extrema-direita

Pedro Doria: O método Bolsonaro de intimidar

A violência contínua que existe no discurso do presidente Jair Bolsonaro nos anestesia, aos poucos vai deixando de chocar. O objetivo é este mesmo: anestesiar. É um método, estudado por cientistas políticos em vários cantos do mundo, numa disciplina batizada decadência democrática. Anestesiados, nos distraímos. E, distraídos, não percebemos que a guerra do presidente contra a democracia está ganhando escala. Foi mostra desse ganho de escala o dia em que a Polícia Civil do Rio bateu à porta do youtuber Felipe Neto para informá-lo de que era investigado por chamar o presidente de “genocida”. Com base na Lei de Segurança Nacional.

No caso de Felipe, o problema já passou — a juíza Gisele Guida de Faria, da 38ª Vara Criminal do Rio, viu “flagrante ilegalidade” na investigação e lembrou que a Polícia Civil nem sequer tem competência para investigar “crime contra a honra” do presidente. Além do quê, não é um vereador ou um membro da família do presidente quem tem autoridade de pedir a abertura desse tipo de inquérito. Mas, se Felipe está livre do problema, outros não estão, e ações assim vêm ficando mais comuns.

Em geral, quase sempre via internet, alguém faz um comentário em oposição ao presidente. O ataque, então, vem simultâneo. Pelas redes, é a onda de cancelamento pessoal. Quando não se trata de uma pessoa conhecida, o mundo não percebe. Não vê as mensagens privadas, os muitos tuítes, os comentários de Face, os ataques pelo Insta que aquele indivíduo recebeu. Para um professor universitário gaúcho ou um sociólogo do Tocantins, a pancada é dura. A onda de agressão surge de repente — e dói.

Mas há outro ataque, jurídico, levantando a Lei de Segurança Nacional ou outro argumento. O importante é impor um custo em advogados, ameaçar de perda de emprego. O objetivo é desestruturar emocionalmente, é intimidar. O objetivo é calar qualquer forma de oposição.

Jair Bolsonaro e os seus enxergam o mundo de uma forma particular: tudo é uma guerra de informação. Nisso, ele e a nova leva do populismo autoritário de direita se assemelham muito aos fascistas dos anos 1930. Aquele fascismo não era uma ideologia, uma forma consistente de ver o mundo. Era, isto sim, uma estratégia de alcançar o poder e de se manter no poder. Entre as táticas, estava intimidação pessoal de quem demonstrasse oposição, para deixar claro a todos que o preço de ser contra é alto. Mas a cartilha também incluía uma visão paranoide de como o mundo funciona — capitalistas judeus são responsáveis pela crise econômica alemã, marxistas culturais são quem de fato controla as instituições do Brasil. E uma máquina maciça, usando a tecnologia mais recente — rádio lá, redes sociais aqui —, investia pesado em desinformação para criar bolhas onde informação não entra.

Para Bolsonaro, esta é, pois, uma guerra de informação, e os fatos pouco importam. O relevante no jogo como ele o enxerga é quem convence mais pessoas. Portanto, quando hospitais lotam e mais gente morre, o alarme da sociedade não surge naturalmente. Surge porque seus inimigos atuam como ele, na guerra de informação. Bolsonaro não opera no mundo como ele é. Ele vive num em que a realidade é fabricável.

O Centrão tentou indicar uma ministra da Saúde que poderia ter funcionado. Os militares tentam convencê-lo a adotar uma agenda positiva. Não adianta, nada muda a natureza do escorpião. Mas o perigo que ele representa mudou de escala não só pela forma de intimidar. Desinformação já elegia autoritários que desejam ser ditadores. Nos últimos meses, está também matando em vastas quantidades.


Hamilton Garcia: A viagem redonda - De volta à política de vetos

Nossas instituições democráticas são frágeis, ao contrário da retórica corrente: os partidos mal representam os setores sociais afins, as eleições não refletem satisfatoriamente as inclinações populares – sobretudo no Legislativo – e não propiciam a formação de governos minimamente coesos, a Justiça é seletiva e tendente à proteção de casta, e, como resultado, o sistema político padece cronicamente de legitimidade, fragilizando-se nas crises: não precisa ser um especialista para perceber.

Todavia, nosso problema genético central (verticalismo/insolidarismo) está fora do alcance das ideologias em voga (nacional-populismo x liberalismo), se constituindo em um desafio para além de qualquer ortodoxia, da qual, infelizmente, nossa intelligentsia também se encontra prisioneira, como no mito da caverna (Platão).

A principal causa dessa fragilidade reside numa cultura política, social e institucional, que aparta Estado e sociedade de tal modo que, sob os auspícios das regras institucionais, o voto popular reitera o  afastamento, ao invés de superá-lo, por efeito de um alargamento democrático que não enseja aprofundamento, ou seja, não propicia ao eleitor canais de exercício de sua autonomia face ao poder econômico e burocrático, impelindo os agentes político-partidários à busca do bem comum em meio às inexoráveis diferenças político-ideológicas.

As razões estruturais/normativas de tal dificuldade foram abordadas/indicadas em artigos anteriores (vide Clientelismo, Cargos e Voto – a erosão oligárquica da democracia). Cabe agora apenas delinear o retrocesso precipitado pelo baluartismo das lideranças civis, de todos os quadrantes, diante dos inequívocos sinais emitidos pelas massas desde 2013, ao cabo capturados/interpelados pelo bolsonarismo.

Comecemos pelo mais novo episódio da longa lista de disparates cometidos por essas elites nos últimos anos: o golpe judicial do Ministro Edson Fachin, anulando as decisões do juízo de Curitiba sobre as ações penais que levaram Lula à prisão e inelegibilidade. Não interessa aqui discutir as razões político-jurídicas que motivaram o Ministro – há farto material para consulta sobre o tema –, apenas pontuar sua recepção pela sociedade e certas corporações (sociais e burocráticas) fundamentais para os destinos da nossa democracia.

Comecemos pelos eleitores. Segundo o instituto Paraná Pesquisas, 57,5% dos brasileiros discordaram da decisão de Fachin, contra 37,1% que concordaram; a única região destoante foi a Nordeste, onde 52,6% concordaram e 41,3% discordaram do magistrado. A pesquisa tem números próximos à outra do mesmo instituto, de junho de 2019, onde 58% se disseram favoráveis à manutenção da prisão de Lula, enquanto 36% se posicionaram contra. Fica claro que, para a maioria dos eleitores, ontem e hoje, Lula deve pagar pelos crimes que cometeu e que a tradicional impunidade brasileira parece ser a fonte da inesgotável credibilidade do ex-Juiz Sérgio Moro, reconhecido pela maioria (59,2%), em levantamento de março/21, como um juiz imparcial, mesmo entre os menos escolarizados (53,7%).

