esquerda
Luiz Carlos Azedo: A agenda da transversalidade e a saída pelo centro democrático
O jornalista Luiz Carlos Azedo, colunista político do Correio Braziliense e diretor-geral da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), fala da "agenda da transversalidade" necessária para criar uma força política renovadora do chamado centro democrático. O #ProgramaDiferentemostra que ele critica, de um lado, a concepção atual da esquerda brasileira e, do outro, a ideia hegemonista do liberalismo econômico da direita mais tradicional. Assista.
Esquerda x direita no #ProgramaDiferente: novas pautas e velhos preconceitos neste Fla-Flu atual
O #ProgramaDiferente joga luz naquilo que se convencionou chamar de Fla-Flu, a tradicional polarização entre esquerda e direita, que se acentuou nas ruas e nas redes, com novas pautas mas velhos preconceitos, além de embates marcados pelo ódio e pela intolerância. Num ano que tem tudo para acirrar ainda mais as rivalidades, estamos propondo mais diálogo, equilíbrio e bom senso entre iguais e diferentes. Assista.
Ao acompanhar duas manifestações políticas opostas, marcadas para o mesmo local e o mesmo horário, separadas apenas pelas duas pistas da Avenida Paulista, e ouvir algumas personalidades que acentuam essa polarização na mídia, registramos cenas explícitas de insensatez. É um tema preocupante e emergente, que exige um debate mais aprofundado.
A reportagem também ajuda a entender o que é e quais são as pautas conservadoras do Movimento Brasil Livre ao entrevistar com exclusividade Kim Kataguiri, coordenador nacional do MBL, e o vereador paulistano Fernando Holiday, eleito aos 20 anos pelo DEM com apoio deste Movimento.
Como contraponto a essa nova direita de tendência mais liberal que tem atraído os jovens nas redes sociais, você assiste ao discurso cheio de ranço, ódio e radicalismo de dois dos expoentes mais reacionários e antidemocráticos da política nacional: o deputado e presidenciável Jair Bolsonaro e o pastor evangélico Silas Malafaia.
Veja também uma explicação primorosa do médico Drauzio Varella sobre homossexualidade, as opiniões do MBL sobre a "cura gay" e o boicote à exposição "Queermuseu", promovida e posteriormente interrompida pelo Santander no ano passado, e uma apresentação na Avenida Paulista do polêmico cantor Johnny Hooker, manifestante declarado dos direitos LGBT.
Míriam Leitão: A nova esquerda
O Brasil precisa de uma esquerda sólida e vinculada aos seus ideais de inclusão, diversidade e promoção da ascensão social
- O Globo
A esquerda precisa se reconstruir. Por ela e pelo Brasil. País de enormes desigualdades e no qual ideias conservadoras têm prosperado, o Brasil precisa de partidos que defendam políticas públicas de inclusão, espaço no Orçamento para os pobres, interesse de grupos excluídos, fim dos privilégios, atualização dos costumes. Mas quem é a esquerda brasileira? A que se autodenomina não parece ser.
A esquerda não pode ser a favor de doação de recursos públicos para o capital. Isso não faz sentido. Aqui, houve aumento das transferências para grandes empresas, inclusive estrangeiras, de 3% para 4,5% do PIB nos governos petistas, pelas contas do Banco Mundial. Pode ser muito mais. Houve várias formas de benefícios às grandes empresas, alguns deles indiretos. Os descontos nos impostos, ou o custo financeiro dos empréstimos subsidiados, deveriam ser um inimigo a combater.
Uma nova esquerda terá que enfrentar definitivamente o engano embutido na tese de que o Estado deve estimular os grupos empresariais para eles serem grandes e lucrativos porque, desta forma, a economia estará bem e haverá emprego. Isso foi tentado pela direita, no regime militar, mas não é estranho um governo conservador ter uma política de transferência para o capital. O que espanta é o governo que se definia como progressista ter implantado as mesmas propostas do regime militar que combateu. A recente política industrial de campeão nacional era idêntica à da ditadura, só que em vez de os beneficiários serem Bardela, Villares, eram JBS, BR Foods, Grupo X. Nos dois momentos históricos a proposta fracassou.
O Brasil é cheio de cartórios, interesses específicos, categorias que conseguiram ter vantagens em relação ao resto da população. Os partidos da esquerda brasileira sempre abraçaram esses grupos, defenderam seus interesses como sendo os do povo. Diante de qualquer comprovação da assimetria de tratamento entre cidadãos do mesmo país, a tese levantada é a do direito adquirido. Quando se tenta mostrar os privilégios na Previdência, a esquerda entra em negação e diz que o problema não existe. A defesa de interesses corporativos não pode ser parte de uma verdadeira agenda de esquerda.
Na época da luta contra a inflação ficou claro o desvio no qual os partidos da esquerda entraram. Um líder do PT me disse em 1994 a seguinte frase: “combater a inflação é um projeto da elite brasileira.” Diante da repercussão, ele negou ter dito. Como ele já morreu, não vou dizer seu nome, apesar de ter certeza de que escrevi o que ouvi. O importante é pensar na frase porque ela coincidia com o comportamento do partido na época do Plano Real. A alternativa que apresentava era a negociação de pacto de preços e salários entre empresários e trabalhadores. O pacto era um conluio, no qual os trabalhadores de maior renda e de sindicatos fortes recebiam reajustes salariais que eram repassados para os preços, e tudo isso realimentava a inflação, que atingia violentamente os mais pobres. A inflação alta concentrava renda, mas não havia em nenhum partido de esquerda uma consciência da natureza deletéria da escalada de preços.
Nas privatizações também ficou evidente que, mais do que o controle estatal das empresas, o que estava sendo defendido a pedras e chutes em manifestações de rua eram as vantagens dos funcionários das estatais.
A transferência de renda para os mais pobres através do Bolsa Família foi bem executada, depois de abandonada a ineficiente proposta do Fome Zero. O programa tem foco nos mais pobres e todas as avaliações mostram isso. Mas a política perdeu parte do seu valor quando foi apresentada como um benesse do governo de esquerda aos pobres. Ao ser usada como uma chantagem eleitoral, ela foi se parecendo cada vez mais com as práticas clientelistas que sempre manipularam o voto dos pobres.
O Brasil precisa de uma esquerda sólida e vinculada aos seus ideais de inclusão, diversidade e promoção da ascensão social. Por natureza, a esquerda deveria combater o patrimonialismo, porque esse velho mal brasileiro está na raiz das nossas iniquidades. Por destino, deveria ser progressista porque para conservar privilégios e status quo, já existem os conservadores.
O Estado de S. Paulo: A esquerda e o esquerdismo
Os verdadeiros partidos de esquerda são aqueles que não confundem a luta política com a destruição dos pilares da democracia representativa
Se o brasileiro que se considera de centro não tem ainda uma candidatura presidencial que represente seus ideais mais caros, como constatamos neste espaço no domingo retrasado (ver Um vazio a ser preenchido), o eleitor que defende os ideais da esquerda democrática tampouco tem melhor sorte.
