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Evandro Milet: Inovação: as competências dos líderes que pensam e agem diferente

Inovação é a prioridade estratégica para qualquer líder de empresa no mundo. Exemplos não faltam mostrando que as empresas de sucesso hoje são aquelas que inovam, principalmente as que inovam de forma disruptiva. Aí fica a questão: a capacidade de um líder para inovar é inata ou pode ser aprendida? O que os líderes de sucesso fazem para inovar?

No clássico “DNA do inovador”, Clayton Christensen, com Jeff Dyer e Hal Gregersen, mostram como os inovadores de sucesso agem, muitas vezes intuitivamente. Descobriram cinco principais competências compartilhadas, todas ou parte delas, por nomes de referência mundial como Steve Jobs, Jeff Bezos ou Larry Page.

Associar, questionar, observar, manter rede de relações(networking) e experimentar, compõem essas competências, que fazem com que eles pensem diferente e ajam diferente.

“Associar” ajuda os inovadores a descobrir novas direções fazendo ligações entre questões, problemas e ideias aparentemente sem relação entre si. Descobertas inovadoras ocorrem muitas vezes na interseção de disciplinas e campos diversos. O autor Frans Johanssen descreveu esse fenômeno como “o efeito Médici”, referindo-se à explosão criativa que ocorreu em Florença quando a família Médici reuniu criadores de um amplo leque de disciplina - escultores, cientistas, poetas, filósofos, pintores e arquitetos. Esse encontro de especialidades deu origem ao Renascimento, uma das mais inovadoras épocas da história.

As outras quatro competências acionam o pensamento associativo, porque permitem aos inovadores aumentar seu estoque de ideias formadoras das quais surgem ideias inovadoras.

“Questionar” é uma dessas competências. Inovadores são grandes questionadores e mostram paixão pelo ato de perguntar. O que, como, onde, porque, quando, e se, por que não, são expressões comuns na cabeça dos inovadores. Querem saber porque as coisas são assim e porque não de outra forma.

“Observar” é a competência para prestar atenção ao mundo em sua volta - incluindo clientes, produtos, serviços, tecnologias e empresas. Ficou famosa a visita de Steve Jobs ao laboratório PARC da Xerox onde ele viu o mouse, a interface gráfica, os ícones, as janelas que lhe inspiraram na revolução feita na aparência dos computadores para sempre. Henry Ford tirou a ideia da linha de montagem para o seu Ford T de uma indústria de processamento de carnes, onde a desmontagem dos animais era feita a partir da suspensão das carcaças em um transportador aéreo que as levava de trabalhador a trabalhador, com cada um fazendo determinado corte.

“Networking” significa manter uma rede, não de recursos ou oportunidades de emprego, mas de ideias. Muitos inovadores fazem um esforço consciente para conhecer pessoas com formações diferentes: que vêm de países, setores econômicos e funções empresariais distintas; que são de idades, gênero, etnias, históricos diversos. As conferências de ideias TED, onde se reúnem empreendedores, acadêmicos, políticos, aventureiros, cientistas, artistas e pensadores de todas as partes do mundo, que apresentam suas mais recentes ideias, paixões e projetos, servem bem a esse propósito.

Por outro lado, fica claro agora que a diversidade de gênero, etnia, idade e formação na composição de equipes, não é apenas uma questão de justiça social ou de desigualdade, mas fator fundamental para inovação nas empresas.

“Experimentar”, a última competência, mostra que os inovadores estão constantemente testando novas experiências e pilotando ideias novas. A maior parte deles não pensa que cometer erros seja motivo de vergonha e mostram a coragem para inovar.

Muitas empresas fracassam em inovação de ruptura porque a alta direção é dominada por pessoas que foram escolhidas por suas competências de execução e não por essas capacidades fundamentais para inovar.


Eurípedes Alcântara: O ‘reset’ é o novo digital

Reset é o novo digital. Palavra da língua inglesa, seu significado é restabelecer, recompor e, especialmente, reiniciar. Por reset, agora se pretende englobar num único substantivo o fenômeno de adoção rápida em massa pelas empresas dos princípios do ASG — Ambiente, Social e Governança. É um caminho sem volta. Em junho do ano passado, o World Economic Forum, WEF, de Davos, na Suíça, dedicou sua reunião anual a “The Great Reset”. Sem o mesmo poder de impacto e influência de edições anteriores, o WEF 2020 foi mais o reconhecimento de um fato do que seu impulsionamento pelas correntes do pensamento empresarial.

Em anos passados, discutia-se qual seria o grau de digitalização ideal para as empresas — ou, melhor, qual deveria ser o limite de poder dos departamentos de Tecnologia da Informação (TI). Aos poucos, foi ficando claro que a discussão estava enviesada, pois o ideal seria não ter departamentos de TI, mas toda a empresa deveria digitalizar-se na forma de atuar e pensar seu negócio. O reset queimou etapas, e observam-se por toda parte empresas se engajando nas políticas de ASG em todas as atividades da organização, numa velocidade ainda mais formidável do que aquela em que o digital se impôs.

Fabio Barbosa, executivo de grandes empresas, pioneiro do ASG no Brasil, define bem o momento: “A cada dia sai do mercado um consumidor, um investidor, um profissional que achava tudo isso uma bobagem, e entra um jovem que toma suas decisões de consumo, investimento e carreira com base nos princípios de ASG.”

Reset é o capitalismo como conhecemos, mas regido por uma série de regras novas, às quais é preciso obedecer para obter o lucro desejado. Sim, o lucro continua sendo o grande motor das empresas. O reset não é modismo. É um movimento de sobrevivência do capitalismo, parecido com o que, na Igreja Católica nos anos 1960, se chamou de aggiornamento no pontificado do Papa João XXIII. São atualizações a que instituições seculares precisam se submeter com alguma regularidade para manter seu poder de influência.

Com o reset, o capitalismo toma das mãos da esquerda uma de suas bandeiras mais poderosas das últimas décadas, o ambientalismo. De quebra, captura também as bandeiras da responsabilidade social e da governança, que dá força aos stakeholders em oposição ao tradicional monopólio do poder dos shareholders. Ou seja, a orientação das atividades empresariais passa a ser realizadas em harmonia com os interesses não apenas dos acionistas, mas com igual satisfação dos empregados, consumidores e de todas as demais pessoas de qualquer forma afetadas pelas empresas, suas fábricas e seus produtos.

