extrema-direita

Bruno Boghossian: Bolsonaro despreza dados oficiais para inventar seus próprios fatos

Desmonte do Censo e ataque a órgãos públicos reflete descaso com a realidade

No segundo mês de governo, Paulo Guedes pediu uma tesourada no Censo. Para cortar gastos, o ministro propôs a redução do questionário da pesquisa que seria feita em 2020. Como consequência, o país teria menos informações sobre suas desigualdades e menos elementos para elaborar políticas públicas.

"Se perguntar demais, você vai acabar descobrindo coisas que nem queria saber", afirmou Guedes. O ministro tentava fazer graça, mas acabou revelando o desprezo que o governo Jair Bolsonaro teria pela realidade.

Em 2020, o Censo foi adiado por causa da pandemia. Na sexta (23), o Ministério da Economia confirmou que ele também não será feito em 2021. Para piorar, Bolsonaro cortou 25% do orçamento que seria usado para preparar a pesquisa. Com isso, o país também corre o risco de atravessar 2022 sem aquelas informações que o governo "nem queria saber".

O apagão de dados é uma política de Bolsonaro. Desde o início do mandato, o presidente e seus auxiliares trabalham para desacreditar estatísticas oficiais. O governo prefere enterrar informações incômodas.

O mesmo IBGE que foi alvo dos cortes no Censo também havia sofrido ataques de Bolsonaro em 2019. Irritado com os números do desemprego, ele distorceu a metodologia das pesquisas da área para dizer que o órgão “não mede a realidade”. O instituto precisou divulgar uma nota para desmentir o presidente.

No meio ambiente, Bolsonaro já questionou dados do Inpe que apontavam uma alta no desmatamento em seu governo. Na pandemia, encomendou do Ministério da Saúde uma manobra para maquiar as estatísticas de mortes por Covid-19 e esconder seu papel na tragédia.

Sucatear esses órgãos e desqualificar a produção de dados públicos são parte de um projeto. Como não tem um programa de governo para lidar com a realidade, Bolsonaro escolheu inventar seus próprios fatos.

Saio de férias por duas semanas e volto à coluna no dia 12 de maio. Até lá!


Marcos Lisboa: Tudo vai ser diferente?

Nossa tentativa de plano Biden não deu certo

Os EUA de Joe Biden pretendem investir US$ 2,3 trilhões em oito anos, sobretudo em infraestrutura. O programa custará, anualmente, 1,3% do PIB americano. Para equilibrar as contas, o governo propôs elevar impostos por 15 anos, como tributar o lucro das empresas em 28%.

Essa ousadia pode ser comparada com algumas políticas da nossa história recente. Deve-se ressaltar que os EUA são 6,5 vezes mais ricos do que o Brasil. Além disso, empresas aqui já têm alíquota nominal de 34% sobre o lucro.

O custo anual do plano Biden equivale, no Brasil, a cerca de R$ 100 bilhões, menos de três vezes o valor das emendas parlamentares em 2021. O Orçamento federal é de R$ 1,5 trilhão.

Entre 2009 e 2015, o Tesouro brasileiro concedeu, por meio do Programa de Sustentação do Investimento, subsídios de R$ 323 bilhões, ou 5,5% do PIB anual médio no período.

Ajustado pelo PIB americano, o programa equivaleu a 50% do plano Biden. E essa foi só uma das políticas públicas utilizadas naquele período para estimular investimentos. Cabe mencionar que o custo para Tesouro americano está perto de 0,5% ao ano e o nosso, na época, era quase 6% acima da inflação, 12 vezes maior.

De 1998 a 2007, a nossa carga tributária cresceu cerca de 6 pontos percentuais mais do que o PIB, o que significou uma arrecadação adicional de R$ 2,33 trilhões no período.

O aumento do gasto público, contudo, foi-nos de pouca valia. Os EUA cresceram mais do que o Brasil entre 1995 e 2016, e os países emergentes fora da América Latina, cerca de sete vezes mais.

A razão é simples. Parte dos recursos se perde nos interesses que capturam o Estado brasileiro, com menos benefícios para a população do que em outros países, ou poucos investimentos eficientes.

Desenvolvimento e combate à desigualdade são utilizados, em parte, como cortina de fumaça para garantir subsídios para o setor privado e reajustes para corporações.

Nos EUA, servidores deixam de receber seus salários caso o Orçamento não seja aprovado. A maioria não tem estabilidade, muito menos aposentadorias integrais.

Por aqui, a burocracia, com estabilidade e aposentadoria integral, garante seu quinhão. Semana passada, por exemplo, o Congresso decidiu que técnicos da Previdência devem receber como analistas tributários.

Segundo deputados, a medida privilegiou 1.800 servidores, que vão receber salários de até R$ 18 mil por função para a qual não prestaram concurso. A conta chega a R$ 2,7 bilhões.

No mundo desenvolvido, o Estado está a serviço da sociedade. No Brasil, a sociedade trabalha para sustentar o Estado e seus alcaides.

Já passou da hora de tratar a nossa disfuncional economia política.


Armínio Fraga: O futuro da democracia e os desafios do Brasil

O liberalismo econômico e a social-democracia vivem um mau momento

Passeando pela minha estante me chamaram a atenção os títulos de vários livros que li (ou folheei...) recentemente: "como a democracia chega ao fim", "como as democracias morrem", "crises da democracia", "por que o liberalismo fracassou?", "o liberalismo em retirada", "o futuro do capitalismo", "a batalha dos poderes" e "o Brasil dobrou à direita".

Não sou tão pessimista, mas é inegável que o liberalismo econômico e a social-democracia vivem um mau momento. Lideranças populistas e autoritárias consolidam-se mundo afora. A China, que parecia caminhar em direção a alguma abertura, deu um cavalo de pau com Xi Jinping. Nesse cenário, a derrota de Trump é uma luz no fim do túnel.

Seria absurdo pensar que a democracia vai ter que se reinventar? As pressões por mudança vêm de várias frentes: a crescente desigualdade, a falta de mobilidade social, a incerteza quanto ao emprego, ameaçado pela tecnologia, as dinâmicas das redes sociais, as questões existenciais da mudança climática e da biodiversidade, as tensões do nacionalismo e os riscos do populismo. Há pressa!

Dei costas para a minha estante, desisti da lista acima e peguei na cabeceira uma obra das que mais gostei nos últimos tempos: a biografia do irlandês conservador Edmund Burke, membro do parlamento britânico, publicada em 2013 pelo também parlamentar Jesse Norman. Muito raramente faço anotações nos livros, mas marquei esse, talvez por tocar em questões muito em voga: a ordem social, os partidos políticos, as facções, os princípios da democracia e as possíveis implicações para os nossos tempos.