Não há hoje, na ampla oferta de candidatos e partidos do chamado campo “progressista” que almejam o poder, nenhum que rejeite toda e qualquer ditadura, que preze a Constituição e que consiga superar seus limites ideológicos radicais para se apresentar como governante de todos os brasileiros, e não apenas da patota. Ao contrário, os partidos mais proeminentes entre os que se dizem de esquerda fazem campanha sistemática contra as instituições democráticas, como se estas fossem instrumentos de uma guerra política das “elites” contra o “povo”. Segundo esse ponto de vista, nenhuma derrota política que essa turma tenha sofrido ou venha a sofrer é aceitável, pois só pode ser resultado de um complô contra os interesses do “povo” – de quem o PT, o PSOL e quejandos se consideram os únicos e legítimos intérpretes. Afinal, sua teoria e prática conseguem ser ainda mais vazias que a da desusada luta de classes.
O caso do PT é o mais óbvio. A insurgência do partido contra as instituições não começou agora, em razão das vicissitudes judiciais de seu poderoso chefão, Lula da Silva, mas há muito tempo, praticamente desde a sua fundação. Quando o PT estava na oposição, não houve um único presidente da República contra o qual o partido não tenha feito campanha pelo impeachment. Uma vez no poder, o PT tratou de desmoralizar a política institucional, ao remunerar parlamentares em troca de votos e ao financiar partidos associados e a si mesmo com dinheiro desviado de estatais. De volta à oposição, por força do impedimento da presidente Dilma Rousseff, o PT seguiu em sua campanha de desmoralização das leis e da democracia, ao enxergar golpistas no Congresso e até no Supremo Tribunal Federal e ao deixar de reconhecer os crimes fiscais cometidos pelo “poste” inventado por Lula da Silva. Portanto, não constitui nenhuma novidade o fato de que o PT esteja a mobilizar mundos e fundos para não apenas jurar a inocência de seu padrinho, mas principalmente para atacar, de roldão, todo o arcabouço institucional brasileiro – Congresso, Judiciário e imprensa livre.
Diante disso, pode-se imaginar a frustração do eleitor que é de esquerda, mas não compactua com o “esquerdismo”, que, no léxico leninista, conforme lembrou Luiz Sérgio Henriques em artigo a propósito da hostilidade do PT à democracia (A difícil identidade do petismo, 21/1, pág. A2), designa um comportamento infantil, que tende a ver o mundo pela óptica do radicalismo, sem o menor espaço para a negociação.
Os verdadeiros partidos de esquerda – não os “esquerdistas” – são aqueles que não confundem a luta política com a destruição dos pilares da democracia representativa. Não é possível se considerar genuinamente de esquerda – o que inclui não apenas fazer a crítica ao sistema capitalista, mas também defender de modo intransigente as liberdades políticas e civis – e apoiar ao mesmo tempo ditaduras como a da Venezuela, como fazem oficialmente o PT e o PSOL.
Ademais, como salientou Luiz Sérgio Henriques em seu artigo, os partidos esquerdistas hoje no Brasil são reféns do culto à personalidade, alçando Lula da Silva à categoria de santo e impedindo, dessa maneira, a renovação de sua liderança. O resultado é a transformação do PT em mera barricada atrás da qual Lula pretende se proteger da Justiça.
A julgar pelo que dizem os capas pretas do petismo, nada disso vai mudar. O ex-prefeito Fernando Haddad, coordenador da campanha de Lula, por exemplo, disse ao Estado que “a esquerda vai ter que se repensar” a partir de 2019, mas se negou a reconhecer os erros do partido, atribuindo-os ao “sistema”, e reafirmou que “o lulismo vai sobreviver ao Lula por força de sua liderança”. Ou seja, a principal força política e eleitoral da autointitulada “esquerda” no País continuará refém do pensamento autoritário e excludente que tão bem caracteriza o demiurgo petista.
El País: Esquerda brasileira se une em torno de “programa mínimo”, mas nega candidatura única
Fundações do PT, PCdoB, PDT e PSB discutem programa único para país, que pode contar com apoio de PSOL
Por Marina Rossi, do El País
Horas depois de ter sido condenado em segunda instância a 12 anos e um mês de prisão, Luiz Inácio Lula da Silva exaltava, do alto de um caminhão de som no centro de São Paulo, uma possível junção da esquerda. "Eles que se preparem: partidos de esquerda terão a compreensão de que precisam se unir", dizia ele, em uma ideia repetida muitas vezes ao longo dos últimos dias.
Mas mesmo sob a possibilidade de não ter um nome forte nas eleições de outubro, já que Lula pode se tornar inelegível, os partidos de esquerda negam a possibilidade de se unir em torno de uma candidatura única. Assumem, sim, uma junção, mas apenas na esfera programática, correndo o risco de, com cinco candidatos, sumirem nas propagandas eleitorais pelo baixo tempo de TV que terão sem alianças partidárias robustas.
Duas das figuras presentes nos palanques de Lula nesta recente crise, por exemplo, deverão ser candidatos em outubro. A deputada Manuela D'Ávlila (PCdoB-RS), já anunciou sua pré-candidatura e afirmou ao EL PAÍS que ela está mantida. E o líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Boulos, já é considerado no PSOL como pré-candidato, embora ainda não tenha se filiado ao partido, que também reforçou à reportagem que terá candidato próprio. Os demais partidos da esquerda também já têm pré-candidatos próprios: Ciro Gomes, pelo PDT, e Aldo Rebelo, pelo PSB. E nenhum deles pretende abandonar suas candidaturas para sustentar a de Lula, mesmo discordando da condenação no Tribunal Regional Federal 4, nesta última quarta.
As dificuldades de uma união da esquerda em torno de um único nome passam por aspectos práticos e ideológicos. O PCdoB, que nas últimas sete eleições presidenciais apoiou o PT, precisa eleger mais deputados federais que nos últimos anos para garantir a representatividade futura do partido no Parlamento, algo que está ameaçado desde a aprovação da última reforma política. Como, nos últimos anos, a aliança com os candidatos petistas rendeu ao partido pouco protagonismo, ele precisa sair à luz e mostrar suas ideias. E a melhor forma de dar visibilidade para as suas plataformas é por meio de um candidato à Presidência.
Já o PSOL, que no máximo até março deve confirmar a candidatura de Boulos, acumulou nos últimos anos muitas divergências com a postura do PT no Governo, fazendo uma clara oposição a muitas de suas políticas. "O PSOL terá candidato próprio. Temos nossa ideologia e uma reserva ética que nos dá condições de apresentar um candidato", reforça o deputado federal Ivan Valente. "Discordamos de muitas coisas feitas pelo PT nos últimos anos, como as monstruosas isenções fiscais que beneficiaram a elite e a escolha de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda", explica.
Ao reafirmarem seus cinco candidatos de esquerda nas próximas eleições, os partidos argumentam que não acreditam que isso beneficiará um candidato de direita, já que o lado conservador da disputa também está bastante fragmentado. É um cenário que deve tornar a disputa completamente pulverizada, algo que se assemelha a vista em 1989, primeira eleição direta democrática após um longo período de ditadura militar. Até Fernando Collor, que saiu vitorioso daquela eleição e depois sofreu impeachment, já anunciou que será candidato em outubro.