Também no topo da pirâmide, importantes empresários manifestam seu veto ao ex-Presidente, beneficiário imediato, embora não exclusivo, da medida judicial, e, crescentemente, também ao mandatário atual. O editorial do dia 9 do jornal Estado de São Paulo, que vocaliza o ponto de vista desta fatia da opinião pública, é taxativo: "Jair Bolsonaro está conseguindo fazer o que parecia impossível. Ao ignorar suas responsabilidades e debochar continuamente dos problemas do País e da saúde dos brasileiros, está abrindo caminho para o retorno político do sr. Luiz Inácio Lula da Silva, (…) agora que o ministro Edson Fachin anulou todas as condenações do demiurgo de Garanhuns (…). Bolsonaro, por palavras e omissões, ajudou a recriar o monstrengo que já atormentou em demasia este país”.

A duríssima sentença acrescenta um novo ingrediente à crise política, depois da manifesta assunção por parte do ex-Comandante do Exército, Gen. Eduardo Villas Bôas, do veto militar à postulação presidencial do petista; prossegue o editorial: "O assunto é da maior gravidade, pois traz de volta ao cenário político um grande perigo para o País (…): o ressurgimento do fantasma do lulopetismo. (…) O mais famoso ficha-suja do País, condenado por corrupção e lavagem de dinheiro (…)”.

Coloca-se assim, em linha, de novo, dois vetos que, outrora, em momentos distintos, ao longo dos anos 1950-1960, produziram duas deposições presidenciais (1954, Vargas, e 1964, Goulart) e duas tentativas de deposição (1956, Kubistchek, e 1961, Goulart). Me refiro aqui ao veto militar, empresarial e da classe-média, à Vargas e seus sucessores, e também à Jânio Quadros, que, se aproveitando do primeiro veto, tentou tirar proveito dele ao renunciar à Presidência poucos meses depois de assumí-la, mandando o Vice Goulart para uma missão diplomática na longínqua China comunista, na esperança de assumir poderes excepcionais para governar. O tiro saiu pela culatra porque Quadros não percebera que o veto ao varguismo se estendia à toda forma de populismo, inclusive àquele representado pela direita, onde ele se inseria.

A condenação aos dois populismos está na ordem do dia, não só entre os eleitores e empresários, mas também entre os militares. É o caso do Gen. da Reserva e ex-Ministro Santos Cruz, que, em reação à decisão de Fachin, afirmou: “o Brasil não pode mais depender, nem viver, numa guerra de extremistas. (…) O fanatismo só está atrapalhando o Brasil. (…) A grande parcela da população não quer participar dessa novela sem fim”. Oficiais da Ativa do Exército, que costumam não se manifestar, também falaram, sob anonimato, que a decisão do Ministro do STF pode beneficiar “extremistas” de esquerda e de direita. Mas foi Cruz, involuntariamente, que acabou expondo o estado de espírito da caserna ao pregar moderação: "Tem de esperar, ainda há passos jurídicos. Ninguém tem de se precipitar”.

Até o reservado Gen. da Reserva Sérgio Etchegoyen, ex-Ministro do Governo Temer, se mostrou incomodado com a decisão ministerial, indagando: “Por que essa decisão monocrática que se sobrepõe a dois tribunais colegiados (TRF-4 e STJ) não é um risco à democracia? Ou é um risco para a democracia só quando um general fala?”, em alusão ao tuíte de Villas Bôas, em 2018, que ele justifica como um recado à tropa “para evitar que alguém da reserva dissesse alguma bobagem” – na verdade, alguém da Ativa fizesse alguma bobagem. Aqui, para além da condenação ao ato judicial, temos a volta do velho sentimento militar do Império – que precipitou seu fim – de que a elite civil os discrimina e hostiliza.

A ideia de fazer "alguma bobagem” está posta desde a prisão de Lula, mas agora, depois do indulto de fato que ele recebeu, aparece explicitamente nas falas de dois Gen.s da Reserva: Luiz Paiva, ex-Comandante da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, e Eduardo Barbosa, Presidente do Clube Militar, eleito como Vice na chapa de outro Gen. da Reserva, Hamilton Mourão, hoje na Vice-Presidência da República.

Paiva simplesmente afirma que Fachin "praticamente, arremessou no lixo a Operação Lava Jato e, com ela, a esperança da sociedade num futuro mais digno”, "colocando em risco”, junto com outras medidas tomadas pelo tribunal, "a paz, a harmonia e a própria unidade nacional”. Em sua perspectiva, "o que é supremo não é a lei e sim a Justiça e esta não existe quando a lei é usada contra o bem comum”, alertando que "a liderança nacional" deve ter em mente que as Forças Armadas "ficarão unidas e ao lado da Nação, única detentora de sua lealdade". Por seu turno, Barbosa, considerando a posição de Fachin como "a vitória do banditismo”, não só afirma ser Lula "o maior político criminoso que esse país já conheceu”, como sentencia que "lugar de ladrão é na cadeia”.

Como argumentei em artigo recente (O esgotamento da democracia de clientela), a forte presença do bolsonarismo no interior das médias e baixas patentes da Ativa das Forças Armadas, além das polícias estaduais, coloca Bolsonaro em situação especial nesta crise, distinta daquela vivida por Jânio Quadros, apesar de também ser um de seus pivôs: sua capacidade de dividir os quartéis e, efetivamente, agitar tropas ao arrepio dos Altos Comandantes. Outra diferença significativa entre os dois personagens, separados no tempo por mais de meio século, é que Bolsonaro costuma expressar francamente o que pensa, na linha oposta da astúcia dos velhos populistas do séc. XX, o que, todavia, não é suficiente para lhe garantir a simpatia da cúpula militar ou empresarial, ao contrário do que ocorre com as massas, dada sua dificuldade em exercer liderança positiva.

Gen. da Reserva Paulo Chagas, bolsonarista de primeira hora, é um vocalizador desta percepção de que Bolsonaro não é capaz de "tomar o rumo da harmonia, da União”, se revelando "um narcisista deslumbrado” com o poder, o "que faz com que ele se comporte pensando que é mais do que é na verdade”: um "trapalhão (…) que não cumpre o que promete”, fulmina. Sendo contra o processo de impeachment, Chagas defende, alternativamente, que alguém diga para ele que, "a partir de agora, tem que fazer assim”, o que pode ser entendido como a defesa de um ultimato das cúpulas militares à seu Chefe Supremo – o que, no caso, se parece com um "auto-golpe".

Nada disto nos autoriza vaticinar que marchamos para o mesmo desfecho de 1964, dado que as circunstâncias são outras e os atores também. Apenas sugere que voltamos a um ciclo de crises que parecia superado no séc. XXI, mas que na verdade não o foi. E isto não se deve exclusivamente à mentalidade militar, supostamente tutelatória da cidadania e monopólica do patriotismo, mas, sobretudo, a uma incapacidade crônica das elites civis em olharem para além do próprio umbigo, corporativo ou de domínio, engendrando soluções mais amplas e efetivas sobre os problemas do desenvolvimento, da desigualdade e da justiça no país, que nos enredaram numa teia de estagnação, pobreza e corrupção que parece não ter solução.

