Eliane Cantanhêde

Eliane Cantanhêde: Caneta sem tinta

Demitir Mandetta é provocar STF, Congresso, governadores, sociedade e... generais

Na reunião decisiva de dez dias atrás em que alertou o enciumado presidente Jair Bolsonaro de que não pediria demissão, o ministro Luiz Henrique Mandetta também assumiu o compromisso de não capitalizar política e eleitoralmente o eventual sucesso da estratégia do Ministério da Saúde ao fim da pandemia. Isso, porém, não depende só de Mandetta, depende das circunstâncias.

Médico ortopedista, nascido em Mato Grosso do Sul, 55 anos, Mandetta foi secretário de Saúde no seu Estado, cumpriu dois mandatos de deputado federal e não disputou a eleição de 2018. Mas, apesar do currículo político magro e da discrição no primeiro ano no Ministério da Saúde de Bolsonaro, ele conquistou imensa visibilidade, disparou em popularidade e passou a mexer com os brios de Bolsonaro ao ser olhado como candidato. A quê? Neste momento, a qualquer coisa.

No início dos anos 1990, o professor e sociólogo Fernando Henrique Cardoso não se reelegeria para o Senado e discutia se valia a pena disputar uma vaga na Câmara quando o presidente Fernando Collor caiu, o vice Itamar Franco assumiu e ele, no Ministério da Fazenda, foi o grande avalista do Plano Real. Conclusão: em 1994, elegeu-se presidente da República já no primeiro turno.

O Plano Real foi para FHC o que a pandemia pode se tornar para Mandetta: a grande alavanca da sua carreira política. O Real, por ter sido o maior plano de estabilização da economia da história. A covid-19, por ser o maior desafio de vida ou morte das pessoas e das lideranças de todo o mundo. O ex-presidente Lula levou tão a sério o isolamento que nem se sabe onde está, nem que nome ele trabalha para 2022. Governadores equilibram-se entre a desgraça e o sucesso. Ciro Gomes só sabe gritar. Luciano Huck só aparece em propaganda de TV. E, em política, não há vácuos.

Bolsonaro está esfarelando seu capital eleitoral e sua credibilidade mundial e nacional com sua incrível teimosia e, quanto mais ele cai, mais Mandetta sobe. Até ao instituir entrevistas diárias de ministros para tirar os holofotes do titular da Saúde, Bolsonaro conseguiu o efeito oposto: as entrevistas se transformaram justamente em manifestação de união em torno de Mandetta.

Ressentido desde que o ministro trabalhou republicanamente com o governador João Doria contra a pandemia, Bolsonaro agora desdenha de quem se julga “estrela” e saca sua caneta para tentar mostrar quem manda. Sua obsessão em demitir Mandetta, porém, pode custar muito mais caro do que ele imagina. “O governo acaba”, diz importante personagem do poder.

O Supremo em peso, os presidentes e líderes do Congresso, a grande maioria dos governadores, os maiores partidos e a opinião pública se voltariam contra o presidente, que correria o risco de ser desautorizado em todos os flancos – e os generais do poder sabem disso. O STF pode derrubar a demissão de um ministro? Resposta de um jurista da ativa: “Em tese, ele não pode até que possa”. Ou seja, seria inédito, não impossível.

E, além do STF, Estados e municípios podem se rebelar contra o poder central (contra o fim do isolamento social, principalmente) e convém não esquecer que o deputado Rodrigo Maia não tem a caneta, mas tem a pauta da Câmara: cabe a ele decidir, por exemplo, se põe ou não em votação um processo de impeachment.

Se demitir Mandetta e desarticular a Saúde em meio a uma pandemia que matou mais de 75 mil pessoas no mundo até ontem, Bolsonaro estará traçando seu próprio destino e o de Mandetta. No vazio de homens e ideias que o Brasil vive, nada como uma pandemia para destruir governantes e alavancar novos líderes. Uma constatação que enlouquece Bolsonaro e prejudica Mandetta, mas é impossível tapar o sol com a peneira. O rei está nu.


Eliane Cantanhêde: A guerra continua

Com ministros e generais divididos, Bolsonaro ainda só pensa nisso: o fim do isolamento

Está redondamente enganado quem acha que, depois de todas as evidências, do novo pronunciamento e do telefonema para Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro enfim se rendeu à importância vital do isolamento social. Não, ele recuou só na forma e na TV, mas continua firmemente a favor de liberar o comércio e o trabalho das pessoas. E não tem apenas apoio do filho Carlos e do “gabinete do ódio” do Planalto, mas de influentes generais à sua volta.

Estudo da PUC-RJ e da Fiocruz jogou lenha na fogueira e reforçou no Planalto a implicância contra o isolamento, ao apontar uma evolução mais controlada do coronavírus no Brasil diante de EUA, China, Itália e Espanha. O estudo tem parâmetros científicos, óbvio, mas com base nos casos e mortes confirmados, quando as autoridades de saúde alertam que, entre os números oficiais e a realidade, há um fosso gigantesco.

Os relatos de parentes de vítimas abaixo dos 60 anos são contundentes: elas vão aos hospitais, radiografias e tomografias que não confirmam nada, tomam um remedinho para febre e voltam para casa. Sem o teste! Quando enfim são internadas, é tarde demais, os pulmões já estão parando, elas são entubadas e morrem em horas. Antes do resultado dos exames.

Sem contar as sabe-se lá quantas pessoas que tossem, têm febre e dor de cabeça, mas não conseguem fazer o teste nem mesmo em hospitais particulares, quanto mais nos sobrecarregados hospitais públicos. Logo, os números de infectados e mortos são muitíssimo maiores do que os oficiais.