Um único programa
Apesar de não concordarem com a tese de uma candidatura única, os partidos de esquerda discutem, sim, uma união. Mas em torno de um "programa mínimo", conforme definiu Manuela D'Ávila. "As fundações dos partidos estão elaborando um programa com propostas em diversas áreas que servirão como plataforma". O documento, que está previsto para ser apresentado na Câmara dos Deputados no próximo dia 15 de fevereiro, está sendo elaborado desde o ano passado pelas fundações ligadas aos partidos: Perseu Abramo (PT), João Mangabeira (PSB), Mauricio Grabois (PCdoB) e Leonel Brizola (PDT). A Fundação Lauro Campos (PSOL) também pode se juntar ao grupo, após ter feito algumas propostas.
"Há algum tempo estamos tentando construir um discurso que contemple as diferentes teses da esquerda, algo especialmente importante em um momento em que a direita se avolumou e faz campanhas de terrorismo, como esta recente da reforma da Previdência", explica o presidente da Fundação Leonel Brizola, Manuel Dias, ex-ministro do Trabalho nos governos Lula e Dilma. "A ideia é fazer um discurso único, uma revisão histórica da esquerda", destaca ele, que afirma que haverá propostas para um "plano nacional de desenvolvimento". Serão pontos em diversas áreas, como educação, economia e direitos sociais. O presidente da Fundação Leonel Brizola destaca que ainda que os candidatos sejam distintos os partidos concordam com "alguns princípios universais". "Seria o ideal unir as forças em torno de uma candidatura unificada. Mas hoje isso é muito difícil."
A participação do PSOL no projeto, por enquanto, ainda está indefinida. O presidente do partido, Juliano Machado, explica que seus dirigentes enviaram suas contribuições para construir o documento e agora aguardam para saber se elas serão incorporadas. "Incluímos uma série de sugestões, mas não sabemos se serão aceitas, porque algumas não são defendidas por alguns dos partidos", diz Machado. "Fazemos críticas às parcerias público-privadas, por exemplo, mas não sabemos se PDT e PSB concordam com isso".
Ele diz que se trata de uma "plataforma de convergência, não eleitoral". "É uma plataforma de convergência, que serve para o debate da esquerda". Quanto a isso, todos os partidos estão de acordo. "O documento não implica nas candidaturas", diz Carlos Lupi, presidente do PDT. "É apenas um programa mínimo, para que, aquele do nosso campo que vencer a eleição, tenha uma linha de políticas públicas que a gente considera importantes para a defesa da população", explica. Ele lembra que a pré-candidatura de Ciro Gomes será lançada no dia 8 de março, dia internacional da mulher.
Lupi coloca os direitos dos trabalhadores e a educação em tempo integral como algumas das principais linhas de defesa do programa, além do "questionamento do sistema financeiro". "Não adianta garantir programa social sem tocar no câncer que é o sistema financeiro", afirma.
A expectativa dos partidos é que a construção deste documento cria um diálogo comum entre as legendas da esquerda. Márcio Pochmann, presidente da Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, comemora a iniciativa. "É um evento inédito no Brasil, uma tentativa de construção de diretrizes programáticas com partidos no campo progressista, que permite simultaneamente o lançamento das diferentes candidaturas", diz.
Apesar do aceno a uma possível reconstrução da esquerda, o lançamento do programa deve ficar, por ora, apenas no plano das ideias. "Não é um programa de Governo", diz Pochmman. "Está mais na linha de um projeto de desenvolvimento para o país, que é algo mais a longo prazo", diz.
Marco Aurélio Nogueira: A esquerda que não merecemos ter
Os esquerdistas acham que com a volta de Lula o sol voltará a brilhar e a emancipação será retomada. Não se dão sequer ao trabalho de verificar os dados e de perguntar ao Lula o que ele de fato fará se for eleito presidente
Do jeito que estão as coisas, não há como cogitar da afirmação de um competitivo campo de esquerda no Brasil.
Indo além: o movimento progressista está desnorteado, desarvorado, sem fibra.
A esquerda é um universo amplo, plural, integrado por muitas correntes, agregações e pessoas. Vai do liberalismo político democrático aos defensores do socialismo, de ambientalistas e ecologistas aos libertários, dos que lutam por direitos aos que querem igualdade e reconhecimento. É parte do progressismo, do reformismo, da democracia, ainda que nem sempre acerte os passos com tais plataformas.
Quando, porém, no Brasil, você para e olha, a impressão é que a esquerda se resume ao petismo, aos seguidores de Lula e aos correligionários do PT, com seus aliados, seus trânsfugas e seus satélites.
A simplificação mental é assustadora. Um mundo todo está acabando na política. Partidos e lideranças se desfazem por efeito das transformações estruturais do capitalismo e, no Brasil, dos desdobramentos da Lava-Jato e da crise do Estado e da política. Em vez de reconhecer isso, o esquerdismo prevalecente opta por vitimizar Lula e o PT: somente eles seriam “perseguidos”. Impeachment foi golpe, eleição sem Lula seria fraude, Lula estaria sendo condenado sem prova só para não poder se candidatar, a lawfare seria a adaga espetada em seu peito. Uma catilinária ilimitada.
Tudo isso é interpretado como expressão pura da esquerda, sem mais. Blogs, robôs, sites, mídia eletrônica organizam uma incansável campanha para ampliar o diagnóstico de que tudo só acontece porque a direita (jamais definida com clareza), os liberais, os socialistas democráticos, os partidos do sistema, decidiram atacar o PT e a esquerda, porque a Globo não gosta de Lula e quer dominar tudo, porque Sergio Moro é um partidário antipetista. Porque as elites resolveram sangrar a sociedade.
Estaria assim em marcha uma violenta guinada regressista, tradução brasileira do mesmo fenômeno que se veria no mundo. Direitos pisoteados, pobres sendo remetidos ao inferno da miséria, trabalhadores encurralados, superexplorados, tratados como animais, um cenário de horror. E, no meio dele, Lula e o PT lutando como verdadeiros patronos da Humanidade, que por eles, no mundo todo, torce apaixonadamente.
Consolidou-se assim uma nova faceta do mito global do redentor.
Não há mais crítica política. Muito menos autocrítica. Os iluminados, como se fossem escolhidos, sabem tudo, dominam os mares, voam mais alto. São “perseguidos” e, por isso, automaticamente purificados, desobrigados de analisar os próprios passos, os erros cometidos, as culpas que carregam. Toda exigência deveria ser suspensa para não facilitar o trabalho da “direita”. Durante os anos do petismo no poder, a crítica não podia ser formulada porque desestabilizaria e enfraqueceria o governo; depois do impeachment, ela é inadmissível porque serviria para fortalecer os “golpistas”. De negação em negação, de recusa em recusa, foi-se empurrando a sujeira para baixo do tapete.