Correndo o risco de dar uma de Procusto, o personagem da mitologia que mutilava corpos para que se encaixassem em sua cama de pedra, faço aqui algumas pontes entre temas explorados no livro por Burke e Norman e a realidade brasileira.

Inicialmente, cabe uma breve reflexão sobre a ordem social, entendida como uma herança que passa de geração a geração, algo a preservar e a aperfeiçoar, gradualmente. No caso da Grã-Bretanha, aspectos legais e culturais se confundem, num "contrato informal", sem cláusula de escape, entre as gerações passadas, presente e futuras. Essa noção de permanência faz parte da essência do conservadorismo de Burke, e não se confunde com conservadorismo de costumes ou falta de solidariedade social.

No caso do Brasil, um novo "contrato" foi formalmente codificado em 1988, quando da promulgação da nova e muito detalhada Constituição.

Desde então os gastos públicos têm crescido quase que continuamente. A partir desta constatação, muitos concluem que o Brasil é inadministrável ou inviável. Mas cabe algum cuidado aqui. Desde sua promulgação, a constituição foi emendada 108 vezes (versus 27 no caso da americana, promulgada em 1789, sendo que 17 emendas ocorreram após a ratificação da Declaração de Direitos em 1791). Logo, não parece razoável culpar a Constituição por nossos problemas quando o Congresso pode com relativa facilidade aprovar emendas (o que não ocorre nos Estados Unidos).

Uma característica básica do caso brasileiro parece ser que há mais a aprimorar do que a conservar. Um exame do quadro orçamentário do Brasil exemplifica a gravidade do desafio. Por que o Orçamento? Porque é lá que desejos e carências são transformados em prioridades.

A despeito dos gastos públicos terem aumentado cerca de 10% do PIB desde 1988, os investimentos públicos caíram de um pico de 5% para 1% do PIB e os gastos com saúde limitam-se a apenas 4% do PIB (muito pouco para um sistema que se pretende gratuito e universal). Sem falar no desequilíbrio fiscal que se observa desde o descalabro de 2014-2015. A falta de prioridades sugere que o problema não é apenas econômico —é político também.

Tendo um pano de fundo como esse, o Brasil precisa repensar alguns aspectos de sua vida orçamentária, um elemento crucial de qualquer democracia. A despeito de avanços institucionais importantes nas últimas três décadas, o sistema vem deixando a desejar, sobretudo a partir de 2014. A trágica farsa do Orçamento que hoje vivemos não é novidade.

Cabe, portanto, a pergunta mais geral de Burke: como conseguir que a política vá além dos interesses pequenos de todo tipo? A soma destes interesses raramente entrega como resultado o interesse público, o bem comum. Parte relevante das respostas a essa indagação viria, segundo Burke, do bom funcionamento dos partidos "uma força moderadora e promotora de bom governo".

Em tese. Num de seus primeiros escritos, Burke afirma: "no momento não temos entre nós partidos propriamente ditos, apenas facções, sem princípio algum, um bando fazendo intrigas em benefício próprio". Faz algum eco aqui. Com 24 partidos representados no Congresso, sem clareza programática e mesmo ideológica, e nem um deles sequer com mais do que 10% dos assentos, os horizontes se encurtam, os projetos se apequenam e o bem maior da nação fica em segundo plano.

As reformas políticas já aprovadas apontam na direção certa, mas há um longo caminho pela frente. O equilíbrio entre interesses locais, regionais e federal é complexo. O mesmo se pode dizer de interesses temáticos, hoje particularmente presentes com as bancadas.

Não creio que o nosso sistema partidário seja a origem de todos os males. Mas, diante de desafios que só fazem crescer, as chances de sucesso parecem pequenas sem uma significativa melhoria em nossos mecanismos de governança.


Cristina Serra: Sergio Moro no lixo da história

O Supremo consagrou a vitória do devido processo legal, do Estado de Direito e da justiça

Na sessão do STF que examinou a equivalência entre turmas e plenário como fóruns de decisão da corte, uma rápida discussão entre os ministros Luís Roberto Barroso e Ricardo Lewandovski resumiu o cerne do que estava em jogo: se vale tudo no Judiciário para perseguir e prender inimigos políticos ou se ainda podemos acreditar na prevalência do devido processo legal.

A Vaza Jato mostrou que o ex-juiz Sergio Moro sugeriu pistas, informantes e estratégias aos procuradores da Lava Jato, ou seja, tramou fora dos autos como chefe da investigação. Violou o direito básico do réu a um juiz imparcial e desprezou o código de ética da magistratura.

O ministro Barroso considerou que a Vaza Jato revelou apenas "pecadilhos", "fragilidades humanas", "maledicências". A complacência não passou em branco para Lewandovski, que lembrou outros excessos de Moro muito antes da entrada em cena do hacker e do site The Intercept, como conduções coercitivas e prisões preventivas excessivas.

Acrescento aqui a interceptação telefônica de advogados de defesa e o vazamento do grampo ilegal de conversa entre Lula e a presidente Dilma Rousseff. À época, a ilicitude mereceu apenas leve reprimenda do então relator da Lava Jato, Teori Zavascki, morto em 2017, e o assunto foi encerrado com pedido de "escusas" de Moro. Lewandovski assinalou também que as críticas ao modus operandi do ex-juiz não podem ser confundidas com defesa da corrupção. É uma distorção costumeira e que desqualifica esse debate.

Como o ministro Marco Aurélio Mello se aposentará em breve, espera-se que seja rápido na devolução do caso ao plenário. O Brasil precisa virar essa página. O que importa, porém, já está decidido. O Supremo consagrou a vitória do devido processo legal, do Estado democrático de Direito e da justiça. O ex-presidente Lula, impedido por Moro de concorrer em 2018, está livre para disputar em 2022. E Moro irá para o lugar reservado aos canalhas: a lata de lixo da história.


Adriana Fernandes: Guedes precisa ter sangue-frio diante das pressões por mais dinheiro

Será preciso sangue-frio para aguentar a insatisfação geral e se preparar para esse período difícil dos próximos meses.

Se o presidente Bolsonaro e o Ministério da Economia não estiverem preparados para a pressão dos órgãos por mais orçamento (verbas) até o terceiro trimestre, a chance de o acordo naufragar é grande.

Com riscos até de uma crise em proporções maiores do que a enfrentada no último mês depois que a lei orçamentária foi aprovada cheia de problemas com maquiagens nos números.

