

Em vários países da África e do Oriente Médio, a homossexualidade é crime. Se juízes dessas nações podem estender sua jurisdição para aplicativos sediados no exterior, então teríamos de aceitar como legítima a ordem de um magistrado da Arábia Saudita para derrubar sites americanos de pornografia e de encontros. A moral prevalecente na internet seria a da mais retrógrada das nações.

Obviamente, esse raciocínio não vale apenas para questões relativas a sexo, aplicando-se também a opiniões políticas, estudos científicos, peças artísticas etc. Se é o Taleban que está no poder no Afeganistão, então até o site do Louvre poderia ser censurado, já que traz imagens de estátuas que, na interpretação das autoridades judiciais daquele país, seriam ilegais.

Não há dúvida de que certas fake news e radicalismos, incluindo falas de bolsonaristas, são socialmente nocivos. Por vezes, constituem crimes, que podem e devem ser combatidos. Se a ofensa for séria o suficiente, será um ilícito em qualquer nação, abrindo caminho para a cooperação judicial entre países.

Caso contrário, acabarão prevalecendo as normas das nações mais liberais, pois é nelas que as empresas globais de internet tendem a estabelecer-se. E esse é um dos milagres da rede. Ela cria uma espécie de concorrência entre legislações nacionais capaz de gerar um círculo virtuoso de promoção da liberdade e do cosmopolitismo. A pretensão de Moraes de enquadrar o Facebook é a negação disso.


Merval Pereira: Mau sinal

Nunca a liberdade de expressão foi tão discutida entre nós como nos últimos dias, o que é um mau sinal. Sempre que se tem que reafirmar uma das pedras fundamentais da democracia, significa que ela está em perigo. São muitas as razões para que o tema atual seja esse, e o santo nome da liberdade de expressão é usado em vão com frequência jamais vista. Começando pelo desenrolar do caso das contas que disseminavam notícias fraudulentas bloqueadas por determinação do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

O caso acabou destacando uma das muitas possibilidades tecnológicas dos novos meios que podem ser usadas para o bem e para o mal. As contas bloqueadas no Brasil foram transferidas para o exterior para continuar a atacar a democracia e suas instituições, mas o Facebook recusa-se a bloqueá-las novamente, alegando que a legislação brasileira não abrange outros países, e diz que assim está ajudando a manter a liberdade de expressão.

Essa é uma escusa marota, pois caso um pedófilo use o mesmo estratagema para se esconder atrás de um IP estrangeiro para continuar agindo no Brasil, certamente nenhum novo meio digital desses se recusará a auxiliar a Polícia para prendê-lo. Ou se alguém, para superar a legislação de direitos autorais, se registrar no exterior para ver uma série ainda não liberada no Brasil, poderá ser punido. Caso usasse o seu IP do Brasil, seria logo avisado que o vídeo não está disponível naquela região.

Da mesma maneira, se o Supremo Tribunal Federal (STF) considera que essas contas são utilizadas para cometerem crimes no Brasil, não cabe ao Facebook confrontar a decisão, mas impedir que elas sejam divulgadas aqui. Soa como uma censura, mas o ministro Alexandre de Moraes explica que não se trata de determinar que qualquer outro país cumpra uma decisão da Justiça brasileira, mas sim que o Facebook não permita que do Brasil se possa visualizar os perfis bloqueados, mesmo que, fraudulentamente, tenham mudado o IP para os EUA.

O ministro também explica em sua nova decisão que não há censura prévia, mas de fatos pretéritos. Os bloqueados poderão abrir novas contas, aqui mesmo no Brasil, não havendo nenhuma proibição para que continuem a se manifestar em novas contas e em entrevistas.Se praticarem crimes de novo, serão responsabilizados.

A liberdade de expressão também esteve sob ataque com algumas decisões recentes do governo. Um relatório sigiloso produzido pelo ministério da Justiça cita mais de 570 servidores públicos, muitos ligados à área de segurança, identificados como membros de movimentos antifascismo.

O governo alega não se tratar de investigação, mas admite que monitorou servidores contrários ao governo. O Ministério Público Federal (MPF) deu dez dias à Justiça para explicar a medida, que não se baseia em inquérito ou decisão do Judiciário.