A mitificação corre solta, impulsionada por gente que se vangloria de ter uma inteligência superior, experiência política e boas intenções. Converte-se Lula num factótum da perfeição, dono de uma racionalidade política jamais vista e de uma entrega total aos pobres. Passa-se uma esponja em pecados eventuais, na sede desmesurada por poder, no protagonismo centralizador, avesso a disciplinas e partidos. O mito assim forjado tem alguns pés de barro, devidamente ocultados para não estragar o enredo, mas nem por isso deixa de ser alimentado.
A convicção cega embota as mentes, a superficialidade do diagnóstico agita, mas não consegue esclarecer nem ativar um verdadeiro programa de luta e transformação. Vai-se por inércia, repetindo chavões e slogans fáceis, que se derramam como água, a um ponto em que tudo se converte em senso comum. Nesse momento, as pessoas simplesmente param de pensar. Deixam de ser autônomas, convertem-se em repetidoras passivas, que se lançam em embates infrenes contra tudo e todos.
Os que procuram complicar um pouco o argumento, ponderar ou encontrar um terreno de maior razoabilidade, são atacados sem pena nem consideração. São estigmatizados, convertidos em aliados de “golpistas”. Avança assim um rolo compressor dedicado a disseminar um tipo de pensamento único “progressista”, a martelar verdades tidas como absolutas, a promover polarizações sempre mais insanas e insensatas, a construir uma narrativa que beira a irracionalidade.
Todos seriam parciais: o MP, a PF, Moro e a Lava Jato, os juízes do TRF-4, a Justiça inteira, as instituições em seu conjunto, os delatores premiados, a mídia. Exagera-se, para levar ao extremo uma estratégia “coitadista”, de vitimização.
O país? Ora, o país… O importante seria não perder o foco: salvar o líder redentor. Fernando Gabeira disse bem: “A esquerda decide lançar todas as suas fichas na salvação do líder num momento em que a maioria está preocupada com a salvação do País. Essa energia concentrada em salvar Lula deixa de lado algumas questões vitais que ela teria de encarar num processo eleitoral”.
O desprezo pela dúvida e pela opinião divergente culmina na redução delas ao imprestável, ao suspeito. Não haveria porque debater se o “outro” é visto como inimigo a ser destruído. É uma questão de fé.
Interditam-se assim posturas e iniciativas que poderiam ajudar a oxigenar o ambiente, a fazer avançar uma crítica mais realista, a tolerância, a busca de entendimentos para fortalecer o próprio campo da esquerda, revitalizando um patrimônio de afetos, agregações, sinergias. Para o pensamento único, a dissonância é incômoda.
Vez ou outra se ouvem vozes falando em “unidade das esquerdas e das forças populares” para frear o “governo entreguista” e impedir a “usurpação” que se anuncia com o julgamento político de Lula. É uma retórica rebarbativa, que não avança na compreensão do quadro e se perde na proposição abstrata de uma imprecisa “aliança nacional” para defender a democracia. Perorações desse tipo desaguam inevitavelmente na postulação do “direito” que teria Lula de disputar a eleição, porque ele é o líder supremo, amado pelo povo, pouco importando se cometeu deslizes, se vier a ser condenado, se tiver a ficha suja de acordo com a legislação em vigor.
Isso tudo acontece não só porque o esquerdismo prevalecente conseguiu acumular recursos e mostra competência na agitação e na propaganda. Acontece também porque a nossa época é uma época de lassidão crítica, de preguiça, de acomodação, de miséria intelectual. Uma época opiniática, em que cada um carrega a sua verdade e sua fé.
Acontece também porque os demais protagonistas do campo democrático e de esquerda – aquilo que se deveria chamar de esquerda democrática – não souberam se projetar e se articular, deixando o terreno vazio. Parte deles nem consegue se descolar do petismo lulista.
A desgraça maior é que ninguém sabe bem o que fazer.
Os esquerdistas acham que com a volta de Lula o sol voltará a brilhar e a emancipação será retomada. Não se dão sequer ao trabalho de verificar os dados e de perguntar ao Lula o que ele de fato fará se for eleito presidente.
Os que querem se diferenciar desse senso comum batem cabeça, ora se entregando ao encontro de um nome com que dar operacionalidade ao moderantismo de centro, ora abraçando bandeiras caras ao neoliberalismo, sem atualizá-las ou corrigi-las.
Uns e outros se acham autossuficientes. Atacam-se reciprocamente sem tréguas, e no correr da batalha deixam de lado o mais importante.
O mais importante? A defesa da democracia e de um reformismo realista, progressivo, consistente em termos programáticos, que nos permita repor o país nos eixos e disputar o futuro, coisa que somente será concebível se houver o concurso generoso de muitos. A defesa da igualdade, da liberdade, de direitos para todos, de formas abertas de vida social, da solidariedade, da cooperação.
O mais importante? A colocação em marcha de uma reinvenção que nos faça voltar a ter orgulho de nos proclamarmos de esquerda.
Gaudêncio Torquato: A esquerda dos artistas
O que é e para onde vai a esquerda no Brasil?
A pergunta se faz pertinente por conta do midiático posicionamento de cantores, compositores, atrizes (Carlos Vereza, o grande ator, é uma das exceções), que, se dizendo de esquerda, fazem loas a Lula e Dilma, perorando contra o golpe desferido pela direita que colocou no poder um golpista e animando plateias a levantar placas “Fora Temer”.
A era petista levou o Brasil à maior recessão econômica de sua história, maior até que a Grande Depressão de 1929. Alguns dos artistas que fazem barulho, porém, continuam a sonhar com a volta de Lula, enxergando nele a “Salvação da Pátria”. Afinal, que esquerda é essa?
Primeiro, vale lembrar que a esquerda frequenta mais a boca de artistas que o aparelho fonador de políticos.
É fato que o PT continua a desfraldar a bandeira do socialismo, mas perdeu vigor nessa toada, a partir do momento em que entrou no pelotão da bandalheira, objeto de operações que se iniciaram no mensalão (Ação Penal 470) e continuam hoje na Lava Jato.
O espaço de esquerda passou a ser ocupado pelo PSOL, cujo discurso se afina ao surrado refrão da luta de classes e combate mortal ao capitalismo.
Os dogmas socialistas tornaram-se verbetes com serventia de graxa para ilustrar perfis corroídos. Ser de esquerda é charme para certos artistas. Mas a esquerda já não incorpora o escopo do socialismo clássico marxista sobre a formação do capitalismo e a previsão de sua catastrófica evolução.
A “violência como parteira da História”, dogma apregoado por Engels, tentou fazer escola entre nós, nos idos de 1960, mas foi repelida pela ditadura militar.
A redemocratização do País abriu espaço para outras áreas no canto esquerdo do arco ideológico.
Nas últimas três décadas, formou-se nova argamassa para ajustar estacas do alquebrado socialismo revolucionário com tijolos do liberalismo político e econômico.
Fixaram-se outras posições, como o porte e a ação do Estado, chegando-se ao meio termo: nem Estado mínimo nem Estado máximo, mas um ente de tamanho adequado.
Agregaram-se expressões como “capitalismo de face humana”, “socialismo de feição liberal”. A intervenção do Estado no mercado chegou até a gerar designação própria para a situação da China – capitalismo de Estado.