Porém, a simples divulgação da “evolução controlada” do vírus alvoroçou gabinetes do Planalto, deixando evidente que o “recuo” do presidente entre o desastroso primeiro pronunciamento e o segundo, uma semana depois, foi só de boca para fora. Bolsonaro continua remoendo dia e noite a intenção de limitar o isolamento aos acima de 60 anos e/ou com doenças preexistentes. Logo, a guerra continua. Não apenas contra o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, mas contra o mundo todo e... boa parte dos próprios ministros. Dessa vez, nem a reviravolta de Trump dá jeito.

Ao elogiar o Ministério da Saúde e a imprensa até aqui, o ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, pede “mais razão e menos emoção a partir de agora”. Considera que há exageros e cita a prisão de um rapaz que estava sozinho numa praia do Rio e a redução significativa dos ônibus em circulação em alguns Estados, o que, segundo ele, foi um tiro no pé: gerou mais aglomerações em pontos, ônibus e metrôs.

E, na quarta, Bolsonaro divulgava o vídeo de uma apoiadora implorando aos berros, na saída do Alvorada, para ele acabar com o isolamento, reabrir o comércio e “deixar as pessoas trabalharem”. Ignorando até mesmo uma distância mínima entre pessoas, ela distribuiu insultos à imprensa e desdenhou dos R$ 600 da emergência (ou R$ 1.200, caso seja chefe de família): “Não quero nada do governo!”.

Ou seja: ela só quer que as pessoas corram o risco anunciado de morrer, matar ou ambos, mas teve apoio do presidente: “Você fala por milhões”, reagiu Bolsonaro, que mais tarde engatilhou novamente a metralhadora verbal contra governadores, que têm “medinho” de ir às ruas.

E assim, “la nave va”, com o governo jorrando medidas, todo mundo perguntando pela “operacionalização” e os ministros divididos, com os mais sensatos defendendo Mandetta e os protocolos internacionais de saúde, enquanto Bolsonaro aposta em duas coisas: Deus é brasileiro, logo a pandemia vai ser mais camarada aqui, e a cloroquina vai valer já, já contra o coronavírus e salvar a lavoura. Tomara que seja assim, mas o que a realidade está apontando é bem diferente: o tsunami só está começando e o remédio ainda vai demorar.


Eliane Cantanhêde: Chacoalhada

Coronavírus mexe na balança do Planalto: Bolsonaro se isola, uns sobem, outros descem

A crise do coronavírus acabou dando uma chacoalhada no governo, com mudanças de posições, ministros em alta, ministros em baixa e um consenso constrangido entre todos eles: é preciso agir e atacar a doença em conjunto, isolando o presidente Jair Bolsonaro. Não por ser do grupo de risco, ter mais de 60 anos e estar cercado de contaminados por todos os lados, mas porque é urgente que ele pare de atrapalhar.

Em alta no próprio governo e na opinião pública está o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, sistematicamente desautorizado pelo presidente, mas reconhecido pelos colegas ministros, que temem a força do coronavírus e a demissão do personagem-chave do combate à epidemia. Demitir Mandetta seria esfacelar, no momento decisivo, toda a estrutura do Ministério da Saúde, que tem o controle da operação e o reconhecimento popular.

Além de Mandetta, dois generais estão em alta: Braga Netto, da Casa Civil e com sala próxima do gabinete presidencial, e Fernando Azevedo e Silva, da Defesa, que despacha em outro prédio, mas é personagem assíduo no Planalto. Os dois têm duas características comuns: relacionam-se há anos com Bolsonaro e são respeitados pela cúpula do poder, que recorre a eles quando é preciso “dar um jeito no capitão”. Carioca jeitoso, Fernando foi colega de turma do insubordinado Bolsonaro no Exército.

Na balança, Braga Netto e Fernando Azevedo sobem, dois outros generais descem: Augusto Heleno, do GSI, sobre quem repousavam as melhores expectativas no início do governo, e Luiz Eduardo Ramos, secretário de Governo, que chegou ao governo para cobrir o vácuo de Onyx Lorenzoni, o chefe da Casa Civil que acabou trocado por Braga Netto. Heleno, que pegou coronavírus, parece estar se cansando do jogo. Ramos sofre pelas virtudes, não pelos defeitos: a personalidade contemporizadora, oposta à dos Bolsonaro.

Também em baixa o verdadeiro mito do governo, Sérgio Moro, alvo do mesmo ciúme que o presidente dedica agora a Mandetta e já despejou sobre Gustavo Bebianno, general Santos Cruz e até sobre Regina Duarte, logo na largada. Moro foi desautorizado inúmeras vezes, a última delas quando assinou o decreto suspendendo a entrada de estrangeiros de vários países. Bravo, Bolsonaro riscou sem pestanejar os cidadãos dos EUA – hoje, campeão de casos confirmados.

Depois das sucessivas desautorizações, Moro se recolheu e Bolsonaro passou a cobrar o contrário. Antes, condenava os “excessos” do ministro, que aparecia demais na mídia e lhe ofuscava a popularidade. Hoje, critica a “omissão” dele, reclamando que a área jurídica do governo está “acéfala”, o governo perde uma atrás da outra no Supremo e em todas as instâncias.

Na segunda-feira, 30, aliás, o ministro Dias Toffoli disse que não se combate o vírus com “achismos” e outros ministros do STF avisaram que vão derrubar medidas contrárias à saúde e à ciência. E, se Bolsonaro havia conclamado os políticos a saírem às ruas, como ele próprio fez no domingo, todos os líderes do Senado responderam com um sonoro “não”, em forma de manifesto a favor do isolamento social.

Assim, Bolsonaro está isolado dentro e fora do Brasil. Seguindo os líderes que prudentemente decretaram o isolamento social contra o coronavírus desde o início, também os teimosos Trump (EUA), Boris Johnson (Inglaterra) e Giuseppe Conte (Itália) se renderam às evidências. Ou seria à realidade?

Há poucos dias, Bolsonaro disse, todo orgulhoso, que Trump seguia “uma linha semelhante à nossa”. Mas, com quase 140 mil infectados e 2.500 mortes nas suas barbas (ou cabeleira), até Trump acaba de recuar e estender o isolamento para 30 de abril. O presidente brasileiro vai esperar tanto para cair na real?