O economista Eugene Fama, da Universidade de Chicago, ganhador do Prêmio Nobel em 2013, vinha sendo um dos estudiosos mais descrentes da viabilidade de um “grande reinício” das economias ocidentais, principalmente em função do aumento dos custos de operação. Num artigo publicado no final de outubro de 2020 (“Contract Costs, Stakeholder Capitalism, and ESG”), Fama reconhece a inevitabilidade de um reset geral das empresas, mesmo com impactos negativos em seus resultados financeiros. Fama atribui o poder de transformação às forças de mercado. “Minha conclusão é que as soluções de mercado devem continuar moldando as empresas (para que se encaixem) nesse novo modelo.”

Michael Lind, da Universidade do Texas, concorda com os efeitos positivos do A e do G, mas é cético quanto aos avanços do S na sigla ASG. Em seu livro “The New Class War: Saving Democracy from the Managerial Elite” (“A nova guerra de classes: salvando a democracia da elite gerencial”), ainda sem edição em português, Lind enxerga uma batalha política global entre “oligarcas populistas” e “salvadores da democracia”. O respeito ao meio ambiente e a governança arejada são de pouca consequência para o desfecho desse combate, acredita Lind. A meu ver, Lind está sendo pessimista. O reset terá seu sucesso avaliado justamente por conter a fúria dos insatisfeitos à esquerda e à direita.


José Serra: Batalha sem trégua contra a vacinação

O povo brasileiro está sendo privado do acesso livre às vacinas eficazes contra a covid-19

Existe amplo consenso na maioria dos países quanto ao diagnóstico de uma tríplice ameaça, política, econômica e sanitária, que aflige a estabilidade das democracias representativas. O Brasil não escapa a essa crise, que se alastra na maioria dos países das Américas. Tenho reiterado, como em artigo publicado em dezembro, que em nosso país a crise de legitimidade do sistema político precede a crise econômica, que, por sua vez, precede a crise sanitária e é por ela agravada.

Há consenso, também, em todos os países atingidos gravemente pela pandemia – com exceção dos que se omitem em combatê-la e frequentemente se empenham em combater os que não se omitem –, em que a economia não se recupera sem que o vírus da covid-19 seja posto sob estrito controle. Diversas políticas de mitigação da disseminação do vírus foram empregadas pelos diferentes países afetados.

Elas incluem, entre outras, a simples aposta na autodisciplina da população, o menor ou maior grau de restrição da circulação de pessoas e das atividades econômicas ou até o toque de recolher. Entretanto, a pandemia não dá sinais de regredir, nem sequer de arrefecer, portanto, não há receita feita a escolher.

Em nosso país, o Executivo criou deliberadamente mais uma crise, de cuja solução depende o desfecho de todas as outras: a crise da vacinação. Não há receitas 100% eficazes para o controle estrito da disseminação da doença, mas existe um número significativo de vacinas com alta eficácia cientificamente comprovada. Por conseguinte, os países poderão ser capazes de controlar a pandemia o suficiente para normalizar a atividade econômica se se empenharem em distribuir vacinas à população, com eficiência.

Não o Brasil. Vítima de uma guerra sem trégua de grupos entorpecidos pelo ópio do populismo de direita – com apoio explícito do Executivo –, o povo brasileiro está sendo privado do acesso livre e irrestrito às vacinas eficazes contra a covid-19. Ora, o cumprimento desse direito é a condição sine qua non de todos os outros consignados na Constituição: o direito à vida.

Passo a passo, essa guerra sem trégua começou combatendo todas as iniciativas dos Estados e municípios e das corporações médicas, que demandavam medidas eficazes de mitigação. Tão logo o Ministério da Saúde alertou sobre os riscos de disseminação da doença, a reação do Executivo foi minimizar e ridicularizar o vírus e sua disseminação, travando batalhas diárias contra a razão, os fatos e a ciência. Tendo comandado o Ministério da Saúde (o que muito me orgulha, não pelas honrarias que recebi, mas pela qualificação de seu corpo técnico, seu empenho e sua dedicação ao povo brasileiro), esse aviltamento do nosso maior instrumento de proteção da saúde causou-me indignação, como à maioria da Nação.

Quando o Ministério da Saúde anunciou a adoção de medidas protetivas das pessoas e restrições de atividades econômicas, e assim que foram previstas medidas de distribuição e estocagem de equipamentos de pronto-atendimento e de cuidados intensivos, de instrumentos de detecção da infecção etc., o Executivo federal criou um cenário de dupla personalidade. De um lado, Dr. Jekyll tentava, em vão, salvar vidas, enquanto, do outro, Mr. Hyde demitia, em menos de um mês, dois ministros da Saúde porque resistiram a permitir que o chefe do Executivo “receitasse” remédios inócuos no tratamento da doença, que apresentam efeitos colaterais graves.

A batalha decisiva pela sobrevivência da sociedade, da economia e do modo de vida brasileiro, tal como os conhecemos, está sendo travada em torno da vacinação. Isso porque existe hoje um consenso involuntário sobre o papel central da vacinação na cadeia causal que torna possível o controle da pandemia, que, por sua vez, torna possível a retomada da atividade econômica, com impactos positivos na mitigação da crise política.

Os que buscam a normalização da economia e o fim do radicalismo percebem que não há saída sem a vacinação em massa da população. Para os que suspeitam, ainda que inconscientemente, que sua sobrevivência política depende de manter um ambiente radicalizado, a economia sem rumo e o povo acuado pelo vírus, é necessário impedir uma vacinação em massa bem-sucedida.

De outra maneira, como entender a proporção de mentiras sobre a vacina, disseminadas sistematicamente, além dos obstáculos opostos à compra de vacinas já disponíveis no Brasil? Como explicar as dificuldades burocráticas para os testes de segurança e eficácia de vacinas no Brasil e a recusa a negociar a compra de vacinas já em pleno uso nas principais potências mundiais? Como explicar que uma vacina não possa ser aplicada sem ser testada no Brasil e outra não obtenha licença para teste no País?

Como explicar que um alto oficial da Intendência do Exército improvise tudo o que lhe toca, não planeje a aquisição de vacinas, não tire proveito do Plano Nacional de Imunização, criado há quase 50 anos, e tampouco seja capaz de pôr algo no lugar? A não ser que esteja em modo de guerra sem trégua... contra a vacinação.

*Senador (PSDB-SP)


Ascânio Seleme: Nova sugestão contra o vírus

O melhor caminho é a imprensa parar de cobrir a atividade dos três zeros de Bolsonaro

No dia 7 de maio do ano passado, uma quinta-feira como hoje, publiquei nesta página um artigo dando três sugestões para combater o bolsovírus, praga mais infectante e perigosa que o corona. Uma delas era parar de cobrir os faniquitos do presidente na porta do Palácio da Alvorada. Ali, diante daquele grupelho de apoiadores cegos que se reúnem para babar seus ovos, Bolsonaro dá vazão aos seus instintos, com mentiras aos quilos, grosserias aos montes e, sobretudo, ataques à imprensa. Claro que não foi para atender à minha recomendação, mas muitos veículos deixaram de cobrir aquela triste rotina, e apenas os mais mansos e amigos seguem dando microfone para as asneiras matinais ou vespertinas de Bolsonaro.