Persistir em ignorar tal realidade ou tentar mascará-la com as práticas do neopatrimonialismo/corporativismo ou as narrativas mágicas das velhas ideologias/ortodoxias dos "salvadores" de plantão, tem tudo para nos chafurdar ainda mais na crise, fechando o círculo de nossa mais nova viagem redonda – outra velha sina da civilização brasileira.

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF/DR[i])


[i] Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.


"Bolsonaro não é só um mau soldado. É um fascista incapaz", afirma Alberto Aggio

Em entrevista exclusiva à Política Democrática Online de março, professor da Unesp avalia o governo do presidente como “ameaçador à democracia”

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

O historiador e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) diz que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) “gostaria de ser um líder fascista, mas ele fez a vida dentro do Estado, como militar e como parlamentar”. A declaração ocorreu em entrevista exclusiva publicada na edição de março da revista Política Democrática Online.

Confira a Edição 29 da Revista Política Democrática Online

Com periodicidade mensal, a revista é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. A versão flip, com todos os conteúdos, pode ser acessada gratuitamente na seção de revista digital do portal da entidade.

“Fascismo caricatural”

Mestre e doutor em História pela USP (Universidade de São Paulo), Aggio afirma que “o fascismo de Bolsonaro é caricatural”. “Sua inclinação é muito mais tradicionalista, de uma sociedade fechada. Bolsonaro é o anti-Popper, é visceralmente contra a sociedade aberta”, critica o professor.

Aggio, que é diretor do blog “Horizontes Democráticos”, voltado para o debate da política contemporânea no Brasil no mundo, também afirma que o presidente é “um pragmático”. “Mas por ser mentalmente restrito é alguém que não tem capacidade de ampliação pelo que ele representa. Em suma, não é efetivamente um líder”, analisa.

Com pós-doutorado nas universidades de Valência (Espanha) e Roma3 (Itália), o historiador afirma que, pelos acordos políticos que estão conseguindo impedir o impeachment, Bolsonaro pode conseguir a reeleição. Mas com uma condição: “Se seus opositores errarem muito, e infelizmente sabemos que isso pode acontecer”, afirma.

Agruras

Na entrevista à revista da FAP, Aggio explica que o fascismo nasceu da sociedade, das agruras do pós-Primeira Guerra. No fundo, de acordo com ele, “Bolsonaro é não só um mau soldado, como disse o General Geisel, mas é também um fascista incapaz”.

Segundo o entrevistado, além da ligação com os militares, a vinculação do presidente com a religião é instrumental, a pauta de costumes reacionária, tradicionalista. “Bolsonaro espelha melhor um regime autoritário a la Salazar ou Franco, do que a la Mussolini ou Hitler, esses, sim, carregaram um projeto ativo e moderno de mundialização, mas foram derrotados”, diz.

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Hamilton Garcia: O esgotamento da democracia de clientela e os perigos que se avizinham

Falar no esgotamento da democracia de clientela após duas vitórias sucessivas do Centrão, nas eleições municipais de 2020 e nas mesas do Congresso Nacional, pode parecer totalmente despropositado, mas não é. Já há praticamente um consenso, entre muitos analistas políticos, de que a Nova República se esgotou, ela, que não obstante os sinais vindos da luta democrática dos anos 1970-1980, se desenrolou, a partir dos anos 1990, como um movimento transformista que, sob o impulso da luta pelo governo representativo (presidencialismo de coalizão), instaurou, de fato, um regime semi-representativo (presidencialismo de cooptação).

Mas é preciso discutir mais detidamente de qual esgotamento estamos falando. Não se trata apenas, pelo alto, de como a degeneração e a fragmentação partidária erodiram o sistema de representação, mas também, por baixo, de como o eleitorado foi levado a participar, por meio da velha cultura (coronelismo), da política de clientela – que, no nosso caso, apenas em parte se parece com a política de clientela norte-americana, baseada em ativismo social (grupos de pressão) e em modelo partidário horizontal (primárias/caucus) emulado por sistema eleitoral majoritário.

Não apenas isto, mas é preciso entender ambos os fenômenos em chave com o modo de produção predominante no país, no caso, um capitalismo reprimarizado, baseado em exportação de commodities e importação de manufaturados ou seus componentes, com forte participação do setor de serviços e baixa qualificação da mão de obra. Tal modelo, semi-estagnacionista e dependente, não é compatível com o Estado de Bem-Estar e, portanto, com a tão almejada equalização social, e por um motivo básico: sua cadeia de produção/valorização não gera renda compatível, na forma de lucros, impostos e salários, capaz de sustentar tal pretensão. Assim, só resta o endividamento público como viga de sustentação das amplas expectativas sociais e dos interesses privados, a par de porto seguro para o emprego da classe média e de auxílio aos miseráveis, em condições crescentemente gravosas, dado o pesado custo dos juros imposto pelo sistema financeiro nacional – setor hegemônico do bloco histórico em crise.

Claro está que, sem a mudança deste modo de produção – que só pode ser viabilizado por coalizão política ampla de forças político-sociais, o que não se confunde com bloco parlamentar ou simples coalizão eleitoral –, a crise atual não tem solução efetiva, quando muito pode ser rolada e sempre em condições mais críticas. Ocorre que, como historicamente sabemos, são muitas as rotas para a mudança, o que, por si só, não garante que ela seja de fato alcançada, nem mesmo em seu modo mínimo para não falar do ótimo.

O Governo Bolsonaro encarna a mais nova tentativa de mudança desde que o PT abdicou, de fato, desta postulação, em 2002, em prol de um “lugar ao sol” no sistema de domínio, com a diferença de que a extrema-direita sequer tinha um programa digno do nome e que chegou ao poder pela inusitada, embora prenunciada (junho de 2013), revolta de uma população apartada de instrumentos institucionais (partido político) para operar efetivas mudanças políticas.

Como não poderia deixar de ser, inclusive por suas idiossincrasias, tudo aconteceu de maneira mais rápida e atabalhoada com Bolsonaro, até mesmo se comparado à FCM. Já na largada, JMB expôs a fragilidade de sua coalizão eleitoral na crise com os Ministros Bebiano e Cruz, e embora tenha aprovado a Reforma da Previdência, esta se deveu mais a um consenso social, enquanto o Presidente iniciava sua luta desesperada pela própria sobrevivência. Em certa medida, o Governo foi "salvo" pela pandemia, que se transformou em álibi de sua anomia política, ao fim remediada pelo “porto seguro” do Centrão. É verdade que existem dúvidas fundadas sobre tal “segurança”, sobretudo diante de um governo tão frágil quanto atabalhoado. Mas é preciso olhar também para a crise do sistema, onde Bolsonaro se agarra.

