Eliane Brum
Eliane Brum: Mourão, o moderado
A volta dos generais ao poder no governo do capitão que vai virando o bode na sala
Em agosto de 2018, Eduardo Bolsonaro disse à Folha de S. Paulo: “Sempre aconselhei o meu pai: tem que botar um cara faca na caveira pra ser vice. Tem que ser alguém que não compense correr atrás de um impeachment”. Depois de várias tentativas fracassadas, Jair Bolsonaro acabou escolhendo o general da reserva Hamilton Mourão para ser seu vice na chapa que acabou vitoriosa. Ele atendia ao requisito exposto pelo terceiro filho, o de proteger o presidente, a partir da sombra das Forças Armadas.
Por um lado, um país que viveu 21 anos de ditadura militar, no qual centenas foram sequestrados, torturados e mortos, deveria ter resistência à volta de um general no comando da nação. Até então, os defensores do retorno da ditadura militar formavam um grupo minoritário, meio amalucado e sempre apontado nos movimentos da “nova direita”, na Avenida Paulista, epicentro das manifestações de rua no Brasil. Por outro lado, o vice estaria sintonizado com os quartéis para garantir a presidência, muito mais do que um capitão que chegou a ser preso por indisciplina e que, nas últimas três décadas, tornou-se político profissional. O vice “faca na caveira” seria um seguro anti-impeachment para Bolsonaro.
Hoje, ao final de um primeiro mês de governo com mais crises do que qualquer um dos anteriores, o “mito” começa a ser desmitificado por parte dos mitômanos que o elegeram, já recebe críticas pesadas dentro do seu partido e os descontentamentos no núcleo duro do governo são perceptíveis. Mourão, que até então era conhecido como uma língua solta e truculenta acima das quatro estrelas do peito, tornou-se, por comparação, um exemplo de sensatez, diplomacia e bons modos. Com o bode na sala, outros espécimes tornam-se subitamente aceitáveis.
O “faca na caveira” é elogiado por diplomatas como o embaixador da Alemanha, que diz ter tido uma conversa “excelente” com Mourão, e manda afagos à imprensa pelo Twitter, a mesma rede social em que a família Bolsonaro ataca os jornalistas, algo que funcionou na campanha mas está dando sinais de esgotamento. Mourão, o gentleman, tuitou em 23 de janeiro: “Quero agradecer a atenção e cumprimentar pela dedicação, entusiasmo e espírito profissional a todos os jornalistas que me recebem na minha chegada e de mim se despedem quando deixo o anexo da vice-presidência. Boas matérias a todos!”.
Tudo é uma questão de referência. E, quando a referência é Bolsonaro, é fácil um Mourão soar moderado. Em caso de naufrágio, qualquer tábua de pinho vira navio.
Era melhor ele “Jair se acostumando”, mas Jair não se acostuma
Mourão melhorou? Não. Bolsonaro piorou? Não. O que acontece é que agora Bolsonaro é o presidente. Era melhor ele "Jair se acostumando", mas Jair não se acostuma. Segue acreditando que ainda está fazendo campanha e que continuará ganhando no grito das redes sociais.
A série de tuítes que publicou após a divulgação de que o deputado federal eleito Jean Wyllys (PSOL) deixaria o país por ter medo de ser morto é a expressão do comportamento de Bolsonaro. Wyllys, o primeiro deputado declaradamente gay a assumir uma cadeira no Congresso, iniciaria em fevereiro o terceiro mandato. Recebendo ameaças de morte semanais, andava com escolta policial desde março de 2018, quando sua colega de partido, a vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco, teve a cabeça arrebentada a tiros, um crime até hoje não apurado e impune.
Entre as ameaças que o parlamentar recebeu, estavam as seguintes, conforme divulgou o jornal O Globo: “Vou te matar com explosivos", "já pensou em ver seus familiares estuprados e sem cabeça?", "vou quebrar seu pescoço", "aquelas câmeras de segurança que você colocou não fazem diferença". E esta: “Vamos sequestrar a sua mãe, estuprá-la, e vamos desmembrá-la em vários pedaços que vamos te enviar pelo Correio pelos próximos meses. Matar você seria um presente, pois aliviaria a sua existência tão medíocre. Por isso vamos pegar sua mãe, aí você vai sofrer”.
Duas horas depois da notícia de que deixava o Brasil, uma mensagem foi enviada a Jean Wyllys: "Nossa dívida está paga. Não vamos mais atrás de você e sua família, como prometido. Mesmo após quase dois anos, estamos aqui atrás de você e a polícia não pôde fazer nada para nos parar".
O que deveria fazer o presidente de um país em que um parlamentar é obrigado a abdicar do mandato para salvar a vida? Certamente não mandar uma série de tuítes, começando por “Grande dia!”, seguido por um sinal de positivo. Depois, claro, Bolsonaro disse que se referia ao cumprimento de sua “missão” no Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça.
Bolsonaro tinha 45 minutos para falar sobre o Brasil, mas só usou seis: “grande fracasso”, definiu um dos principais jornais do mundo
Também no nível escolar (ruim) foi o seu discurso em Davos. Tinha 45 minutos disponíveis para falar sobre seu projeto para o Brasil para uma plateia internacional altamente qualificada e influente. Só ocupou seis minutos e meio. Aparentemente não tinha o que dizer. Diante do público de Davos, sua apresentação foi um “big fail” (grande fracasso), como definiu o jornal americano Washington Post. No púlpito, o presidente do Brasil soava como um estudante medíocre de colégio, apresentando um trabalho copiado de um colega, porque nem convicção havia. As frases não se conectavam umas com as outras.
“Fiasco” foi a palavra usada por uma colunista do jornal francês Le Monde, no Twitter, para definir a participação do presidente do Brasil. Para ampliar o vexame, Bolsonaro, o superministro da economia, Paulo Guedes, o superministro da Justiça, Sergio Moro, e o superdelirante chanceler, Ernesto Araújo, não apareceram para a entrevista coletiva à imprensa. Foram três explicações diferentes, nenhuma convenceu sobre o porquê do desrespeito que chocou jornalistas e os organizadores do fórum. Desconfia-se, porém, que Bolsonaro temia perguntas difíceis sobre o escândalo que ronda o primeiro filho e alcança a conta bancária de sua mulher. Afinal, os jornalistas que cobriam Davos não eram repórteres de estimação.
Bolsonaro, como presidente, é o que sempre foi, aquele tio que constrange as pessoas na festa, porque tosco e sem noção. De esconder sua natureza, ninguém pode acusá-lo. Ele sempre foi isso aí. Dava para fingir que era “mito” enquanto tudo ficava no nível de torcida de futebol. Na presidência da República, porém, sua figura se desloca para outro lugar.
Não é mais Bolsonaro, “o mito”; também não é Bolsonaro, “o coiso”. É a presidência da República, lugar com mística própria, ocupada pela mediocridade. E a mediocridade é perigosa. Os olhos de parte do mundo, como em Davos, percebem e se horrorizam. "Ele me dá medo”, disse Robert Shiller, prêmio Nobel de Economia e professor na Universidade de Yale, depois de ouvi-lo. “O Brasil é um grande país. Merece alguém melhor."
Brasileiros que votaram em Bolsonaro pelas mais diversas razões, mas que não perderam a capacidade de fazer sinapses, passam a enxergar Bolsonaro agora com olhos de fora do gueto. O deslocamento de lugar, do palanque para o palácio, torna a bolha ocular permeável. Não é por acaso que Bolsonaro tampouco consegue deixar o discurso de candidato. Ele não sabe como ocupar o lugar de presidente. Também ele acusa a dificuldade do deslocamento. Afinal, não era uma brincadeira. Não basta mais arrotar bravatas. Do presidente as pessoas querem resultados na vida cotidiana. E não querem ver o mundo rir do despreparo pelas suas costas.
A divulgação da imagem de Bolsonaro almoçando no bandejão de Davos foi uma tentativa de candidato em campanha, de forjar a identificação, mas foi ofuscada pelo desempenho real do presidente eleito. O mundo não está gritando “mito!”, “mito!”. O mundo está perplexo com o vazio de Bolsonaro, o medíocre, liderando um país com o tamanho do Brasil e a maior porção da floresta amazônica em seu território.
Bolsonaro ocupa o cargo, está dado, já é. Vai para diante do mundo e faz um discurso de garoto de escola que estuda pouco e não presta atenção às aulas. Mesmo quem fez campanha contra tudo o que ele representa, torceu nesta hora para que algum assessor tivesse feito o trabalho para o qual é pago. Porque agora é o Brasil. O vexame de Bolsonaro é a vergonha de todos.
Neste mundo em que Bolsonaro é presidente do Brasil há garotas de escola como a sueca Greta Thunberg, de 15 anos, que no fim de agosto iniciou uma greve pelo clima. Deixou de ir às aulas e postou-se diante do parlamento, em Estocolmo, para protestar dia após dia contra a incompetência e a omissão dos políticos no enfrentamento da crise climática. Desde então, Greta inspira jovens e protestos estudantis em diversas partes do planeta.
Convidada a discursar na Cúpula Mundial do Clima, na Polônia, Greta, uma trança de cada lado do rosto redondo, fez uma fala que se tornou viral pela inteligência. Terminou com o seguinte recado à plateia sênior e ilustre: “Viemos até aqui para informar (aos líderes mundiais) que a mudança está a caminho, queiram eles ou não. As pessoas se unirão a este desafio. E já que nossos líderes se comportam como crianças, teremos que assumir a responsabilidade que eles deveriam ter assumido há muito tempo”.
Se Bolsonaro quer se comportar como garoto de escola, que seja com o nível de maturidade de Greta. É neste mundo que Bolsonaro passa a representar o Brasil. Não há paciência para um presidente que não tem o que dizer e para um chanceler que afirma que aquecimento global é um complô marxista. Como aponta Greta, os problemas do mundo são grandes demais para que os adultos abdiquem da maturidade necessária a uma época de crise climática, condenado jovens como a ela a ter um futuro muito ruim – ou mesmo nenhum futuro.
Homens como Paulo Guedes e Sergio Moro podem sofrer um tanto por desfilar seus peitos de peru de Natal ao lado de Bolsonaro
É possível supor que homens com a vaidade de Paulo Guedes e Sergio Moro devam sofrer um tanto por desfilar seus peitos de peru de Natal ao lado de Bolsonaro e sua entourage, em salões internacionais onde gostariam de brilhar por seu verniz intelectual. Mas se a questão fosse só a mediocridade, talvez fosse tolerável.
O problema é que o primeiro mês de governo acaba, e é só o primeiro mês de governo, com evidências contundentes de que a família Bolsonaro – e não apenas o primeiro filho, Flávio Bolsonaro – pode estar envolvida em corrupção. E corrupção foi a grande bandeira que moveu as massas nos protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff e no apoio à candidatura Bolsonaro.
Como então explicar os depósitos na conta bancária do primeiro filho pelo ex-policial militar Fabricio Queiroz, ex-assessor, ex-motorista e sempre amigo de Flávio Bolsonaro? Como explicar os 40 mil reais na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro? Como explicar o enriquecimento de Flávio Bolsonaro, incompatível com seus ganhos? Como explicar que Flávio Bolsonaro pediu foro privilegiado ao Supremo Tribunal Federal – e por enquanto levou, graças ao inacreditável (em vários sentidos) ministro Luiz Fux? Como explicar o que todos os envolvidos têm feito tudo para não explicar?
