Estado-Nação

Raul Jungmann: Soberania e clima

O conceito moderno de soberania emerge dos acordos da Paz de Westfália em 1648, após a Guerra dos Trinta anos, que devastou parte da Europa. A paz, que trouxe consigo o declínio da Espanha e a ascensão da Inglaterra, estipulava e reconhecia a autonomia das nações para decidirem sobre seus sistemas de governo, religião e consagrava a “raison d´état”, tal qual a formulara o Cardeal Richelieu, para enfrentar o império Habsburgo que ameaçava a França de Luiz XIII.

Sua âncora, como define Jean Bodin, é o Estado-Nação, sendo soberano o ente que não conhece superior na ordem externa, nem igual na ordem interna, um poder absoluto e perpétuo.

Já o conceito de clima remete às mudanças do tempo atmosférico, numa determinada região ou no planeta. Os fatores que o determinam, suas características e dinâmica são naturais e antropogênicos, isto é, humanos, e compreendem desde a pressão atmosférica até a emissão de dióxido de carbono que adensa o efeito estufa e agrava o aquecimento global.

Segundo o IPCC – Painel Intergovernamental Sobre Mudanças Climáticas da ONU, é preciso “segurar” a elevação da temperatura da terra em, no máximo, 1.5 graus acima da registrada quando da revolução industrial do século XVIII, ou seus efeitos serão catastróficos e irreversíveis sobre o nível dos oceanos, as espécies animais, cidades e países e a vida humana.

Ocorre que o clima, diferentemente da soberania, não está ancorado em nenhum território definido, ordem legal impositiva ou ente controlador, a exemplo do Estado-Nação. Como a ordem internacional é anárquica, inexiste um poder soberano e regulatório sobre o clima em nível global. 

O clima e agravamento das mudanças climáticas, coloca em risco todas e cada uma das soberanias e estados-nação. Tome-se por exemplo a Amazônia, cuja tutela inegociável é nossa. Ela é, ao mesmo tempo, um asset, um ativo decisivo nos rumos do clima do planeta. Como harmonizar as exigências do que é nacional, a soberania sobre a Amazônia, com o que é global, o clima, evitando a securitização que nos pesa como uma ameaça?

Inexiste outro caminho que não o desenvolvimento sustentável dessa vasta região, que ocupa mais de 60% do nosso território e abriga uma população de 25 milhões de almas, ostentando o menor IDH dentre todas as regiões do país. A Amazônia e o seu desenvolvimento sustentável, tenhamos clareza, são a chave para tornarmo-nos uma potência bioeconômica e termos assento à mesa dos rumos do futuro global.

*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.


Luiz Werneck Vianna: Manter fechada as portas do inferno

 Fora a interrupção da vida democrática, a saída deste pandemônio parte da política que está aí 

Parece que desse mato não sai cachorro, por mais alarido que se faça no Ministério Público, na Polícia Federal, na mídia e nas ruas. Cada agonia cede lugar a outra, agora é a das salsichas, mas também essa não promete durar.

Os desencontros se atropelam, anseia-se por uma saída, quem sabe uma reforma política, das relações trabalhistas ou da Previdência, um sonho de valsa ou qualquer coisa à toa, o que quer que seja é logo abafado pelo coro dos descontentes, e as propostas não se sedimentam nem se abre um debate racional sobre elas. O outro é um inimigo, não cabe diálogo com ele, e grassa o rancor, acolhido pela mídia, que não disfarça mais sua complacência com o azedume de suas manifestações em seus veículos.

A política tem horror ao vazio, e na cena pública em escombros já está à espreita a figura nossa arquiconhecida do messias, do personagem providencial, do sebastianismo que temos encravado em nosso DNA, avaliando se chegou a sua hora. Desta vez, por tropelias do destino, sua sombra não se projeta dos quartéis, mas, dentre outros lugares igualmente indesejáveis, também dos tribunais, como novo lugar de criação de heróis de salvação pública.

O juiz se apresenta como um intérprete geral da sociedade, chegando alguns a preconizar que se contorne a instituição do Legislativo, por designação constitucional, o lugar em que se deve expressar a soberania popular. Há pouco, não vimos uma eminente personagem dos nossos tribunais pontificar no sentido de que temas da reforma política, com a inextricável complexidade intrínseca a eles, deveriam ser confiados a uma deliberação popular? Não seria isso exemplar de um populismo institucional, jabuticaba nova no nosso repertório político?