Social-democracia
O fato é que a meta do sistema é convergir a eficiência econômica com o bem-estar social, ao que se deu o nome de socialdemocracia. Essa marca chegou ao Brasil em fins dos anos 1980, endossada inicialmente pelo PSDB num texto de seus ideólogos,
Os desafios do Brasil. Por tentativa e erro, nosso arremedo socialdemocrata entrou no terceiro milênio, ganhou o centro do poder e foi acusado de se curvar ao Consenso de Washington.
De onde partiu a crítica?
Do PT e seus satélites. De tanto bater, as “esquerdas” alcançaram a alforria e chegaram ao Palácio do Planalto em 2003 com a eleição de Lula. Mas dom Luiz I e Único (o título tem a ver com o discurso de que foi o primeiro a fazer isso e aquilo), nunca abandonou as linhas gerais da política neoliberal.
Com o “mensalão”, soçobraram as pilastras leninistas e o teto marxista. As bandeiras vermelhas do petismo ficaram borradas de lama e de vergonha. Depois, apareceu a operação “amaldiçoada” por grandes, médios e pequenos partidos, a Lava Jato. Muitos atores se nivelaram na sujeira da corrupção.
Foram presos ou ainda estão dirigentes do PT e de outros partidos, ex-ministros, mandatários de todos os quilates. Sob o lamaçal, que matiz de esquerda se pode distinguir?
Apenas traços indistintos e pequenos sinais de uma ou outra sigla nanica de entonação trotskista. O PSOL está bem na fita. Até o PC do B escapa da modelagem esquerdista.
O que existe é um espaço acomodando praticamente grandes e médias entidades, cuja pregação socialdemocrata abriga questões como liberdade política, controle social, intervenção do mercado, organização da sociedade civil e até continuidade ou não das estatais.
Artistas fecham os olhos
O ciclo Dilma jogou o país no profundo buraco da recessão e do desemprego, selando o fim de refrãos socialistas. CUT e MST ainda tentam elevar ao alto suas bandeiras, mas se frustram com plateias escassas. No momento em que o Brasil alcança uma Selic de 7%, o menor juro da história, uma inflação abaixo dos 3% anuais, a volta do emprego, o que se vê na paisagem?
A tentativa de alguns de transformar o verso em reverso. E o engodo grassa. Lula propaga que belos foram os tempos em que ele e Dilma fizeram do Brasil um paraíso. Os artistas entoam esse hino. Berram surrados slogans publicitários e execram as reformas que cortam as amarras do país ao passado.
Por que a classe artística glorifica o ciclo lulopetista? Primeiro, ser esquerdista parece charmoso para muitos. Segundo, Lula é o ícone da dinâmica social no Brasil, condição que serve para encobrir a lama do mensalão e de escândalos que enfrenta na justiça.
Já Dilma “foi apeada do poder por um golpe”, tendo assumido um “vice” que nunca teve um voto, esquecendo que ele obteve o mesmo número de votos da ex-presidente.
Persistem na alma de uns e outros traços da cultura pré Muro de Berlim: contrariedade em relação ao que se identifica com EUA, capitalismo, iniciativa privada e simpatia em relação aos símbolos do velho socialismo, como Cuba e Venezuela. Nem mesmo o chefão russo Putin merece hoje consideração, enquanto o socialismo à moda chinesa parece uma excrescência.
Afinal, o PT ainda é de esquerda?
Vejamos. A partir dos anos 70 a 80, os partidos socialdemocratas passaram a incorporar princípios neoliberais, puxando a ideologia dominante da União Europeia. A doutrina socialdemocrata ganhou contornos na esteira da globalização.
Siglas mudaram, transformando suas bases trabalhadoras em classes médias, mais conservadoras e com maior acesso ao capital financeiro. Angela Merkel, na Alemanha, por exemplo, deu efetiva contribuição para moldar a socialdemocracia com a solda neoliberal.
O Brasil ingressou na rota.
A alternativa que restou ao PT foi a de aderir ao figurino. Importantes figuras do nosso universo artístico, porém, teimam em fechar os olhos à nova realidade, apostando na tese de que bom, mesmo, era o Brasil que até ontem respirava por aparelhos.
* Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação
Demétrio Magnoli: Para onde vai a ‘nova esquerda’?
Dani Rodrik, professor de Economia Política Internacional em Harvard, identificou um “trilema”, isto é, um problema que só admite a conciliação de dois entre três objetivos. Não podemos ter, simultaneamente, soberania nacional, democracia e hiperglobalização. É preciso escolher duas dessas coisas, descartando uma terceira, assegura-nos, para concluir que a renúncia à hiperglobalização seria a única forma de triunfar frente ao desafio da direita populista. O “trilema” existe, de fato, mas que tenha solução mais sutil, menos angulosa que a de Rodrik.
A opção por democracia mais hiperglobalização, às custas da soberania nacional, orientou o Ocidente desde o encerramento da Guerra Fria. O célebre “fim da História”, de Francis Fukuyama, foi uma síntese triunfalista dessa opção, que sofreu o golpe econômico da grande depressão de 2008-2009 e da ascensão populista iniciada em 2016. O Brexit, Donald Trump, Marine Le Pen, a direita nacionalista alemã e a crise separatista catalã evidenciam um perigoso deslocamento dos EUA e da Europa, as placas tectônicas principais da ordem global. Seguir o curso, pura e simplesmente, implica colocar em risco tanto a globalização quanto a democracia.
No Fórum de Davos, Xi Jinping explicitou a alternativa chinesa: soberania nacional mais hiperglobalização, sem democracia. A via chinesa inspira líderes autoritários na Europa (Rússia, Turquia), na Ásia (Vietnã), na América Latina (Cuba, Venezuela) e na África. Efetivamente, desde a queda do Muro de Berlim, a utopia socialista praticamente deixou a cena, substituída por variantes do capitalismo de Estado.
Rodrik não é exatamente original quando prega uma combinação de democracia com soberania nacional, às expensas da globalização. Sua saída envolve “uma disposição de atacar muitas das vacas sagradas do establishment — especialmente a liberdade de ação dada às instituições financeiras, o viés em favor de políticas de austeridade, a visão negativa do papel do governo na economia, a movimentação irrestrita de capitais pelo mundo e a fetichização do comércio internacional”. Quase se ouvem, atrás de sua sentença, as vozes de Bernie Sanders, o candidato democrata derrotado por Hillary Clinton nas primárias americanas, e de Jeremy Corbyn, o líder esquerdista atual do Partido Trabalhista britânico.
O “viés em favor de políticas de austeridade” manifesta-se na Europa, como reflexo das posições alemãs, mas não nos EUA. A referência é uma forma de ocultar a crise do Welfare State, que provoca desequilíbrios orçamentários insustentáveis. As políticas de bem-estar social foram contaminadas pela acumulação de privilégios corporativos e curvaram-se sob o peso do envelhecimento demográfico. A necessidade de reinventar o Welfare State não deriva da ideologia, mas de impasses estruturais.