Esta semana, a ONG Repórteres Sem Fronteiras divulgou o número de ataques que jornalistas brasileiros sofreram em 2020, e não deu outra. Os Bolsonaros lideram com folga o ranking nacional. Os dados são estarrecedores para um país que se quer democrático. Das 580 ofensas contra jornalistas contabilizadas pela ONG, 85% (469) foram proferidas pelo presidente da República e seus três zeros. O mais ignóbil é o golpista (um cabo e um soldado bastam para fechar o Congresso) Eduardo, com 208 impropérios. O mais leve é o Flávio das rachadinhas, autor de 69 agressões. De Carlos, chefe do gabinete do ódio, partiram 89 ataques.

Da boca de Jair, saíram 103 ofensas a jornalistas. Um absurdo se analisado de qualquer ponto de vista. Os ataques dessa gangue se devem ao fato de seus membros não suportarem críticas. Julgam que podem fazer ou dizer o que bem entenderem e que ninguém tem o direito de lhes contestar. Eles carregam em seu organismo o germe do autoritarismo e da intolerância, por isso a avalanche de barbaridades que pronunciam sistematicamente contra jornais e jornalistas, na média de 1,28 a cada dia.

Todo mundo sabe que atacar jornalistas é igual a combater o mensageiro. O problema não é quem traz a notícia, mas quem a produz. No Brasil, quem fabrica as notícias negativas que incomodam a família presidencial é o próprio chefe do clã ou o seu governo. Não foram jornalistas que encaminharam à Câmara 62 pedidos de impeachment do presidente. Em média, o imóvel Rodrigo Maia recebeu um pedido de afastamento de Bolsonaro a cada 12 dias. Trata-se de um recorde que merecia entrar para o Guinness. Esta semana, 380 líderes religiosos cumpriram o ritual. Eles querem o afastamento do presidente por suas ações e omissões durante a pandemia.

Enquanto isso, o capitão e seus filhos agridem jornalistas com suas costumeiras baixarias. O que se deve fazer diante desse descalabro? O melhor caminho é a imprensa parar de cobrir a atividade dos três zeros. Eles importam pouco. Claro que são mais do que filhos do homem, são parlamentares. Mas conte nos dedos quantos deputados e senadores merecem a atenção dos jornalistas. Alguém já ouviu falar do deputado Júnior Marreca Filho (Patriotas-MA) ou do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR)? Pois é. Sugiro dar aos zerinhos a mesma atenção dedicada a Mecias (com c mesmo) e a Marreca.

A história sempre foi boa conselheira. Vejam o espaço que a imprensa deu aos filhos de presidentes no passado, fora os escândalos que são de cobertura obrigatória. Os filhos de Sarney, Roseana e Zequinha, eram parlamentares e só foram notícia por esporádicas ações políticas, todas legais, ou por denúncias. Não se metiam no governo do pai, embora se projetassem com seu sobrenome. Os filhos de Fernando Henrique também não eram protagonistas e não tinham mandatos eletivos. Os de Lula, da mesma forma, não davam pitaco e só apareceram em escândalos. A única filha de Dilma sempre se manteve discretamente afastada. A filha de Temer só virou notícia por causa de uma denúncia, e Michelzinho era um menino quando o pai governou.

Impossível impedir que os bozinhos continuem atacando jornalistas nas suas redes. Mas seria inteligente se os jornalistas de verdade não lhes dessem eco.


Maria Hermínia Tavares: Combate sem comando na luta contra o vírus

A dimensão da catástrofe não deve impedir que se veja o que tem sido feito apesar do presidente

Na luta contra a Covid-19, Bolsonaro tomou o partido de costume —da irresponsabilidade, da ignorância e da morte. Consagrando a incompetência, disseminando a mentira, estimulando o egoísmo e nutrindo a discórdia, ele só fez agigantar a tragédia nacional. Beirando os 220 mil óbitos, o país tem o perverso privilégio de ser o vice-campeão mundial na categoria.

Mas a dimensão da catástrofe não deve impedir que se veja o que tem sido feito, à revelia ou a contragosto do presidente, para evitar que a pandemia imponha à nação danos talvez irreparáveis. Graças ao Congresso, um robusto pacote emergencial protegeu os rendimentos dos mais pobres e a capacidade das empresas de produzir e empregar. Segundo a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), o socorro foi o maior e mais amplo da região, contendo o avanço da pobreza e da desigualdade de renda.

Governadores e prefeitos fizeram o possível para que o SUS pudesse dar conta, com menos ou mais êxito, da imensa tarefa de atender os cerca de 150 milhões de brasileiros que dele dependem. O horror de Manaus não pode asfixiar o fato de o Brasil ser o 12º país em mortes por 100 mil habitantes —em situação melhor que México, Colômbia, Argentina e Peru, para não falar de Inglaterra, Itália, EUA, Espanha e França, segundo o Corona Virus Resource Center, da Universidade Johns Hopkins (EUA).

Finalmente, graças ao patrimônio científico do Instituto Butantan e da Fiocruz foi possível fechar acordos de cooperação com empresas estrangeiras, dando a partida ao inevitavelmente longo processo de imunização dos brasileiros. Caso único na América Latina, tais acordos permitirão, a prazo curto, o domínio da técnica de feitura de vacinas contra a Covid-19 --respiro para o presente e aprendizado para o futuro.

Estivesse a cargo de um titular minimamente alfabetizado na matéria, o Ministério da Saúde teria feito a sua parte, complementando o esforço daqueles institutos com a importação de vacinas prontas. A situação seria outra, e a angústia, bem menor.