O “miolo” do ano é um período complicado em termos do impacto do aperto nos gastos. O funcionamento da máquina vai falhando... até que, no fim do ano, o Tesouro Nacional vai soltando o dinheiro à medida que as previsões mais conservadoras de gastos não se confirmam.

Em algumas áreas, as falhas começam primeiro, justamente naquelas que já estavam operando no limite com as despesas muito restritas e os problemas se avolumando. O caso que mais chama atenção é o corte quase a zero da verba para dar continuidade às obras da faixa 1 do programa Minha Casa Minha Vida, rebatizado pelo governo de Casa Verde e Amarela. Não tem como isso dar certo.

Se Guedes conseguir segurar a pressão, a avaliação técnica é de que tem chance de ter sido um bom acordo diante do tamanho do impasse criado pela decisão do governo, incluindo o próprio ministro da Economia, de fechar um acerto político para acomodar no Orçamento R$ 16,5 bilhões. Essa foi a fatura para a aprovação da PEC emergencial, que no curto prazo não serviu para muita coisa em termos de ajuste fiscal. O espaço para emendas nunca existiu e foi o pulo para a crise.

Todo mundo saiu perdendo na crise, mas o relator do Orçamento, Márcio Bittar, que fracassou completamente na tarefa que recebeu de conduzir os acordos e abrir espaço fiscal para gastos prioritários este ano, nem tanto. Bittar manteve nas mãos ainda muito poder, o comando de R$ 18,5 bilhões em emendas de relator, o que torna o governo mais refém do Congresso.

Esse foi o Orçamento mais difícil desde o de 2016, votado em dezembro de 2015, um dia antes da saída do então ministro da Fazenda Joaquim Levy, substituído por Nelson Barbosa, ministro do Planejamento até então.

Ministro da ex-presidente Dilma Rousseff, Levy viu ampliar o seu desgaste dentro do governo justamente após disputa para que o projeto do Orçamento não fosse enviado pela primeira vez no vermelho, com a previsão de déficit de R$ 30,5 bilhões, o que ocorreu de fato. A lei orçamentária de 2016 foi aprovada depois prevendo superávit, como queria Levy, de 0,5% do PIB, mas contando com R$ 10 bilhões de receitas de uma nova CPMF que nunca saiu do papel.

O Orçamento de 2016 acabou sendo “corrigido”, a CPMF não vingou e o resto é história. A ironia é que o relator desse Orçamento problemático foi o deputado Ricardo Barros, hoje líder do governo Bolsonaro na Câmara.

Mesmo com acordo do Orçamento entre Bolsonaro e Centrão, o problema das emendas de relator tende a se repetir, como um “fantasma” a assombrar os próximos orçamentos. Essa “inovação” orçamentária foi criada em dezembro de 2019 para a LDO de 2020, sob a relatoria do deputado Cacá Leão (PP-BA). O beneficiado com as emendas foi o relator do orçamento daquele ano, deputado Domingos Neto (PSD-CE).

Embora em menor proporção do que agora, uma briga política também se instalou no início do ano passado em torno do Orçamento. Para 2021, o governo mandou o projeto sem essas emendas de relator, mas elas acabaram vingando de novo.

Após acordo que está no radar no curto prazo, são as pautas-bomba (com impacto para o cofre do governo) que começaram a pipocar e dar as caras, como a derrubada de um veto do ex-presidente Lula de 11 atrás que trata de cargos de servidores da Receita e tem custo de R$ 2,7 bilhões.

A mais preocupante das pautas-bomba são duas medidas provisórias (1.016 e 1.017), que devem ser votadas e permitem a renegociação de dívidas de fundos constitucionais e de investimento da Amazônia e do Nordeste. Já tem gente prevendo que a fase de pauta-bomba da época do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha está de volta.


Ascânio Seleme: Lula parte para o terceiro mandato

Ao confirmar suspeição de Moro, STF reabilitou política e moralmente o ex-presidente autorizando-o a se candidatar e muito provavelmente se eleger outra vez em 2022

Ao confirmar a suspeição do ex-juiz Sergio Moro depois de tê-lo considerado incompetente para julgar Lula, o Supremo Tribunal Federal reabilitou política e moralmente o ex-presidente autorizando-o a se candidatar e muito provavelmente se eleger outra vez em 2022. Não, não haverá tempo para que uma candidatura de centro ou centro-direita surja e cresça a ponto de superar Lula e conseguir vaga no segundo turno. Apenas João Doria pode surpreender. Luciano Huck ficou no espaço. Luiz Mandetta não se consolidou. Moro se dissolveu. E os demais pré-candidatos que apareceram neste espectro eram apenas balões que nem sequer ensaiaram uma alternativa.

A centro-esquerda e esquerda tinham Fernando Haddad e Ciro Gomes. Haddad é Lula. Ciro não deve ser páreo para um Lula que volta revigorado pelo STF. À direita o candidato será mesmo Bolsonaro? Talvez sim. Talvez não. A direita liberal pode encontrar em Lula argumentos para fugir do capitão que muito prometeu em 2018 e pouco entregou. As reformas neste governo não avançaram. Mesmo a reforma da Previdência, aprovada em 2019, foi muito mais mérito de Rodrigo Maia e da Câmara do que de Bolsonaro e do Palácio. Além disso, as constantes ameaças às instituições atrapalham o capitão muito mais do que o ajudam.

O presidente ficará com a extrema-direita, isso com certeza. Neste espaço, só resta ele. Trata-se de uma área tão árida do campo que somente olavistas convictos e puxa-sacos rematados conseguem por ela transitar à vontade. Com eles seguirá parte do eleitorado que se enrola em bandeiras do Brasil e pede o fechamento do Congresso, do Supremo. São minoria, mais velhos e saudosistas ou mais ignorantes e menos informados. Serão acompanhados também pelos que ainda olham para Lula e para o PT e só enxergam corrupção. São muitos, mas as pesquisas revelam que a maioria já percebeu que a alternativa é pior.

O cenário não deixa muita dúvida. O desgaste de Bolsonaro, que deve seguir e ser ainda ampliado pela CPI da Covid, o debilitará política e eleitoralmente, mas dificilmente a ponto de tirá-lo do segundo turno. Esta talvez seja a única forma de Lula não conquistar um terceiro mandato. Se houver um segundo turno entre ele e qualquer outro candidato que não seja o capitão, suas chances de vencer diminuem muito. Como é pouco provável que isso ocorra, Lula e Bolsonaro deverão ir para o segundo turno. E aí, antes de dizer com quem vai o eleitor, é importante observar como se guiarão as forças políticas, os partidos e seus líderes.