Já a menção à “fetichização do comércio internacional” revela a inclinação da “nova esquerda” a reproduzir o discurso do nacionalismo de direita. Sanders e Trump investiram juntos contra o projeto da Parceria Transpacífica e contra o Nafta. Na campanha do plebiscito, Corbyn declarou-se protocolarmente contra o Brexit mas, nos escassos eventos que promoveu, fez da União Europeia o alvo preferencial de seu bombardeio. A direita populista responsabiliza os “estrangeiros” pela estagnação da renda da classe média tradicional. A esquerda emite a mesma mensagem, trocando palavras: no lugar de “China”, “México” ou “imigrantes”, aponta o dedo acusador para o “neoliberalismo”, o “globalismo” ou o “livre comércio”.
A solução de Rodrik equivale a ingressar numa cápsula do tempo e retornar várias décadas atrás, até a era gloriosa das políticas social-democratas tradicionais. A viagem, porém, exige tanto a interrupção (ou reversão) da onda de inovações tecnológicas quanto a construção de sólidas barreiras protecionistas para conter os fluxos de mercadorias e capitais. No fundo, Sanders e Corbyn só poderiam aplicar as políticas protecionistas que advogam numa Fortaleza América ou numa Fortaleza Europa. A opção fundamentalista pela soberania nacional é a ponte que interliga a direita populista a uma “nova esquerda” sem rumo.
No tripé de Rodrik, ao menos do ponto de vista do Ocidente, só a democracia deveria ser classificada como um bem inegociável. Fora da caixa estreita da ideologia, existem inúmeros compromissos legítimos entre globalização e soberania nacional. O ultraliberalismo não funciona nas democracias de massas, como se sabe há quase um século. A inovação tecnológica acelerada, fonte principal da crise da classe média nos EUA e na Europa, solicita contrapesos equilibradores, na forma de serviços públicos e gastos sociais. O Welfare State precisa ser reinventado (ou inventado pela primeira vez, no caso da China), não descartado como relíquia ou anacronismo.
Nada disso será feito por uma esquerda que cultua o Estado-Nação, entoando hinos nostálgicos a uma “idade de ouro” perdida no horizonte dos mitos. O nacionalismo é a trincheira da direita. Quando a esquerda aprenderá essa verdade óbvia?
* Demétrio Magnoli é sociólogo
Marco Aurélio Nogueira: Um centro inclinado à esquerda
Ele poderá organizar uma agenda com sensibilidade social e disputar as multidões. Pouco se faz para enfrentar esse quadro desagregador, que se vai naturalizando. Fala-se muito em “centro democrático”, mas ele não se materializa, com o que não se introduz mais racionalidade na competição política nem se oferecem ideias e propostas substantivas claras aos cidadãos.
A democracia alimenta-se do conflito. Polarizações não somente são inevitáveis, como ajudam a manter a temperatura política no limite do suportável e a explicitar diferenças que pulsam no terreno social.
Acontece que uma multiplicidade de polos não é uma virtude. Pode mesmo funcionar para impedir a plena manifestação dos polos “verdadeiros”, aqueles que carregam no ventre os interesses fundamentais da sociedade, as contradições principais. Divisões artificiais e pouca disposição para o diálogo terminam por criar campos ideológicos antípodas, soltos no ar, sem pé na realidade. Parte-se da ideia de que a sociedade é mais dividida do que se vê, e com isso se criam divisões por sobre divisões. A intolerância cresce, as tensões tornam-se insuperáveis e provocam rupturas. Esfuma-se assim o que poderia haver de virtude nas polarizações.
O Brasil dos últimos anos esteve condicionado pela polarização PT x PSDB. Tamanha foi sua força que a sociedade se deixou encantar com o que se anunciou como sendo duas matrizes de governança e de projeto nacional. Nem petistas nem tucanos, porém, conseguiram se firmar como forças dotadas de densidade programática e vocação hegemônica. Foram se desconstruindo ao longo do tempo e chegaram hoje ao ponto mais baixo de sua trajetória. A sociedade, por sua vez, foi-se saturando da reiteração dessa polarização, roubando-lhe chances de reposição.
Polarizações podem funcionar como fatores de organização, nos quais o antagonismo qualifica o quadro geral. Nem sempre os polos estão fechados para entendimentos e composições. Podem conviver no interior de polos maiores e convergir para um patamar comum. É o segredo da unidade democrática, que é feita de soldagens dialógicas, e não impositivas, entre correntes distintas.
A política sofre quando não dispõe de patamares unificadores, que possibilitem o diálogo entre campos distintos. Afasta-se dos cidadãos, assiste à apresentação de propostas diversionistas e ao surgimento de candidaturas voluntaristas ou regressistas.
No Brasil atual, as forças democráticas enfrentam dificuldades para romper os círculos que estreitam sua movimentação e impedem sua reposição vigorosa na cena nacional. Precisam recusar o papel subalterno a que foram relegadas. Devem contestar os ataques da direita jurássica, confrontar a ingenuidade social e problematizar a ideia de que a solução passaria por um condottiere acima do bem e do mal, apresentando em contrapartida uma renovada ideia de País e uma agenda nacional inclusiva.
A esquerda democrática cumpre um papel nessa operação. Um “centro” sem ela terá reduzida potência reformadora e tenderá a ser hegemonizado pelo conservadorismo. Um centro democrático inteligentemente inclinado para a esquerda, por sua vez, poderá organizar uma agenda com sensibilidade social e disputar as multidões.
Uma esquerda democrática não é “inimiga do mercado”: seu anticapitalismo é realista, respeita a correlação de forças e apoia-se numa teoria social que se dedica a compreender as novas formas do capitalismo, da luta de classes, do modo de vida, do mundo do trabalho e do emprego. Seu eixo é a regulação política do sistema econômico, de modo a que se reduzam suas incongruências e sua capacidade de produzir desigualdades.
Mas essa esquerda aprendeu que também é preciso regular e controlar o Estado, de modo a fazê-lo atuar em consonância com as expectativas de crescimento econômico e de justiça social, sem se comprometer com políticas de gasto público desprovidas de “responsabilidade fiscal”. Incorporou os valores do liberalismo político e da democracia progressiva, com os quais defende a necessidade de um reformismo gradual aberto para a justiça social, os direitos e a modificação das estruturas sociais que produzem desigualdade.
Um centro que se componha a partir do liberalismo político precisa assimilar a generosidade democrática e social da esquerda. Num país como o Brasil, aliás, somente assim poderá cumprir uma função progressista e preparar a pista para que o País derrote seus piores inimigos: a desigualdade, a injustiça, o crescimento não sustentável, a corrupção sistêmica, o desrespeito, as discriminações que vitimizam pobres, negros, pardos, índios, homoafetivos e mulheres.
Concebido como plataforma suprapartidária integrada por diferentes formas de pensar – um permanente compósito de conflito e consenso –, tal centro poderia organizar a parte mais ativa da sociedade, hoje afastada da política, mas interessada em fiscalizar os governos e que necessita, por isso mesmo, das práticas e dos valores que a esquerda democrática cultua.