Governos subnacionais, no espaço de autonomia que a federação lhes proporciona, bem como o sistema público de saúde e a capacidade científica construídos ao longo de décadas, vêm se demonstrando aptos a conter e, em parte, a circunscrever a lava destrutiva que jorra do centro do poder. Ainda assim, não podem substituir de todo uma liderança nacional que, além de ser dotada de alguma racionalidade, infunda ânimo, robusteça a confiança nas instituições, estimule a solidariedade e restaure o sentimento de união dos cidadãos.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Maria Cristina Fernandes: A armadilha da vacinação por castas

Ao promoverem a desigualdade na vacinação, empresários adubam o populismo bolsonarista de 2022

O presidente Jair Bolsonaro parecia o único, nos dois lados da tela, a saber onde aquela conversa ia parar. Ele havia sido convidado para pontificar numa conferência do Crédit Suisse e anunciava ali a permissão do governo para a importação, por empresários, de vacina contra a covid-19 quando foi aparteado pelo ministro da Economia. “Para cada funcionário vacinado a empresa tem que entregar uma vacina para o SUS. Não é fura-fila. É uma volta segura ao trabalho. E quem está desempregado, como fica? Vai pegar as doses que forem para o SUS. É evidente que isso é muito bom”, explicou Paulo Guedes.

Participavam do encontro, por videoconferência, além de Bolsonaro e Guedes, o chanceler Ernesto Araújo e o presidente do Banco Central. Roberto Campos Neto se mantinha fora da tela, mas foi a ele que Guedes dirigiu suas últimas palavras: “É o melhor presidente de Banco Central do mundo. Deram uma flauta pra ele e ele tocou a flauta direitinho”. Nessa hora, Bolsonaro olhou para Campos Neto e começou a rir alto: “Robertão e essa flauta aí?”. Paulo Guedes, tentando evitar o duplo sentido da reação de mau gosto do presidente, atalhou: “Flauta no sentido poético”.

O constrangimento provocado por Bolsonaro naquela plateia é apenas o aperitivo daqueles que empresários e investidores enfrentarão com a armadilha da ingerência privada na vacinação. É um movimento que cai como uma luva para os propósitos presidenciais. A importação da vacina, seja pelas dezenas de empresários reunidos pela Coalizão Indústria, seja por clínicas privadas, aprofunda a divisão do país em castas. E não apenas porque um dos fornecedores seja uma indústria indiana. Alargar as desigualdades com a vacinação é prato cheio para o discurso populista que Bolsonaro quer calibrar para 2022.

Não é outra a razão pela qual Bolsonaro diz que não se vacinará. Estará ao lado daqueles que não o farão por medo e dos milhões de desempregados e precarizados de toda ordem que, no melhor das hipóteses, vão atravessar o ano de 2021 sem a picada. Ao contrário do que diz Paulo Guedes, ainda que o SUS receba metade do lote a ser importado pelos empresários, a vacinação obedece a um plano nacional que, acertadamente, remete a quase totalidade da população economicamente ativa para o fim da fila, ou seja para o ano da sucessão presidencial.

O presidente não precisará apenas da vacinação paralela para alimentar seu discurso. Terá ainda que estender o auxílio emergencial a perder de vista sem os cortes de gastos públicos propagandeados, no evento, pelo ministro da Economia. É preciso ter muita fé na cloroquina para acreditar que um governo comandado por um presidente como Bolsonaro, em campanha pela reeleição, e um Congresso nas mãos do Centrão enfrentarão os vícios do gasto público. Um ambiente de expectativas deterioradas, privilégios e castas intocadas é o terreno fértil para a reedição do nós x eles. A fila paralela da vacina é o adubo desta colheita.

O gesto dos empresários agride a mobilização de seus pares que, ao longo de 2020, se juntaram para doar ventiladores, equipamentos de proteção individual e cestas básicas, alugar aviões para transportá-los e reformar hospitais. Nada disso foi feito em detrimento do SUS, muito pelo contrário. Na vacinação, porém, a régua e o compasso são do Sistema Único de Saúde. E não lhe faltam os meios. No limite, um ministro mais competente. Se a intenção é ajudar, por que não se compram congeladores para a vacina da Pfizer, rejeitada pelo governo brasileiro sob a alegação de que falta estrutura de armazenamento adequada? A iniciativa privada, como em toda campanha de vacinação, só entra quando os estoques do governo estão garantidos. Quando se diz que Bolsonaro piora o Brasil é porque, certamente, não se trata da obra de um só homem.

Tome-se, por exemplo, o que acontece nos Estados Unidos. Seria de se esperar que, num país que não tem um sistema público de saúde como o brasileiro, a compra de vacinas pelas empresas estivesse acelerada. Só que não. Grandes conglomerados, inquietos com a lentidão do ritmo de vacinação, ofereceram suporte aos esforços dos governos federal e estaduais sem pretender substituí-los. A Amazon e a Honeywell ofereceram tecnologia para melhorar a administração dos cadastros, o transporte das vacinas e as filas, a Starbucks disponibilizou suas unidades para dar maior capilaridade à vacinação, o Bank of America chegou a oferecer um estádio de futebol para o mesmo fim e a Sodexho mobilizou seus gerentes para identificar e reverter a indisposição de seus funcionários ao imunizante. Tudo isso no suporte e não em concorrência com o setor público.

É bem verdade que esse esforço tem sido facilitado pela troca de comando na Casa Branca. E aqui, se aventuras como esta fila paralela prosseguirem, não vai ter troca nenhuma. Ou melhor, poderá tomar posse um Bolsonaro II a dizer que sua autocracia foi respaldada pelas urnas. A radicalização do discurso presidencial com vistas a 2022 ainda pode vitimar o herói da história, o SUS. No mesmo evento em que Bolsonaro e Guedes pontificaram com o apoio à fila paralela, o ministro disse que aceitaria a extensão do auxílio emergencial do qual o chefe tanto precisa, desde que possa conter gastos com educação e saúde. E não é congelar no patamar do Orçamento de Guerra, mas naquele vigente antes da pandemia para enfrentar uma situação de demanda reprimida de outras doenças no SUS além das sequelas decorrentes da Covid-19.

Se o SUS é um tema com o qual esta mobilização empresarial tem pouca familiaridade, a Lei das SA talvez não o seja. Lá está que o acionista não pode ter privilégio numa empresa, como creem aqueles que querem se valer da participação da Blackrock na AstraZeneca para adquirir uma parte do lote de vacinas ao qual a gestora, supostamente, teria direito. O princípio é copiado da legislação americana. Na carta anual aos acionistas, que acaba de divulgar, Larry Fink, CEO da Blackrock, radicalizou seu compromisso com a agenda ESG (ambiental, social e de governança), por um capitalismo “mais inclusivo”. Das duas uma: trata-se de jogada marketing de um gestor que tem sob sua responsabilidade U$ 9 trilhões em ativos ou o Brasil está, de novo, com ideias fora do lugar.