Eliane Cantanhêde: Isolamento vertical

Bolsonaro teme crise na economia e nas ruas, com derrota em 2022. E busca culpados

Uma pergunta sobrevoa os ares de Brasília nesses tempos de coronavírus: por que, com toda a tragédia e péssimas previsões para a economia, o presidente Jair Bolsonaro não dá um tempo nas suas guerras pessoais e assume mínima postura de estadista? A resposta inevitável é o temperamento incontrolável do presidente, mas isso é só uma parte da explicação.

Além da incapacidade de ouvir a própria assessoria, da mania de perseguição e da inveja de quem brilhe mais do que ele, o presidente tem motivações políticas e econômicas para a radicalização e o confronto, como no fatídico pronunciamento em que mandou às favas o isolamento social para se concentrar na economia. Os dois não são excludentes, mas isso é outra história.

Bolsonaro quer jogar a culpa da crise na mídia, governadores, prefeitos, Congresso, STF e até na China, porque teme perder apoio da base (aliás, do topo) bolsonarista – grande capital, empresariado e a tropa da internet. Logo, começou a bater o pânico de não ter gás para 2022. Com a economia derretendo, ou derretida, fica tudo mais difícil.

Há, também, outros fatores nas manifestações erráticas de Bolsonaro. Além de seu “passado de atleta”, de ter sobrevivido a uma facada e não temer “gripezinhas” e “resfriadinhos”, como esse tal de coronavírus, ele não é homem de esperar calado os ataques que imagina vindo de toda a parte. Sobretudo da esquerda, pretexto para tudo.

Antes mesmo da chegada do coronavírus ao Brasil, Bolsonaro já temia manifestações de rua, a exemplo do Chile. A esquerda, tão recolhida e tão morna desde a posse do novo governo, no ano passado, estaria se articulando para “dar o bote” no melhor momento – que corresponderia ao pior momento do presidente.

Forças Armadas, Ministério da Justiça e Segurança Pública e Agência Brasileira de Inteligência (Abin) monitoram e acompanham riscos de eventuais distúrbios. Em avaliações internas, esses riscos já existiam e podem ser potencializados pela pandemia, quebradeira de empresas e o horizonte de milhões a mais de desempregados.

Assim, o Ministério da Defesa montou dez comandos de emergência, oficialmente para a necessidade de Exército, Marinha e Aeronáutica virem a entrar no combate à doença, mas também como prevenção para o caso de convulsão social provocada pela realidade e instrumentalizada pela esquerda, com manifestações, saques e tumultos.

Bolsonaro teria uma certa obsessão com isso, achando que, mais cedo ou mais tarde, algo assim possa ocorrer e enfraquecer sua autoridade e sua posição de presidente. O que não percebe é que o ex-presidente Lula, o PT e seus satélites não estão com essa bola toda e ações radicais seriam rechaçadas maciçamente pela sociedade. Assim, quem tem trabalhado incansavelmente para enfraquecer sua autoridade e sua posição é o próprio Bolsonaro.

Após ambientalistas, estatísticos, jornalistas, professores, governadores, presidentes de outros países Congresso, STF e as áreas de Direitos Humanos, pesquisa e Cultura, ele bate de frente de novo com a ciência e inclui a área de saúde, ao minimizar o coronavírus, apesar de todas as evidências, e defender a troca do isolamento social por um “isolamento vertical”, apesar de todos os protocolos da OMS que o Ministério da Saúde e os Estados seguem.

Bolsonaro teria se saído muito melhor se ouvisse mais seus generais e assessores, menos Carlos Bolsonaro e o “gabinete do ódio”, e tivesse feito o discurso da prioridade zero, um, dois e três para o combate ao coronavírus e para salvar vidas, mas sem perder a perspectiva de preservar o possível da economia, das empresas e do emprego. O velho e bom equilíbrio. O capitão, porém, prefere sair atirando. Inclusive no próprio pé.


Eliane Cantanhêde: Isolamento

Presidente, bananas não salvam vidas e não reduzem danos numa economia já combalida!

Tudo o que este mundo enlouquecido precisava para um freio de arrumação era um inimigo comum a toda a Humanidade, mas veio o novo coronavírus e o que se vê, assustadoramente, é o contrário: os líderes aproveitando para reforçar fronteiras e se isolar ainda mais, enquanto o presidente Jair Bolsonaro se ocupa em dar bananas para jornalistas, incorrigível, entre um teste e outro para o vírus.

A história está cheia de exemplos comprovando que é nos piores momentos que se forjam os grandes líderes, mas o inverso também é verdadeiro: nas crises, líderes ou emergem ou desaparecem. Há décadas não se vê uma crise da dimensão atual. Vamos ver quem sobrevive e quem sucumbe.

O novo coronavírus contamina as pessoas e as economias de países de todos os continentes. Nos dois casos é potencialmente letal e ele veio com tudo justamente num ambiente de desaquecimento global e quando a migração é uma das questões mais graves na agenda internacional. É hora de testar os líderes, saber quem tem ou não visão estratégica e grandeza pessoal. Restarão poucos, nesses tempos de Trump, Putin, Erdogan e tantos outros.

No Brasil, o presidente deveria aproveitar o isolamento para deixar de lado a obsessão por bananas, parar de atacar tudo e todos e refletir sobre sua imensa responsabilidade. O mundo está em crise, o Brasil está em crise, os casos de coronavírus vão disparar, a Bolsa teve a maior queda desde 2008, são 12,5 milhões de desempregados. E, antes mesmo do tsunami, o pibinho já foi de 1,1%.

A economia brasileira não tem margem para piorar. E vai piorar. As previsões de crescimento já não eram animadoras e agora não param de cair, deixando no ar a sensação – ou o pavor – de uma nova recessão. Logo, o governo precisa fazer um malabarismo estonteante para dar suporte a setores estratégicos sem explodir as contas públicas.