A construção requer habilidades artesanais raras, foco no fundamental, respeito à diversidade, tolerância e sabedoria política para administrar interesses e modular o tempo. Necessita de lideranças, mas não de um líder todo-poderoso. Precisa contar com o desprendimento dos partidos, especialmente dos maiores, que costumam olhar as eleições como uma “oportunidade de negócios”, não como uma oportunidade política, organizacional. Por isso será preciso haver engajamento e pressão cívica, social, algo que, de resto, também precisa ser construído.
O “centro democrático” não cairá do céu. Depende de muito empenho e determinação. Mas precisa ser martelado desde logo, para ter chances de produzir a indispensável convicção política e social.
Fernando Gabeira: Adeus aos salvadores da Pátria
Não elegeremos anjos em 2018. Mas o pessimismo não nos deve desesperar
De passagem pelo Brasil, um dirigente espanhol do Podemos, Rafael Mayoral, afirmou que a esquerda não vai salvar as pessoas e o essencial é fortalecer a sociedade para que ela possa controlar qualquer governo no poder. Não vi o restante do seu discurso. Mas até onde li, concordo. De certa forma, tenho usado esse argumento com novos grupos que querem a mudança no Brasil.
Muitos deles estão legitimamente preocupados com a falta de alternativas na eleição presidencial. Mas, ainda assim, afirmo que a descoberta de um nome não é tão importante quanto fortalecer a sociedade para que possa monitorar ativamente o governo.
No fundo, o objetivo maior deve ser a construção de um controle social tão preciso, diria até tão virtuoso que possa tornar mais amena a constatação de que não elegemos anjos, mas pessoas de carne e osso. Isso é válido para qualquer sociedade, mas no Brasil parece que somos mais intensamente de carne e osso.
De certo modo, já exercemos algum controle sobre o governo Temer. Duas medidas foram revertidas por pressão social: a abertura de uma área de mineração na Amazônia e o abrandamento da lei que pune o trabalho em condições análogas ao de escravo. Mas esse esforço de controle só tem surgido em grandes temas. Estamos tratando como normais e cotidianas várias aberrações que nos transformam num país virado de cabeça para baixo.
Um exemplo que me espantou foi o pedido oficial de Geddel Vieira Lima para saber o nome e o telefone de quem o denunciou. No apartamento ligado a Geddel foram encontradas as malas com R$ 51 milhões. Até agora não sabemos, e creio que a polícia também não, de onde veio o dinheiro atribuído a Geddel. Mas ele quer saber quem o denunciou. Se a polícia desse o nome e o telefone de quem denunciou, Geddel iniciaria uma prática internacionalmente nova: quebrar o anonimato dos informantes, para serem devidamente assassinados.
Raquel Dodge negou o pedido de Geddel. Mas o fato de ter existido e circulado como uma notícia normal revela como o País, no cotidiano, foi posto de cabeça pra baixo.
No caótico Estado do Rio de Janeiro, outra dessas barbaridades que quase passam em branco: o governador Pezão indicou um deputado para o Tribunal de Contas do Estado (TCE), o mesmo cujos membros foram presos. Questionado na Justiça, Pezão chamou o procurador Leonardo Espíndola para defendê-lo. Impossível, disse o procurador, sua decisão é inconstitucional. Ato contínuo, Pezão demitiu Espíndola. Felizmente, o indicado por Pezão caiu nas garras da Polícia Federal antes de tomar posse no TCE. É acusado de corrupção, ao lado do presidente da Assembleia Legislativa, deputado Jorge Picciani.
São só dois fatos cotidianos. Há algo comum em sua origem. Nascem de políticos do PMDB envolvidos em corrupção. Um quer o nome de quem o denunciou, o outro considera defender a Constituição algo incompatível com o serviço público.
E a vida continua. Engolindo alguns sapinhos no cotidiano, nosso estômago é preparado para os grandes sapos de fim de mandato.
Um deles, que está sendo preparado nos bastidores, é a derrubada da prisão em segunda instância. As articulações correm no Congresso e no próprio Supremo Tribunal Federal (STF). Tanto ministros do Supremo como parlamentares veem nisso uma saída para neutralizar não só a Lava Jato, como todas as operações que envolvam políticos corruptos.
Enunciado apenas como uma tese jurídica, o fim da prisão em segunda instância é palatável. Todos são inocentes até que a sentença seja confirmada pelo STF. Na prática, resultará em impunidade geral. Todos terão direito a uma trajetória semelhante à de Paulo Maluf, que de recurso em recurso vai tocando sua vida, exercendo seus mandatos e até defendendo outros acusados de corrupção, como Michel Temer.
No momento em que as aberrações se acumulam, a tendência é criar um País monstruoso. Algo que já tentei definir num discurso, no alto de um caminhão, em protesto de rua: um País onde os bandidos fazem a lei.
Enquanto essas coisas acontecem, o debate entre os que querem a mudança tende a concentrar-se no perfil do líder que nos vai salvar. Em que rua, em que esquina vamos encontrá-lo? No Acre, em Alcácer Quibir?
Enquanto não aparece, creio ser necessário fortalecer as organizações que trabalham com a transparência. Estão surgindo de vários pontos. Hoje se investiga como os partidos gastam seu dinheiro. Há um grupo que cuida exclusivamente de despesas de parlamentares. A intensa busca da transparência fortalece a sociedade. Da mesma maneira, ela ficará mais forte se todos os grupos que buscam a mudança se unirem num esforço comum.
Nem todos pensam da mesma maneira, estamos cansados de saber. Mas é preciso um mínimo de maturidade, na situação dramática do País, para encontrar pontos de convergência.
Não importa tanto se um grande líder vai emergir dos escombros. Mesmo se aparecer, não será um anjo. Não elegeremos anjos em 2018. Nunca o faremos, creio eu.
A fronteira do pessimismo não nos deve desesperar. Há algumas instituições funcionando, há grupos trabalhando na busca da transparência, há a possibilidade real de que todos os que querem mudança encontrem pontos de contato, um denominador comum.
Como o poeta que fabrica um elefante de seus poucos recursos, a sociedade brasileira terá de construir seu sistema de defesa. Alguns móveis velhos, algodão, cola, a busca de amigos num mundo enfastiado que duvida de tudo – o elefante de Drummond é inspirador.
Quem sabe, como em Portugal, conseguiremos construir nossa própria geringonça? Prefiro essa visão modesta e realista a esperar dom Sebastião. Curado de sua megalomania, talvez o Brasil aceite, finalmente, tornar-se um grande Portugal.
Roberto Freire: Por uma esquerda contemporânea do futuro
Em um mundo que enfrenta um revolucionário processo de transformação, não é das tarefas mais simples para as forças políticas e agremiações partidárias se adaptarem à nova realidade. Instituições datadas do período da Revolução Industrial, ainda no século XIX, os partidos políticos perderam muito de sua interlocução junto à população e hoje têm enorme dificuldade de se estabelecer nas sociedades plenamente interconectadas em rede. As esquerdas, em especial, praticamente todas em crise em grande parte do mundo, só retomarão o diálogo com os demais atores sociais se tiverem a capacidade de interpretar as mudanças em curso.