O Globo: Pandemia do coronavírus deve mudar a face do capitalismo

Empresas serão cobradas para terem atividades mais voltadas à sociedade, após ajuda oficial de trilhões de dólares recebidas dos governos. Presença do Estado será maior do que nos últimos anos

Vivian Oswald, O Globo

LONDRES - O confinamento inédito de metade da população mundial e o consequente pandemônio que se abateu sobre as economias globais devem mudar a face do capitalismo. A relação entre empresas, sociedade e governos mudou. Dificilmente voltará a ser o que era, na avaliação de especialistas. Fala-se até em um novo contrato social.

Grandes corporações e bancos sobretudo, socorridos com trilhões de dólares na crise financeira global de 2008, serão cobrados. Os mercados terão nova missão. Diante dos esforços para reconstruir as economias — só o Reino Unido já liberou 418 bilhões de libras (mais de R$ 2,5 trilhões) em pacotes de estímulos para minimizar os efeitos da pandemia do novo coronavírus —, a fatura começa a ser apresentada. O que se espera é um capitalismo mais benevolente.

— Assim como os contribuintes ajudaram a salvar os bancos em 2008, o governo agora quer trabalhar com os bancos para retribuir o favor e apoiar empresas e pessoas, as que mais precisam no Reino Unido — disse o ministro de Negócios, Energia e Estratégia Industrial, Alok Sharma.

Impostos mais altos
A declaração foi feita nos boletins diários do governo conservador britânico à televisão semana passada. O mesmo partido que, há mais de dez anos no poder, empunhava a bandeira da austeridade fiscal até pouco tempo atrás.

— Será totalmente inaceitável se os bancos rejeitarem empréstimos para as boas empresas — completou Sharma.

A presença do Estado deve ser maior daqui por diante como catalisador da recuperação. Sobretudo depois dos pacotes multibilionários de estímulos. A ajuda é para manter a economia em “hibernação”, diz Abhimay Muthoo, professor de economia e reitor da Universidade de Warwick:

— É preciso saber por quanto tempo os países conseguem manter a economia hibernando. Isso vai determinar o ritmo da retomada. O certo é que haverá nova ordem internacional. Vamos precisar de uma sociedade mais generosa, o que se traduz em redistribuição de renda, impostos mais altos, serviços públicos eficientes e Estados com presença maior do que nos últimos anos.

Espera-se uma recessão global. Itália e Espanha, as nações com o maior número de casos da Europa, devem perder 15% do PIB no primeiro trimestre, segundo a Oxford Economics.

— Governos poderão deixar claro às empresas que precisarem de apoio que ele dependerá de certos critérios. Outro ponto que me parece óbvio é que os dias de uso exagerado de recompra de ações para a maximização excessiva de lucros, possivelmente às custas de outros fins, podem ter acabado — disse Jim O’Neill, presidente da Chatham House, um dos centros de pesquisa mais prestigiados da Europa.

Recompra de ações
Ex-economista-chefe do banco Goldman Sachs e criador, em 2001, do acrônimo Brics — grupo de países em desenvolvimento que seriam as locomotivas da economia global: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul —, O’Neill trabalhou no mercado financeiro por mais de duas décadas. Mas há alguns anos defende um novo propósito para os lucros das empresas.

Segundo ele, em 2018, o total de operações de recompra de ações pelas dez maiores companhias americanas ficou próximo de US$ 1 trilhão. E os maiores compradores eram elas próprias, que teriam se tornado, nas palavras de O’Neill, meras administradoras de balanços, obcecadas por desempenho.

Em 2018, sugeriu taxar mais este tipo de operações, e dar crédito tributário para os gastos das empresas com investimentos. No limite, até mesmo tornar ilegais as operações de recompra em companhias com produtividade baixa. O tema estaria sendo estudado pelo governo britânico.

No ano passado, o Business Roundtable, que reúne presidentes de grandes empresas americanas, já falava no fim da cultura dos “acionistas primeiro”. Para a Social Market Foundation, as companhias têm a oportunidade de criar uma nova relação com a sociedade.

Novo contrato social
O diretor da entidade, James Kirkup, afirma que as empresas “deveriam concordar com um novo contrato social baseado no cumprimento das obrigações tributárias, no tratamento aos trabalhadores e no apoio às comunidades em troca da ajuda recebida durante a crise do coronavírus.

Uma das conclusões de um relatório coordenado por O’Neill para o governo britânico sobre a crescente resistência aos antibióticos era a de que a falta de investimentos para resolver o problema custará ao planeta dez milhões de vidas por ano a partir de 2050 em razão de infecções (e da falta de antibióticos). E causará prejuízo de US$ 100 trilhões à economia global.

O documento defende 29 intervenções que custariam US$ 42 bilhões para resolver a questão. Segundo O'Neill, o valor é menos do que o que as três maiores companhias farmacêuticas destinaram à recompra de suas próprias ações ao longo de uma década:

— Não é nada comparado aos custos de não resolver o problema ou ao colapso causado pela Covid-19 .


Míriam Leitão: A diversidade nas empresas

Jovem executiva negra conta a sua história, explica como as empresas devem ter diversidade e estimula outros jovens a sonhar alto

A jovem gaúcha de Pelotas Lisiane Lemos entrou na sala do executivo da Microsoft, em São Paulo, no meio do processo de seleção. Ela acalentava há tempos o sonho de trabalhar numa multinacional, e na área de vendas, apesar de ter feito Direito. Aos 23 anos, tinha acabado de chegar de Moçambique onde fora em busca de suas origens. No Rio Grande do Sul, que recebeu várias ondas migratórias, os brancos sabem de onde vieram seus antepassados, mas os negros ouvem uma história triste sobre Pelotas ter sido “o inferno dos escravos”. Ao olhar para quem a entrevistaria, ela sentiu um alívio.

— Eu fui entrevistada por um executivo negro, e aquilo foi uma grande virada na minha vida. Eu vi que queria estar naquele lugar. O fato de ele estar sentado na minha frente... Talvez quem nos assista não tenha noção da importância da representatividade. Simplesmente ter um executivo negro na frente me mostrava: eu posso — contou.

Lisiane acabou assumindo um cargo de chefia na Microsoft e hoje, aos 30 anos, é gerente de novos negócios da Google. Nesse meio tempo recebeu duas consagrações internacionais. Em 2017 foi apontada pela revista “Forbes” como uma das pessoas de menos de 30 anos mais influentes do Brasil e em 2018 a ONU a escolheu como uma das pessoas negras mais influentes do mundo, na área de negócios, com menos de 40 anos.

Eu a entrevistei na Globonews sobre diversidade no mundo corporativo. Ela é um caso de sucesso, mas raro.

— O topo é muito solitário. Você chegar onde ninguém chegou estatisticamente. O Instituto Ethos em 2016 mostrou numa pesquisa que nas 500 maiores empresas do Brasil apenas 4,6% dos cargos de liderança são ocupados por pessoas negras. E quando o recorte é mulheres negras é 0,5%. Então é meio que um lugar impossível — disse Lisiane.