Não se pode descartar que o liberalismo radical de Guedes tenha encontrado sua mediação clássica no Brasil neopatrimonial com a "nova" coalizão, o que possibilitará ao bolsonarismo, pelo menos em tese, por meio de sua ala militar, neutralizá-lo enquanto utopia burguesa e convertê-lo de obstáculo à catapulta de um novo arranjo nacional-desenvolvimentista, como já vislumbrado no PAEG em contexto histórico distinto, num cavalo de pau de difícil compreensão, inclusive para os observadores da história que ignoram as implicações da via prussiana em nosso longo processo de modernização.

O PAEG, é verdade, se desenvolveu sob a tutela militar, tutela que hoje seria esmaecida, o que pode comprometer o enquadramento dos atores políticos envolvidos na trama e, consequentemente, seus fins, caso não demonstrem a exata noção do que estão fazendo e em quais circunstâncias. Não obstante, a crise aguda força os atores a uma consciência diferenciada na luta pela própria sobrevivência, como nos ensinou Lênin, o que implica, hoje, em se observar e responder ao desespero social que se anuncia. Não apenas isto, será preciso também tratar da retomada econômica para garantir a renda do trabalho após a emergência, estimulando a esperança dos trabalhadores por dias melhores. Para que tal retomada aconteça, de outro lado, as reformas em discussão no Congresso deverão englobar medidas que contemplem a reindustrialização do país, a começar pelos setores que já dominamos e os que impliquem em enfrentamento da pandemia, como a indústria farmacêutica.

Se isto tiver sequência no âmbito do programa econômico da coalizão bolso-militar-centrista, restará observar a cena político-judiciária, ainda mais incerta em razão das pressões sociais que afetam os aparatos de justiça desde o Mensalão (2005). Mais especificamente, será preciso verificar se um eventual clima de otimismo econômico extra-Mercado será capaz de neutralizar o previsível aumento do mau humor dos cidadãos com seus representantes e a burocracia pública, em meio ao novo cenário de conforto projetado com o fim da Lava-Jato e a possível reabilitação jurídica de vários de suas "vítimas" de colarinho branco, que podem ensejar, a partir de agora, uma ida aos cofres com ímpeto represado, capaz de abalar a credibilidade que resta da reputação anti-sistêmica do bolsonarismo, além de acumular mais combustível sobre mata ressecada.

A própria blindagem de Bolsonaro pelas elites, em função, principalmente, do estancamento da sangria e seus supostos efeitos distensionistas sobre a política e a economia, é aposta inflamável no pior cenário. Nada disso deve passar desapercebido pelos estrategistas do bolsonarismo, que mantém na manga a carta do “auto-golpe", que, no caso do bolsonarismo, como se sabe, está longe do inverossímil e brancaleônico "exército do Stédile”, configurando, de fato, perigo tangível.

Diante disso e da incrível capacidade interpelatória das narrativas bolsonaristas – cuja diferença essencial em relação às narrativas lulopetistas reside tão somente em sua maior facilidade assimilatória pela massa –, é possível que o ônus deum eventual insucesso da coalizão bolsocentrista, em meio às frustrações econômicas e/ou o pipocar de escândalos de corrupção, possa ser jogado, com grandes chances de êxito, nas costas do STF, do próprio Centrão – da qual Bolsonaro conseguiu se distanciar pela ótica popular, não obstante as rachadinhas – e da esquerda, por conta das manobras de anulação processual que podem favorecer LILS  – sob o beneplácito de Bolsonaro, diga-se de passagem – e, em sequência, outros apenados, como Eduardo Cunha e Sérgio Cabral, entre outros.

Tudo isto estará sobre a mesa na campanha eleitoral de 2022, que se inicia agora, fora do controle do TSE, não devendo haver dúvidas sobre a disposição, inclusive já insinuada, de Bolsonaro entrar neste jogo com a intenção de “fazer o diabo para se reeleger” (DR), o que, na prática, projeta sua intenção de aceitar apenas o resultado que lhe beneficie. Isto, naturalmente, não dependerá apenas de sua vontade, mas também exigirá conjuntura favorável, como uma crise que conjugasse colapso social com desespero econômico e desmoralização das instituições republicanas, abrindo caminho para greves de caminhoneiros, alguma inquietação nos quartéis e apelos para a restauração da ordem, cenário em parte visto no pré-1964.

Um conflito desta envergadura não só é possível, como pode acontecer antes da suposta “fraude eleitoral”, em meio ao desarranjo de seu "novo" governo. Outra variável importante a considerar, é como a radicalização política e a frustração das massas com as instituições vai se manifestar, inclusive nos meios militares, já que desde 1930, como nos ensinou José Murilo de Carvalho[i], as FFAA se movimentam na cena política com vistas a conter as ameaças de ruptura vindas de baixo – como a de Prestes, em 1930/1935, e a de Jango/Brizola, em 1964. No contexto atual, todavia, a ameaça potencial vem do baixo-clero bolsonarista, o que tornaria o desenlace ainda mais complexo e incerto.

Fator decisivo para tal evolução da situação é como as massas reagiriam ao caos social. Não se pode descartar a hipótese de que um descontentamento geral se misture à anomia já instalada nas periferias das metrópoles, que, embora de difícil assimilação pelas elites intelectuais (liberais e socialistas) – tendentes a traduzí-la como questão ética –, segue sendo vivenciada pela população sitiada como desafio à sobrevivência, a exigir solução de força (desarmamento) sob os auspícios da lei, que, não acontecendo, escancara as portas para o puro arbítrio da força ilegal, alimentada pelas facções bolsonaristas. Em tal contexto, a politização da crise pela extrema direita poderia catalizar o desejo geral de estabilização e ordem, o que praticamente forçaria uma ação convergente por parte do Alto Comando das FFAA, embora ainda dentro da lei (GLO). 

Tudo isto nos coloca questões para muito além da ideia de resistência democrática experimentada nos anos 1960-1970, ideias que fossem capazes de neutralizar a perspectiva tutelar dos militares sobre a República, perspectiva esta que é a pedra angular do intervencionismo militar desde 1889 e que teve no Gen. Góis Monteiro, nos idos de 1930, um arguto articulador que a traduzia como a expressão institucionalizada da nacionalidade, em cuja sombra poderiam "se organizar as demais forças da nacionalidade"[ii].

À rigor, na posologia deste velho remédio, Bolsonaro não teria lugar, mas tampouco estaríamos à salvo de seus conhecidos efeitos colaterais. O mais sábio, à luz da história, seria reconhecer tais riscos e buscar evitá-los pela franca assunção da crise de nossa democracia (clientelista), articulando, sob o signo da reconstrução nacional, uma saída democrático-desenvolvimentista para a crise em diálogo com os militares.

De novo, pode não ser o ideal, mas é o que nos cabe em meio aos perigos que se avizinham.

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF/DR[iii])


[i] Forças Armadas e Política no Brasil, ed. Todavia/SP, 2019.