Quem tem a caneta e o poder de decisão é o presidente e, goste-se ou não, lamente-se ou não, trata-se de Jair Bolsonaro. Como ele não tem conhecimento e não manifesta interesse, significa que é o ministro Paulo Guedes quem está no centro do furacão.

Na Saúde, como dito aqui desde o início, a forte cultura e os quadros de excelência da saúde pública, mais a grata surpresa que é Luiz Henrique Mandetta, estão fazendo sua parte. Ao contrário do que ocorreu, por exemplo, na Itália e nos EUA, onde as mortes já passavam de 40 e não havia nem estatísticas sobre contaminados quando Donald Trump enfim anunciou emergência e abriu as torneiras.

Distante de disputas partidárias, o ministro da Saúde prepara o País para a rebordosa. Contratou leitos de UTI à disposição dos Estados, encomendou 17 milhões de máscaras hospitalares da China para o pessoal de Saúde, antecipou a maior operação de vacinação do mundo, com 75 milhões de doses contra a influenza.

Na economia, todos parecem atordoados, mas a expectativa é de um pacote de medidas amanhã. Assim como Mandetta, Guedes precisa agir para reduzir danos. A diferença é que um foi mais previdente e o outro corre atrás do prejuízo, sem que o presidente demonstre real compreensão da situação. Guedes bate na tecla das reformas e Bolsonaro bate no Congresso, até mesmo ao desarticular as manifestações previstas para hoje.

Assim como não há vacina nem tratamento específico para a covid-19, só paliativos, também na economia não havia como impedir a crise e não há tratamento sem dor para um país parado, com as pessoas evitando viajar, circular, comprar, os serviços esvaziando e as empresas esfarelando nas bolsas ou em solo, como as companhias aéreas. Mas há, sim, como evitar um número maior de vítimas e um prejuízo maior. O presidente, se não consegue ajudar, deve aproveitar o isolamento para não atrapalhar.


Eliane Cantanhêde: Que surpresa?

É normal crescer 1%? Não. Não é normal, mas não é surpresa e faz todo o sentido

O ministro Paulo Guedes manifestou “surpresa com a surpresa” diante do pibinho de 1,1% de 2019, que conseguiu a proeza de ser menor que o 1,3% de 2017 e 2018, apesar de pesos e condições políticas bem diferentes: o presidente Michel Temer assumiu após um impeachment, Jair Bolsonaro chegou com a força do voto.

Na verdade, porém, não houve “surpresa” com o pibinho, mas, sim, desânimo, decepção e preocupação com o futuro. Se no primeiro ano de um governo cheio de gás foi assim, como será o segundo? Em 2019, houve Brumadinho, os embates EUA-China, se quiserem dá para incluir a crise suína na China. Em 2020, há coronavírus, Bolsas derretendo, dólar disparando e previsão de desaquecimento global, que já antecedia tudo isso. E não é só. Há muito mais para atrapalhar.

Na barafunda, uma constatação incomoda: a agenda do governo parece ter se esgotado em 2019, com a reforma da Previdência e o programa de privatizações e concessões deixado praticamente de bandeja por Temer. Logo, não dá para pular de otimismo para este ano. Nem para os próximos.

Como o que está ruim sempre pode piorar, há um mesmo fator político em 2019 e 2020 segurando investimentos, confiança e a própria recuperação do Brasil: o presidente Jair Bolsonaro, que insiste em viver em guerra e ultrapassa limites mínimos de civilidade e de respeito ao cargo.

Como investir num país onde o presidente, para fugir de falar do PIB, traz em carro oficial um comediante para jogar bananas em repórteres? Eles estão ali para ouvi-lo (ao presidente, não ao comediante) e informar a população. E, não satisfeito com cenas grotescas, o presidente também age colocando em risco o aquecimento da economia, logo, a retomada dos tão desesperadamente necessários empregos.

Além da “surpresa com a surpresa”, Guedes declarou que a economia está “claramente acelerando” e acenou com crescimento de 2% neste ano... “se as reformas forem aprovadas”. É aí que mora o perigo, porque não adianta botar a culpa nos deputados e senadores, no coronavírus, em Marte ou na “herança maldita”, como fazia Lula em relação a Fernando Henrique. A responsabilidade maior pelas reformas é do Executivo e não dá para fugir disso. Ele tem de apresentar suas propostas e tem de negociá-las com o Congresso, como em toda democracia.

Há dois consensos, dentro e fora do governo. Um é que a reforma da Previdência foi um ótimo passo, mas só um primeiro passo. Outro é que o Congresso tem uma disposição muito positiva para aprovar as reformas seguintes, mas há uma questão de timing: o ano é eleitoral e, portanto, deputados e senadores têm interesses diretos nas campanhas, aliás, legitimamente.

Se Guedes condiciona crescimento a reformas e o Congresso está disposto a aprová-las, o que está atravancando o processo? A área econômica, o Planalto, ou o próprio presidente? A reforma tributária do governo, ninguém sabe, ninguém viu. A reforma administrativa foi fechada pela equipe de Guedes há meses e o Planalto diz que Bolsonaro já assinou, mas é um fantasma. Foi adiada uma, duas, três, sei lá quantas vezes, atravessou o carnaval, a Quarta-Feira de Cinzas, a semana seguinte e... ainda não se materializou!

Para piorar, as reformas só saem com acordo entre Executivo e Legislativo (ou “entendimento”, para não contrariar o presidente e os bolsonaristas), mas Bolsonaro, os filhos e seu entorno não param de atacar os “chantagistas” do Congresso e torcem pelos protestos que terão Rodrigo Maia na mira das pedradas.

Para o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, “não é normal um país como o Brasil crescer 1% ao ano”. De fato. Nada é surpresa, nada é normal, mas tudo faz sentido.