Bolsonaro se atrapalha com os próprios pés. Não sabe se deve se comportar como presidente do Brasil ou como pai de filho mimado. Possivelmente porque não há como desfazer os nós desse novelo. Como quando disse ao jornal O Globo: “Não é justo atingir o garoto, fazer o que estão fazendo com ele, para tentar me atingir. (...) Ao meu filho, aquele abraço. Fé em Deus que tudo será esclarecido, com toda certeza”.
O “garoto” tem 37 anos, é senador eleito da República e foi deputado estadual do Rio de Janeiro por quatro mandatos. Além de enriquecer rapidamente, o primeiro filho desenvolveu o dom divino da onipresença, ao conseguir a façanha de estar em duas cidades, dois estados, ao mesmo tempo. Como revelou a BBC News Brasil, entre 2000 e 2002 ele trabalhou em Brasília como assistente técnico de gabinete do PPB, partido de Bolsonaro em seu terceiro mandato como deputado federal, um emprego de 40 horas semanais. Ao mesmo tempo, cursava a faculdade de Direito na Universidade Cândido Mendes e fazia um estágio na Defensoria Pública do Estado, no Rio de Janeiro.
Ao ser indagado pela jornalista do Washington Post Lally Weymouth sobre o escândalo envolvendo seu filho, que teria “empregado pessoas com laços estreitos com membros de gangues”, Bolsonaro quase deu piti : “Este não é um assunto de governo – ou da sua conta – mas eu vou dar a minha opinião. Seu nome de família, Bolsonaro, é a razão. É resultado de acusações políticas ao meu governo”. Neste momento, até mesmo bolsonaristas fiéis começam a achar que as suspeitas que pairam sobre o primeiro filho são da conta de todos os brasileiros, sim.
Aliados estratégicos como o MBL e Janaína Paschoal começam a afastar o corpinho
Aliados estratégicos tanto no impeachment de Dilma Rousseff quanto no apoio à campanha de Bolsonaro começam a afastar o corpinho para o lado, a exemplo do Movimento Brasil Livre (MBL), que só tem compromisso com seu próprio projeto de poder. E como a deputada estadual Janaína Paschoal (PSL), uma das autoras do pedido de impeachment que acabou afastando Rousseff, eleita por São Paulo com dois milhões de votos. Não há espaço para bobos nesse jogo pesado.
“Não sou guru dessa porcaria”, diz o guru
Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Janaina Paschoal afirmou: "(Flavio Bolsonaro) tem todo o direito à defesa, a entrar com todas as medidas, mas me parece complicado ver uma reação parecida com a que foi a do Aécio (Neves), e com a que é a do Lula até hoje”. E, em outro trecho: “O sigilo sobre a investigação não pode haver. Vamos imaginar que haja alguma coisa errada com o senador. Se isso tivesse aparecido antes da eleição, ele provavelmente não teria sido eleito". Paschoal contou também que seu pai perguntou a ela se continuaria no PSL após essas denúncias. Ela está pesquisando a legislação para ver se é possível deixar o partido sem perder o mandato.
Até mesmo o guru do governo Bolsonaro, Olavo de Carvalho, anda se irritando por ser chamado de guru do governo Bolsonaro. Quando um grupo de parlamentares do PSL foi para a China, ele gravou um vídeo dizendo: “E eu sou guru dessa porcaria? Não sou guru de merda nenhuma”.
Um escândalo de corrupção no primeiro mês de qualquer governo é um problema. Um escândalo de corrupção no primeiro mês de um governo que apoiou sua plataforma no discurso fácil da anticorrupção é um pesadelo. As suspeitas, porém, vão muito além da corrupção. Elas alcançam relações mais perigosas. E não com qualquer crime, mas um crime de repercussão internacional: o assassinato de Marielle Franco, uma vereadora negra, lésbica e moradora da Maré, ocorrido há quase 11 meses sem que a polícia tenha concluído a apuração. Quando 2018 terminou, as autoridades responsáveis chegaram ao fundo do buraco sem fundo: tentavam apurar porque não conseguiam apurar o crime. Hoje, finalmente, a investigação começa a avançar. E chega bem perto da família do presidente.
Flávio Bolsonaro pode estar envolvido com a milícia Escritório do Crime, principal suspeita do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes. A mãe e a mulher do ex-capitão da PM Adriano da Nóbrega, um dos líderes da milícia e hoje foragido, trabalhavam no seu gabinete. Como deputado estadual, Flavio deu a Nóbrega a medalha Tiradentes, a maior honraria da Assembleia Legislativa do Rio. Na ocasião, o então PM estava preso por um dos homicídios atribuídos a ele.
As milícias cariocas são organizações criminosas formadas majoritariamente por agentes do Estado ligados às forças de segurança, como policiais civis e militares, bombeiros, agentes penitenciários e integrantes do Exército. Os vários episódios em que Flavio apoiou e protegeu esses criminosos que extorquem e aterrorizam as comunidades pobres, assim como matam por encomenda, são agora lembrados. As conexões tornam-se mais explícitas à luz dos novos fatos.
Dois pesos, duas medidas: o filho de 37 anos, que pode estar envolvido com milícias e corrupção, é “garoto”; já para os garotos dos pobres têm que reduzir a maioridade penal já
O presidente que, tão logo assumiu, liberou a posse de armas de fogo num país com quase 64 mil assassinatos por ano tem um filho próximo das milícias que produzem crimes. É interessante observar a diferença dos pesos e medidas: o filho de 37 anos, senador eleito, seria um “garoto” vítima de uma campanha difamatória para atingir seu governo, na versão do presidente do Brasil. Já para os filhos dos outros, a maioria negros e pobres, os que de fato são garotos, a turma de Bolsonaro defende cadeia já. Quando não pena de morte. Para o próprio filho, maioridade penal aumentada para, quem sabe, 40 anos. Para os filhos dos outros, maioridade penal reduzida.
Queiroz é uma bomba-relógio bem no meio da mesa de pão com leite condensado e copos de plástico da família Bolsonaro, aquela que apostou no marketing do gente como a gente na campanha eleitoral. Mas quem quer agora ser gente como essa gente?
Apenas no primeiro mês de governo, a família Bolsonaro aparece com suspeitas de envolvimento com corrupção e de proximidade com a milícia que pode ter assassinado uma das mais atuantes vereadoras de esquerda da nova geração de parlamentares. O que virá nos próximos meses ou nos próximos quatro anos? A pergunta não assombra apenas os opositores, começa a tirar o sono dos aliados.
Este pode não ser um problema para Paulo Guedes, já que os chamados Chicago Boys não tiveram dilemas morais ou éticos para comandar a economia na ditadura de Augusto Pinochet, entre os anos de 1973 e 1990, no Chile. Lá implantaram um programa extremista neoliberal só possível num regime de exceção, que não precisa convencer a sociedade ou negociar com ela, apenas impor medidas pelo caminho autoritário.
Pode, porém, ser um problema para Sergio Moro, que quer muito passar para a história como o herói anticorrupção, o superjuiz da Lava Jato que “limpou” o Brasil. Moro pode estar se perguntando como fará para não manchar sua capa no esgoto dos Bolsonaro. Já não estava fácil conviver com ministros que veem Jesus em goiabeira e acusam a esquerda de criminalizar o ar-condicionado. Mas o dedão do Queiroz na conta bancária da primeira-dama é de outra ordem.
Quando Bolsonaro despontou como o possível vitorioso desta eleição, diferentes elites se aproximaram dele com a certeza de que poderiam usar sua popularidade para chegar ao poder – ou apenas para mantê-lo. Setores do Exército sabiam que ele era um capitão que não respeitava hierarquia, um subordinado que já tinha se mostrado fora de qualquer controle, o que determinou tanto sua saída das Forças Armadas quanto o início de uma carreira de quase três décadas como deputado bufão. Mesmo assim, decidiram arriscar.
Estavam errados? Depende do ponto de vista e dos objetivos. A operação que levou ao poder um capitão reformado notável pelo despreparo, mas que se mostrou altamente popular, é brilhante. Bolsonaro não representava as Forças Armadas. O que ele podia representar, com quase 30 anos no baixo clero do Congresso, é o baixo clero do Congresso. Mas Bolsonaro usou o Exército e foi usado por ele.
O terceiro filho, Eduardo Bolsonaro, não estava totalmente errado ao dizer que o pai se colocaria além do risco de impeachment se tivesse como vice um general. Ele estava, ao mesmo tempo, reconhecendo o trauma deixado pela ditadura e usando o trauma deixado pela ditadura a favor da família. Aparentemente, seria muito difícil um general se eleger presidente pelo voto num país que amargou 21 anos de um regime de exceção comandado por uma sequência de generais. Aparentemente, seria difícil que os brasileiros desejassem que um vice que também é general passasse a ocupar o posto máximo da República. Aparentemente, Mourão usaria sua proximidade com as forças armadas para proteger o mandato de ambos.
Ao apoiar a eleição de Bolsonaro, os generais conseguiram uma façanha como estrategistas políticos
Ao apoiar a eleição de Bolsonaro, os generais da ativa e da reserva conseguiram uma façanha como estrategistas políticos. A composição do governo Bolsonaro é complexa. Mas, de tudo o que é, este é um governo militarizado: o vice-presidente é general da reserva, o porta-voz é um general da ativa e sete ministros são militares, o equivalente a um terço do ministério. Segundo o jornalista Rubens Valente, em reportagem da Folha de S. Paulo de 20 de janeiro, já passam de 45 os militares nomeados ou prestes a serem nomeados em 21 áreas do governo, “da assessoria da presidência da Caixa Econômica ao gabinete do Ministério da Educação; da diretoria-geral da hidrelétrica Itaipu à presidência do conselho de administração da Petrobras”.
O número de militares no governo cresce a cada dia. É um grande poder não apenas de influência, mas de ação, com “uma força econômica que ultrapassa as centenas de bilhões de reais”. O que falta para ser um governo militar? Esta é uma pergunta que não tem resposta fácil, mas cuja resposta já está sendo construída.
As Forças Armadas devem a Bolsonaro a volta dos militares ao poder na democracia
As Forças Armadas, e especialmente o Exército, consumaram a proeza de voltar ao poder na democracia. Devem isso a Bolsonaro. O então deputado, com sua estridência e histrionismo, prestou vários serviços às fardas. O Brasil não lidou com o seu passado. Os sequestradores, torturadores e assassinos a serviço do Estado no período da ditadura militar (1964-85) nunca foram punidos, como foram exemplarmente em países vizinhos, caso da Argentina e do Chile. A operação de apagamento da memória teve um custo alto para o Brasil e é um dos principais fatores que levaram o país à situação atual, como já escrevi neste espaço mais de uma vez.
Até mesmo o tímido esforço que foi feito, no governo de Dilma Rousseff (PT), para esclarecer os crimes do período de exceção, incomodou a cúpula militar. Ainda hoje há mais de 200 desaparecidos pelo regime. Suas famílias estão condenadas a viver sem conseguir enterrar seus mortos e fazer o luto. Mesmo assim, os generais detestaram a Comissão Nacional da Verdade, que apontou mais de 300 agentes do Estado envolvidos com sequestros, torturas e assassinatos. E olharam com muita preocupação para as pressões de vários atores da sociedade civil para revisar a Lei da Anistia no Supremo Tribunal Federal.