Mesmo os partidos que hoje apoiam o governo no Congresso terão de fazer cálculos para decidir com que seguir num segundo turno entre os dois. Se Bolsonaro não estiver muito isolado em 2022, talvez tenha uma meia dúzia de partidos coligados em sua campanha. Mas nesta contabilidade, não se pode dar por certo nem mesmo o apoio do PSL, que só existe por obra do presidente. O Centrão, de DEM, PP, MDB e outros, sabe muito bem para qual canoa deve pular se a sua estiver fazendo água. E a canoa de Lula já abrigou o Centrão antes. Os partidos que formam esta amálgama podem se dividir até o limite do primeiro turno, depois seguem com quem for vencer.

À esquerda, nenhuma dúvida. Talvez Ciro Gomes viaje outra vez a Paris, como já disse que fará na hipótese de ter como opção o PT. Ciro vai, mas o seu partido, o PDT, fica. Seus eleitores também, ou alguém imagina que na ausência de Ciro pedetistas votarão por descuido em Bolsonaro? Os demais partidos que contam, PSOL, PSB, Rede, PCdoB, devem ir com Lula já no primeiro turno. Os demais desaguarão no PT em seguida. Mesmo que Doria anteveja um provável fracasso e prefira disputar um segundo mandato em São Paulo, o PSDB deve ter candidato próprio. Mas no segundo turno não piscará ao emprestar seu apoio à Lula contra Bolsonaro.

Ninguém, a não ser as forças mais retrógradas do país, quer dar mais um mandato ao capitão baderneiro. A experiência foi desastrosa politicamente e trágica do ponto de vista sanitário. O Brasil precisa recuperar sua saúde, sua economia, sua autoestima, o prestígio que um dia teve no mundo. Estes objetivos certamente seriam alcançados, em escalas diferentes, por Doria, Ciro ou Haddad. Os três são melhores, muito melhores do que Bolsonaro, sob qualquer ângulo que se olhe, e o derrotariam num segundo turno. Mas pelo que se desenhou com a decisão do STF, caberá a Lula a tarefa.

A BELEZA DA CPI

Há muitos céticos quanto ao resultado da CPI da Covid. Tantas deram em nada e a coisa agora pode ir pelo mesmo caminho, dizem. Acho que esta não, sobretudo porque o objeto da investigação são os inequívocos malfeitos do presidente e de ministros. As que ficaram no caminho, até sem relatório final, não tinham a gravidade desta. Mesmo que fique menor do que o esperado, a beleza desta CPI é a abundância de luz que ela jogarásobre a tragédia patrocinada pelo governo Bolsonaro. De terça-feira em diante este será o assunto número 1 do país. Os olhos da Nação estarão virados para o Senado. A exposição sobre os membros da comissão será de uma grandeza solar. Qualquer bobagem será anotada. Todos os acertos serão contabilizados. A CPI é política. Seus membros também.

O QUERIDINHO

Engana bem o general Braga Netto.

No período em que comandou as forças de intervenção no Rio, em 2018, foi tratado como o queridinho da cidade por empresários, políticos e mesmo alguns jornalistas. Braga já tinha feito amigos civisem 2016, quando chefiou a segurança da Olimpíada. Aos olhos de muitos parecia um general arejado, moderno, gente dos novos tempos. Bagagem, aquilo era apenas uma fantasia que o general usou temporariamente no lugar da farda.

RESPEITO É BOM

O ex-queridinho disse no nefasto discurso feito na posse do novo comandante do Exército que “o projeto escolhido pelos brasileiros merece respeito”. Boa general, correto. O problema é que o projeto escolhido foi abandonado pelo governo que radicalizou para atender apenas aquela parcela de malucos embandeirados que vão para a rua pedir a intervenção militar. Para que serviriam os ditados se não houvessem verborragias como esta do general? Por isso, caro Braga Netto, “não merece respeito quem não se dá ao respeito”.

LIBERDADE

Além da ameaça dissimulada à CPI da Covid, o general Braga Netto voltou a falar em liberdade. Disse estarem enganados os que acreditam que podem “colocar em risco a liberdade conquistada por nossa Nação”. Se não tivesse outro destino, diria que a mensagem de Braga foi acertada,

já que o Brasil não está disposto a devolver a liberdade que conquistou quando se livrou de outros generais que tomaram o poder pela força.

DOUTOR ZERINHO

Flávio Bolsonaro botou banca. Vai advogar no Distrito Federal. Uma maravilha, gente. Seu primeiro cliente poderia ser a rede LavLev, que em Brasília tem filiais na Asa Norte, no Sudoeste, na Octogonal e no Cruzeiro.

MARINA E A PERERECA

Lula tem razão. Ele e Gleisi assinaram artigo na “Folha” mostrando sua preocupação com o meio ambiente e batendo na política criminosa de Bolsonaro para o setor. Mas é bom não esquecer que o maior ícone ambientalista nacional, a ex-senadora Marina Silva, pediu demissão do Ministério do Meio Ambiente no governo Lula por falta de “sustentação política” para tocar sua pauta. Também não custa lembrar que Lula sempre se queixou da “poderosa máquina de fiscalização” ambiental. Por isso disse, no longínquo 2010, que o Brasil não podia “ficar a serviço de uma perereca”. Criticava a paralisação das obras do Arco Metropolitano do Rio em favor da preservação de um anfíbio que habitava um charco por onde passaria a estrada.

BLABLABLÁ

De qualquer modo, não dá para comparar os pecados ambientais de Lula com os crimes que os vilões mentirosos Jair Bolsonaro e Ricardo Salles cometem diariamente contra o meio ambiente brasileiro. Por isso, aliás, pouca gente levou a sério o discurso hipócrita do presidente na Cúpula do Clima. Na prática, o governo faz exatamente o contrário do blablablá pronunciado. Anitta tem razão, difícil explicar no exterior esse que ela chamou de “desgoverno de bosta”.

CHAUVIN

Se o assassinato de um homem negro por sufocamento tivesse sido cometido no Brasil há um ano, o policial Derek Chauvin a esta altura já estaria de volta à ativa ou, no máximo, cumprindo alguma função burocrática numa delegacia ou num quartel. Logo após o crime, sobretudo se ele tivesse sido filmado, Chauvin seria afastado das ruas e mantido em casa ou detido no quartel, mas com remuneração garantida. Mesmo que a nossa bondosa Justiça visse dolo na ação do policial, se o assassino tivesse bons advogados, usaria os inúmeros recursos disponíveis e permaneceria na boa até o crime prescrever.