Esta é uma diferença básica entre essa ação, que mais parece uma atividade de polícia política, e a do Supremo, que deriva de um inquérito que, se na sua origem foi questionado e usado abusivamente como no caso de censura à revista eletrônica Crusoé, hoje, depois de correções, está avalizada pelo plenário do STF e pela opinião pública, e se demonstrou um instrumento eficiente para conter essa avalanche de fake news organizada com objetivos claramente políticos ilegais.

Outra norma, esta editada pela Controladoria-Geral da União (CGU), defende punição a servidor público que critique o governo nas redes sociais. De acordo com a nota técnica, o funcionário público pode ser enquadrado por “descumprimento do dever de lealdade” se as mensagens divulgadas produzirem ‘repercussão negativa à imagem e credibilidade’ da instituição que integra. Um exemplo claro: se um funcionário de órgão da Saúde se manifestar contra a adoção de cloroquina no combate à Covid-19, poderá ser punido.


Hélio Schwartsman: Estamos, afinal, numa República

Determinação de Alexandre de Moares impõe um veto prévio a mensagens independentemente do conteúdo

A pedidos, escrevo sobre o bloqueio de contas de bolsonaristas em redes sociais determinado pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF. Evitei o assunto até aqui por considerá-lo desimportante. Sei que é uma idiossincrasia minha, mas, na condição de alguém que não participa de nenhuma rede social, o banimento do WhatsApp não me emociona.

Moraes exagerou. Não dá para afirmar que ele tenha silenciado os bolsonaristas, já que estes seguem livres para dizer o que quiserem por qualquer outro meio que não as plataformas citadas no despacho. Mas a determinação do magistrado é ampla demais, pois impõe um veto prévio a mensagens independentemente de seu conteúdo.

Pior do que isso é a própria existência do chamado inquérito das fake news, em que o STF atua ao mesmo tempo como vítima, autoridade policial e juiz. É a definição mesma de teratogenia judiciária. Mas, como na democracia quem tem sempre a última palavra em questões legais é o STF, não nos resta senão aceitar suas decisões mesmo que delas discordemos.

Quanto ao mérito, sempre advoguei por uma versão forte da liberdade de expressão. Filosoficamente, considero a abordagem dos norte-americanos, que aceitam até manifestações nazistas, racistas, homofóbicas, mais consistente do que a noção de democracia militante dos alemães, que se dispõem a criminalizar tudo o que soe como um ataque às instituições. Não vejo como distinguir ataques verbais de críticas contundentes, das quais as democracias precisam para aprimorar-se.

Daí não decorre, é claro, que o STF ou qualquer outra parte deva aceitar passivamente as agressões promovidas pelo gabinete do ódio. Até por serem burros e descuidados, bolsonaristas frequentemente incidem em crimes como os de ameaça e calúnia. É a esses tipos, na forma em que podem ser acionados por qualquer cidadão, que os ministros deveriam recorrer. Estamos, afinal, numa República.


Pablo Ortellado: Receio de regular mídias sociais favorece o status quo

Celeridade da lei das fake news não permite pactuar as regras, mas regulação da moderação de conteúdo segue necessária

As regras que orientam o funcionamento das mídias sociais estão outra vez no coração do debate político. A regulamentação do seu funcionamento é um dos maiores desafios das políticas públicas e é efetivamente cheia de riscos —mas a inação, com a manutenção do status quo, é pior.

Há duas questões que são o cerne do problema. A primeira é que a liberdade de expressão, basilar para o funcionamento de uma democracia, às vezes entra em choque com outros direitos, como o direito das minorias, o direito à honra ou o direito à saúde. E esses direitos precisam ser equilibrados.

A segunda questão é que, na ausência de uma regulação pública, prevalece o autorregramento do setor privado, o que o jurista americano Lawrence Lessig imortalizou no slogan "code is law", ou seja, quem escreve o código do serviço regula o seu funcionamento.

Esse imbroglio está no centro do debate, tanto sobre as ações de moderação e fechamento de contas pelas plataformas de mídia social como sobre o PL das fake news. Em ambos os casos, há o argumento, que vem ganhando adesão, de que não se deve olhar para os conteúdos, mas para os comportamentos, aplicando medidas punitivas mais duras apenas para quem usa contas falsas ou tenta manipular os algoritmos.

Essa saída é boa apenas para as empresas, que desviam assim o foco do enorme poder que exercem sobre a moderação do debate público. Afinal, há vários conteúdos impróprios que circulam nas plataformas e que não vêm acompanhados do chamado "comportamento inautêntico". Nem sempre quem veicula discurso de ódio, por exemplo, se faz passar por outrem.