Ao homenagear o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos mais sádicos torturadores e assassinos da ditadura, em seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff, Jair Bolsonaro presta um grande serviço à revisão da história que uma parcela dos militares de alta patente tanto desejam. Tinha que ser alguém fora de controle para homenagear um torturador no impeachment de uma presidente que foi torturada pelo regime de exceção e, assim, romper a barreira do que os ultradireitistas chamam erroneamente de “politicamente correto”. O descontrole que levou Bolsonaro a deixar as forças armadas e iniciar a carreira política, neste novo momento do país passara a se tornar útil para alguns peitos estrelados. Sempre é preciso um fanfarrão sem escrúpulos para que os moderados possam continuar polindo as suas espadas.
A eleição de Bolsonaro significou a chance de mudar a história. E uma parcela dos militares de alta patente quer muito mudar a história. Ou evitar que ela seja finalmente passada a limpo.
Em 2017, o atual vice-presidente, Hamilton Mourão, defendeu um golpe militar caso o judiciário não punisse os corruptos: ou o judiciário punia os corruptos do país “ou então nós (do Exército) teremos que impor isso”. Antes, em 2015, já havia perdido o prestigioso comando das forças militares do sul pela soltura da língua, ao afirmar numa palestra que a substituição da presidenta Dilma Rousseff teria como vantagem “o descarte da incompetência, má gestão e corrupção”. No início de 2018, Mourão foi para a reserva.
Mourão, o recém convertido ao evangelho da moderação, ocupa hoje o único cargo em que não pode ser demitido por Bolsonaro
Vejam só onde está agora: no único cargo em que não pode ser demitido por Bolsonaro, porque também foi eleito. Mourão, o que afirmou à Globo News admitir o “autogolpe” com “o emprego das Forças Armadas”, em caso de “anarquia”. Mourão, aquele que defendeu uma constituinte sem participação popular, feita por uma “comissão de notáveis”. Mourão, o que chamou os africanos de “malandros” e os indígenas de “indolentes”. Mourão, o que disse que as famílias chefiadas por mães e avós nas comunidades pobres eram “uma fábrica de desajustados”. Mourão, aquele que chamou o décimo-terceiro salário de “jabuticaba nacional”. Mourão, que também admira o torturador Ustra, a quem justificou os atos criminosos com a seguinte frase: “Heróis matam”.
Este homem despontou no primeiro mês de governo como Mourão, o moderado. Ou Mourão, o sensato. Ou ainda Mourão, o gentil. Não apenas porque Bolsonaro vai se tornando rapidamente um bode com odor cada vez mais forte numa sala que se tornou apertada pelo acúmulo de fardas e estrelas no peito, mas também porque Mourão tem se esforçado bastante para poder convencer o Brasil da autenticidade do seu novo papel.
Até mesmo o escândalo da promoção do filho do vice, que numa canetada teve o salário elevado de 14 mil para 36.500 reais, desidratou diante das suspeitas que pesam sobre o filho do presidente. Afinal, nesta disputa inglória, o que é uma promoção de um funcionário de carreira do Banco do Brasil comparada à suspeita de corrupção e envolvimento com milícias? Este é o tipo de escolha que o Brasil precisou fazer no primeiro mês do governo.
Não é de hoje que Mourão desautoriza Bolsonaro, tratando-o como o garoto que ele parece ser. Como quando disse à jornalista Mônica Bergamo, na Folha de S. Paulo: “Não podemos nos descuidar do relacionamento com a China (...) Aquilo (a declaração de que a China está tentando comprar o Brasil) é mais uma retórica de campanha, né? Com as redes sociais, muita coisa flui e não é a realidade. Uma briga com a China não é uma boa briga, certo?”. Ou: “Não resta dúvida de que existe aquecimento global, não acho que seja uma trama marxista”.
Na segunda-feira (28/1), encontrou-se com o embaixador da Palestina e botou em dúvida a várias vezes anunciada transferência da embaixada do Brasil em Israel, de Tel Aviv para Jerusalém, uma promessa de Bolsonaro aos evangélicos neopentecostais que veem a cidade como o futuro palco do Armageddon. “O Estado brasileiro, por enquanto, não está pensando em nenhuma mudança da embaixada”, afirmou no dia em que Bolsonaro fez sua terceira cirurgia após o atentado à faca sofrido durante a campanha eleitoral.
Enquanto sorri e distribui fofoletices, Mourão acaba, na prática, com a Lei de Acesso à Informação
Enquanto sorri para embaixadores e empresários e manda recados amistosos para a imprensa pelo Twitter, Mourão diz bastante sobre o quê de fato representa. Ao assumir a presidência do país quando Bolsonaro estava em Davos, ele na prática acabou com a Lei de Acesso à Informação, promulgada por Dilma Rousseff, uma conquista da sociedade e da democracia em favor da transparência. O decreto de Mourão amplia – e muito – o número de pessoas que podem classificar documentos do governo como ultrassecretos, o que os torna inacessíveis por 25 anos, que podem ser prorrogados por mais 25 anos. Agora, até uma parcela dos funcionários comissionados têm o poder de evitar que a população tenha conhecimento dos atos do governo. É a ação mais contundente de censura – e é só o primeiro mês. É também uma canetada compatível com um regime de exceção.
Diante do anúncio de Jean Wyllys de que não assumiria o mandato para o qual foi eleito e deixaria o país para não ser morto, Mourão soou mais moderado na imprensa. Mas comparado a quem? Ao presidente que faz molecagens no Twitter.
A declaração mais valorizada de Mourão foi: “Quem ameaça parlamentar está cometendo um crime contra a democracia. Uma das coisas mais importantes é você ter sua opinião e ter liberdade para expressar sua opinião. Os parlamentares estão ali, eleitos pelo voto, representam cidadãos que votaram neles. Quer você goste, quer você não gosta das ideias do cara, você ouve. Se gostou bate palma, se não gostou, paciência”.
A declaração que mais demanda atenção é: “Temos que aguardar quais são essas ameaças, porque ele falou de forma genérica. Se ele está ameaçado tem de dizer por quem e como. Não estou na chuteira do Jean Wyllys. Ele que sabe qual é o grau de confusão que ele está metido”.
Primeiro: quem tem que investigar e descobrir os culpados é a Polícia Federal. Segundo: não há nada de “genérico” nas denúncias que foram feitas por Jean Wyllys e que geraram uma medida cautelar da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, determinando que o Estado brasileiro garantisse a proteção do deputado e de sua família. As ameaças de morte contra o deputado tanto não são genéricas que o ministério da Justiça de Sergio Moro se apressou a dizer que a Polícia Federal estava investigando e que já tinha prendido pelo menos um dos responsáveis. Terceiro: a frase sobre “o grau de confusão que ele está metido” claramente busca culpar a vítima. Ameaça de morte não é “grau de confusão”. É ameaça de morte, é crime.
Mourão se moderou, mas ainda sofre de incontinência verbal, afinal não se muda de uma hora para outra os hábitos de uma vida inteira. O vice que já assumiu duas vezes a presidência no primeiro mês de governo é como o escorpião da fábula: quase chega à outra margem do rio, mas não consegue deixar de picar o sapo que o transporta. Um problema, possivelmente, para o grupo de generais no poder.
Por enquanto, porém, Mourão tem encarnado o adulto na sala. É o pai do garoto. Que, por sua vez, é pai de outro garoto, o amigo e ex-empregador do Queiroz. Este, por sua vez, não é garoto – e sim a primeira sombra do governo de Bolsonaro. E que sombra.
Qualquer declaração de Mourão soa melhor do que os emoticons de Bolsonaro. A operação mental que caracteriza o desespero faz com que mesmo os mais céticos se agarrem a qualquer promessa de equilíbrio. Bolsonaro tem feito uma parcela crescente de brasileiros se sentirem muito inseguros. Mesmo quem votou nele e segue brigando por ele nas redes sociais, com a elegância habitual, sabe que não faz sentido. Ele já está eleito. O problema agora é que governa.
Amador, o clã Bolsonaro acreditou cedo demais que tinha enterrado a imprensa
Entre os erros do clã Bolsonaro e de seu entorno está o de acreditar que a imprensa está morta. Não é tão fácil assim. As redes sociais e plataformas da internet têm poder, especialmente quando são fraudadas as regras eleitorais usando o WhatsApp, mas a TV ainda é o principal veículo de informação da população no Brasil. Parte da imprensa brasileira tem feito jornalismo como há tempo não se via. Uma pena que não tenha sido sempre assim.
Todos ganham com a imprensa fazendo bem o seu trabalho. É preciso continuar prestando atenção no jogo pesado que se faz por cima, no andar dos donos do poder. Bolsonaro se tornou impossível de engolir, porque entrou em confronto direto com parte das famílias proprietárias dos grandes meios de comunicação. Mas isso sempre pode ser alterado. Pesa contra ele, porém, sua imprevisibilidade, já que ele costuma mudar de ideia e descumprir os acordos. Por outro lado, esses mesmos proprietários cultivam boas relações jamais perdidas com a cúpula militar. Os próximos dias mostrarão quem faz bom jornalismo sempre, e não só conforme a ocasião.
Quando fez o seu vaticínio, o terceiro filho não poderia saber que efeito Bolsonaro teria no poder. Feito à imagem e semelhança do pai, o filho se olha no espelho e também se acha o máximo. Circula apenas pelas bolhas e todos dizem que sua família é incrível. A realidade vem mostrando que, diante de um Bolsonaro ameaçado pelo escândalo da corrupção e do envolvimento com a milícia suspeita de assassinar Marielle, o vice “faca na caveira” pode assustar menos. Muito menos. O vice “faca na caveira” vem se tornando uma referência de autoridade, confiança e equilíbrio, objetivo claro de todos os movimentos de Mourão num jogo que o clã Bolsonaro tem a ilusão de dominar, mas só conhece meia dúzia de estratégias.
Manter Bolsonaro com a faixa e como fachada, mas sob controle, pode se tornar impossível se as investigações aprofundarem as conexões familiares com a corrupção e as milícias
O Bolsonaro fanfarrão pode ser tolerado. Alguns dos grupos que sustentam seu governo acreditaram, em minha opinião com excesso de otimismo, que poderiam manipular e controlar o cabeça de chapa. Mas o Bolsonaro que pode estar envolvido com corrupção e tem um filho próximo às milícias assassinas do Rio de Janeiro é muito mais complicado. Começa a ficar constrangedor e impossível de justificar. Conforme o desenrolar dos fatos, o barulho do ralo pode ameaçar o projeto de poder. Já não há como voltar atrás: os militares foram fundo, já se tornaram fiadores do atual governo.
O que fazer então com Bolsonaro, este que chega ao final do primeiro mês com a popularidade começando a desidratar? O que era o plano de alguns, mantê-lo com a faixa e como fachada, afinal ele é o “mito”, mas sob controle, pode deixar de ser uma alternativa viável se as investigações descobrirem mais esqueletos no armário dos Bolsonaro. Conforme a apuração, tanto da corrupção quanto do assassinato de Marielle, um impeachment pode ser inevitável, como alguns articulistas já apontaram. Mas é traumático demais e muitos tentarão evitar o segundo afastamento de um presidente eleito na sequência, o terceiro desde a redemocratização. Há outras possibilidades, entre elas o afastamento por problemas de saúde, por exemplo. Tudo depende do que as investigações vão revelar nas próximas semanas e meses.