QUESTÃO DE AGENDA

Ernesto Araújo alegou ter um “compromisso inadiável” para não participar de uma live organizada na quarta-feira por olavistas notáveis, se é que isso existe. Talvez tivesse que buscar um filho no colégio ou restaurar uma obturação. Fora isso, agenda vazia.

NÃO MANDA NADA

Em razão de nota publicada aqui na semana passada, o presidente executivo da Fetranspor, Armando Guerra, ligou para explicar que a entidade não manda patavina nenhuma na desordem do setor no Rio. Se mandasse, 20 empresas não teriam fechado as portas entre março e dezembro do ano passado, não teria havido R$ 2,8 bi em perda de receitase R$ 1,5 bi de prejuízos no mesmo período.


Ricardo Noblat: Falta dinheiro para tudo, menos para Bolsonaro ir atrás de votos

Em dia de cortes no Orçamento de 2021, presidente sai em campanha pela reeleição

Menos de 24 horas depois de Bolsonaro  ter anunciado na Cúpula de Líderes sobre o Clima que mandaria duplicar os recursos destinados a ações de fiscalização ambiental no Brasil, o Diário Oficial da União publicou o Orçamento de 2021 assinado por ele que cortou RS 240 milhões da verba do Ministério do Meio Ambiente. A duplicação não tem mais data para acontecer.

Na quinta-feira, em live nas redes sociais, Bolsonaro apareceu ao lado de Marcos Pontes, ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, convidado por ele para falar sobre a vacina brasileira contra a Covid-19 que está sendo desenvolvida por cientistas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Ontem, Bolsonaro vetou R$ 200 milhões que seriam usados para financiar a vacina.

 “Marcão, vamos lá. Como é que ‘tá’ a nossa vacina brasileira? Essa é 100% brasileira, não é aquela ‘mandrake’ de São Paulo, não né”, perguntou Bolsonaro a Pontes na live. Referia-se à Butanvac, a vacina apresentada pelo Instituto Butantan de São Paulo como sendo 100% nacional e que está em fase de testes. A vacina patrocinada pelo governo federal ficará para depois.

Jamais faltou e jamais faltarão recursos para combater a pandemia, Bolsonaro repete como se fosse um mantra. Mesmo com a crise sanitária do coronavírus batendo novos recordes nos primeiros quatro meses deste ano, o Orçamento de 2021 reservou menos recursos para o Ministério da Saúde do que no ano passado. Foram R$ 210 bilhões em 2020. Agora serão R$ 157 bilhões.

Foi praticamente zerada no Orçamento deste ano a verba para dar continuidade às obras da faixa 1 do programa Minha Casa, Minha Vida, rebatizado pelo governo de Casa Verde e Amarela. Houve um corte de R$ 1,5 bilhão nas despesas que estavam reservadas ao Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), que banca as obras do programa habitacional voltadas às famílias de baixa renda.

Ao jornal O Estado de S. Paulo, o presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção, José Carlos Martins, classificou de “loucura” o corte total nas verbas para a continuidade das obras do programa habitacional do governo e disse que quem ordenou o veto “não tem noção do que está fazendo”. O corte, segundo ele, põe em risco 250 mil empregos diretos no setor da construção.

Para não ouvir choro nem ranger de dentes, Bolsonaro manteve-se distante de Brasília durante boa parte da sexta-feira. Saiu em campanha para reeleger-se com tudo pago pelo governo, naturalmente. Em Manaus, inaugurou um centro de convenções inacabado com capacidade para 10 mil pessoas, reuniu-se com evangélicos e entregou cestas básicas aos seus devotos.

Fez um discurso de apenas cinco minutos, o suficiente para exaltar o general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde demitido por ele, que passou a acompanhá-lo em viagens; repetiu a ladainha de que o país “começou a sair das garras nefastas da esquerda brasileira”; e disse que se Haddad (PT) tivesse sido eleito haveria um lockdown nacional. “Graças a Deus não aconteceu”.

Foi a primeira vez que Bolsonaro visitou Manaus desde o colapso do sistema local de saúde em janeiro devido à segunda onda da epidemia. Nada comentou sobre a morte, ali, de 6.600 pessoas no primeiro trimestre deste ano, um dos índices de óbito per capita mais altos do mundo. Muitos morreram asfixiados porque não havia cilindros de oxigênio disponíveis.

De Manaus, Bolsonaro foi a Belém entregar 468 mil cestas básicas do programa Brasil Fraterno para serem distribuídas em todo Estado. Dezenas de pessoas com fome o aguardavam desde cedo. A solenidade foi na Base Aérea. Apoiadores de Bolsonaro, carregando bandeiras, chegaram ao local em ônibus escuros com logotipo do Primeiro Comando Aéreo Regional.

Outra vez, Bolsonaro discursou como se tivesse em um comício, e de fato estava. Cercado de deputados, disse: “Estamos atendendo essas pessoas, diferente daqueles que retiraram os empregos e não fizeram quase nada por aqueles que estão desempregados e passando fome”. O governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), recepcionou Bolsonaro na descida do avião, mas logo foi embora.


Pablo Ortellado: Revisão da Lei de Segurança Nacional é necessária, mas traz riscos

A Lei de Segurança Nacional é um entulho autoritário que precisa de revisão urgente. Leis desse tipo deveriam ser usadas apenas em momentos extraordinários, quando o regime é ameaçado, e talvez não seja por acaso que nossa lei de 1983 tem sido bastante usada —por Bolsonaro, para perseguir dissidentes, e pelo STF, para investigar atividades antidemocráticas.

Por isso, o Supremo e o Congresso aparentemente acertaram uma revisão acelerada da lei que pode melhorar nosso arcabouço jurídico, mas pode também trazer novos problemas num caminho cheio de riscos e percalços.

A estratégia adotada pelo presidente da Câmara, o deputado Arthur Lira, foi propor um substitutivo ao projeto de lei de 1991 de Hélio Bicudo, que definia crimes contra o Estado Democrático de Direito.

Lira designou como relatora a deputada Margarete Coelho (PP-PI), que está conduzindo um amplo processo de consulta a diferentes atores da sociedade, o que levou o substitutivo a acumular 10 revisões.

A mera revogação da Lei de Segurança Nacional, com seus muitos dispositivos autoritários, já seria motivo para celebração. Mas o substitutivo da deputada tem alguns méritos. Ele se concentra em crimes como golpe de Estado, insurreição, sabotagem, traição, espionagem e atentado contra a integridade do território nacional, sem aberturas muito explícitas que permitam o enquadramento de atividades regulares de protesto como crimes contra a democracia.