As políticas de ações afirmativas ajudaram no esforço de redução do fosso social no Brasil, mas é muito grande a distância, são séculos de construção da desigualdade. Hoje há muitas empresas preocupadas em ter mais diversidade no seu quadro de funcionários, mas nem sabem por onde começar. Lisiane acha que no mundo corporativo funcionam as conexões. Por isso ajudou a fundar a Rede de Profissionais Negros, e depois foi para o Mulheres do Brasil, da empresária Luiza Trajano, para ajudar a montar o pilar da igualdade racial. Ela acha que as empresas deveriam fazer o “recrutamento ativo” e pensar também na carreira das pessoas negras:

— É importante pensar num programa de estágio? Sim. Mas nesse caso é mais fácil. Mas quem é que está no topo? Quem você lembra em algum conselho de uma grande empresa que seja negro? Ou uma mulher negra?
Lisiane recomenda que as empresas comecem a ter diversidade nas suas peças de publicidade, para que as pessoas negras se vejam:

— O segundo ponto é ser intencional, ter métodos e políticas de ação afirmativa nos programas de contratação. Depois, é ter um serviço de mentoria. Eu sou de uma família de professores, como saber como me vestir e me preparar para uma reunião de executivos estrangeiros, por exemplo? Há muito conhecimento a ser compartilhado.

Lisiane fala com objetividade sobre os códigos do mundo corporativo. Como gerente de novos negócios da Google ela tem trabalhado com marketing digital. Diz que nessa área trabalha com tudo que mais gosta, de uso de dados à inteligência artificial. Pode ajudar tanto o pequeno empreendedor quanto a grande empresa.

Ao falar da questão racial, ela se empolga. Na infância, sofreu preconceito. Mais tarde, entendeu que era herdeira de uma história difícil. Os escravizados de outras regiões eram enviados para Pelotas como punição: na charqueada, enfrentavam o frio, o castigo e o sal. Em exame de DNA descobriu que é 40% de povo originário de Angola. Quer passar um tempo lá este ano.

Aos jovens negros que sonham em entrar no mundo corporativo e fazer carreira ela deixou um recado emocionado:

— O grande recado é ‘você pode’. Por mais que a sociedade diga que não é o seu lugar, que as estatísticas estejam contra, você é protagonista da sua história e existem pessoas que podem ser seus aliados. Vai ser difícil, o racismo existe, e você muitas vezes vai pensar em desistir, mas vai valer a pena e você vai abrir portas para outras pessoas chegarem onde elas nunca imaginaram.


Folha de S. Paulo: Empresas fecham 1,9 milhão de vagas com carteira para jovens

Além do efeito da crise, grupo está mais inclinado a aceitar regimes flexíveis

Flávia Lima, da Folha de S. Paulo

Uma análise mais aprofundada dos dados sobre o mercado de trabalho desde 2012 mostra que a oferta de vagas com carteira assinada caiu dramaticamente para um segmento bem específico: os mais jovens.

O número de vagas formais no setor privado entre jovens de até 24 anos recuou mais de 25% de 2012 a 2018. A redução de postos com carteira assinada no período foi de 1,9 milhão apenas nesse segmento.

O trabalhador mais jovem foi, de longe, o mais afetado pela crise, mostra o levantamento feito por Cosmo Donato, economista da LCA Consultores, com base nos microdados da Pnad, a pesquisa por amostra de domicílios do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

O saldo de empregos com carteira assinada no grupo de pessoas com idade entre 25 e 44 anos também foi negativo, mas numa intensidade bem inferior —queda de 481,3 mil.

Acima dos 45 anos, o saldo de vagas formais foi positivo em quase 1 milhão.

Sem os jovens, o saldo de vagas no setor privado com carteira assinada —considerado o empregado por excelência— teria sido positivo no período em mais de 500 mil postos.

No geral, com pouca experiência e qualificação, os jovens formam o grupo que, historicamente, mais sofre em situações de instabilidade no mercado de trabalho.

Após uma das maiores recessões da história, a taxa de desocupação entre pessoas de até 24 anos fechou 2018 em 27,2% —bem mais do que o dobro da média registrada pelo mercado em geral, de 11,6%.

Especialistas identificam, porém, fenômeno ainda inicial que também pode explicar a queda na contratação formal no segmento: entre os jovens, em especial os mais escolarizados, haveria uma maior disposição a aceitar regimes de contratação mais flexíveis.

Seria uma forma de ganhar um pouco mais e, ao mesmo tempo, encontrar vagas com um perfil mais próximo às pretensões desse grupo.

Pesquisa do Datafolha de setembro do ano passado apontou que metade dos eleitores brasileiros até 24 anos prefere ser autônomo, com salários mais altos e pagando menos impostos, ainda que sem benefícios trabalhistas, a ter carteira assinada.

Na faixa seguinte, entre 25 e 34 anos, a opção pela autonomia foi ainda maior (55%). A preferência, no entanto, caía para 47% entre 45 e 59 anos e 46% acima de 60 anos.

Ramon Barreto, 24, é um desses jovens. Ele atua na área de marketing de eventos esportivos e passa pela primeira experiência como PJ (pessoa jurídica que presta serviços a uma empresa via contrato).

Barreto conta que participou de outros processos seletivos até tomar a decisão de aceitar a vaga sem carteira assinada e sentiu insegurança, pois não conhecia os trâmites para abertura de empresa e emissão de notas fiscais.

"Mas, colocando tudo na balança e pensando no que era bom para mim profissionalmente, meio que compensava não ter os benefícios da CLT."

José Roberto Afonso, pesquisador do Ibre/FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), diz que a preferência efetiva do jovem pelo trabalho autônomo é uma hipótese que só pode ser testada em períodos de normalidade --algo descolado do que viveram os trabalhadores nos últimos anos.

Como mostram os números, muitos jovens estão, na verdade, desempregados. Outros podem ter sido levados pela situação de crise a aceitar vaga sem carteira.

Ainda assim, Afonso diz que, para além da pejotização —fenômeno mais antigo e desencadeado pela alta tributação no mercado de trabalho—, já é possível identificar um processo novo e mais global, em que o trabalho é exercido sem contrato, sem local definido e sem horário fixo, em um contexto no qual o corte por idade é fundamental.

"Há um trabalhador jovem com menor preferência por ser empregado CLT, pois pode optar por mais flexibilidade, em linha com as mudanças tecnológicas", diz Juliana Damasceno, também economista do Ibre e coautora de textos sobre o tema com Afonso.