Bolsonaro já sentiu na nuca o bafo de Mourão, tanto que decidiu despachar, pelo menos oficialmente, da cama do hospital onde se recupera de uma cirurgia. Afinal, em pouco mais de três décadas o Brasil já teve três vices assumindo o poder – um por morte do titular, os outros dois por impeachment. Até Olavo de Carvalho, o guru de Bolsonaro, anda nervoso. Fez um vídeo desancando Mourão. Sem seu adorador, o guru perde o prestígio recém adquirido. Os constrangedores ministros que indicou – e emplacou – também podem virar passado.
O futuro próximo do governo depende em grande parte do desempenho da economia. Os brasileiros já comprovaram que podem conviver com qualquer coisa se a vida cotidiana melhorar ou se sentirem que tem alguma vantagem. As várias vitórias de Paulo Maluf, no maior colégio eleitoral do país, estão aí para não deixar ninguém esquecer.
O que os militares querem? Reescrever a história
O que os militares querem? Muito. Talvez o que mais queiram seja mudar o passado e reescrever seu papel na história do Brasil, como já ficou claro. Penso que também queiram escrever um futuro que redima a imagem que desejam de todo jeito apagar. Já começam a aparecer como heróis, como repositório de confiança num governo povoado por delirantes, no sentido estrito da palavra, e/ou oportunistas.
Não é aconselhável tentar prever o futuro, só é possível ler os sinais do presente. O fato mais revelador do primeiro mês do governo militarizado de ultradireita é: o parlamentar que cuspiu em Bolsonaro quando ele homenageou Ustra, um torturador da ditadura que levava crianças pequenas para ver os pais torturados, foi obrigado a deixar o Brasil para não ser assassinado.
(Volto à coluna em 27 de fevereiro. Até lá.)
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Eliane Brum: O chanceler quer apagar a história do Brasil
Como o ideólogo do governo Bolsonaro usa José de Alencar para pregar a assimilação dos indígenas e justificar a abertura de suas terras para o agronegócio
“Vamos ler menos The New York Times, e mais José de Alencar e Gonçalves Dias”, afirmou o chanceler do bolsonarismo, Ernesto Araújo, em seu discurso de posse. Por quê?
Prestar atenção ao que diz o chanceler Ernesto Araújo tem sem mostrado tarefa penosa, mas fundamental para compreender como a ideologia do Governo Bolsonaro está sendo construída. O diplomata foi indicado por Olavo de Carvalho, considerado o “guru da nova direita” brasileira, desde sua casa nos Estados Unidos. Claramente, Araújo tem a pretensão de dar a base intelectual ao que o bolsonarismo chama de “nova era”. Se integrantes mais preparados do governo concordam, há dúvidas robustas para suspeitar que não. Araújo, porém, segue firme em seu propósito, publicando artigos onde consegue espaço.
O discurso de posse como novo ministro de Relações Exteriores é uma falsificação da história, com o objetivo de justificar o presente e o futuro próximo. Para fazer parecer que a estrutura parava em pé, o chanceler usou seu grego, seu latim e até mesmo seu tupi, abusou do recurso do name-dropping (ótima expressão em língua inglesa para aqueles que desfiam nomes e citações para impressionar o interlocutor), dos clássicos à cultura pop. Todos já bem mortos, para que nenhum deles pudesse contestar a citação. Nenhuma de suas escolhas é um acaso. Vale a pena se deter em cada uma delas porque, como já escrevi neste espaço, os malucos agora sapateiam no palco — e sapateiam com poder de destruição.
Ernesto Araújo é um personagem ainda obscuro para o Brasil, embora seja um diplomata de carreira do Itamaraty. Em seu discurso, ele dispôs de figuras e acontecimentos históricos, assim como artistas contemporâneos, como se eles estivessem misturados como bonecos de plástico numa prateleira, para serem usados ao gosto do freguês — e para o propósito do freguês. Arrancados de seu contexto e esvaziados de conteúdo, eles foram manipulados pelo chanceler para produzir a sua falsificação. Cada frase tem ali um objetivo.
Me detenho apenas em uma, que chamou particular atenção e foi reproduzida várias vezes na imprensa e nas redes sociais, com a qual abro esse artigo: “Vamos ler menos The New York Times, e mais José de Alencar e Gonçalves Dias”. Por quê?
Não é preciso ter inteligência acima da média para perceber que não faz nenhum sentido contrapor um dos mais importantes jornais do mundo, com edição diária, e dois escritores do romantismo brasileiro do século 19. O objetivo é exacerbar um nacionalismo que se ajoelha diante de Donald Trump, mas despreza a independência do New York Times; idolatra o WhatsApp e o Facebook de Mark Zuckerberg, mas achincalha a imprensa brasileira.
O chanceler quer menos denúncias bem apuradas e checadas contra Bolsonaro e contra os abusos do seu governo, documentados pelo Times e pelos principais jornais do mundo onde a imprensa é livre. Menos imprensa, convertida declaradamente em “inimiga pública”, por Bolsonaro e seus papagaios, porque querem falar diretamente com seus seguidores sem serem perturbados. Do contrário, teriam que responder perguntas difíceis e explicar depósitos de Queiroz na conta da primeira-dama.
Para não terem que prestar contas de seu governo ao público, é preciso destruir a credibilidade da imprensa. Sim, porque um tuíte ou um “live” no Facebook não é prestar contas, é apenas dizer o que quer, como faz a maioria, sem correr o risco de ser contestado com fatos e provas. O que os bolsonaristas querem fazer parecer democracia é apenas autoritarismo e já foi usado antes por governos totalitários, mas sem a enorme facilidade das redes sociais da internet.
O bolsonarismo quer inventar seus próprios fatos
A imprensa só faz sentido se fiscalizar o governo, qualquer governo. A frase do senador americano Daniel Patrick Moynihan (1927-2003) já se tornou clichê, mas ela é precisa: “Você tem direito a suas próprias opiniões, mas não a seus próprios fatos”. A luta dos bolsonaristas é para inventar seus próprios fatos, de modo que a realidade não importe nem atrapalhe seu projeto de poder.
Mas por que José de Alencar (1829-1877) e Gonçalves Dias (1823-1864), dois escritores do Brasil do século 19, que escreveram no Brasil imperial, durante o reinado de Dom Pedro II?
Essa escolha é capciosa, como todas as outras. E se refere a uma suposta identidade nacional. Alencar e Dias são expoentes do romantismo na literatura brasileira — um na prosa, o outro na poesia. Eles viveram e escreveram sua obra num momento muito particular do Brasil. O país se tornara independente de Portugal, o que significava que deixava de ser colônia dos portugueses.
Na visão dos homens daquela época (e eram majoritariamente homens, porque as mulheres, exceto raríssimas exceções, não tinham voz pública), era necessário criar uma identidade nacional. Para isso, seria preciso marcar essa identidade no campo da cultura. O Brasil deveria ter, ao mesmo tempo, uma literatura que o colocasse no mesmo patamar da Europa, que vivia a fase do romantismo, e ser ele próprio um novo que emergia após os séculos de domínio português. Gonçalves Dias e José de Alencar entregaram-se a essa tarefa. Não foram os únicos, mas tornaram-se referências do romantismo que inaugurava o que se chamou de literatura brasileira.
Para o ideólogo do governo, Bolsonaro seria uma espécie de Dom Pedro I declarando a segunda independência do Brasil
O chanceler de Bolsonaro exalta um momento da história do Brasil em que as elites se empenham em criar uma identidade nacional depois de o país ter sido colônia de Portugal. Araújo parece acreditar — ou quer que acreditemos — que o governo Bolsonaro está promovendo “o renascimento político e espiritual” do Brasil, como ele escreveu em um artigo. Ou, como afirmou em seu discurso de posse: “Reconquistar o Brasil e devolver o Brasil aos brasileiros”. Araújo quer que acreditemos que tudo o que aconteceu entre a independência do Brasil, a de 1822 — e a nova independência do Brasil, a que ele acredita estar sendo liderada pelo seu chefe, em 2019 — não existiu.
O ideólogo do governo parece sugerir que esse hiato de dois séculos foi um tempo de perdição do Brasil de si mesmo. “O presidente Bolsonaro disse que nós estamos vivendo o momento de uma nova Independência. É isso que os brasileiros profundamente sentimos”, afirma Araújo, que acredita ainda que suas cordas vocais libertam a voz do povo. Bolsonaro seria então uma versão contemporânea de Dom Pedro I, com sua espada em riste para libertar o Brasil. Não mais diante do riacho Ipiranga, agora no espelho d’água do Planalto.
O chanceler acessa esse episódio em dois momentos de sua vida, como ele mesmo relata no discurso de posse: “Eu me lembro da emoção que eu senti pela primeira vez, quando era Terceiro Secretário (do Itamaraty), que subi as escadas para este terceiro andar, e vi, logo ao subir a escada, o quadro da Coroação de Dom Pedro 1º e o quadro do Grito do Ipiranga. Imediatamente, eu, que tinha 22 anos, me lembrei de quando tinha 5 anos e assisti maravilhado no cinema ao filme ‘Independência ou Morte’, com Tarcísio Meira e Glória Menezes. E pensei: então tudo isso existe, né? Tudo isso existe... e tudo isso é aqui!”.
Pois é. Em outro ponto, com a sutileza de dar alguns parágrafos de intervalo, o admirador de Dom Pedro I e de Tarcísio Meira usa um tuíte para comparar Bolsonaro à rainha Elizabeth II, da Inglaterra: “Vou dar um exemplo do que temos para ouvir. É o comentário de uma pessoa que segue a minha conta do Twitter, que diz o seguinte... li isso ontem: ‘Antes eu não entendia o amor do povo da Inglaterra pela rainha. Agora entendo. Quando temos alguém que ama seu país e seu povo e os defende, ganha amor e respeito. Não conhecíamos isso antes de Bolsonaro’”.
Em nenhum momento os indígenas são citados nominalmente no discurso de posse do ideólogo do governo de extrema direita, o que em si já diz bastante coisa. Mas uma das línguas indígenas, o tupi, se faz presente. De que modo, porém? Na Ave Maria em tupi do padre José de Anchieta, jesuíta canonizado santo pela Igreja Católica. A língua do indígena usada para catequizá-lo numa religião alienígena às suas crenças. A escolha não é um detalhe. Sem a experiência da cultura, que confere carne à língua e conteúdo às palavras, a língua nada é. Apenas casca, como casca era o indígena do romantismo do século 19.
O bolsochanceler exalta José de Alencar, o escritor que fez do índio “um cavaleiro português no corpo de um selvagem”
O escritor José de Alencar é o principal expoente da prosa do que se chama “indianismo” na literatura brasileira. Em três livros — O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874) —, ele busca construir uma identidade nacional fiel aos princípios do romantismo. Como o romantismo europeu é marcado por uma ideia heroica do cavaleiro medieval, Alencar torna o indígena um cavaleiro medieval ambientado na exuberante paisagem tropical do Brasil.
O indígena, habitante nativo que vivia na terra antes do domínio europeu, seria o herói genuinamente brasileiro da nação que se declara independente da metrópole. Mas com todas as qualidades atribuídas à cavalaria, na Idade Média, transplantadas para seu corpo e sua alma. A coragem, a lealdade, a generosidade, a partir de um ponto de vista que servia à manutenção do sistema feudal, e o amor cortês. Para escritores da época de José de Alencar e de Gonçalves Dias, que viviam o período pós-independência do Brasil, escrever era um ato de patriotismo. Eles teriam de dizer com sua obra o que é “ser brasileiro”. É também essa referência que o ideólogo do governo procura resgatar e enaltecer.