Mas detalhes de redação e possibilidades de emendas de parlamentares, assim como vetos seletivos do presidente da República, trazem enormes riscos à empreitada.

O crime de insurreição, caracterizado como o impedimento do exercício de um poder mediante ameaça, poderia ser usado para enquadrar manifestantes que ocupam um escritório (do Ibama ou do Incra, por exemplo) exigindo direitos. O mesmo acontece com o crime de sabotagem, definido como a inutilização de meios de comunicação ou transporte, que poderia ser usado para enquadrar manifestantes indígenas ou caminhoneiros que bloqueiem uma via.

Ainda que se possa questionar a licitude de uma ocupação de escritório governamental ou do fechamento de uma via, a reivindicação de um direito não é o mesmo que uma tentativa de alteração da ordem democrática. Protesto não pode ser tratado como se fosse subversão do regime.

Um artigo específico do substitutivo diz isso explicitamente, mas há o temor de que ele possa ser seletivamente vetado pelo presidente, para permitir que a lei seja usada para perseguir manifestantes contrários ao governo.

Há também preocupação com o artigo que trata da “comunicação enganosa em massa”, que se baseia no escorregadio conceito de disseminação de fatos sabidamente inverídicos. Ele poderia ser mais restrito e mais efetivo se se concentrasse não em notícias “falsas”, mas na difusão de conteúdos, mesmo que “verídicos”, que promovem crimes contra o Estado de Direito, o que atingiria em cheio as atividades de propaganda no WhatsApp que diariamente convocam a população contra o Congresso e o Supremo.


Hélio Schwartsman: Como vão as instituições?

Bolsonaro jamais teve ascendência sobre o Parlamento nem excedeu 40% de aprovação

Li nos jornais da quinta-feira (22) dois bons artigos dizendo mais ou menos o contrário um do outro. Na Folha, Fernando Schüler sustenta que Jair Bolsonaro foi enquadrado pelo sistema político (um pedacinho das famosas instituições) e se encontra agora em modo sobrevivência, sem constituir ameaça maior ao regime democrático.

Em O Estado de S. Paulo, Eugênio Bucci afirma não estar tão seguro de que o presidente não tentará um golpe, mas, mesmo que não promova nenhuma ruptura formal, ele, comendo pelas beiradas, já provocou tamanha deterioração em tantas instituições e esferas do Estado que a democracia brasileira está hoje bem pior do que no passado.

Por paradoxal que pareça, acho que os dois têm razão. Bolsonaro se vê politicamente enfraquecido, com pouca chance de desferir com êxito um golpe, mas já causou um estrago tão grande em tantas áreas que, se tudo der certo, levaremos anos para nos recuperar.

Mas por que Bolsonaro não deu um golpe, seja no estilo clássico, tão ao gosto dos militares, seja à moda húngara, desfigurando as instituições de controle até que elas percam a função original? Não foi por falta de pendor autoritário. Isso ele tem de sobra. O que não teve foi apoio político para aventuras mais ousadas.

Com efeito, a maioria dos autocratas modernos, como Viktor Orbán, Vladimir Putin, Recep Erdogan, chegou a essa condição porque soube aproveitar momentos de alta popularidade, em geral proporcionados por bonanças econômicas, para aprovar leis que lhes permitiram consolidar o poder.

Bolsonaro nunca chegou nem perto dessa situação. O presidente jamais teve ascendência sobre o Parlamento (agora é refém dele) nem excedeu os 40% de aprovação popular. Não há milagre econômico à vista para redimi-lo. Com seu arsenal, Bolsonaro consegue baixar decretos, segurar verbas, mover pessoal.

Dá para fazer um estrago formidável, mas não para redesenhar o Estado.


Eliane Cantanhêde: Rui o tripé ideológico

Bolsonaristas têm um trabalhão para seguir o salto triplo do ‘mito’ em saúde, política externa e ambiente

Depois de rasgar as bandeiras do combate à corrupção e do liberalismo econômico, o governo Jair Bolsonaro está desmoronando o seu tripé ideológico: saúde, política externa e ambiente. Isso, claro, cria um problemão para a sua seita, sobretudo na internet. Eles e elas terão de rever suas crenças e posições para seguir essa “inflexão”, ou salto triplo carpado, do presidente. Vão defender Joe Biden, França, Alemanha e Noruega? Cúpula de Paris, Fundo da Amazônia? Até China e vacina?

Não deve ter sido fácil para os bolsonaristas se alinharem com o PT no ataque ao ex-juiz Sérgio Moro, ícone do combate à corrupção, quando ele caiu acusando Bolsonaro de interferência política na Polícia Federal. E não está fácil jogar Paulo Guedes ao mar, depois do blablablá de que Bolsonaro podia não ser lá essas coisas, mas o Guedes segurava as pontas.

E lá se vai também o tripé ideológico. O diplomata Ernesto Araújo está de volta à sua insignificância e ao limbo dos seus delírios contra o comunismo. O general da ativa Eduardo Pazuello vaga pelo Exército, olhado de esguelha pelos companheiros de farda depois de humilhado e desautorizado pelo presidente na compra de vacinas e de se sair com o indecente “um manda, outro obedece”. Ambos, Araújo e Pazuello, estão na mira da CPI da Covid.

Com o cerco se fechando contra Ricardo Salles, Bolsonaro repete o script: elogia, leva para lives e confraternizações, dá tapinha nas costas e planta notinhas sobre o quanto gosta do ministro. Quanto mais o torniquete aperta, mais Bolsonaro prestigia seu ministro. Mas... quanto mais prestigia, mais o ministro esfarela.

Então, vejam como é a dura a vida de bolsonarista. Esquece Ernesto Araújo e o que ele fazia e dizia, para enaltecer o sucessor, Carlos França, e fazer juras de amor para China, França, Alemanha, Noruega, até para a Argentina de Alberto Fernández? E Joe Biden, chamado de “gagá”, “sequelado” e “esquerdista”, virou um cara legal.

E, agora, com Pazuello fora e o médico Marcelo Queiroga tentando correr contra o tempo e contra os erros gravíssimos na pandemia? Os e as que papagaiavam Bolsonaro, trocavam ciência por ideologia e comparavam as vacinas à talidomida, que matou e mutilou na década de 1950, correm para oferecer o braço e salvar suas vidas. Não consta que nenhum deles tenha virado jacaré...

Com os “novos” política externa e Ministério da Saúde, quem tem estômago deveria entrar nas redes para ver os bolsominions conclamando todos a se imunizarem e defendendo “aquela vacina chinesa do Doria”, que, na verdade, é praticamente a única maciçamente disponível no Brasil. Vencem a realidade e a racionalidade. Viva a China! O Butantan! A vacina! E viva a vida!