Se decidirmos então que é preciso olhar para os conteúdos, vamos ter que pactuar as regras do debate democrático. Se é bem verdade que a celeridade que os presidentes das casas legislativas impuseram à tramitação do projeto de lei das fake news não permite fazer agora essa pactuação com o devido cuidado, isso não significa que ela não precisará ser feita no futuro.

O processo de moderação de conteúdos nas mídias sociais precisa ser regulado.

Não podemos deixar que empresas privadas, agindo segundo regras inteiramente próprias e sem nenhuma supervisão, excluam, rotulem ou diminuam o alcance de postagens ou suprimam contas. Talvez seja preciso ir além e mitigar ou eliminar os incentivos que as plataformas oferecem para discursos delirantes, inflamatórios e divisivos.

Intervir nisso é perigoso e delicado, mas depois de tudo o que vivemos —da ascensão da extrema direita ao negacionismo da Covid— manter o status quo não deveria mais ser uma opção.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Ricardo Noblat: Solidário, Bolsonaro sai em defesa dos bolsonaristas bloqueados

Liberdade de expressão não está ameaçada

São ralas as chances de sucesso da ação que pede ao Supremo Tribunal Federal a suspensão do bloqueio de perfis bolsonaristas nas redes sociais decretado pelo ministro Alexandre de Moraes. A ação é assinada pelo presidente Jair Bolsonaro e o advogado-geral da União José Levi Mello do Amaral Júnior.

“Em uma democracia saudável, a liberdade de expressão deve ser plena, assim como a liberdade de imprensa. Para decantar potenciais manipulações, a democracia exige fontes alternativas de informação para que os cidadãos tenham a necessária compreensão esclarecida acerca dos negócios públicos”, diz a ação.

O direito à livre expressão do pensamento nada tem a ver com o uso de contas nas redes sociais para a distribuição de falsas notícias com o propósito de destruir a reputação dos que se opõem ao governo, ao presidente e os criticam. Alexandre de Moraes não cassou o direito à livre expressão do pensamento de ninguém.

Mandou que o Twitter, o Facebook e outras plataformas bloqueassem contas utilizadas para o cometimento de crimes contra a honra de pessoas. Tanto que os titulares dessas contas investigadas continuam dizendo e escrevendo o que querem nas redes sociais. Na apuração de crimes, a lei autoriza até prisões.

O ex-deputado Roberto Jefferson, presidente do PTB, que apoia Bolsonaro, teve suas contas bloqueadas. Isso não o impediu de continuar falando mal do Supremo. Ele elevou o tom dos seus ataques aos ministros e passou a disseminar baixarias contra eles, a ponto de acusar alguns de serem sodomitas.

Bolsonaro saiu em defesa do restabelecimento das contas dos seus devotos para mostrar que é solidário a eles, que não os abandonou, e que eles, portanto, não precisam retaliar abandonando-o. Algo parecido com o que fez com a deputada Bia Kicis (PSL-DF). Tirou-a da vice-liderança do governo na Câmara e depois foi visitá-la.

Fossem outros os tempos, não estivesse preocupado com o cerco judicial aos seus filhos e a empresários que financiam atos hostis à democracia, a reação de Bolsonaro teria sido diferente. Partiria para cima de Alexandre de Moraes e do Supremo como já fez no passado. O medo explica a nova versão moderada de Bolsonaro.


Merval Pereira: Sem trégua

O inquérito (das fake news) do ministro Alexandre Moraes está dirigido agora a seguir a trilha dos financiadores desse esquema

A derrubada das contas de diversos bolsonaristas no Facebook, Twitter e outras redes sociais por determinação do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes foi um sinal de que não há nenhuma intenção por parte do Supremo de retardar as investigações sobre uso de fake news para fins políticos. Mesmo atual fase “paz e amor” de Bolsonaro não tem o condão de apagar o que já foi feito e dito. E o que continua sendo feito.

Os apoiadores de Bolsonaro protestaram pela falta de apoio por parte do governo, mas nada indica que o presidente esteja disposto a encarar novos confrontos com os ministros do Supremo. O ministro Luis Roberto Barroso, deu uma declaração contundente diante da reação contra a suspensão das contas dos bolsonaristas.