Essa revolução social já é um dado da realidade que está bem diante dos nossos olhos e contra o qual não se pode lutar. Tal processo envolve não apenas o avanço das novas tecnologias ou das ferramentas de comunicação, mas se trata, fundamentalmente, de uma transformação radical na forma como nos relacionamos uns com os outros. É evidente que as sociedades atuais não têm praticamente nenhuma similitude com aquelas de décadas passadas. Este é um movimento irrefreável que só se intensificará.
Novas questões estão na ordem do dia no mundo moderno, entre as quais a inteligência artificial e a robotização. Os “Tempos Modernos”, retratados como obra-prima no cinema pela genialidade de Charles Chaplin são coisa do passado. Hoje, a linha de montagem é ocupada por robôs e por todo um processo de automação. Essa verdadeira revolução está transformando profundamente tudo o que está à nossa volta: o mundo do trabalho, a cultura, as relações sociais, os costumes e as instituições – entre elas, inclusive, até mesmo a própria família.
Este novo mundo digital que se descortina nos afeta a todos, em todos os segmentos de atividade, proporcionando o surgimento de novas ferramentas e organizações que substituirão as velhas estruturas – que podem ser simbolizadas, no mundo do trabalho, pelos atuais sindicatos. Para todas essas questões, é fundamental que tenhamos uma visão conectada com o futuro e abdiquemos de vícios e valores ultrapassados de um mundo que ficou para trás e não mais voltará.
Lamentavelmente, o que temos observado com certo estarrecimento, especialmente no Brasil, é um comportamento retrógrado e totalmente refratário às mudanças justamente por parte daqueles movimentos que se dizem progressistas e de vanguarda. Muitos deles, notadamente alguns grupos políticos de esquerda liderados pelo PT e seus aliados PCdoB, PDT e PSOL, têm se comportado como forças da reação, pois se insurgem contra toda e qualquer mudança. Basta haver uma proposta de reforma para que esses setores prontamente se posicionem em oposição a ela, como se o Brasil vivesse um nirvana que não justificasse qualquer iniciativa de transformação.
Provavelmente, não leram com atenção Karl Marx, autor do célebre panfleto “O Manifesto Comunista”, que escreveu: “tudo o que era sólido se desmancha no ar”. Ou devem ter lido essa frase como se fosse algo meramente poético. Na realidade, se trata de uma mudança muito mais profunda que, infelizmente, certa esquerda não consegue perceber. É justamente essa capacidade de interpretação da realidade e de projeção do futuro que esses grupos vêm perdendo paulatinamente.
Durante a Revolução Industrial, houve um movimento que se voltou contra a chamada “mecanização do trabalho” – o ludismo, inspirado e liderado por Ned Ludd, cujos seguidores se revoltaram contra a utilização das máquinas em substituição à mão-de-obra humana nas fábricas. Se naquele momento os ludistas destruíam a maquinaria, hoje temos uma espécie de “ludista digital”, aquele que se posiciona, inequivocamente, contra o avanço das inovações tecnológicas e o mundo digital.
Para citarmos outro exemplo, na área científica também há forte resistência a qualquer debate sobre avanços das pesquisas e o uso da tecnologia de ponta para novas descobertas. Recentemente, em meio aos debates a respeito do desenvolvimento da biotecnologia no Brasil – cujo avanço alguns tentaram impedir, sobretudo em relação às pesquisas sobre o uso de alimentos geneticamente modificados –, não foram poucos os setores mais atrasados e obscurantistas da esquerda que simplesmente não toleravam sequer debater o tema.
Comecei a minha militância política no velho Partido Comunista Brasileiro, o PCB, lutando pelas reformas de base. Já naquela época, éramos de uma esquerda que defendia e buscava as mudanças. O que se vê nos dias de hoje, infelizmente, é um comportamento agressivo, intolerante, anacrônico e até mesmo reacionário de certos setores do pensamento dito progressista que não aceitam nenhum tipo de reforma.
É necessário e urgente interpretar todo esse processo de transformação e estabelecer um canal direto de comunicação com os novos atores políticos e sociais – por meio das redes e rodas democráticas e dos mais diversos movimentos da cidadania. Temos de ser contemporâneos do futuro, que já começou. Ou seremos atropelados por ele. (Poder 360 – 05/11/2017)
Cristovam Buarque: Não é a direita que cresce, mas a esquerda que diminui
A crise política e econômica desencadeada pelo governo do PT levou o País para a pior recessão da história causando desemprego de milhões de brasileiros e uma imensa desmotivação e descrença da sociedade na política e nos políticos. A esquerda retrógrada e populista representada pelo lulopetismo fortaleceu setores da extrema direita que ganham atenção do eleitorado com ideais conservadores e, até mesmo, perigosos do ponto das conquistas sociais.
Ao analisar a situação política brasileira, sobretudo o aumento do apoio à direita, o senador Cristovam Buarque (PPS-DF) afirmou que grande parte da responsabilidade está relacionada ao “fracasso das esquerdas e forças progressistas” que não foram capazes de “enterrar ideias velhas”. Para ele, a direita brasileira não está crescendo, mas a esquerda é que está se “apequenando”.
“Vivemos em mutação”
“O que construímos [a esquerda] ao longo dos séculos foi enterrado com o avanço tecnológico e intelectual das ultimas três décadas. Estamos carentes de filósofos no mundo principalmente no Brasil. Não fomos capazes de um projeto de desenvolvimento global. Desenvolvemos a Europa, mas deixamos a África para trás. Resultado: uma forte onda migratória para o continente europeu. Daí vem a direita, pega esse fato, e ganha a população que sofre com os efeitos da imigração. Não fomos capazes de desenvolver um projeto que fizesse desnecessária a imigração. Fracassamos como esquerda e forças progressistas”, criticou.
Política antiquada
O senador afirmou que no País os partidos de esquerda submeteram intelectuais brasileiros a legitimarem uma política antiquada, velha e obsoleta.
“No Brasil tivemos um agravante. Os partidos de esquerda submeteram os filósofos a legitimarem uma esquerda antiquada, velha, obsoleta e conservadora. Esta aí o PT. Com ideias antiquadas e velhas. Nada haver com a realidade em mutação que vivemos hoje. Os poucos filósofos que entraram no PT ficaram submetidos ao culto da personalidade de Lula. Incapazes de fazerem uma análise, por exemplo, do por que da corrupção. Preferem negar”, afirmou.
Para Cristovam, o crescimento de Jair Bolsonaro (PSC-RJ) nas pesquisas de intenção de voto para a disputa presidencial de 2018 mostra ainda que a direita no País não está crescendo, mas que a esquerda está diminuindo e se “apequenando”.
“Não é a direita que cresce. É a esquerda que tá diminuindo e se apequenando por não conseguir oferecer alternativas para o que ocorre no mundo. Temos que nos preparar para esse mundo que chegou. O que vai barrar a direita é termos propostas melhores. Bolsonaro cresce porque não damos as respostas necessárias. O que ocorre aqui conosco também ocorre no restante do mundo”, analisou.