Os negros, corpos escravizados que moviam a economia do Brasil e serviam às suas elites, não estavam presentes como formadores de uma identidade nacional nestes romances de fundação. Se os escritores buscavam uma identidade nacional, ela era forjada dentro da matriz europeia. Como seria possível escrever em língua portuguesa, a do colonizador, sem ser colonizado na linguagem, foi uma questão crucial para a qual Alencar e outros também tentaram dar uma resposta no século 19. Mas este é um tema longo para outra conversa.
Em artigo no Nexo, Vinícius Rodrigues Vieira, professor-visitante do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), afirma: “Araújo — assim como as alas mais conservadoras do governo — ambiciona o retorno a uma identidade nacional pré-freyriana, ou seja, antes das ideias que ficaram associadas a Gilberto Freyre. Em suma, o ideal de sincretismo encarnado na malfadada expressão ‘democracia racial’. Não à toa o ministro citou em seu discurso de posse o romancista José de Alencar, cujas obras claramente buscavam no indígena harmonizado com o colonizador as raízes de nossa nacionalidade, sem considerar o legado africano”.
“Crede-me, Álvaro, é um cavalheiro português no corpo de um selvagem!” A frase é de D. Antônio de Mariz, fidalgo português e um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro na obra de José de Alencar. Assim o personagem é descrito em O Guarani, primeiro romance indianista do escritor, publicado na época como folhetim, com grande sucesso: “Homem de valor, experimentado na guerra, ativo, afeito a combater os índios, prestou grandes serviços nas descobertas e explorações do interior de Minas e Espírito Santo. Em recompensa do seu merecimento, o governador Mem de Sá lhe havia dado uma sesmaria de uma légua com fundo sobre o sertão, a qual depois de haver explorado, deixou por muito tempo devoluta”.
O “cavaleiro português no corpo de um selvagem” é Peri, um indígena do povo Goytacá, que desde que salvou da morte Cecília, a filha do fidalgo, um “anjo louro de olhos azuis”, é adotado pelo clã dos Mariz. Peri passa a viver numa cabana perto da casa da família, uma espécie de castelo onde o escritor reproduz as relações de vassalagem do feudalismo que o Brasil nunca teve, mas parte da Europa sim.
Peri faz todas as vontades da moça, a quem serve como um cão de estimação. Diz Isabel, outra personagem: “Pedirás a meu tio para caçar-te outro que farás domesticar, e ficará mais manso do que o teu Peri”.
Peri era manso, domesticado. Mas valente. Quando D. Diogo, filho do fidalgo, mata por acidente uma Aymoré, este povo indígena tenta vingar-se matando Ceci, mas é impedido por Peri. A tensão cresce entre a família portuguesa e o povo indígena. Peri arma então a estratégia de envenenar-se para combater os Aymoré. Como essa etnia mantém o ritual de canibalismo, devorando os valentes vencidos, ele será comido depois de morto e assim exterminará também o inimigo.
A pedido de Ceci, Peri suspende seu sacrifício heroico. Ao final do romance, Dom Antônio entrega Ceci a Peri para que ela seja salva. Mas só entrega a filha se Peri converter-se ao cristianismo: “O índio caiu aos pés do velho cavalheiro, que impôs-lhe as mãos sobre a cabeça. — Sê cristão! Dou-te o meu nome. Peri beijou a cruz da espada que o fidalgo lhe apresentou, e ergueu-se altivo e sobranceiro, pronto a afrontar todos os perigos para salvar sua senhora”.
O “bom selvagem” é aquele que pode ser assimilado pela “civilização”
Peri e Ceci fogem então numa canoa e são surpreendidos por uma tempestade. Depois, os dois somem no horizonte. José de Alencar termina sua obra com a ideia de que o casal formará a identidade do novo Brasil. “Horizonte”, a última palavra do romance, é ao mesmo tempo futuro e o país que se descobre.
Este é o indígena que aparece no discurso do chanceler, ao citar José de Alencar. Uma identidade nacional forjada por um “cavaleiro português no corpo de um selvagem”, que luta contra um povo indígena diferente do seu para salvar sua adorada senhora branca, filha do colonizador, e que se converte ao cristianismopara fundar com ela o futuro nos trópicos. Peri, o indígena, é o “bom selvagem” que oferta seu corpo para ser assimilado pela civilização.
Ao criar esse herói romântico no século 19, supostamente indígena, Alencar sofreu críticas por desprezar a realidade. Mas o escritor deve ser compreendido no seu contexto. Que Araújo o faça no século 21, usando José de Alencar e desprezando todos os debates culturais daquela e de outras épocas, poderia ser apenas um ataque contra a inteligência. Mas o chanceler do bolsonarismo também precisa ser entendido no contexto do governo que ele tenta justificar não apenas como um governo, mas como uma “nova era”.
O bolsonarismo é um projeto de poder em que até mesmo Bolsonaro pode ser tornar um mero adereço – ou nem isso
O bolsonarismo é um projeto de poder com diferentes forças internas e possivelmente antagônicas, em alguns temas, como o futuro próximo deve mostrar. Como todo projeto de poder, está em disputa. Em algum momento, talvez o próprio Bolsonaro, que dá nome à ideologia em construção, seja apenas um adereço — ou nem mesmo isso.
Há um tema, porém, em que os diversos grupos que formam o capitalismo messiânico que governa o país parecem coincidir, guardando uma eventual ressalva por parte de uma parcela dos militares, cuja posição ainda não está totalmente clara. Este tema é o futuro dos indígenas. Ou, mais especificamente, o futuro das terras indígenas.
A escolha deste indígena com atributos morais europeus, representado pela alusão a José de Alencar, não é um acaso. Este indígena, que na obra do escritor manteve apenas as características do corpo e a cor, vai ser branqueado pela matriz europeia da loira Ceci dos olhos azuis para fundar o Brasil pós-independência. É amor cortês, mas também é assimilação brutal. Sobre Peri, a quem não conhecemos porque Alencar também não conhecia, nada sabemos.
Vale a pena lembrar a declaração do hoje vice-presidente, Hamilton Mourão. Ao justificar ter dito durante a campanha que o país herdou a “indolência” dos indígenas e a “malandragem” dos negros, o general resgatou sua mestiçagem e a colocou a serviço do apagamento do racismo estrutural do Brasil: “Em nenhum momento eu quis estigmatizar qualquer um dos grupos, até porque nós somos um amálgama de raças. É só olharem para mim. Eu sou filho de amazonense, minha vó é cabocla”.
O que o bolsonarismo anuncia entender por “mestiçagem” é assimilação. É o que Bolsonaro afirmou de várias formas na campanha, com a brutalidade habitual: “O índio é ser humano como nós”. Quem será que pensava que o índio não era humano?
É importante seguir perguntando. O que é, neste contexto, “ser humano como nós”, Bolso? O populista explica que o índio “quer ter o direito de 'empreender' e 'evoluir', o índio quer poder vender e arrendar a sua terra. Mas avisa: “Os índios não querem ser latifundiários”. No entender do novo presidente, ser humano latifundiário o índio não quer ser.
Antes do bolsonarismo, a tática da direita era dizer que os índios não eram mais índios. Era duvidar da “autenticidade”. Como se um indígena usar celular o tornasse menos indígena. Ao deixarem de ser considerados indígenas, os diferentes povos perderiam o direito à terra. Essa tática ainda persiste. Mas a nova direita representada por Bolsonaro é mais esperta. Ela não nega o indígena, e sim afirma uma suposta igualdade do indígena ao branco. Não para que os indígenas mantenham seus direitos constitucionais, mas para que os percam.
Mais tarde, logo após a eleição, Bolsonaro ainda afirmaria: “E por que no Brasil temos que mantê-los reclusos em reservas como se fossem animais em zoológico? O índio é um ser humano igualzinho a nós e quer o que nós queremos, e não pode se usar a situação do índio para demarcar essas enormidades de terras que, no meu entender, poderão ser sim, de acordo com a própria ONU, novos países no futuro”. Só para constar: a ONU nunca disse que as terras indígenas serão países do futuro.
O bolsonarismo tenta transformar terra indígena em mercadoria para exploração de grupos privados
O que o discurso do “ser humano como nós” encobre? Pela Constituição de 1988, as terras dos indígenas são de domínio da União. Aos indígenas cabe o usufruto exclusivo de suas terras ancestrais, mas elas seguem sendo públicas. Uma das principais missões de Bolsonaro é justamente abrir essas terras públicas para exploração e lucros privados.
Uma parcela significativa das terras indígenas está na floresta amazônica. Fazem limite com grandes plantações de soja e criação de boi. Têm sido pressionadas — e invadidas — para o cumprimento do ciclo: desmatamento da floresta para comércio ilegal de madeira, colocação de cabeças de boi para garantir a posse da terra, venda da terra para plantação de soja. Em algum momento do processo, legalização do “grilo” pelo governo do momento, com anistia aos ladrões de terras públicas — ou aos que compram as terras públicas roubadas pelos ladrões.
Ao tornar o indígena um ser humano que quer converter a terra em mercadoria, o discurso ideológico tem como objetivo fazer com que soja e boi possam avançar sobre a floresta hoje protegida. A quem isso vai beneficiar? Não a mim e a você. Mas sim aos grandes criadores de gado e aos grandes grupos plantadores de soja para exportação.
A mudança que os bolsonaristas — o que inclui o agronegócio mais atrasado do país — querem na Constituição vai permitir também a mineração. Não por cooperativas de garimpeiros, sempre criminalizados, mas por grandes grupos transnacionais, apresentados como empreendedores. A quem isso vai beneficiar? Não a mim e a você.
Seis em cada dez brasileiros discordam da redução das terras indígenas
É fácil perceber que o melhor para o conjunto dos brasileiros é manter a terra ocupada pelos indígenas como terra pública — e a floresta em pé. Como mostrou pesquisa recente do DataFolha, a maioria já entendeu isso: seis em cada dez brasileiros discordam da redução das terras indígenas.
O objetivo do bolsonarismo com relação às terras quilombolas é o mesmo: abri-las para a exploração por grupos privados. Era essa a ideia por trás das ofensas do então candidato durante a campanha, que chegou a dizer que os quilombolas não serviam “nem para procriar”. Descendentes de escravos rebelados, os quilombolas têm o título das terras ocupadas pelos antepassados, mas seu uso é coletivo.
Quando o indígena não tem nome próprio no discurso do chanceler Ernesto Araújo é este o propósito. Ao aparecer assimilado no nome de José de Alencar, o indígena já não é. Virou “ser humano igualzinho a nós”. E suas terras ancestrais são mercadorias como as “nossas”. O chanceler de Bolsonaro sabe muito bem a quem serve quando tenta forjar uma identidade nacional para um Brasil que afirma ter renascido pelas mãos de seu chefe. Ele não cita os indígenas, mas afirma enfaticamente em seu discurso que trabalhará pelo agronegócio.
A floresta amazônica é estratégica para evitar que o aquecimento global supere os 1,5 graus Celsius nos próximos anos. Isso não é opinião, é pesquisa científica de alguns dos melhores cientistas do mundo, que trabalham há décadas com a crise climática. Para que o aquecimento global não avance, a floresta precisa ficar em pé. Como manter a floresta em pé se o bolsonarismo se comprometeu a abrir as terras indígenas para exploração?