[ii] Apud Carvalho, p. 120.

[iii] Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.


Cora Rónai: A sensação de alívio com o silêncio de Trump

'New York Times' publicou lista dos insultos que o ex-presidente postou na hoje banida conta do Twitter

Na semana passada, na esteira da posse de Biden, o “New York Times” publicou uma extensa lista dos insultos que o ex-presidente postou, desde a sua campanha, na hoje banida conta do Twitter: “The complete list of Trump’s Twitter insults (2015-2021).” É uma lista imensa, dividida por assuntos e nomes de desafetos, que pode ser consultada cronologicamente ou em ordem alfabética — e é um documento histórico inestimável, não tanto pela espantosa capacidade de um único homem em produzir desaforos, mas pela não menos espantosa paciência do corpo político em tolerá-los.

Algum dia, no futuro — isso se tivermos futuro, e chegarmos a tempos menos distópicos —, alguém vai se deparar com essa lista e vai se perguntar como um país do tamanho e da grandeza dos Estados Unidos aceitou tanta besteira, tanta estupidez e tanto ódio; mais ou menos como hoje nos indagamos como os romanos toleraram figuras como Calígula, Nero ou Domiciano. (Ou nos indagávamos, pelo menos, na época em que se estudava o Império Romano; mas o nosso passado anda tão distante hoje quanto qualquer futuro.)

No momento, a melhor coisa a fazer é aproveitar a sensação de alívio que reina nas redes sociais livres da presença nefasta do ex-presidente. Ela me lembra o momento em que as obras do metrô terminaram aqui perto de casa, depois de um tempo interminável de britadeiras. Não é um silêncio real, apenas o fim de um barulho insuportável.

Emissoras de televisão jamais repetem nomes de estabelecimentos ou marcas comerciais porque sabem o valor da publicidade, e não estão aí para fazer propaganda de graça para ninguém. O público frequentemente se irrita com a prática — “um hotel da Zona Sul do Rio de Janeiro”, “um shopping de São Paulo” — mas ela continua, assim como a pixelização de logotipos e de etiquetas. Deve haver um bom motivo para isso.

Nomes próprios, porém, são marcas.

(No caso do ex-presidente dos Estados Unidos, literalmente, e hoje ainda afixada a dez hotéis, 19 clubes de golfe e mais de 30 prédios residenciais ao redor do mundo: vai ser curioso observar os efeitos da política sobre esse mundo cafona de ostentação e dourados.)

Eu me pergunto se nós, jornalistas, não deveríamos seguir o exemplo das emissoras em relação a produtos, e deixar de mencionar com tanta frequência os nomes dos idiotas perversos que nos governam.

Será que precisamos mesmo repercutir tudo, sempre, o tempo todo? Será que precisamos repetir à exaustão nomes que se tornaram tóxicos?

Quando um decreto é assinado pelo presidente da República, por exemplo, é óbvio de quem se trata: só há um presidente em exercício. Só há um governador em exercício em cada estado, um prefeito em cada cidade e assim por diante.

Um antigo samba de Ataulfo Alves já resumia o caso:

“Fale mal / Mas fale de mim / Não faz mal

Quero mesmo assim / Você faz cartaz pra mim / O despeito seu / Me põe no apogeu.”

Eu sei, eu sei. A sugestão não é prática nem exequível; mas bem que podíamos tentar diminuir a cacofonia e retomar as rédeas das nossas pautas sequestradas.

No fundo, só estou pensando em voz alta, sonhando com o dia em que as britadeiras vão ser desligadas aqui também.


Ruy Castro: Trump sai, Bolsonaro continua

Nos EUA, um país a reconstruir; no Brasil, a possibilidade de não haver mais país

Em “De Volta para o Futuro” (1985), Michael J. Fox, vindo daquele ano, vai ao passado pela primeira vez e se refere a Ronald Reagan como o presidente dos EUA. Christopher Lloyd, o cientista, não acredita: “Reagan, o ator? Presidente dos EUA??? E quem é o vice? Jerry Lewis???”. Em 1955, ano em que se passa a história, Reagan, já relegado a filmes B, não poderia ser o presidente nem na tela —papel reservado a atores sóbrios e amados, como Henry Fonda, Ralph Bellamy, Fredric March—, quanto mais na vida real. Pois, em 1980, a vida real elegeu Reagan. Pena que sem Jerry Lewis.

Claro que, diante de Donald Trump, Reagan ganhou estatura de estadista, digno sucessor de Washington, Lincoln e Franklin Roosevelt. Trump rebaixou o cargo a níveis que nem o genocida James Buchanan (1857-61), o imoral Richard Nixon (1969-74) e o mentiroso George W. Bush (2001-09) se atreveram. Fez isto somando e absorvendo as piores ignomínias desses três e acrescentando a última audácia que os EUA esperariam de seu presidente —um projeto de golpe e ditadura.

Trump sairá pelos fundos da Casa Branca em 48 horas, mas o mundo ainda não está a salvo. Até o último minuto ele continuará a fazer o mal —insuflando seu gado ao ódio, sonegando dados sobre a pandemia para seu sucessor e cogitando anistiar a si mesmo e à sua família pelos crimes que cometeram. Muitos americanos que o apoiaram descobrem agora que sua ideia de poder não visava a um fim, qualquer que fosse. Ele era o meio e o fim. A psiquiatria deve ter um nome para isso.

Com o fim de Trump, os americanos têm um país a reconstruir. Aqui chegamos à metade do mandato do subclone Jair Bolsonaro e o pior ainda está por vir.

Pendurado na brocha sem a escada de seu líder, só cabe a Bolsonaro recrudescer. Ele também se vê como um meio e um fim. Resta ver quem chegará primeiro a este fim —ele ou o Brasil.


Celso Lafer: Consequências do trumpismo

Dante inseriria Trump nos círculos do inferno em que penam os falsários e os traidores

A tomada da Bastilha prefigurou a Revolução Francesa; a invasão do Palácio de Inverno, a implantação do comunismo na Rússia; a marcha sobre Roma, a afirmação do fascismo na Itália; a Noite dos Cristais, na Alemanha, o Holocausto. O que configura a ocupação violenta do Congresso em Washington por uma horda de adeptos do trumpismo, inconformados com a vitória eleitoral de Joe Biden? Ela foi uma surpreendente e inédita ruptura dos tradicionais limites que sempre cercaram e protegeram a autoridade das instituições políticas dos Estados Unidos.

A República americana continuadamente teve como uma das características da sua identidade o respeito às instituições e a afirmação de um “governo das leis” sob a égide e a aura da Constituição. É o que foi configurando, no correr de uma longa experiência histórica, a autoridade da democracia ensejando um patamar de estabilidade aos seus processos de mudança política, com destaque para a dinâmica das sucessões presidenciais provenientes de eleições periódicas.