Sem se referir especificamente ao caso, mas aos que usam fake news com intuito políticos difamatórios, disse “Não são pessoas de bem, são bandidos”. O inquérito das fake news já existe há mais de ano no Supremo, e recebeu muitas críticas pela maneira como foi criado, em regime de sigilo e sem a participação da Procuradoria-Geral da República. Mas os fatos se impuseram, e o inquérito acabou sendo avalizado pelo plenário do Supremo diante da constatação de que ações criminosas estavam sendo organizadas com fins políticos.

O inquérito do ministro Alexandre de Moraes está dirigido agora a seguir a trilha dos financiadores desse esquema, e mandou quebrar o sigilo bancário e telefônico de vários bolsonaristas, políticos e empresários, e na mesma decisão o relator havia mandado bloquear as contas de mensagens, o que só aconteceu agora. O ministro Alexandre de Moraes oficiou ao Banco do Brasil, à Caixa Econômica, ao BNDES e à Secretaria de Comunicação para informarem o detalhamento de todo investimento feito nas redes.

O desenvolvimento das investigações mostrou em ação uma verdadeira quadrilha de disseminação de fakes news, e o ministro Alexandre de Moraes tem confidenciado que poucas vezes assistiu tão baixo nível, mesmo tendo sido Promotor Criminal por vários anos. Com o prosseguimento do inquérito, que já identificou a origem dos ataques no chamado “gabinete do ódio” que funciona no Palácio do Planalto ligado ao vereador Carlos Bolsonaro, já há uma linha ligando a organização das manifestações antidemocráticas a esses grupos de fake news, ambos inquéritos no STF relatados pelo ministro Alexandre de Moraes.

O bloqueio das contas, que causou protestos e acusações de cerceamento da liberdade de expressão, tem uma explicação legal. Da mesma maneira que uma investigação sobre associação criminosa pode decretar prisões (liberdade de ir e vir), suspensão do exercício de mandatos (direitos políticos) ou exercício de determinado ofício (direito de profissão), se esses direitos estiverem sendo utilizados como instrumentos para práticas de crimes, é possível bloquear contas das redes sociais que estiverem sendo financiadas e utilizadas criminosamente.

O bloqueio foi do instrumento “determinadas contas nas redes sociais”, não das pessoas investigadas, que continuam tendo plena liberdade de expressão oral, escrita e nas redes. Tanto que deram inúmeras entrevistas e continuaram a ofender Deus e o mundo. Se utilizarem a liberdade de expressão para novos crimes serão investigados por esses novos fatos, sempre dentro do binômio constitucional liberdade com responsabilidade, é o que garantem os encarregados dos inquéritos.

O que foi bloqueado foi o instrumento utilizado para prática de crimes, não a liberdade de expressão dos investigados, insistem eles. Exemplos mais gritantes são as entrevistas que o presidente do PTB, Roberto Jefferson tem dado a emissoras de rádio e televisão, depois de ter suas contas bloqueadas. Chamou o STF de “organização criminosa”, xinga todos os ministros do STF sempre que pode, e divulga informações caluniosas.

No entendimento de juristas, Jefferson exerceu sua liberdade de expressão e poderá ser responsabilizado por esse fato novo. Como explica um especialista, esse bloqueio não impede que continuem ofendendo e que criem novas contas nas redes, mas o bloqueio desestabiliza momentaneamente o esquema de divulgação de fakes e ofensas, e de recebimento de dinheiro por terem “tantos mil seguidores”.


Afonso Benites: TCU aperta cerco sobre gastos com publicidade do Governo Bolsonaro

Decisão veta verba em sites e perfis no YouTube de atividade ilegais, como jogo do bicho, ou em canais infantis. Escrutínio é novo revés para máquina de propaganda do Planalto

Uma decisão em caráter cautelar, de efeito imediato e preventivo, do ministro Vital do Rêgo, do Tribunal de Contas da União, impedindo que o Governo Jair Bolsonaro anuncie em diversos sites e canais do YouTube se soma a uma série de reveses para o Planalto em sua estrutura de propaganda oficial e extraoficial. Na sexta-feira, o ministro proibiu que o Ministério das Comunicações veiculasse publicidade em meios que promovam atividades ilegais, como jogo do bicho, por exemplo, ou em que o conteúdo não tenha relação com o público-alvo de suas campanhas, como o infantil. Os valores gastos com esses anúncios ou o tamanho das páginas atingidas não foram divulgados. Por conta dessa ação, o Governo terá de divulgar todas as inserções publicitárias programadas pela Secretaria de Comunicação, a Secom.