É preciso criar uma ideologia, como faz o bolsonarismo. Nela, o indígena supostamente teria como aspiração maior da sua vida se tornar branco “como nós” e passar a tratar a terra como mercadoria, ansioso por arrendá-la aos grandes grupos exportadores de soja e carne ou às grandes mineradoras transnacionais. É preciso também afirmar que mudança climática é um complô marxista, como o chanceler de Bolsonaro já escreveu, para não encontrar resistência ao entregar a Amazônia em nome do nacionalismo.
O chanceler criou um departamento específico para o agronegócio no Itamaraty e extinguiu o departamento que cuidava do clima e de energias renováveis. A mensagem é clara. O atual presidente do Brasil fez ainda mais. Transferiu a Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado por Damares Alves, fundadora de uma ONG acusada de incitar ódio contra os indígenas. Os evangélicos, grupo que a ministra representa, têm todo o interesse em ampliar a presença da sua religião entre os povos originários. A eles também interessa que o índio seja “ser humano como nós”, o que neste caso significa ser evangélico neopentecostal.
Bolsonaro entregou o banco de sangue aos vampiros
Bolsonaro, como garoto obediente ao agronegócio mais truculento, aquele que se confunde com agrobanditismo, foi adiante: entregou a responsabilidade pela demarcação das terras indígenas e quilombolas para o Ministério da Agricultura, comandado pela pecuarista Tereza Cristina, conhecida como “musa do veneno”, pelos serviços prestados como congressista às indústrias transnacionais de agrotóxicos. Como comentou um jornalista estrangeiro: é o mesmo que entregar o comando do banco de sangue aos vampiros.
O problema para o bolsonarismo se chama “realidade”, já que o planeta não vai parar de aquecer por causa das mentiras de Bolsonaro e de seu chanceler. Mas até isso ficar claro para seus seguidores, a destruição já estará consumada e os grupos que compõem o bolsonarismo já terão multiplicado seus lucros. Se os lucros são de poucos, o prejuízo sobrará para todos. Para os mais pobres e os mais frágeis, o sofrimento será maior e chegará primeiro. Já chegou. Basta ler a imprensa séria para descobrir. Ou lembrar quem sofreu mais com a última crise da água em São Paulo.
O ideólogo do governo afirma ser preciso ler menos o New York Times e mais José de Alencar também porque a imprensa internacional tem apontado duramente o perigo que Bolsonaro representa para o planeta. A importância do Brasil no cenário internacional é dada principalmente pela floresta amazônica. E não para exploração de produtos primários como soja, carne e minérios, mas sendo floresta.
Converter a floresta em matéria-prima de exportação é o pior negócio da história, inclusive para a agropecuária
A conversão de floresta em matérias-primas para exportação pode beneficiar a economia a curto prazo. Isso interessa aos ultraliberais do atual governo, como interessou aos governos do PT, que foram um desastre para a Amazônia. Mas é claramente o pior negócio da história para todos. Inclusive para a agricultura, como sabe o setor esclarecido do agronegócio, que, infelizmente, é minoritário no Brasil.
Nem Bolsonaro nem seu chanceler sabem quem são os indígenas, como vivem e o que fazem. Nem acham que precisam saber. Se a mentira que criaram serve a seus interesses imediatos, para que serviria a realidade?
Para os não indígenas que se interessam em conhecer os indígenas, o primeiro fato a compreender é que não existe um indígena, e sim mais de 240 povos com cultura própria. Vale lembrar que a estimativa é de que havia mil povos antes da invasão europeia, no século 16. Hoje, os povos que sobreviveram às sucessivas matanças e às epidemias transmitidas pelos brancos são, ao mesmo tempo, eles mesmos uma enorme riqueza em sua diversidade cultural e também os maiores responsáveis pela proteção da biodiversidade das terras onde vivem.
Alguns ainda conseguem viver sem saber dos brancos, ou sabendo o mínimo possível, e para todos é melhor que continue assim. Outros, cujo contato com os brancos já foi estabelecido, encontram seus caminhos para gerar renda sem destruir o ecossistema. As terras indígenas, comprovadamente, são os maiores obstáculos à derrubada da floresta amazônica. Em 2018, o desmatamento na Amazônia atingiu o índice mais alto da década. Só no período eleitoral, o desmatamento cresceu quase 50%, comparado ao ano anterior, tão confiantes os desmatadores se sentiram com a certeza da vitória de Bolsonaro.
Em editorial desta semana, o Instituto Socioambiental, que faz a publicação mais completa sobre Povos Indígenas no Brasil, atualizada regularmente e disponível na internet, conta ao governo o que o governo não está interessado em saber. O mel dos índios do Xingu foi o primeiro produto indígena de origem animal com certificação orgânica e registro no Sistema de Inspeção Federal. Já está no mercado do sudeste do país. O óleo de pequi do povo Kisêdjê representou o Brasil numa feira do movimento Slow Food em Turim, na Itália. O cogumelo Yanomami é reconhecido internacionalmente no mundo da gastronomia. A pimenta Baniwa tem 78 variedades que são utilizadas na fabricação de chocolate, molhos e cervejas no Brasil e no exterior. Os indígenas Wai Wai, Xikrin, Kuruaya e Xipaya comercializam safras com toneladas de castanha para uma fabricante de pães e produtos derivados. A borracha dos Xipaya é utilizada por outra grande indústria brasileira. Os Kayapó e Panará vendem o cumaru para empresas internacionais de cosméticos produzidos artesanalmente.
Quem não existe não pode reivindicar terra na floresta tão cobiçada pelo setor atrasado do agronegócio
O que atrapalha a economia da floresta não é a proteção da floresta. Pelo contrário. O que atrapalha a economia da floresta é a invasão dos grileiros para explorar a madeira, botar soja e pasto para boi. É a anistia destes grileiros por governos como o de Lula e o de Michel Temer, que converteram criminosos violadores de terras públicas em representantes do “agronegócio” e membros do “setor produtivo nacional”. É a demora na demarcação dos territórios ancestrais, hoje paralisada por Bolsonaro. É a instabilidade e a total falta de apoio governamental, apesar de os produtos comercializados pelos indígenas pagarem todos os impostos. É a ignorância dos governos e de seus economistas. É um chanceler que quer reinventar o índio de José de Alencar para inventar um índio que não existe. Quem não existe não pode reivindicar a demarcação de suas terras na floresta tão cobiçada pelo setor atrasado do agronegócio.
O discurso de posse do chanceler é a tentativa de lançar as bases ideológicas do que está sendo chamado de bolsonarismo, aquelas que pretendem justificar tanto o armamento da população quanto a exploração predatória das terras indígenas e quilombolas. Seria importante que os professores das universidades, instituições tão atacadas por Bolsonaro e seus seguidores, usassem seu conhecimento para dissecar esse discurso naquilo que diz e naquilo que omite. E o fizessem na internet, onde todos têm acesso.
Foi na internet que os malucos passaram a dançar e um deles se tornou presidente. O debate tem que ser travado (principalmente) ali, como já perceberam uns poucos intelectuais. Da tarefa de resgatar a importância dos fatos, a prevalência da realidade e a honestidade do debate ninguém tem o direito de se omitir. Em especial quem é pago com recursos públicos.
Termino com outro trecho do discurso do ideólogo do bolsonarismo: “É só o amor que explica o Brasil. O amor, o amor e a coragem que do amor decorre, conduziram os nossos ancestrais a formarem esta nação imensa e complexa. Nós passamos anos na escola, quase todos nós, eu acho, escutando que foi a ganância ou o anseio de riqueza, ou pior ainda, o acaso, que formou o Brasil, mas não foi. Foram o amor, a coragem e a fé que trouxeram até aqui, através do oceano, através das florestas, pessoas que nos fundaram”.
O projeto de poder em curso quer inventar um passado apagando o passado que efetivamente existiu
Ernesto Araújo torna explícito que o “renascimento” proposto pelo bolsonarismo é criminoso. Seu projeto de poder não busca apenas moldar o presente a partir de premissas falsas como “ideologia de gênero” e “climatismo”, mas sim inventar um passado apagando o passado que efetivamente existiu. Antes será preciso explicar como “o amor” matou milhões de indígenas, extinguiu povos inteiros, e colocou à força no Brasil quase 5 milhões de escravos africanos, durante mais de três séculos. Seus descendentes ainda hoje vivem pior e morrem mais cedo.
José de Alencar sonhava com construir uma identidade nacional no século 19, em um país que acabara de se tornar independente da metrópole e precisava de um rosto para se legitimar como nação. Em seu discurso inaugural, Ernesto Araújo violenta dois séculos de debates culturais e ofende até mesmo a memória de Alencar. O chanceler quer, no início do século 21, apagar todo o passado. Como se o Brasil fosse uma página em branco que o bolsonarismo vai passar a escrever a partir do ponto zero da independência.
Nenhuma novidade. A “nova era” do bolsonarismo apenas copia os piores exemplos dos totalitarismos do século 20, que também quiseram forjar seu próprio mito e sua própria mitologia para justificar as atrocidades que cometeriam logo adiante. Como os dias mostraram, os cadáveres daqueles que destruíram teimam em viver como memória. Não esqueceremos. Nem deixaremos esquecer.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Eliane Brum: O homem mediano assume o poder
O que significa transformar o ordinário em “mito” e dar a ele o Governo do país?
O homem mediano assume o poder
A esquerda que não sabe quem é
O homem mediano assume o poder
Os “malucos” sapateiam no palco
O homem mediano assume o poder
O ataque dos machos brancos
Desde 1 de janeiro de 2019, o Brasil tem como presidente um personagem que jamais havia ocupado o poder pelo voto. Jair Bolsonaro é o homem que nem pertence às elites nem fez nada de excepcional. Esse homem mediano representa uma ampla camada de brasileiros. É necessário aceitar o desafio de entender o que ele faz ali. E com que segmentos da sociedade brasileira se aliou para desenhar um Governo que une forças distintas que vão disputar a hegemonia. Embora existam várias propostas e símbolos do passado na eleição do novo presidente, a configuração encarnada por Bolsonaro é inédita. Neste sentido, ele é uma novidade. Mesmo que seja uma difícil de engolir para a maioria dos brasileiros que não votou nele, escolhendo o candidato oposto ou votando branco, nulo ou simplesmente não comparecendo às urnas. Bolsonaro encarna também o primeiro presidente de extrema direita da democracia brasileira. O “coiso” está no poder. O que significa?
Quando Luiz Inácio Lula da Silva chegou ao Palácio do Planalto pela primeira vez, na eleição de 2002, depois de três derrotas consecutivas, foi um marco histórico. Quem testemunhou o comício da vitória na Avenida Paulista, tendo votado ou não em Lula, compreendeu que naquele momento se riscava o chão do Brasil. Não haveria volta. Pela primeira vez um operário, um líder sindical, um homem que fez com a família a peregrinação clássica do sertão seco do Nordeste para a industrializada São Paulo de concreto, alcançava o poder. Alguém com o “DNA do Brasil”, como diria sua biógrafa, a historiadora Denise Paraná.
O Lula que conquistou o poder pelo voto era excepcional. “Homem do povo”, sem dúvida, mas excepcional. Um líder brilhante, que comandou as greves do ABC Paulista no final da ditadura militar (1964-1985) e se tornou a figura central do novo Partido dos Trabalhadores criado para disputar a democracia que retornava depois de 21 anos de ditadura. Independentemente da opinião que cada um possa ter dele hoje, é preciso aceitar os fatos: quantos homens com a trajetória de Lula se tornaram Lula?