O que mina e corrói a autoridade é o desprezo pelos limites que ela naturalmente impõe. Daí, nos Estados Unidos, a figura jurídica do contempt of Court, que penaliza, num processo, quem deliberadamente cria obstáculos à administração da justiça, descartando a dignidade e a autoridade da Corte. Contempt of Congress aplica-se aos que obstam ou buscam impedir o due course dos seus procedimentos.

Desprezo pelos limites, foi isso que configurou o que se passou em Washington. O estrépito do “vale-tudo” da violência pôs em questão a autoridade das instituições. Buscou comprometer o alcance do abrangente poder conjunto da cidadania de lidar com os problemas e desafios do país pela via do processo eleitoral.

A ocupação violenta do Congresso teve como objetivo obstruir os procedimentos de formalização conclusiva da inequívoca vitória eleitoral de Biden, confirmada pela dinâmica das instituições e pelas diversas instâncias do Poder Judiciário, que rejeitou, por absoluta falta de provas, as incontáveis alegações de fraude com as quais Trump alimentou a sua própria inconformidade e a da horda de seus mais raivosos militantes com o desfecho do processo eleitoral.

O desprezo pelos limites do politicamente aceitável confirmou que a eleição foi uma luta pela “alma” do país e pelo espírito que historicamente a vivificou. Uma luta que Joe Biden travará na sua presidência.

Trump dedicou-se à corrupção da alma da República e da confiabilidade das suas instituições. Foi o que preparou a ruptura dos limites. São notas de sua atuação a mentira como princípio de governança voltada para manipular o Congresso e o Partido Republicano, com o personalismo do seu “bullying”, direcionado para um contínuo esforço de operar um regime ao arrepio da lógica do “governo das leis”. Por isso o empenho do trumpismo em pôr de lado as práticas e os preceitos constitucionais e jurídicos atravancadores do ímpeto da vontade presidencial num Estado de Direito. Daí o deslavado inserir do ilícito nos processos políticos do país, o uso abusivo do “privilégio do Executivo” e do perdão presidencial para proteger os colaboradores que mobilizou na sua sanha destrutiva.

Trump cobriu com um tecido de mentiras o espaço público dos Estados Unidos com a sua solerte operação das redes sociais. Criou “bolhas” intransitivas alimentadas por polarizações, cevadas pelo discurso de ódio, voltadas para desqualificar os que a ele se contrapunham. Aviltou o bem público da inclusividade, que é um dos valores da democracia. Confrontou com suas arengas despropositadas uma das máximas do mérito da democracia: é melhor contar cabeças do que cortar cabeças, nas palavras de Bobbio.

A virtude é um dos ingredientes de uma República que deve zelar pelo bem comum. Quando ela fraqueja, como na presidência Trump, abre-se o espaço para o domínio das baixas paixões, dos ressentimentos, das invejas e da vaidade. Trump traiu a alma das instituições republicanas dos EUA. Dante o inseriria nos círculos do inferno onde penam os falsários e os traidores.

A força das instituições americanas está contendo a sua fúria destrutiva. Mas ela é configuradora de consequências não só para os Estados Unidos, mas para o mundo, com destaque para a vigência do valor da democracia.

O trumpismo mina o softpower gravitacional da democracia americana no mundo. Justificá-lo é uma ameaça generalizada à democracia. Daí a inconformidade democrática, no Brasil, quanto às recentes manifestações do presidente e do seu chanceler. Elas são mais do que a expressão de afinidade com uma concepção da prática política. Revelam uma declarada simpatia pelas posições de Trump e dos seus mais raivosos adeptos. Foram uma oportunidade para nelas identificar uma antecipada prefiguração de uma despropositada fraude eleitoral nas eleições presidenciais de 2022. É um semear de ventos para tempestades políticas futuras.

*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Luiz Sérgio Henriques: A corrupção da realidade

É o cenário ideal para projetos de poder que mal disfarçam um fundo niilista

Depois dos espantosos acontecimentos sucessivos à derrota eleitoral de Donald Trump, que culminaram no assalto ao Capitólio, acompanhado em tempo real por todo o mundo, pode-se afirmar que a esfinge do nacional-populismo contemporâneo não guarda nenhum segredo para ninguém.

Singularmente reativos à globalização e à construção de uma ordem internacional capaz de regular minimamente essa mesma globalização, que confundem de propósito com um fantasmagórico “governo mundial”, os diferentes nacionalismos mundializaram-se à sua maneira e renderam-se, ainda que de modo enviesado, às novas realidades. Não é de estranhar, por isso, que tenham até subtraído do movimento histórico dos trabalhadores a ideia de uma “internacional” que informalmente os congrega e entre eles difunde experiências “revolucionárias” ou que parodiam grotescamente as velhas revoluções.

Nada difícil, também, imaginar que serão bem parecidos os problemas que colocam, ou ainda vão colocar, para cada uma das democracias em cuja sala de comando já entraram ou ameaçam entrar. E cabe falar propriamente de ameaça, pois, como o caso norte-americano deixa evidente, trata-se de grupos com pretensões antissistêmicas, avessos à ideia simples, mas fundamental, de que eleições podem ser ganhas ou perdidas e que uma democracia de verdade repousa na recíproca legitimação dos contendores. Ninguém está fora do jogo, desde que recuse a violência e demonstre lealdade às instituições e suas normas, escritas ou não.

Chega a ser obsceno, depois da trágica experiência dos totalitarismos do século 20, transformar adversários em “inimigos internos” ou “traidores da pátria”, como se fazia, e se faz, nas ditaduras de qualquer tipo ou natureza – nas que se instauraram em nome da “segurança nacional” e nas que aviltaram a palavra “socialismo”. Por esse caminho se abdica da lógica política em favor da lógica da guerra e se entra num campo minado onde o combate salutar entre partidos, que sempre supõe acordos e compromissos, degenera no jogo feroz de facções inconciliáveis. Partidos e outros atores razoáveis são elementos de civilização, mesmo quando se defrontam duramente; facções são fatores de barbárie, ruína e perdição.

A experiência norte-americana dos nossos dias é ilustrativa, sob uma série de aspectos. O que impressiona, já à primeira vista, são os sintomas de loucura de massas advindos do que o angolano José Eduardo Agualusa, com mira certeira, chamou de corrupção da realidade. A fabricação consciente de “fatos alternativos”, ao que se diz, aproxima a Rússia putinista e a versão trumpista dos Estados Unidos, mas, evidentemente, há mais gente mundo afora envolvida nesse festim diabólico. Se, seguindo uma boa tradição de pensamento social, devemos considerar os fenômenos ideológicos uma realidade material como qualquer outra, e não mera aparência maldosamente arquitetada pelas “classes dominantes”, há na desfaçatez com que se mente, no volume e na velocidade com que se aciona o mecanismo propagador de absurdos, algo pérfido e doloso.