Eliane Cantanhêde: Sem bicho-papão

Não há clima, maiorias e lideranças para dar golpes nem articular impeachment

Deveria causar escândalo, mas conseguem no máximo gerar preguiça e cansaço a facilidade e a frequência com que as pessoas fazem duas perguntas perigosas, mas tratadas como corriqueiras, parte da paisagem: Vai ter golpe? Ou vai ter impeachment?

A cada ataque do presidente Jair Bolsonaro, do seu entorno e da sua tropa da internet ao Congresso, a governadores, à mídia, a jornalistas (geralmente mulheres...), a presidentes estrangeiros, a ambientalistas, a ONGs, a pesquisadores cresce a percepção de que há uma escalada autoritária, um teste de limites.

Se fosse apenas questão de estilo, já seria péssimo, mas todos esses ataques vêm num contexto em que Bolsonaro enaltece ditadores sanguinários, seu filho admite a volta do AI-5 (toc toc toc) e já disse, sem a menor cerimônia, que bastaria “um cabo e um soldado” para fechar o Supremo.

Assim, quando Bolsonaro transforma o Planalto num QG, o general Augusto Heleno xinga os parlamentares e fala em “povo na rua” e o governo deixa de condenar com a devida veemência o motim de PMs no Ceará... a lista começa a ficar grande e preocupante.

Só faltava o presidente da República convocar pelo WhatsApp uma manifestação que tem entre os objetivos protestar contra o Congresso e o Supremo. Divulgados os vídeos pela colega Vera Magalhães, o que fez o presidente? Mentiu! Mentiu ao dizer que se tratava de peças de 2015. Com imagens da facada? Foi em 2018. Com o brasão da Presidência? A posse foi em 2019.

Esse roteiro sugere um teste, um avança e recua, de olho nas reações das Forças Armadas e das redes sociais. E é aí que surge um fato novo depois que o Planalto aumentou o tom contra o Congresso: a maioria militar silenciosa, particularmente do Exército, começou a demonstrar desconforto e a dizer algo assim: “Aí, não!”

Assim, mesmo que houvesse algum projeto ou sonho golpista, fica-se sabendo que não há, em absoluto, unanimidade na área militar. Se há algo próximo a unanimidade é em sentido contrário: ninguém quer ouvir falar em golpes. Marinha e Aeronáutica estavam e continuam mudas e o Exército começa a perceber que tem muito mais a perder do que a ganhar, inclusive historicamente, ao se confundir com arroubos autoritários tão fora de tempo e de propósito.

Mais do que isso, porém, nunca é demais repetir o que está registrado em várias oportunidades aqui neste mesmo espaço: o Brasil não é uma Venezuela. Tem instituições, mídia, opinião pública, enorme capacidade de reação, ou, antes, de dissuasão de projetos tresloucados. Há uma rede de resistência.

Quanto a impeachment, não custa lembrar que isso não é como aspirina, que se usa a qualquer hora, para qualquer eventualidade. O Brasil passou por dois afastamentos de presidentes no curto espaço de tempo desde a redemocratização e não se ouve absolutamente ninguém com um mínimo de liderança e de responsabilidade admitindo e muito menos discutindo essa hipótese.

Aliás, o presidente chamou atenção na live de quinta-feira também ao, do nada, em bom e alto som, anunciar: “Não vou renunciar ao meu mandato!”. Quem disse que iria? Ninguém. Trata-se de uma frase que oscila entre o político e o psicológico, expondo uma característica de Bolsonaro: a mania de perseguição. Ao ver inimigos por toda parte, ele se antecipa e parte para o ataque antes de saber se seria atacado.

E fica falando sozinho. Nem o seu maior adversário aventa a hipótese de renúncia, ou de impeachment, assim como boa parte dos seus apoiadores militares não quer nem ouvir falar em golpe. A saída é outra, é o presidente se comportar como... presidente. E focar no essencial, a economia, a estabilidade, o País.


Eliane Cantanhêde: Em guerra

O coronavírus é grave e ameaça, mas, por ora, não há motivo para pânico no Brasil

Desde pelo menos o governo do general Ernesto Geisel, no início da transição da ditadura para a democracia, o Brasil tem uma cultura de saúde pública exemplar e quadros de sanitaristas respeitados no mundo todo. Logo, é capaz de reagir à altura numa ameaça global como o coronavírus, que vem da China e se espalha por todos os continentes.

Aliás, a política de saúde pública de Geisel e seu ministro, sanitarista Paulo Almeida Machado, era baseada na interiorização, no olho no olho, nos “médicos de pés descalços” da... China! O regime brasileiro era obviamente de direita, e o chinês, comunista. Mas pesou menos a ideologia e mais a saúde de massas. Assim foram definidas a política e as equipes que influenciam gerações até hoje.

Na época, o Ministério da Saúde era voltado especificamente para a saúde pública: atenção às famílias, aos bebês, crianças e idosos, planos de vacinação em massa – prevenção, enfim. Hospitais eram outro departamento. Daí, talvez, o gap atual entre as duas frentes.
Graças a essa história, e posteriormente ao ministro José Serra, no governo FHC, o Brasil, país continental e tão desigual, virou referência no combate à pior epidemia da era moderna, a aids. Tanto que, já com Lula e George W. Bush, o Brasil e os EUA trocaram informações, acordos e ações na África, onde a aids fez milhões de mortos.

É por isso que, agora, não há motivo para pânico no Brasil. A situação é preocupante, com a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarando emergência internacional e o governo brasileiro replicando com emergência nacional. Mas todas as medidas possíveis estão sendo tomadas: a detecção de casos suspeitos, o monitoramento, as pesquisas. Todo o ambiente da saúde, no ministério, nos órgãos de pesquisa, na área privada, é de alerta e presteza.

A crise, inclusive, joga no cenário político o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Ele demorou a entrar em cena, mas agiu nos bastidores e gabinetes e já está devidamente seguro e bem informado para enfrentar holofotes e perguntas. Quanto ao envio de um avião fretado para resgatar brasileiros no epicentro da epidemia, na China, foi amadurecido desde a sexta-feira por Defesa, Itamaraty, Saúde e GSI.