A decisão de Rêgo cita casos em que foi veiculada publicidade em páginas que disseminavam fake news, conteúdo infantil, a favor do jogo do bicho ou no idioma russo. A ação foi baseada em uma reportagem do jornal Folha de S. Paulo que revelou os gastos da então Secretaria de Comunicação da Presidência da República nesses meios específicos no ano de 2019, quando o Planalto produziu peças publicitárias em alusão à reforma da Previdência, que acabou sendo aprovada naquele ano. Atualmente, a Secom é vinculada ao recriado Ministério das Comunicações.

Para o ministro Rêgo há sinais de “flagrante desperdício de recursos públicos”. Diz trecho da decisão: “O caso em relevo —divulgar matérias afetas a regime jurídico-administrativo a crianças, sejam elas brasileiras ou de qualquer outra nacionalidade— equivale a vender areia no deserto, gelo nos polos ou água nos oceanos”.

Os anúncios veiculados nessas páginas eram feitos via Google Adsense, que é uma ferramenta na qual o anunciante pode filtrar seu público. Por exemplo, escolhe qual é a faixa etária de seu alvo, a temática tratada pelo veículo ou se trata de temas ilegais. Algo que, aparentemente, não foi feito pelo Palácio do Planalto. Em nota à Folha, a Secom afirmou que o Governo “não interfere na seleção do Google Ads, realizada por algoritmos, e nunca investiu recursos públicos com base em preferências pessoais ou políticas”.

Em sua decisão, Vital do Rêgo ainda cobrou explicações do Governo nos próximos 15 dias e exigiu que o ministério apresente “informações detalhadas sobre todas as veiculações/inserções do Governo Federal em plataformas/mídias/canais realizadas por meio da compra de espaços publicitários”.

A divulgação detalhada dos dados da Secom pode ser mais combustível para o escrutínio às ações de propaganda do presidente e do Governo. Mas não é o único movimento que mira a maquinária de propaganda do bolsonarismo, especialmente na Internet. A escalada judicial e empresarial contra os militantes iniciou em maio, quando o Supremo Tribunal Federal deu andamento ao inquérito das fake news e apreendeu uma vasta quantidade de documentos, celulares e computadores de 29 blogueiros e youtubers bolsonaristas. Na mesma ocasião, foram autorizadas as quebras de sigilo contra quatro empresários suspeitos de financiar a disseminação de desinformação.

No mês seguinte, os alvos foram quem apoiou atos antidemocráticos, entre eles dez deputados e um senador da base do Governo que também tiveram seus sigilos levantados. Nesse ínterim, desembarcou no Brasil a iniciativa Sleeping Giants, que estimula empresas a deixarem de financiar veículos que divulgam boatos, a maioria delas ideologicamente vinculadas à gestão Bolsonaro – ao menos dois e sites e cinco apoiadores foram descapitalizadas até o momento, com perdas aproximadas de 448.000 reais.

Por fim, o Governo ainda viu o Facebook e o Instagram encerrarem 88 perfis, grupos e contas vinculadas a apoiadores do presidente, entre eles o assessor presidencial Tércio Arnaud Tomaz, número dois da estratégia digital do mandatário. Neste caso, o conglomerado comandado por Mark Zuckerberg reagiu à pressão internacional de patrocinadores, que ameaçaram deixar de anunciar em suas redes caso não houvesse uma filtragem de perfis que disseminassem discursos de ódio ou espalhassem desinformação. Em outros quatro países – EUA, Canadá, Equador e Ucrânia – foram fechadas outras 402 contas por “comportamento inautêntico coordenado”.O caso em relevo —divulgar matérias afetas a regime jurídico-administrativo a crianças, sejam elas brasileiras ou de qualquer outra nacionalidade— equivale a vender areia no deserto, gelo nos polos ou água nos oceanos.

Os movimentos têm desagradado o presidente, que reagiu, mesmo em isolamento por estar com coronavírus. Em live na última quinta-feira, o presidente disse que quem o apoia tem sido censurado. “Vemos que o Facebook derrubou páginas em todo o mundo. No Brasil, sobrou pra quem está do meu lado, pra quem é simpático à minha pessoa. A esquerda fica posando de moralista, mas olha aqui, blog me associando ao nazismo. Bolsonaro decapitado. Ninguém fala em derrubar essas páginas”, disse o mandatário.