Mente-se, hoje, para pôr de pé estratégias manipulatórias como talvez nunca tenhamos visto antes, até porque estamos às voltas com a irrupção impetuosa da internet e das redes sociais. Não a mentira piedosa, como a da trama do conhecido Adeus, Lenin, filme em que o filho busca manter a mãe comunista, egressa de coma, na ilusão de que a Alemanha Oriental ainda resistia e gozava de boa saúde, quando o muro já tinha desabado havia meses e ela, a Alemanha Oriental, era mais um retrato na parede.

Mente-se, ao contrário, como estratégia determinada de grupos que aspiram à subversão da ordem democrática, como nos Estados Unidos, ou à manutenção da ordem autocrática, como na Rússia. Trata-se, quase se diria, de engano deliberadamente construído, que, no entanto, amplas parcelas da população, com menor ou nenhum grau de consciência, sofrem passivamente, entregando-se às mais extravagantes teorias da conspiração e superstições pré-científicas e anticientíficas.

Destroem-se assim alguns dos consensos mais básicos que estruturam a vida em sociedade. A deslegitimação das instituições – a começar do processo eleitoral, fundamento das democracias sistematicamente posto sob suspeição por todos os candidatos a autocrata – parece ser o resultado propositalmente buscado. E a realidade assim corrompida é o cenário ideal para projetos de poder que mal disfarçam um fundo niilista: o culto do homem providencial, a fixação no mando pelo mando, a dominação bruta, sem capacidade de direção e convencimento.

Não é a primeira vez que extremistas vestem fantasias “revolucionárias”, afirmando representar o homem da rua contra elites degeneradas. Há quase cem anos houve quem, na direita extrema, conjugasse demagogicamente “nacionalismo” e “socialismo”, com os resultados sabidos. Só que agora, até mais do que antes, podemos quase tocar com as mãos na dimensão universal da democracia e do conjunto de valores, particularmente liberais, que ela por sua própria natureza implica.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Bruno Boghossian: Medo da violência aumenta poder sedutor do debate sobre armas

É melhor remover um lunático da arena política ou derrotá-lo nas urnas?

Donald Trump fez tantos estragos na política americana que foi preciso aprovar dois pedidos de impeachment contra ele na Câmara. O primeiro foi barrado no Senado, em 2020, e o segundo não deve ser votado antes do fim de seu mandato, mas o processo em curso pode abrir caminho para que ele seja proibido de disputar eleições.

Alguns congressistas republicanos apoiam a condenação de Trump. Além de gravar essa decisão na história, eles dizem que é preciso despoluir o partido e impedir que o atual presidente cause mais danos ao país no futuro. Outros parlamentares, porém, argumentam que expulsá-lo da vida pública vai alimentar animosidades e fortalecer seus devotos mais radicais.

É melhor remover um lunático da arena política à força ou é melhor derrotá-lo nas urnas? A resposta depende do apego a princípios democráticos, da força das instituições, do grau de ameaça do sujeito e, principalmente, da chance de sucesso de cada uma das alternativas.

Quem defende o acionamento do segundo botão sustenta que o confronto dentro das regras eleitorais reveste esse movimento com o condão da vontade popular e ajuda a reduzir os traumas da transição, mesmo após campanhas duras.

O problema é que essa solução tende a ser pouco eficaz contra populistas autoritários, que exploram teorias extremistas, posam como líderes perseguidos pelo sistema e se beneficiam do ressentimento de seus admiradores. Se os americanos escolherem esperar até 2024 para dizer um novo “não” a Trump, ele pode voltar à Casa Branca.

A exclusão pelos canais institucionais é um tiro mais certeiro, ainda que os efeitos colaterais sejam consideráveis. A ação depende de políticos que tenham coragem de tomar essa decisão e que abandonem a ilusão de que poderiam controlar o líder desvairado caso ele continuasse no jogo. Depois disso, é preciso ter instituições potentes para debelar focos secundários de extremismo e barrar a ascensão de seus filhotes.


Hélio Schwartsman: O impeachment como dever

O processo não avançaria, mas temos obrigação moral de tentar

Na atual conjuntura política, um processo de impeachment de Jair Bolsonaro seria derrotado, mas daí não decorre que não tenhamos a obrigação moral de tentar.

Dilma Rousseff buliu com as contas públicas e foi corretamente afastada pelo Congresso. Bolsonaro cometeu crimes de responsabilidade muito mais graves, mas nada acontece com ele. Por quê?

Isso se deve à natureza meio capciosa do instituto do impeachment e, principalmente, à complacência da sociedade. Processos de afastamento de presidentes exigem uma base jurídica, que não é difícil de conseguir —"proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo" vale para qualquer coisa—, e a quase inviabilidade política, já que o titular só é de fato destituído se mobilizar contra si 2/3 dos parlamentares.

Como o segundo elemento é muito difícil de obter, fechamos os olhos para violações constitucionais com uma frequência muito maior do que a recomendável.

Se a situação socioeconômica não se deteriorar muito nos próximos meses, o que não desejo, Bolsonaro não tem com o que se preocupar. O centrão deverá segurá-lo no cargo. Mas, sob pena de potencializar ainda mais os já escandalosos níveis de complacência nacional, a parcela dos brasileiros que rejeitam as atitudes e as políticas de Bolsonaro tem o dever de marcar posição, pressionando para que a Câmara ao menos dê início a um processo de destituição.

Ainda que a derrota seja quase certa, é uma satisfação que devemos aos pósteros. O Partido Democrata dos EUA passou por idêntica situação em 2020 e optou por dar seguimento ao primeiro impeachment de Donald Trump, mesmo sabendo que o processo morreria no Senado. Os democratas e os americanos que os apoiavam fizeram questão de mostrar que não haviam ficado cegos nem abandonado as noções básicas de retidão e decência.

A patacoada golpista de Trump na semana passada prova que tinham razão.


O Globo: Diplomatas criticam reação de Araújo à invasão do Capitólio

Chanceler de Bolsonaro condenou violência em ataque ao Congresso dos EUA, mas ecoou acusações infundadas de Trump sobre fraude eleitoral; nota de associação de ex e atuais integrantes do Itamaraty explicita mal-estar na diplomacia brasileira

Henrique Gomes Batista, O Globo

SÃO PAULO — A invasão do Capitólio por apoiadores do presidente Donald Trump, no dia 6, não gerou uma crise política apenas nos EUA: ela tem respingado também no Itamaraty. Dentro da diplomacia brasileira, é forte o movimento de críticas ao posicionamento do chanceler Ernesto Araújo no episódio, considerado por muitos ideológico e contraproducente para os interesses nacionais. A divulgação de um novo posicionamento da Associação e Sindicato dos Diplomatas Brasileiros (ADB), na sexta-feira, tornou público o mal-estar dentro da instituição. A percepção é que o posicionamento do chanceler pode prejudicar a relação entre Brasil e EUA no governo de Joe Biden.