Após alguns meses trabalhando como PJ, Barreto diz que atuar como pessoa jurídica traz flexibilidade para todos os envolvidos.

"Eu tenho um horário acertado, mas, se eu consigo entregar as demandas, não existe a rigidez de ter que bater ponto. Isso facilita para mim e para a empresa, que não tem um funcionário cumprindo horário por tabela e pode contar com o comprometimento do profissional para as entregas."

Responsável pela pesquisa dos dados, Donato, da LCA, afirma que ainda é cedo para entender se a retomada do emprego decorrente da recuperação econômica levará os mais jovens a serem contratados novamente no regime CLT ou se as mudanças ocorridas na recessão têm caráter mais permanente.

"Ainda não dá para entender se os arranjos informais estabelecidos pelos mais jovens e seus empregadores no mercado de trabalho vieram para ficar", diz Donato.

Bruno Ottoni, pesquisador da consultoria IDados, concorda. "Questões mais estruturais são mais difíceis de discutir. É cedo para falar de automação em um país como o Brasil", afirma ele.

Após quatro anos de recessão e crise, não há, até agora, sinal de recuperação da formalidade, afirma João Saboya, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e especialista em mercado de trabalho.

"E, enquanto não houver crescimento econômico mais forte, não vejo sinal de recuperação da carteira assinada entre os mais jovens", diz ele.

Do alto de seus 24 anos, Barreto afirma que, quando avalia a dinâmica do mercado de trabalho e as opções que têm sobre a mesa, acredita que existem chances de que volte a ter a carteira assinada. Mas a tendência mais forte, diz ele, é a flexibilização.


Claudia Safatle: É hora de decidir o destino de 135 estatais

Há empresas para privatizar, liquidar ou incorporar

Há um esforço real para reduzir o número de empresas estatais federais e para melhorar seus resultados que vai um pouco além das privatizações. Em 2016, a Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais (Sest) contabilizava 155 empresas públicas federais. Hoje são 135.

As 20 companhias que desapareceram da lista foram privatizadas, liquidadas ou incorporadas. No ano passado houve a liquidação de duas empresas, a Companhia Docas do Maranhão (Codomar) e a Companhia de Armazéns de Minas Gerais (Casemg). Outras oito foram vendidas, a exemplo da Petroquímica Suape e de empresas de distribuição e transmissão de energia. A Companhia de Pesquisa de Energia Elétrica (Copel) foi incorporada pelo Grupo Eletrobras.

Ciente de que não dá para se desfazer de todas as empresas, há, também, uma determinação do governo de melhorar os resultados das companhias públicas federais. Até setembro do ano passado, último dado oficial, o resultado líquido era de quase R$ 52 bilhões positivos, uma virada importante se comparada com o resultado negativo de R$ 32 bilhões do início de 2016.

O endividamento também caiu no mesmo período. Era de R$ 544 bilhões e teve uma redução de 26%, para R$ 401 bilhões, basicamente por causa da Petrobras e da Eletrobras.

O patrimônio líquido aumentou de R$ 500 bilhões para R$ 582 bilhões entre 2016 e 2017. Há, porém, 22 empresas com patrimônio líquido negativo, que cresceu de R$ 27,8 bilhões para R$ 46,47 bilhões em igual período. Ainda não há dados oficiais para o ano passado.

O orçamento de investimentos, que chegou a R$ 123 bilhões em 2013, caiu para R$ 76 bilhões em 2016 e aumentou para R$ 115,8 bilhões em 2018. Desse total, metade foi executada até setembro.

No início de 2018 o quadro geral da Sest mostrava a existência de 47 empresas sob controle direto da União - sendo que destas, 18 são dependentes - e 97 sob controle indireto. Os últimos dados do Ministério da Economia indicam que agora são 89 companhias sob controle indireto e 46 diretamente controladas pela União.

As dependentes de recursos públicos continuam as mesmas 18 empresas e elas foram as responsáveis pelo aumento do quadro de pessoal, que passou de 58.533 funcionários em 2014, até então número recorde, para 78.420, um acréscimo de quase 20 mil cargos. Parte relevante desse aumento refere-se à absorção de hospitais universitários pela Ebserh, empresa pública prestadora de serviços hospitalares.

No geral houve redução de cerca de 51 mil empregos se consideradas todas as empresas federais em comparação com os dados de 2014, quando o número de empregados chegou a quase 555 mil funcionários. Na sua grande maioria, o que houve foi adesão aos Programas de Demissão Voluntária (PDV).

Apesar da redução do numero de empresas ou de melhor gestão nos casos em que já se sabe, de antemão, que não há decisão política para vender nem para extinguir, no entanto, o Estado brasileiro ainda é muito grande. São 40 empresas de energia, entre a holding Eletrobras e suas subsidiárias. Na área de petróleo e gás são 20 empresas, além de 18 no setor financeiro e 14 companhias de comércio e serviços, dentre várias outras nas áreas portuária, indústria de transformação, seguros etc.

Gasta-se muito com essas empresas. As 18 estatais dependentes da União tiveram dotação orçamentária de R$ 20,9 bilhões no ano passado, embora tenham executado apenas R$ 9,34 bilhões até o terceiro trimestre do ano. Esses são recursos para financiar as despesas correntes e de capital dessas companhias, sendo que cerca de 67% são gastos com folha de salários.

As não dependentes também recebem dotações, embora bem menores - somaram R$ 3,46 bilhões em 2018, sendo que R$ 2,58 bilhões foram executados até setembro. A Emgepron (empresa gerencial de projetos navais), a Infraero e a Telebras foram as três companhias não dependentes que mais aporte tiveram.

Embora o Tesouro Nacional tenha repassado ao ministro da Economia, Paulo Guedes, uma estimativa de receita de R$ 800 bilhões caso todas as empresas federais fossem privatizadas, esta é uma cifra meramente hipotética.

É possível uma aceleração do processo de privatização ou extinção, segundo técnicos oficiais. Há projetos maduros para colocar em execução.

O; Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) tinha suas verbas constantemente contingenciadas pelos governos. Em 2015, porém, decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu que o orçamento do fundo fosse objeto de contingenciamento para cumprir as metas fiscais. Afinal, há uma crise carcerária permanente, estrutural, no país que precisa ser enfrentada com políticas públicas e estas demandam recursos.

Em 2016 o governo liberou R$ 1,2 bilhão para os Estados e o Distrito Federal investirem no sistema penitenciário. Até hoje somente 24% desses recursos foram efetivamente gastos, segundo informações que foram repassadas ao gabinete do ministro da Justiça, Sérgio Moro. Esse é mais um caso do problema crônico de dificuldade de execução que empoça o dinheiro público. Em 2018 o empoçamento, até novembro, era de R$ 12,2 bilhões.