Lula era o melhor entre os seus, o melhor entre aqueles que os brancos do Sul discriminavam com a pecha de “cabeça chata”. Se sua origem e percurso levavam uma enorme novidade ao poder central de um dos países mais desiguais do mundo, a ideia de que aquele que é considerado o melhor deve ser o escolhido para governar atravessa a política e o conceito de democracia. Não se escolhe um qualquer para comandar o país, mas aquele ou aquela em que se enxergam qualidades que o tornam capaz de realizar a esperança da maioria. Neste sentido, não havia novidade. Quando parte das elites se sentiu pressionada a dividir o poder (para manter o poder), e depois da Carta ao Povo Brasileiro assinada por Lula garantindo a continuidade da política econômica, era o excepcional que chegava ao Planalto pelo voto.
O que a chegada de Lula ao poder fez pelo Brasil e como influenciou o imaginário e a mentalidade dos brasileiros é algo que merece todos os esforços de pesquisa e análise para que se alcance a justa dimensão. Mas grande parte já foi assimilada por quem viveu esses tempos. Os efeitos do que Lula representou apenas por chegar lá sequer são percebidos por muitos porque já foram incorporados. Já estão. Como disse uma vez o historiador Nicolau Sevcenko (1952-2014), em outro contexto: “Há coisas que não devemos perguntar o que farão por nós. Elas Já fizeram”.
Marina Silva, derrotada nas últimas três eleições consecutivas, em cada uma delas perdendo uma fatia maior de capital eleitoral, seria outra representante inédita de uma parcela da população que nunca ocupou a cadeira mais importante da República. Diferentemente de Lula, como já escrevi neste espaço, Marina encarna um outro amplo segmento de brasileiros, muito mais invisível, representado pelos povos da floresta. Carrega no corpo alquebrado por contaminações e também por doenças que já não deveriam existir no Brasil uma experiência de vida totalmente diversa de alguém como Lula e outros pobres urbanos. Mas este é o passado de Marina.
Cada brasileiro conhece vários Jair Bolsonaro – ou tem um na família
A mulher negra, que se alfabetizou aos 16 anos e trabalhou como empregada doméstica depois de deixar o seringal na floresta amazônica, empreendeu uma busca pelo conhecimento acadêmico e hoje fala mais como uma intelectual da universidade do que como uma intelectual da floresta. Também deixou a Igreja Católica ligada à Teologia da Libertação para se converter numa evangélica genuína, daquelas que vivem a religião no cotidiano em vez de instrumentalizá-la nas eleições, como tantos pastores neopentecostais. Se Marina tivesse conseguido chegar ao poder, ela representaria toda essa complexa trajetória, mas também encarnaria uma excepcionalidade entre os seus. Quantas mulheres com o percurso de Marina se tornaram Marina?
Jair Bolsonaro, filho de um dentista prático do interior paulista, oriundo de uma família que poderia ser definida como de classe média baixa, não é representante apenas de um estrato social. Ele representa mais uma visão de mundo. Não há nada de excepcional nele. Cada um de nós conheceu vários Jair Bolsonaro na vida. Ou tem um Jair Bolsonaro na família.
Na campanha, Bolsonaro não deveria parecer melhor que seus eleitores, mas igual
Durante as várias fases republicanas do Brasil, a candidatura e os candidatos foram acertos das elites que disputavam o poder – ou resultado de uma disputa entre elas. O mais popular presidente do Brasil do século 20, Getúlio Vargas (1882-1954), que em parte de sua trajetória política foi também um ditador, era um estancieiro, filho da elite gaúcha. Ainda que tenha havido alguns presidentes apenas medianos durante a República, eram por regra homens oriundos de algum tipo de elite e alicerçados por ela.
Lula foi exceção. E Bolsonaro é exceção. Mas representam opostos. Não apenas por um ser de centro esquerda e outro de extrema direita. Mas porque Bolsonaro rompe com a ideia da excepcionalidade. Em vez de votar naquele que reconhecem como detentor de qualidades superiores, que o tornariam apto a governar, quase 58 milhões de brasileiros escolheram um homem parecido com seu tio ou primo. Ou consigo mesmos.
Essa disposição dos eleitores foi bastante explorada pela bem sucedida campanha eleitoral de Bolsonaro, que apostou na vida “comum”, falseando o cotidiano prosaico, o improviso e a gambiarra nas comunicações do candidato com seus eleitores pelas redes sociais. Bolsonaro não deveria parecer melhor, mas igual. Não deveria parecer excepcional, mas “comum”.
A mesma estratégia foi mantida depois de eleito, como a mesa bagunçada de café da manhã com que recebeu John Bolton, o conselheiro de Segurança Nacional do presidente americano Donald Trump. Neste sentido, Bolsonaro jamais pode ser considerado o “Trump brasileiro”. Trump, além pertencer a uma parcela muito particular das elites americanas, tem uma trajetória de destaque. Bolsonaro não. Como militar, ele só se notabilizou por quebrar as regras ao dar uma entrevista para a revista Veja reclamando do valor dos soldos. Como parlamentar por quase três décadas, conseguiu aprovar apenas dois projetos de lei. Era mais conhecido como personagem burlesco e criador de caso.
Quando Tiririca foi eleito, por exemplo, sua grande votação foi interpretada como a prova de que era necessária uma reforma política urgente. Mas Tiririca foi um grande palhaço. Num mundo difícil para a profissão desde a decadência dos circos, Tiririca conseguiu encontrar um caminho na TV, fazer seu nome e ganhar a vida. Não é pouco.
“Eu não sou ninguém aqui”, afirmou em 2011
Bolsonaro não. O grande achado foi se eleger deputado e conseguir continuar se elegendo deputado. Em seguida, colocar todos os filhos no caminho dessa profissão altamente rentável e com muitos privilégios. A “família” Bolsonaro tornou-se um clã de políticos profissionais que, nesta eleição, conseguiu um número assombroso de votos. Mas não pela excepcionalidade de seus projetos e ideias.
O novo presidente do Brasil passou quase três décadas como um político daquilo que no Congresso brasileiro se chama “baixo clero”, grupo que faz volume mas não detém influência nem arquiteta as grandes decisões. A alcunha é uma alusão injusta ao clero religioso que faz o trabalho de formiguinha, o mais difícil e persistente, seguidamente perigoso, no mundo das igrejas. O próprio Bolsonaro já comentou que não tinha prestígio. Quando disputou a presidência da Câmara, em 2017, só obteve quatro votos dos mais de 500 possíveis. “Eu não sou ninguém aqui”, afirmou em um discurso no plenário, em 2011.
Os deputados do “baixo clero” do Congresso descobriram a sua força nos últimos anos e também como podem se locupletar unindo-se e fazendo número a favor dos interesses que lhes beneficiam. Ou simplesmente chantageando com o seu voto. Bolsonaro é dessa estirpe. Se ocupava um lugar no Congresso, era o de bufão. Até um ano atrás poucos acreditavam que poderia se eleger presidente. Parecia impossível que alguém que dizia as barbaridades que ele dizia poderia ser escolhido para o cargo máximo do país.
A massa que foi assistir à posse gritava: “WhatsApp! Facebook!”
O que se deixou de perceber é que quase todos tinham um tio ou um primo exatamente como Bolsonaro. Logo essa evidência ficou clara nos almoços de domingo ou nas datas festivas da família. Mas ainda assim parecia apenas uma continuação do que as redes sociais já tinham antecipado, ao revelar o que realmente pensavam pessoas que até então pareciam razoáveis. Deixou-se de enxergar, talvez por negação, o quanto esse contingente de pessoas era numeroso. Os preconceitos e os ressentimentos recalcados em nome da convivência eram agora liberados e fortalecidos pelo comportamento de grupo das bolhas da internet. As redes sociais permitiram “desrecalcar” os recalcados, fenômeno que tanto beneficiou Bolsonaro.
Os gritos das pessoas que ocuparam o gramado da Esplanada dos Ministérios, em Brasília, foram a parte mais reveladora da posse de Bolsonaro, em 1o de Janeiro. Eufórica, a massa berrava: “WhatsApp! WhatsApp! Facebook! Facebook!”. Quem quiser compreender esse momento histórico terá que passar anos dedicado a analisar a profundidade contida no fato de eleitores berrarem o nome de um aplicativo e de uma rede social da internet, ambos de Mark Zuckerberg, na posse de um presidente que as elegeu como um canal direto com a população e deu a isso o nome de democracia.
Bolsonaro representa, sim – e muito – um tipo de brasileiro que se sentia acuado há bastante tempo. E particularmente nos últimos anos. E que estava dentro de cada família, quando não era a família inteira. Todas as famílias gostam de se pensar como diferentes – ou, pelo menos, melhores (ou piores, conforme o ponto de vista) que as outras. A experiência de um confronto político determinado pelos afetos – ódio, amor etc – nestas eleições deixou marcas profundas.
Bolsonaro representa, principalmente, o brasileiro que nos últimos anos perdeu privilégios
Não engendrasse tantas possibilidades destruidoras para o país, o fenômeno Bolsonaro seria bastante fascinante quando olhado como objeto de estudo. Sugiro algumas hipóteses para compreender como o mediano entre os medianos se tornou presidente do Brasil. As pesquisas de intenção de voto mostraram que Bolsonaro era o preferido especialmente entre os homens e especialmente entre os brancos e especialmente entre os que ganhavam mais. Isso não significa que não tenha tido uma votação significativa entre as mulheres, os negros e os que ganham menos. Se não tivesse, Bolsonaro não conseguiria se eleger. Mesmo no Nordeste, a única região do Brasil em que perdeu para Fernando Haddad (PT), no segundo turno das eleições, Bolsonaro recebeu uma votação significativa.
O novo presidente representa, principalmente, o brasileiro que nos últimos anos sentiu que perdeu privilégios. Nem sempre os privilégios são bem entendidos. Não se trata apenas de poder de compra, o que é determinante numa eleição, mas daquilo que dá chão a uma experiência de existir, aquilo com que faz com que aquele que caminha se sinta em terra mais ou menos firme, conheça as placas de sinalização e entenda como se mover para chegar onde precisa.
Vária irrupções perturbaram esse sentimento de caminhar em território conhecido, em especial para o homem branco e heterossexual. As mulheres disseram a eles com uma ênfase inédita que não seria mais possível fazer gracinhas nas ruas nem assediá-las nos trabalho ou em qualquer lugar. A violência sexual foi exposta e reprimida. A violência doméstica, quase tão comum quanto o feijão com arroz (“um tapinha não dói”) foi confrontada pela Lei Maria da Penha. Afirmar que uma “mulher era mal comida” se tornou comentário inaceitável de um neandertal.
Na mesma direção, os LGBTI se fizeram mais visíveis na exigência dos seus direitos, entre eles o de existir, e passaram a denunciar a homofobia e a transfobia. Figuras públicas como Laerte Coutinho anunciaram-se como mulher sem fazer cirurgia para tirar o pênis. O que há entre as pernas já não define ninguém. E a posição de homem heterossexual no topo da hierarquia nunca foi tão questionada como nos últimos anos.
Tanto que, como reação, surgiram proposições como criar o “Dia do Orgulho Heterossexual” ou o “Dia do Homem” e até o “Dia do Branco”. Não faz sentido criar datas para quem tem todos os privilégios, mas as propostas apontam como mesmo a perda destes privilégios em particular parece balançar o mundo de quem sempre teve a coleção completa de vantagens como direito inalienável.