— Este foi um movimento de repúdio ao ministro, feito por quem está ativo no Itamaraty. Grande parte das manifestações de ex-chanceleres ou de aposentados, no passado recente, era uma forma de suprir uma dificuldade dos diplomatas da ativa, que não podem se manifestar devido à hierarquia. Muitos têm medo de se expor. Mas a situação está chegando a um ponto inimaginável, não há precedentes na História — afirmou o embaixador e ex-chanceler Rubens Ricupero.

Ele afirma que nunca houve um ministro tão dissociado dos postulados básicos da diplomacia, o que gera essa manifestação inédita.

— Uma pessoa decente deveria apresentar sua renúncia diante disso — afirmou.

Procurados, nem o Itamaraty e nem a ADB quiseram se pronunciar sobre o caso. Mas fontes ligadas aos dois grupos, além de diversos outros diplomatas, afirmaram, sob sigilo, que o clima dentro da diplomacia brasileira nunca esteve tão ruim.

Um diplomata de carreira disse que “o clima está quente” e que “vários embaixadores aposentados declararam apoio à nota e aplaudiram a ADB reafirmar os princípios da diplomacia brasileira”. Segundo ele, a entidade externou uma posição velada entre os diplomatas da ativa, que não se pronunciam por causa da hierarquia. O diplomata indicou, também, a existência de um grupo “muito minoritário, mas estridente”, que se posiciona contra a manifestação da ADB em temas de política externa.PUBLICIDADE

A Associação — com 1.600 filiados, sendo que 75% destes diplomatas da ativa — de forma sutil, escreveu que “o exercício dos direitos à liberdade de expressão e à livre reunião e associação deve ocorrer de forma pacífica”, e que ele “não se confunde com tentativas de subversão da vontade soberana do eleitor, por meio da violência e da destruição do patrimônio público, como as vistas na sede do Legislativo norte-americano”. Tal posicionamento foi visto como uma afronta pelo grupo que defende a atuação de Ernesto Araújo.

Atuação ideológica

O chanceler de Jair Bolsonaro, apesar de afirmar que condenou a invasão, escreveu no Twitter que “há que distinguir ‘processo eleitoral’ e ‘democracia’” e que “grande parte do povo americano se sente agredida e traída por sua classe política e desconfia do processo eleitoral”, fazendo eco às alegações infundadas de fraude no processo eleitoral americano por Trump.

Fã público do presidente americano — que ele já afirmou ser um “salvador do Ocidente” — Araújo descumpriu uma regra da diplomacia brasileira, de não interferir em questões internas de outros países, e chegou a duvidar das investigações da invasão.

Para diplomatas ouvidos pelo GLOBO, este foi um estopim de insatisfações dentro do Itamaraty. Muitos afirmam que Araújo tem, cada vez mais, agido por questões ideológicas, e citam, como outro exemplo, a complicada relação com a Argentina desde a vitória de Alberto Fernández.PUBLICIDADE

Um diplomata ouvido pelo GLOBO lembrou que a Constituição estabelece que a diplomacia brasileira deve seguir princípios como independência nacional, autodeterminação dos povos e não intervenção. Para ele, “isso tem se perdido desde que o atual governo chegou ao poder”, e ele lembrou que a atual gestão tem até censurado livros e determinado apenas uma corrente de pensamento da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), do Itamaraty.

Sem fiscalização isenta

Além de repercutir na imagem do Itamaraty, que segundo Ricupero “vai levar mais que uma troca de gestão para ser recuperada”, estes posicionamentos com bases ideológicas, segundo diplomatas e especialistas, afetam a relação do Brasil com os EUA.

— Converso com alguns membros da equipe de transição de Joe Biden, e Araújo tem uma péssima reputação entre os democratas. Há uma percepção em Washington de que não há como evitar uma ruptura na relação bilateral se Ernesto permanecer no cargo — afirmou Oliver Stuenkel, da FGV. —Não se trata do presidente americano pedindo a troca de um chanceler, mas de um chanceler que não reconhece a legitimidade da eleição de Joe Biden.

Para diplomatas, o Congresso não tem fiscalizado a diplomacia com isenção. O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente à frente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, passou a usar uma foto de Trump em sua conta no Twitter. (Colaborou Camila Zarur)


O Estado de S. Paulo: Bolsonaro diz que prepara decretos para facilitar acesso a armas de fogo

Presidente afirma que três novas regras para grupos de Colecionadores, Atiradores e Caçadores devem ser publicadas nesta semana

Vinícius Valfré, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – O presidente Jair Bolsonaro afirmou nesta segunda-feira, 11, que prepara três decretos para facilitar o acesso a armas de fogo a grupos de Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs).

Ao conversar com apoiadores que o esperavam nas imediações do Palácio da Alvorada, Bolsonaro disse que houve crescimento recorde na venda de armamentos, mas destacou que a alta precisa ser mais robusta. “Nós batemos recorde o ano passado, em relação a 2019. Mais de 90% na venda de armas. Está pouco ainda, tem que aumentar mais. O cidadão de bem, há muito tempo, foi desarmado”, disse ele.

Segundo a Polícia Federal, 179.771 novas armas foram registradas no País no ano passado, o que representa aumento de 91% com relação ao número de 2019.

O presidente foi questionado por um dos apoiadores sobre novos decretos de interesse dos CACs e respondeu que deve publicar as normas ainda nesta semana. “Tem três decretos para sair. Acho que saem essa semana, dois ou três decretos. Eu não posso ir além da lei, vai facilitar mais coisas para vocês”, afirmou.

Envolvido na disputa para emplacar aliados na eleição que vai renovar a cúpula do Congresso, em fevereiro, Bolsonaro levou o tema aos apoiadores. Disse que a tramitação do projeto que pretende aprovar sobre o tema dependerá do próximo presidente da Câmara. Bolsonaro apoia a candidatura do deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), chefe do Centrão. O principal adversário de Lira é Baleia Rossi (MDB-SP).

O presidente encerrou dizendo a um dos apoiadores que se apresentou como caminhoneiro que, se dependesse só do chefe do Executivo, a categoria já “teria porte de arma há muito tempo”.

O vídeo com as declarações foi publicado em um canal bolsonarista no YouTube. Bolsonaro cumprimentou seguidores e posou para fotos com aliados e não tratou da covid-19 durante a interação, apesar de o País ter registrado mais de 200 mil mortes pela doença. Além disso, governo vem sendo criticado em relação à demora no início da vacinação. Ele e os apoiadores que aparecem na gravação não usavam máscaras.

O governo vem tomando uma série de medidas para ampliar o acesso de pessoas comuns a armas de fogo. Para o presidente, a população fica mais segura quando cidadãos estão armados.

Uma das providências mais polêmicas foi a revogação de três portarias do Exército que, na prática, dificultavam o acesso do crime organizado a munições e armamentos extraviados das forças policiais. Como mostrou o Estadão, a decisão foi tomada para atender a “administração pública e às mídias sociais”.