Do total de recursos que cada Estado recebe, o governo tem que aplicar 30% em obras de construção, ampliação, reforma ou conclusão de unidades prisionais, cuja finalidade é o aumento de vagas. A parcela restante (70%) é de livre aplicação.
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Quando Michel Temer deixou a vice-presidência para assumir o cargo de presidente da República, com o impeachment de Dilma Rousseff em agosto de 2016, a estrutura da vice-presidência foi extinta. Não há, no organograma do Poder Executivo, uma escala funcional definida para o vice-presidente Hamilton Mourão preencher com seus assessores. Enquanto não recria os cargos e salários da vice-presidência, os assessores de Mourão trabalham com crachás de visitantes.


Cristiano Romero: Uma oportunidade para o Estado encolher

Uma das contrapartidas dos Estados na renegociação de suas dívidas com a União será a privatização de empresas estatais. O governo do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, concordou em privatizar a Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae). Goiás, por sua vez, aceitou vender a Celg, a distribuidora de energia do Estado.

O processo de venda das estatais estaduais será conduzido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), uma exigência do governo federal. O banco, como se sabe, tem expertise no assunto, tendo sido responsável pelas privatizações realizadas nos governos Collor (1990-1992), Itamar Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).

“O BNDES já está trabalhando intensamente nisso [na privatização da Cedae]”, informou ao titular desta coluna o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. “Os governadores concordaram que o BNDES seja o coordenador do processo”, revelou, conforme antecipou ontem o Valor PRO, o serviço de informações em tempo real do Valor.
União negocia com todos os Estados a venda de estatais

A equipe econômica está negociando com todos os Estados a venda de empresas estatais. A privatização é parte do esforço para melhorar a situação fiscal do setor público, principal vulnerabilidade da economia brasileira neste momento. A medida tem um efeito colateral importante: com a desestatização, a tendência dos setores onde as estatais atuam é ter mais eficiência. Privatizar é, também, uma forma de reduzir drasticamente os incentivos à corrupção.

Na renegociação anterior das dívidas estaduais, em 1997, adotou-se o mesmo compromisso, muitas empresas foram vendidas, mas ainda existe um bom par delas em vários Estados. A severa crise fiscal é uma oportunidade histórica para o Estado brasileiro desistir de vez de sua atuação empresarial, passando a concentrar-se em atividades típicas de sua atuação, como educação, saúde e segurança.

O governo fluminense, na gestão de Marcello Alencar (1995-1998), tentou privatizar a Cedae, mas esbarrou em questões regulatórias – a disputa entre Estados e municípios quanto à competência sobre os serviços de saneamento básico -, na resistência de grupos políticos e no corporativismo dos funcionários. No ano passado, o tema veio à baila na Assembleia Legislativa.

Além do compromisso com a venda de ativos, os Estados concordaram com sua inclusão na proposta de emenda constitucional que limita a correção das despesas públicas à inflação do ano anterior e com a não concessão, por 24 meses, de aumentos reais aos salários do funcionalismo público. O ministro Henrique Meirelles explica que a Constituição assegura aos servidores a reposição do poder de compra (isto é, a inflação), mas alguns governadores entendem que é possível dar reajustes abaixo da variação da inflação.

“Não podemos impedir o que está previsto na Constituição, mas o fato é que, com essa regra, o crescimento real (acima da inflação) dessa despesa será zero. Muitos Estados vinham concedendo reajustes muito acima da inflação”, contou Meirelles.

Considerando-se apenas oito Estados (SP, RJ, MG, RS, SC, PR, BA e GO), o Distrito Federal e a prefeitura de São Paulo, a despesa com pessoal e encargos saltou de 3,7% para 5,2% do PIB entre 2008 e 2015. O investimento desses entes caiu, no mesmo período, de 0,8% para 0,5% do PIB. A despesa corrente (o gasto com educação e saúde, por exemplo) teve que encolher: de 4,7% para 3,8% do PIB.

Um aspecto muito importante da reunião dos governadores com a equipe econômica foi a concordância quanto à necessidade de adesão de todos os Estados à renegociação, mesmo daqueles que estão situação razoável, como o Espírito Santo. “Coloquei na reunião que ou fechávamos um acordo com todos ou não seria possível fazer apenas com alguns. Todos entenderam que era importante resolver a questão não só das dívidas, mas também da questão fiscal dos Estados”, revelou o ministro.

A adoção do teto de evolução das despesas é crucial porque, de 1997 a 2015, observa Meirelles, as despesas da União cresceram 6% ao ano em termos reais. Tomando-se o período em que os governos Lula e Dilma decidiram adotar a chamada “Nova Matriz Econômica” – de 2008 a 2015 -, o gasto avançou 14,5% acima da inflação acumulada. No mesmo período, a despesa total saltou 51% em termos reais, forçando o Tesouro Nacional a elevar a dívida pública em R$ 2,2 trilhões.

“Aprovada a emenda constitucional que fixa o teto, no ano que vem teremos zero de crescimento real”, previu Meirelles. De 2004 a 2015, a despesa primária (que não inclui os juros da dívida) do governo central saltou de 15,6% para 19,5% do PIB. O governo espera, com o teto, diminuí-la em dois pontos percentuais do PIB em três anos.

O ministro da Fazenda confirmou que, em 2017, o setor público consolidado (União, Estados e municípios) deve apresentar um novo déficit primário. Acredita, porém, que o saldo negativo vai baixar ao longo do tempo. O cálculo é o seguinte: Meirelles aposta que, à medida que as iniciativas na área fiscal comecem a ser aprovadas e implementadas, o setor produtivo voltará a confiar na política econômica, o que ajudará a destravar as decisões de investimento, impulsionando a atividade econômica. A retomada do PIB, por seu turno, aumentará a arrecadação, auxiliando o ajuste fiscal.

Talvez, muitos ainda não tenham se dado conta, mas a imposição de um teto para as despesas acabará por tornar realistas os orçamentos públicos. Diante do teto, caberá aos governantes, em negociação com o Congresso e as assembleias legislativas, estabelecer as prioridades do gasto público. Hoje, pode tudo e o resultado é inflação, carga tributária e dívida pública crescentes, asfixia do setor privado e por conseguinte dos investimentos, baixo crescimento e baixa qualidade dos serviços públicos. (Valor Econômico – 22/06/2016)


Cristiano Romero é editor-executivo e escreve às quartas-feiras
E-mail: cristiano.romero@valor.com.br

Fonte: pps.org.br