Mas seria injusto julgar o atual protagonismo de alguns juízes e tribunais como uma prática buscada intencionalmente por eles. Chegou-se a esse cenário patológico de judicialização da política pela ação desastrada dos nossos principais partidos, inclusive, e talvez principalmente, por aquele que contava com a preferência do voto popular, o PT, os quais recorreram a métodos antirrepublicanos a fim de assegurar sua permanência no poder. Decerto que tais métodos foram facultados pela nossa mal concebida institucionalidade política, fruto de políticas sem lastro no conhecimento do País e de sua História, como se Assis Brasil, Oliveira Vianna, Vitor Nunes Leal e até a ficção de um Mário Palmério, para ficar apenas com esses nomes clássicos, tivessem refletido sobre uma realidade distante da nossa.

No caso, não se pode omitir o fato de que o legislador atentou, ainda tempestivamente, para o desastre que tal institucionalidade prometia, criando uma cláusula de barreira para que partidos com baixa representação eleitoral não encontrassem acesso no Parlamento. E também não pode ficar sem registro que tal legislação foi posta por terra pela Suprema Corte, por motivos de fundo populista, na crença de que o livre movimento dos interesses e das ideias acabaria, por si só, de secretar uma estrutura partidária capaz de favorecer a organização de uma sociedade que nasceu, como a nossa, sob o signo da fragmentação e de uma marcante heterogeneidade social e regional.

Se o nosso Estado-nação nasceu, como sustentou Euclides da Cunha, genial intérprete do País e de suas mazelas, de uma teoria política que deveria impor-se pela ação pedagógica de elites ilustradas sobre uma sociedade informe – caberia ao Estado moldar a Nação –, os movimentos que nos trouxeram a democracia e a Carta de 88, respondendo à cultura da época, optaram por conceder primazia aos temas sociais. A agenda da institucionalidade política cedeu lugar à da igualdade, confiando-se à ação do tempo o seu aggiornamento às circunstâncias do País.

Nesse sentido, boa parte das inovações de alcance mais fundo da nova Carta foram dirigidas à reformatação do Poder Judiciário, ao qual se confiou o papel estratégico de garantir efetivação dos direitos sociais criados por ela, recriando o Ministério Público sob um figurino inédito aqui e alhures, deslocando-o de suas tradições estatais e pondo-o a serviço da defesa da sociedade e dos seus interesses. Na mesma direção, institucionalizou a Defensoria Pública, que, com o tempo, passou a rivalizar com o Ministério Público em matéria de intervenções em políticas públicas.

Sob essa arquitetura robusta, amparada pelos seus vértices institucionais, como o Supremo Tribunal Federal, logo o Poder Judiciário veio a se contrastar com os Poderes políticos, em particular com um Legislativo que se deixou enredar pelo tipo de prática espúria a que passou a recorrer o nosso presidencialismo de coalizão na produção de leis, que sabemos agora, como no caso das salsichas, de que forma têm sido feitas. Devemos isso à intervenção da chamada Operação Lava Jato, que, a par de vir sanear a esfera pública de práticas atentatórias à vida democrática, traz consigo a denúncia incontornável do nosso sistema político, cujos males não têm como encontrar solução nos artigos do Código Penal.

Fora a interrupção da vida democrática, hipótese de que juízes nem sequer podem cogitar, sob pena de perjúrio – quando definitivamente as portas do inferno se abririam para nós –, a saída desse pandemônio que nos aflige não conhece outro ponto de partida senão o da política que aí está. Se a guerra é muito importante para ficar apenas nas mãos dos generais, igualmente a política não pode ser confiada a magistrados, com as luzes que tenham.

Não há remédio: temos de nos socorrer das salsichas de que dispomos, descartando pelo devido processo legal ou pelo voto, quando chegar a hora, as imprestáveis para o consumo. Como se dizia, o Brasil não se fez em um dia, e as lições que aprendemos agora são dessas que não se esquecem.

*Luiz Werneck Vianna é sociólogo

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Fonte: http://gilvanmelo.blogspot.com.br/2017/04/manter-fechada-as-portas-do-inferno.html