Mesmo antes do “novo Ministério do Meio Ambiente”, vem aí o novo discurso de Bolsonaro sobre sustentabilidade: antecipar a neutralidade das emissões para 2050, acabar com desmatamento ilegal até 2030, dobrar a verba para fiscalização já. Dá-lhe racionalidade! Viva a Amazônia! As leis ambientais! E viva o Biden, líder da causa ambiental no mundo!

Faltam: um pedido de desculpas ao cientista Ricardo Galvão, demitido do Inpe por alertar para desmatamento da Amazônia; resgatar o Ibama e o ICMBio; reativar as multas ambientais; cobrar compromissos com os indígenas. Bolsonaro quer escancarar as reservas para mineração, agricultura, turismo... Mas não tocou nisso na cúpula do clima.

O Brasil não tem só governo, um governo rechaçado no mundo inteiro. Tem cidadania, instituições, entidades, atores das mais variadas frentes, na pandemia, na política externa e no ambiente. Salvar o planeta é aqui e agora! Goste ou não Bolsonaro, ele é obrigado a cair na real. Governos vêm, governos vão, o Brasil fica.


Sergio Fausto: Preservar a democracia e as Forças Armadas

Há uma relação de mútua dependência, seja o que for que os militares pensem do golpe de 64

A crise militar desencadeada por Bolsonaro deixou no ar um misto de alívio e apreensão. O pior não aconteceu. O presidente seguiu o critério de antiguidade na nomeação dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. A apreensão deriva do fato de que essa não foi a primeira nem será a última vez que Bolsonaro busca instrumentalizar as Forças Armadas em função do seu projeto político, sabidamente autoritário e destrutivo das instituições do Estado. O que está em jogo é a preservação da democracia e das Forças Armadas, como instituição republicana, impessoal, que não se confunde com governos e chefes de Estado transitórios. São dois objetivos inseparáveis.

O presidente é sistemático e incansável em seu intento de criar exércitos para chamar de seus. Na base da sociedade, fomenta o acesso a armas e uma cultura de violência, em nome da liberdade e da segurança individuais, mandando às favas quaisquer escrúpulos de civilidade. Usa seu poder presidencial para reforçar sua identidade com grupos de indivíduos que fazem da intimidação um modo de ser, quando não um modo de vida e um negócio, como no caso das milícias. Na base do Estado, estimula o antagonismo entre policiais militares e governadores. Visa ao menos a criar a impressão de que, no dia D e na hora H, exércitos de PMs obedecerão ao seu comando para, junto com milícias civis bolsonaristas, encostar governadores e prefeitos contra a parede. Na cúpula do Estado, Bolsonaro dedica-se a enredar as Forças Armadas nas malhas de seu governo, pois sabe, como Hugo Chávez sabia, que sem cooptação das forças regulares a ameaça de intimidação de facções armadas é menos plausível.

Nunca antes em regime democrático, nem mesmo durante o regime militar, tantos oficiais – da reserva e da ativa – ocuparam tantas e tão destacadas posições em ministérios e empresas estatais. O sentimento de missão a cumprir, a natural atração que o poder exerce e a ilusão de que poderiam controlar o presidente levaram os militares a acreditar que este governo era o seu governo. Bolsonaro sabe cultivar esse sentimento: abre espaços na administração, melhora salários e proventos, amplia o orçamento da Defesa, comparece a formaturas, etc.

Bolsonaro já deve ter-se dado conta de que as Forças Armadas não embarcarão numa aventura autoritária sob o seu comando. Basta, no entanto, que lhe deem suficiente margem de manobra para que ele possa seguir tagarelando sobre o alinhamento político entre o governo e os militares. Para a sua base fiel, o recado é claro: se a chapa esquentar, eu tenho a força. A parolagem irresponsável do presidente é instrumental para manter vivo o mito do homem forte, tão mais útil quanto mais a realidade o mostra politicamente enfraquecido.

A confusão propositada entre governo e instituição militar terá custos crescentes para as Forças Armadas. A reeleição do presidente se tornou mais difícil. Ele enfrentará a disputa do próximo ano em condições muito piores do que jamais imaginou, carregando as perdas humanas, sociais e econômicas de uma tragédia que se tornou ainda maior por seus atos e omissões. Se Lula vier a ser seu principal adversário, travará uma guerra de deslegitimação do candidato petista e, se necessário, do próprio processo eleitoral. Se as heterogêneas forças de centro-direita e centro-esquerda se aglutinarem em torno de um candidato que caia no gosto popular, sua situação se complicará mais ainda. Mas, num caso ou noutro, mobilizará suas milícias online e offline para o que der e vier e usará todos os instrumentos do Estado que puder utilizar em favor de sua campanha. Bolsonaro pouco distingue as fronteiras entre família, governo e Estado.

O presidente conhece a resistência que o PT enfrenta no meio militar (mais uma razão para sonhar com a polarização com Lula). Ela se formou ao longo do governo Dilma e se consolidou com a Lava Jato. Os militares não digeriram a Comissão da Verdade. Também não gostaram do que entenderam ser tentativas de interferir em assuntos internos das Forças Armadas. O ex-juiz Sergio Moro continua a contar com prestígio entre os militares e a decisão do STF de declará-lo suspeito é tida como um retrocesso inaceitável. Bem aceito em seu governo, depois o ex-presidente ganhou inimigos nas Forças Armadas.

Falemos em português claro: o presidente joga com a hipótese de os militares se mostrarem mais maleáveis a seus interesses num cenário eleitoral em que Lula desponte como seu principal adversário. Nesse quadro, aposta que pode haver coincidência de interesses e maior alinhamento político. Aposta perigosa, para a democracia e para as Forças Armadas.

Ante o risco que Bolsonaro representa, há uma relação de mútua dependência entre a preservação da democracia como regime político e das Forças Armadas como instituição de Estado, independentemente do que os militares pensem a respeito do golpe de 31 de março.

*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do GACINT-USP


Elio Gaspari: O que falta a Bolsonaro é seriedade

O capitão, seu ex-chanceler e o ministro Ricardo Salles viajaram numa maionese de excentricidades e pirraças

A diplomacia americana está fritando Bolsonaro. O capitão, seu ex-chanceler e o ministro Ricardo Salles viajaram numa maionese de excentricidades e pirraças. Do outro lado, o Departamento de Estado levantou um muro. Quando um porta-voz disse que espera “seriedade” do governo brasileiro na cúpula do clima que começa quinta-feira, cravou uma estaca na agenda.