A decisão final ficou com o presidente Jair Bolsonaro. Em seu cálculo, o custo político de largar os brasileiros à própria sorte seria muito mais alto do que o custo financeiro de pagar avião, tripulação, quarentena. A pressão dos que estão confinados em Wuhan já estava insuportável pelas redes. São 55 ao todo, mas 15 deles têm família, negócios ou bases sólidas na China e preferem ficar por lá. Os outros 40 já estão sendo preparados para voltar.

Por sorte, o Brasil não tinha nenhum caso confirmado até ontem. Mas, se aparecer, não dá para contar com a sorte, mas, sim, com a competência, o treinamento, a rapidez, a dedicação e o principal: planejamento. Esse não é o forte do nosso país, mas na saúde pública tem sido, porque prevenção e planejamento são indissociáveis.

Além de adoecer milhares e matar centenas até agora, o coronavírus tem efeitos colaterais graves numa economia global já em desaceleração, no confinamento de populações de cidades inteiras, na interrupção no fluxo internacional de mercadorias e – o mais cruel – de pessoas.

Há, porém, um efeito muito positivo. Num momento em que os EUA estão para reeleger Donald Trump, o Reino Unido faz festa para o nocivo Brexit e o neonacionalismo carimba a globalização e o multilateralismo como inimigos da humanidade, é um vírus letal, o coronavírus, que vem demonstrar o quanto os continentes, regiões e países precisam uns dos outros. E o que seria do mundo sem a OMS, para coordenar a guerra contra a epidemia? O multilateralismo está sob ataque, mas sobrevive e tem força. Ainda bem.


Simone Tebet | Foto: Agência Senado

Eliane Cantanhêde: A real renovação

O ‘novo Senado’ tem base forte, articulação eficiente e uma líder: Simone Tebet

As votações do pacote anticrime e da prisão em segunda instância geraram uma mudança no equilíbrio político do Senado do primeiro para o segundo semestre de 2019. O Congresso viveu um grande ano, com evidente afirmação do seu poder e independência, e o Senado deu visibilidade a Davi Alcolumbre no primeiro semestre e confirmou a liderança e habilidade de Simone Tebet no segundo.

No início do ano, o plenário derrubou os “jabutis” do Código Florestal e os dois projetos de armas do presidente Jair Bolsonaro, depois retirados da Câmara para evitar nova derrota pessoal dele. E Alcolumbre devolveu ao Planalto a MP que empurrava a demarcação de terras indígenas para a Agricultura – a raposa cuidando do galinheiro, mas o argumento foi técnico: é inconstitucional MP sobre tema já derrotado no Congresso no mesmo ano.

Alcolumbre ia bem, participando ativamente de um gabinete de crise informal para enfrentar os arroubos de Bolsonaro, ou melhor, dos Bolsonaros, com Rodrigo Maia, da Câmara, e Dias Toffoli e Gilmar Mendes, do Supremo. Mas algo desandou. Alcolumbre perdeu fôlego antes de concluir o seu primeiro ano na presidência do Senado. Talvez por inconstância, ora se aproximando, ora se distanciando de Bolsonaro, mas sempre atrelado ao baixo clero ou à “velha política”.

Foi aí que Simone Tebet entrou em cena, surfando numa onda que começou em fevereiro. Quando ela se inscreveu para disputar a presidência do Senado com o então poderoso Renan Calheiros, quase todos imaginaram que não era para valer. Era. Ela articulou bem e a grande surpresa foi quando ela perdeu para Renan por um só voto na bancada do partido de ambos, o MDB. Como uma novata como Simone Tebet quase bateu o imbatível Renan?

Viu-se, então, que a derrota do senador alagoano não era impossível e que Simone não era tão “ingênua” quanto boa parte de seus colegas gostaria. Bem, Renan perdeu, Davi Alcolumbre venceu com apoio do Planalto e o Senado mudou e continua mudando.

Quando Alcolumbre e Maia fizeram um acordo “por cima” para a Câmara cuidar, e aparentemente empurrar com a barriga, a emenda da prisão em segunda instância, os senadores articularam uma reação “por baixo”. E apontaram Simone líder da rebelião. Não era para o Senado votar nada sobre o tema, mas ela atendeu a um manifesto de mais da metade dos senadores e pôs na pauta da CCJ. Detalhe: onze líderes assinaram. Alcolumbre se isolou.

E foi também Simone Tebet, advogada, mestre, doutoranda e professora de Direito, além de filha do ex-governador do MS e ex-presidente do Senado Ramez Tebet, quem comandou toda a bem-sucedida operação para aprovar, ainda neste ano, o pacote anticrime de Sérgio Moro e Alexandre de Moraes.

Moro já estava a caminho da Base Aérea de Brasília na quinta-feira passada, indo para Curitiba, quando atendeu a um telefonema de Simone e voltou para conversar com ela no Senado. Ali traçaram a estratégia: aprovava-se o pacote (para não retardar e não ter de devolver para a Câmara) e depois cuidava-se do resto. Assim foi feito. Depois de meses de protelações, o texto foi aprovado rapidamente, e por aclamação (sem voto a voto), no plenário do Senado.

A segunda instância corre por fora, o excludente de ilicitude foi excluído, Bolsonaro está para vetar o “juiz de garantia” (que foi uma provocação a Moro) e, no ano que vem, fecha-se o pacote com o “plea bargain”, pelo qual o réu que confessa escapa de processo e tem pena abrandada. Articulação perfeita.

Assim, Simone leva para o recesso um elogio e tanto do senador José Serra, a quem admira e respeita: “Ela ensinou que é possível exercer autoridade sem autoritarismo”. Taí uma renovação muito bem-vinda.