Em tese, essa rede de desinformação que vem sendo desbaratada em diversas frentes pode afetar o julgamento de ações que tramitam no Tribunal Superior Eleitoral que pedem a cassação da chapa Bolsonaro-Mourão. Na eleição de 2018, havia claro uso de divulgação de fake news em favor da candidatura que venceria o pleito.


Ascânio Seleme: Quem são os inimigos?

Extremos devem ser isolados, impedindo-se que cresçam e se espalhem

A índole antidemocrática do presidente Jair Bolsonaro, um extremista de direita e falso liberal, enseja uma discussão entre as forças políticas sobre quem são de fato os inimigos a serem combatidos. A esta altura deve estar evidente para a esquerda e para centro-esquerda que os inimigos não são os seus reflexos com sinal trocado do outro lado do espectro político. Estes são seus adversários. Da mesma forma, direita e centro-direita devem enxergar assim quando olham para o campo antagônico. Os inimigos de verdade residem nos extremos. São os que atropelam leis, desrespeitam outros poderes, ameaçam a democracia, ou os que pregam a ruptura democrática.

De um lado desses extremos estão agremiações como o Partido da Causa Operária (PCO) e o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU). Do outro lado, estão partidos por onde trafega Bolsonaro, como o Patriotas e o Partido Social Liberal (PSL). Ao lado destes, os satélites de sempre, que são de direita mas podem ser de extrema direita se levarem alguma vantagem pecuniária com isso. Alguns, bem pagos, já foram até de esquerda. Nem partidos são. Formam uma aglomeração fisiológica e navegam sempre a favor do vento.

Ficou evidente nesses primeiros 18 meses do governo Bolsonaro o perigo permanente que o extremismo representa. Aqueles grupelhos de poucas dezenas de pessoas que começaram a aparecer quase clandestinamente nas manifestações contra o governo Dilma, que carregavam faixas pedindo intervenção militar, se multiplicaram e passaram a ser abraçados em praça pública pelo presidente e alguns de seus ministros. O que parecia uma piada ridícula em 2016 virou um problema desde o início desta administração.

Os brasileiros que consideram a democracia a melhor forma de governo são 75%, segundo o Instituto Datafolha. Eram 69% em outubro de 2018. Um pequeno declínio desse desejo foi captado pelo instituto em dezembro do ano passado, quando a retórica presidencial convenceu alguns desavisados, e o apoio à democracia desceu para 62%. Ainda assim, a maioria absoluta a defendia. O salto positivo visto agora reflete os seguidos atentados cometidos pelo presidente da República contra a própria democracia. O assunto ocupou de tal maneira o noticiário e as redes sociais que teria virado conversa de botequim, se estes estivessem abertos.

Diante desta incontestável realidade, os partidos que não estão nos extremos deveriam começar a trabalhar contra o inimigo comum, sem concessões, e já. É hora de ouvir o Brasil. O entendimento deve incluir as votações de matérias no Congresso Nacional e as eleições municipais deste ano. Respeitadas as diferenças de programa intransponíveis, todos os demais pontos da pauta política podem e devem ser alinhados, debatidos, negociados e viabilizados por PT, PDT, PSB, PSOL, PV, PSDB, Rede, MDB, DEM, Novo, e todos os demais partidos dentro do arco que vai do primeiro ao último desta lista. E juntos devem isolar os extremos, impedindo que cresçam e se espalhem.

Bolsonaro, que deu alguns sinais de apaziguamento nos últimos dias, não é confiável. Obviamente, é possível conviver mais dois anos e meio com ele, desde que se contenha ou seja contido. O problema maior não é o seu governo, são os seus métodos. Estes devem ser combatidos sem trégua pelas forças democráticas brasileiras e por instituições como partidos políticos e entidades representativas da sociedade civil. Todos os instrumentos da democracia devem ser usados para defendê-la. Só assim, um dia poderemos olhar para o passado e ver o governo Bolsonaro com a mesma incredulidade com que hoje vemos a permissão de fumar em avião, que um dia também existiu.

Facebook, o castigo
Depois de Unilever, Coca e Pepsi-Cola, Starbucks, Ford, Adidas e Microsoft, chegou a hora de Itaú, Bradesco, Vale, JBS, Braskem, Oi, CSN e Gerdau deixarem de anunciar no Facebook. Discurso de ódio para valer é aqui mesmo. No Brasil, o golpe é baixíssimo e trafega livremente pelas páginas da rede mãe. E pelos seus filhotes também.