Enquanto o Departamento de Estado pedia “seriedade”, o primeiro-ministro francês, Jean Castex, justificava o bloqueio a viajantes brasileiros e arrancava risadas na Assembleia francesa ao lembrar que “o presidente da República, em 2020, aconselhou a prescrição de hidroxicloroquina, e gostaria de lembrar que o Brasil é o país que mais a prescreveu”.

Bolsonaro passou de piromaníaco a pedinte. Admitiu acabar com o desmatamento até 2030 e estragou sua nova posição numa única frase: “Alcançar esta meta, entretanto, exigirá recursos vultosos e políticas públicas abrangentes, cuja magnitude obriga-nos a querer contar com todo apoio possível.” Coisas assim se fazem, mas não se dizem, sobretudo se esse mesmo governo desdenhou a ajuda estrangeira e esvaziou o Fundo Amazônia. Colocar o Brasil, ou qualquer outro país, na posição do cachorro que olha para os espetos de frangos, como fez o doutor Ricardo Salles, é apenas burrice.

O Império e a República cuidaram da Amazônia de todas as formas, mas nunca falaram em dinheiro. Essa é a pior maneira para se começar uma negociação diplomática. Com ela, chega-se apenas a uma velha piada, atribuída ao ex-secretário de Estado Americano Henry Kissinger.

Numa versão politicamente correta, ela fica assim:

“Todos têm um preço”.

“Há coisas que eu não faço, nem por um milhão de dólares”.

“Você já está discutindo seu preço”.

Veneno

A carta de Bolsonaro a Joe Biden ocupa sete páginas.

Fosse qual fosse seu efeito, ele foi anulado pela curta notícia do afastamento do delegado Alexandre Saraiva, que chefiava a Superintendência da Polícia Federal no Amazonas e acusou o ministro do Meio Ambiente de advogar no interesse de desmatadores.

Lula e Bolsonaro

Uma Lava-Jato e três anos depois, Lula ficou maior, e Bolsonaro está menor.

Suprema criatividade

Quem entende de Supremo Tribunal Federal arrisca: com a anulação das sentenças que Curitiba impôs a Lula, algo como dez réus de Sergio Moro, em condições similares, pedirão o mesmo benefício. Para negá-lo, será necessária inédita criatividade.

Sumiço

Um experimentado empresário do agronegócio registra que a militância dos agrotrogloditas entrou num período de entressafra. Deram-se conta de que colheram (ou queimaram) o que podiam.

Profissional e amador

O embaixador americano no Brasil, Todd Chapman, é um diplomata de carreira. Como o ex-chanceler Ernesto Araújo também é, entende-se que profissionais acabem se comportando como amadores. Em 2019, quando estava sendo sabatinado pelos senadores americanos, Chapman classificou as queimadas da Amazônia como “ocorrências anuais”. Perdeu uma oportunidade de ficar calado, mas pode-se entender que não quisesse melindrar Bolsonaro, o bom amigo de Donald Trump.

Passou o tempo, Trump foi para a Flórida, e na Casa Branca está Joe Biden. O embaixador Chapman reuniu-se com integrantes da “Articulação dos Povos Indígenas do Brasil”. A Apib queria um “canal direto” de comunicação com o governo americano, e o encontro foi diluído com a presença de indígenas indicados pelo governo. Uma salada.

Não é boa ideia que um embaixador de povo estrangeiro se reúna com representantes dos “povos indígenas”, mas seria descortesia não conversar. Podia ter destacado um diplomata de escalão inferior para o encontro.

Chapman poderia consultar os arquivos do Departamento de Estado para estudar um valioso precedente. Em 1876, quando viajava pelos Estados Unidos, D. Pedro II teve seu trem parado por um grupo de índios Sioux, chefiados pelo famoso “Touro Sentado”. O cacique pedia que o Imperador intercedesse pelos índios americanos junto ao presidente Ulysses Grant. É improvável que D. Pedro tenha tratado do assunto.

Apocalipse

No mesmo dia em que se noticiava a morte, na cadeia, do vigarista Bernard Madoff, que em 2008 foi apanhado num golpe de US$ 15 bilhões, Jair Bolsonaro disse que o Brasil se tornou “um barril de pólvora”: “Estamos na iminência de ter um problema sério”.

O que ele quis dizer com isso, não se sabe. Desde o ano passado, Bolsonaro acena com um Apocalipse. Ora falava em saques, ora advertia para o caos. Morreram mais de 360 mil pessoas, faltaram testes, vacinas, oxigênio e remédios. A desordem esteve no governo, e os saques, quando ocorreram, atacaram a Bolsa da Viúva.

Madoff também apostou no Apocalipse. Muita antes de ser apanhado, ele sabia que sua pirâmide explodiria e, preso, contou:

“Eu queria que o mundo acabasse. Quando aconteceu o atentado de 11 de setembro de 2001, eu achei que ali estava a saída. O mundo acabaria.”

Doutores cloroquina

É possível que o repórter Fabiano Maisonnave tenha entregue de bandeja um presente à CPI da Pandemia. Seria o depoimento dos médicos Michelle Chechter e Gustavo Maximiliano Dutra, que foram a Manaus em fevereiro para aplicar a “técnica experimental ‘nebuhcq líquido’, desenvolvida pelo dr. Zelenko”. Eram nebulizações de cloroquina.

Quatro pacientes grávidas receberam o tratamento. Todas morreram.

Uma delas teve um vídeo gravado, postado no dia 20 de março pelo ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni. Ele informava que “de 0 a 10, melhorou 8”.

Talvez Lorenzoni não soubesse, mas ela morrera no dia 2.

Milton Ribeiro zangou-se

O ministro Milton Ribeiro, da Educação, zangou-se com uma reportagem de Paulo Saldaña mostrando a existência de um esquema para fraudar pagamentos do Financiamento Estudantil, boca rica administrada pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, o FNDE.

Como os repórteres são uma raça maldita, o doutor Ribeiro bem que poderia estender sua zanga ao edital do FNDE de 2019 que pretendia torrar algo como R$ 3 bilhões na compra de equipamentos para a rede pública de ensino. A Advocacia-Geral da União sentiu o cheiro de queimado, porque numa só escola 255 alunos receberiam 30 mil laptops (118 para cada um). Outros 335 colégios receberiam mais de um laptop para cada aluno.

O edital foi suspenso e cancelado. Passaram-se dois anos, três ministros da Educação e pelo menos três presidentes do FNDE, mas ninguém sabe quem botou esse jabuti no edital.