Eliane Cantanhêde: Sobre heróis e vilões

Esquerda e direita veem o fim do mundo, mas o Brasil precisa de pés no chão e crescimento

A esquerda insana imagina uma imensa articulação internacional, quiçá intergaláctica, para as forças pró-finanças e anticivilização dominarem os países e trucidarem os povos, inclusive o Brasil e os brasileiros. E a direita delirante vê globalistas, China maoísta, esquerda internacional, ambientalistas, abortistas, corintianos, flamenguistas, marcianos e jupiterianos destruindo a civilização ocidental cristã. O ponto em comum entre os dois polos é o horror à globalização, um processo sem volta. Uma nova guerra mundial? Ou o fim do mundo?

Tudo grandiloquente, eletrizante, como as histórias em quadrinhos do grande Stan Lee, em que heróis com poderes sobrenaturais enfrentam vilões ambiciosos e desalmados que ameaçam a humanidade. Muita ação, cor, fantasia, capas, máscaras e símbolos que saem de escritos e pranchetas e invadem não países, mas revistas, livros, telas e a imaginação de milhões pelo mundo afora. A ficção diverte, mas as teorias conspiratórias e fundamentalistas ameaçam.

Um mesmo personagem faz furor na história em quadrinhos que se mistura com a realidade do Brasil, mas num duplo papel. Ele é excêntrico, grandalhão, usa um topete curioso e cabelos cor de laranja e tem um harém à sua disposição. “Dono” da maior potência política, econômica e bélica, ele faz e fala o que quer. Para a esquerda, ele é o grande vilão a ameaçar a Terra. Para a direita, o único herói, ou Deus, capaz de salvar o Ocidente e os valores cristãos que vêm sendo devorados pela esquerda.

Enquanto a esquerda delira e a direita vai conferindo um arcabouço teórico grandioso para o bolsonarismo, nós, leigos, meros mortais, estamos mais preocupados com questões bem mais urgentes do que invasões extraterrestres, heróis que voam, escalam paredes, dominam oceanos, correm na velocidade da luz e ameaçam o planeta.

O que interessa, de fato, na posse do presidente eleito Jair Bolsonaro, em 2019, é como, com que equipe, com quais parceiros e em que prazo o Brasil vai voltar a crescer, gerar empregos, garantir educação e saúde, avançar na ciência e na tecnologia, investir na infraestrutura, combater a violência e aprofundar a guerra contra a corrupção.

Tudo isso passa pelos ministérios da Economia e das Relações Exteriores e por boas escolhas para as demais pastas. Bolsonaro vinha sendo aplaudido pelos nomes para o GSI, Justiça, Agricultura, Ciência e Tecnologia, pelo compromisso de delegar a formação da equipe econômica para o superministro Paulo Guedes, um liberal, e pela capacidade de ouvir e recuar quando necessário.

O anúncio do diplomata Ernesto Araújo para o Itamaraty, porém, interrompeu os aplausos, atraiu críticas e salpicou o futuro governo de interrogações. As declarações do próprio Bolsonaro sobre política externa já tinham criado ruídos e respostas estridentes da China, do Egito, do Mercosul, de especialistas em comércio e em relações internacionais. E agora, com a intensa circulação dos textos do futuro chanceler a favor do “deus” Trump, contra a “China Maoísta”, o “climatismo”, o “antinatalismo”, o “vazio cultural da Europa”?

O objetivo da política externa e a expertise de diplomatas é atrair simpatia para o Brasil, abrir horizontes, atrair investimentos, facilitar negócios e garantir fartos superávits nas relações comerciais. Se até o maior parceiro comercial e responsável pelo maior superávit é tratado a caneladas, fica difícil. Nem Donald Trump, metido numa capa vistosa, escalando o Empire State, enfrentando demônios e invasores marcianos poderá salvar o Brasil. Aliás, o herói Trump já enfrenta muitos vilões, assim como o vilão Trump já persegue muitos super-heróis. Ele não está nem aí para o Brasil.


Eliane Cantanhêde: Engolir sapos

Governar não é moleza nem para quem tem experiência, partido, programa e equipe. E para quem não tem?

Eunício Oliveira é do MDB, não tem nada de esquerda e apoiou Lula e Fernando Haddad pela força do PT no Nordeste, mas já no primeiro turno Haddad e o próprio Eunício perderam a eleição no Ceará. Coisa rara, o presidente do Senado não se reelegeu.

Assim, ele é um pote até aqui de mágoa e, além de dizer, ele já mostrou que não está nem aí para o presidente eleito: após Jair Bolsonaro dizer que “não é o momento” de reajustar os salários do Supremo e pedir “grandeza” aos senadores, Eunício desdenhou o apelo, pôs o aumento na pauta e ajudou a inflar em bilhões por ano o rombo fiscal.

Para piorar, Paulo Guedes foi infeliz ao falar em “dar uma prensa” no Congresso e as relações entre Executivo e Legislativo começaram a azedar antes mesmo da posse de Bolsonaro e Guedes, em janeiro, e da nova Legislatura, em fevereiro.

É um choque de realidade, porque presidentes da República não fazem o que querem e precisam aprender algo que envolve política, experiência, maturidade e personalidade: engolir sapos. “Crus, fritos, assados, cozidos, grandes, pequenos, sem sal”, acrescenta um velho conhecedor de Brasília.

Bolsonaro cancelou uma audiência com Eunício e, de quebra, outra com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, do DEM. Nós, que não presidimos nada, podemos até elogiar: “Fez muito bem, foi macho”. Mas o sábio de Brasília é cáustico: “Isso é o que o Collor faria”. Nem precisou lembrar o destino do machão das Alagoas.

Governar não é moleza, nem quando o eleito tem estrondoso apoio popular, partido consolidado, alianças sólidas, programa claro, grande experiência de administração e equipe azeitada. Estrondoso apoio popular Bolsonaro tem, mas o resto ele vai ter de aprender e construir com o carro andando, sem bater de frente com o Congresso.

O melhor será ele agir como já age com Michel Temer ou como Sérgio Moro com ele próprio. Bolsonaro é respeitoso com Temer, pela simbologia da Presidência. E Moro mantém suas posições, mas faz inflexões e releva as diferenças com Bolsonaro.

Se acerta nas escolhas para o Executivo – como Joaquim Levy no BNDES –, Bolsonaro tem de articular maiorias no Congresso, compreendendo a complexidade e a multiplicidade dos atores fundamentais para aprovar suas reformas e propostas. Ou seja, para que seu governo dê certo.

A opinião pública empurra Câmara e Senado para o colo do Planalto, mas, se os sapos azedam e a relação vira uma guerra, o governo paralisa e o Congresso começa a empurrar a opinião pública para longe do Planalto. É um jogo que vai além das vontades e exige sobretudo competência.

Três tempos, mesmo diagnóstico, mesmo temor. Coluna de 12/8: “Não se pode transformar embalagem de comportamento social numa candidatura militar e menos ainda numa promessa de governo militar. Além da ameaça para o Brasil, é um enorme risco para as próprias Forças Armadas”.

Coluna de 16/10: “Bolsonaro deveria (...) dar sinais de que não fará um “governo militar”, assim como os comandantes deveriam deixar claro que a candidatura, por mais apoios que tenha de militares, não é das Forças Armadas. Isso pode reduzir dois temores: o dos civis diante da volta do regime militar, e o dos militares diante da contaminação política dos comandos e das tropas”.

Comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, à Folha de S. Paulo de 11/11: “Estamos tratando com muito cuidado essa interpretação de que a eleição dele representa a volta dos militares ao poder. Absolutamente não é. Alguns militares foram eleitos, outros fazem parte da equipe dele, mas institucionalmente há uma separação. E nós estamos trabalhando com muita ênfase para caracterizar isso, porque queremos evitar que a política entre novamente nos quartéis”.


Eliane Cantanhêde: Militares na berlinda

Lamentável que a campanha resgate velhos estigmas e preconceitos, como o de que militares são toscos, turrões, alheios ao mundo fora da caserna - uns “brucutus”.

Se alguém acha que a atual campanha para a Presidência da República está sendo uma boa propaganda para a imagem dos militares, está redondamente enganado. Depois do capitão Jair Bolsonaro, o general Hamilton Mourão e agora o inacreditável Cabo Daciolo, que foi do PSOL e concorre a presidente pelo Patriota. Bom para quem? Na fala dele, sobra Deus e falta a letra “S”.

As Forças Armadas são a instituição mais admirada pela população em todas as pesquisas e os oficiais fazem sofisticados cursos na carreira, passam por escolas superiores de excelência, estudam geopolítica e estratégia. Demoraram anos para se livrar das marcas da ditadura, apesar de ainda não confortáveis com a abertura dos arquivos, e concluir esse ciclo da história.

Lamentável que a campanha resgate velhos estigmas e preconceitos, como o de que militares são toscos, turrões, alheios ao mundo fora da caserna - uns “brucutus”. Eles não são nada disso, mas o que dizer de Bolsonaro? Militar, largou a carreira como capitão por indisciplina e para ser vereador. Deputado desde 1991, no sétimo mandato, nunca se destacou no plenário, nas comissões, nem por projetos: dois em 27 anos. Candidato, demonstra evidente despreparo para governar um País complexo e mergulhado em crise como o Brasil.

Tem-se, pois, que o líder nas pesquisas, quando o nome do ex-presidente Lula não entra, é um militar que não é militar há quase 30 anos e um deputado que critica os colegas, mas é do “baixo clero”, usa imóvel funcional indevidamente e é acusado de desviar funcionários pagos pela Câmara para cuidar de sua casa no Rio. Ele, o filho mais velho, o segundo e o terceiro são políticos e até a ex-mulher tentou ser. Se a política é tão abjeta, o que a família inteira faz dentro dela? Um mistério.

Bolsonaro procurou seu vice entre astronauta, príncipe, pastor, general, socialite, advogada polêmica... O risco seria um príncipe presidindo nossa República ou o Brasil indo para o espaço com o astronauta. Prevaleceu o general Mourão, que já defendeu intervenção militar e já estreou como vice decretando a “indolência” dos índios e a “malandragem” dos negros. E o Exército é justamente reduto e símbolo dessa rica miscigenação brasileira.

Para piorar, os eleitores acabam de descobrir o Cabo Daciolo, que nem chegou a sargento, mas já se imagina presidente. Bombeiro, foi expulso da corporação depois de tentar invadir um quartel. Do PSOL, foi expulso por querer incluir Deus na Constituição. Uma piada, mas uma piada de mau gosto.

Antes mesmo de Daciolo aboletar-se no debate de presidenciáveis na Rede Bandeirantes, o ministro da Defesa, general Joaquim Silva e Luna, já tinha dado o primeiro alerta de que as Forças Armadas não têm nada a ver com essas maluquices. Disse que vê “com naturalidade” Mourão na vice de Bolsonaro, mas frisando que não se trata de “uma chapa de militares”. Leia-se: “Não temos nada a ver com isso”.

Quem conhece de dentro as Forças Armadas e os generais Luna e Silva, Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército, e Sérgio Etchegoyen, do Gabinete de Segurança Institucional, aplaudiu a fala: “Eles têm de se distanciar rapidamente dessa aventura do Bolsonaro, porque, depois que cola, não descola mais”.

Bolsonaro atraiu legiões de seguidores nas redes sociais com a condenação à corrupção e um discurso conservador e caro à expressiva parcela da população, senão à maioria, na área de costumes: família tradicional, papel das mulheres, drogas, aborto. Ok, é um direito de quem prega e de quem segue. Só não se pode transformar essa embalagem de comportamento social numa candidatura militar e menos ainda numa promessa de governo militar. Além da ameaça para o Brasil, é um enorme risco para as próprias Forças Armadas.