Em discurso, Bolsonaro prometeu “libertar” o Brasil do “politicamente correto”
O que a maioria dos homens entendia como direito – falar o que bem entendesse, especialmente para uma mulher – já não era possível. “Não dá para falar mais nada” se tornou uma frase clássica na boca destes homens. As já tradicionais piadas de “viado”, um tema clássico de fortalecimento da identidade de macho, tornaram-se inaceitáveis. O “politicamente correto”, que Bolsonaro e seus seguidores tanto atacaram nesta eleição, foi interpretado como agressão direta a privilégios que eram considerados direitos.
Para um homem pobre, seja ele branco ou negro, tripudiar sobre gays e/ou mulheres na vida cotidiana pode ser a única prova de “superioridade” enquanto enfrenta o massacre diário de uma jornada extenuante e mal paga. Bolsonaro compreendeu isso muito bem. Em seu discurso para a população aglomerada na Praça dos Três Poderes, nesta terça-feira, o presidente recém-empossado colocou o combate ao “politicamente correto” como uma das prioridades do seu governo. Não a assombrosa desigualdade social, que até mesmo presidentes conservadores achavam de bom tom citar, mas a necessidade de “libertar” a nação do jugo do “politicamente correto”.
Logo no início do discurso, Bolsonaro afirmou: “É com humildade e honra que me dirijo a todos vocês como presidente do Brasil e me coloco diante de toda a nação neste dia como um dia em que o povo começou a se libertar do socialismo, se libertar da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”.
É esse brasileiro “acorrentado” que votou para retomar seus privilégios, incluindo o de ofender as minorias, como seu representante fez durante toda a carreira política e também na campanha eleitoral. Para muitos, o privilégio de voltar a ter assunto na mesa de bar – ou o de não ser reprimido pela sobrinha empoderada e feminista no almoço de domingo.
Somado a isso, as cotas raciais nas universidades, assim como o Estatuto da Igualdade Racial, conquistas dos movimentos negros reconhecidas pelos governos do PT, atingiram fundo os privilégios de raça, tão enraizados quanto os privilégios de classe e de gênero no Brasil, possivelmente mais.
Os negros passaram a não aceitar passivamente ser maioria nas piores estatísticas, ter menos tudo, assim como morrer mais e mais cedo. É desse confronto que vem a frase sem qualquer lastro na realidade, mas repetida com persistência por Bolsonaro e seus seguidores: a de que “o PT inventou os conflitos raciais”. É claro que, enquanto os negros seguissem aceitando o seu lugar subalterno e mortífero na sociedade brasileira, não haveria conflito. Mas esse tempo acabou e até mesmo lugares que pareciam reservados apenas aos filhos dos brancos, como as carreiras mais disputadas das universidades públicas, começaram a ser ocupados pelos negros.
Para as famílias, especialmente as brancas, outra mudança atingiu profundamente um privilégio arraigado que está na formação do Brasil, e que foi pouco alterado pela abolição da escravidão negra. No início da segunda década do século, a “PEC (Proposta de Emenda Constitucional) das Domésticas” deu a essa categoria formada majoritariamente por mulheres, a maioria delas negras, direitos trabalhistas que outras categorias tinham há décadas mas que sempre foram negados a elas, como o limite da jornada de trabalho e o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço).
O ódio dos bolsonaristas se expressa não pela ação, mas pela reação: a de quem se defende do que acredita ser um ataque
Isso fez com que muitas famílias de classe média temessem não poder mais manter a sua escrava contemporânea fazendo todo o serviço dentro de casa e/ou cuidando dos filhos dos patrões por um tempo ilimitado de horas. Essa medida afetou profundamente as mulheres brancas de classe média, ainda hoje em grande parte responsáveis pela administração doméstica, apesar dos avanços feministas. As reclamações ocupavam todos os espaços. Os direitos das empregadas domésticas eram compreendidos como privilégios, quando na verdade era o privilégio dos brancas de ter uma mulher negra explorada e mal paga fazendo o serviço doméstico que estava em jogo.
Os direitos de gênero, classe e raça estão conectados. O reconhecimento destes direitos e a ampliação do acesso dos negros a espaços até então reservados aos brancos teve grande impacto no resultado eleitoral e também no antipetismo. O ódio dos bolsonaristas se expressa não na ação, mas na reação: a de quem se defende do que acredita ser um ataque. Também por isso sentem ser legítimo lançar as piores e mais violentas palavras contra o outro. Acreditavam – e ainda acreditam – estar apenas se defendendo, o que na sua visão de mundo justificaria qualquer violência. Também por isso o outro é inimigo – e não opositor.
Quando Bolsonaro assume o poder, este homem sente que também ele volta a governar um mundo que já não compreendia
Mas qual é o ataque que acreditam estar sofrendo? A suspensão de privilégios que consideravam direitos, acirrada pelo desamparo que uma crise econômica e a ameaça de desemprego provocam. Era gente – principalmente homens, heterossexuais e brancos – que nos últimos anos via o chão desaparecer debaixo dos seus pés. Excluídos das elites intelectuais, pressionados a ser “politicamente corretos” porque outros saberiam mais do que eles, ridicularizados na sua macheza fora de época, assombrados por mulheres até mesmo dentro de casa, reagem. Como se sentem fracos, reagem com força desproporcional.
Esses brasileiros não querem um homem melhor do que eles na presidência. O que querem é um homem igual a eles no governo. Numa época em que até as metáforas se literalizaram, Bolsonaro lhes devolve – literalmente – aquilo que sentem que lhes foi tirado. Ao assumir o poder, Bolsonaro mostra que a ordem do mundo volta ao “normal”. Com Bolsonaro, eles voltam também ao Governo de suas próprias vidas, sem serem questionados nem precisarem ser questionados sobre temas tão espinhosos como, por exemplo, a sexualidade e seu lugar na família e na sociedade.
São principalmente homens, mas também são mulheres que sentem que a opressão é um preço baixo a pagar para voltar a um território que, mesmo asfixiante, é conhecido e supostamente mais seguro num mundo movediço. São brasileiros que pertencem a diferentes religiões, mas a votação mais expressiva recebida por Bolsonaro foi entre os evangélicos. As igrejas evangélicas neopentecostais têm multiplicado o número de fiéis e aumentado sua representação no Congresso nos últimos anos, encarnando uma das mais importantes mudanças culturais – e políticas – do Brasil.
Como disse Bolsonaro em seu discurso às massas, logo após ser ungido com a faixa presidencial: “Não podemos deixar que ideologias nefastas venham a dividir os brasileiros. Ideologias que destroem nossos valores e tradições, destroem nossas famílias, alicerce da nossa sociedade. Podemos, eu, você e as nossas famílias, todos juntos, reestabelecer padrões éticos e morais que transformarão nosso Brasil”.
Bolsonaro se torna herói porque enfrenta o “politicamente correto” e liberta os sentimentos reprimidos de seus iguais
Como se sentiam burros diante da intelectualidade acadêmica que sempre lhes torceu o nariz pontudo, os bolsonaristas adotaram seus próprios intelectuais. E também foram adotados por eles, como fez Olavo de Carvalho, que graças a isso se tornou um autor best-seller e passou a exercer seu autoproclamado “anarquismo” de forma bastante interessante.
Bolsonaro torna-se então aquele que “não tem medo de dizer o que pensa” ou “aquele que diz a verdade”. Bolsonaro se torna herói porque enfrenta o “politicamente correto” e liberta os sentimentos reprimidos de seus iguais. Eles, que começam a se sentir uns merdas diante de mulheres cada vez mais assertivas e de negros que não aceitam mais um lugar subalterno podem então voltar a mentir sobre privilégios serem direitos – e afirmar que esta é “a verdade”. Bolsonaro prega “transformação”, mas só se elegeu porque sua proposta de “mudança” trabalha com a ilusão do retorno. Essa “nova direita” compreende muito bem os anseios de uma parcela dos homens desesperados desse tempo.
Na tentativa de volta ao passado que já não pode ser, mesmo com Bolsonaro no poder, os privilégios perdidos foram tachados de “ideologia”. Aqueles que ideologizam tudo, até mesmo a orientação sexual e a religião alheias, culpam a ideologia por tudo. Se não gostam dos fatos, como o aquecimento global, convertem-nos em “ideologia marxista”. Transformam “politicamente correto” num palavrão. Qualquer limite torna-se uma afronta à liberdade, em especial a liberdade de ser violento. Chamam todos aqueles que apontam a necessidade de limites de “comunistas” ou “esquerdistas”, como se ambas as palavras significassem uma espécie de pecado capital.
Bolsonaro e seus seguidores corrompem a realidade e afirmam sua mediocridade como valor
Como sentiam-se oprimidos por conceitos que não compreendiam, os bolsonaristas descobriram que poderiam dar às palavras o significado que lhes conviesse porque o grupo os respaldaria. E, graças às redes sociais, o grupo os respalda. O significado das palavras é dado pelo número de “curtir” nas redes sociais. Esvaziadas de conteúdo, história e consenso, esvaziadas até mesmo das contradições e das disputas, as palavras se tornaram gritos, força bruta.
É assim que um homem medíocre como Bolsonaro vira “mito”. Ameaçados de perder a diferença que lhes garante privilégios que já não podem ter, Bolsonaro e seus seguidores corrompem a realidade e afirmam sua mediocridade como valor. Macho. Branco. Sujeito Homem.
Mas é este brasileiro que chega ao poder com Bolsonaro? Em parte sim. Mas em parte não. Este é o enredo que assistiremos a partir de agora. Tornar-se adulto não é apenas uma condição biológica. É, no sentido mais amplo, reconhecer seus limites e responsabilizar-se pelas próprias escolhas. Bolsonaro, claramente, é uma criança voluntariosa e mal educada que precisa da aprovação dos maiores.
Ao vislumbrarem que Bolsonaro poderia ganhar a eleição, diferentes grupos das elites se aproximaram e respaldaram sua candidatura. Cada um com seu projeto próprio. Há Paulo Guedes, o ultraliberal ambicioso e intoxicado pela própria importância que quer marcar a história, comandando o superministério da Economia. Há Sergio Moro, o juiz que mostrou que pode violar a lei caso ela perturbe seu projeto pessoal, porque acredita que seu projeto pessoal é público e acredita saber o que é melhor para a nação, como acreditam todos os que se creem superiores ou mesmo super-heróis.
Como o garoto Bolsonaro vai lidar com as disputas no mundo dos adultos?
Há os representantes do “agronegócio”, ramo que no Brasil se confunde com crimes como grilagem (roubo) de terras públicas e conflitos agrários causadores de dezenas de assassinatos a cada ano. Fiadores do governo de Michel Temer (MDB) e também da candidatura de Bolsonaro, os ruralistas não apenas estão no governo, mas “são” o governo.
Esse grupo vai abrir a Amazônia para a exploração – soja, gado e mineração, além de grandes obras. Isso significa, entre outras medidas, mudar ou “regulamentar” a Constituição para abrir as terras públicas de usufruto exclusivo dos indígenas ou as terras coletivas dos quilombolas para lucros de grupos privados. Uma das primeiras medidas de Bolsonaro, logo após ser empossado na presidência, foi transferir a demarcação das terras indígenas e das terras dos quilombolas para o Ministério da Agricultura. Já no primeiro dia Bolsonaro entregou o futuro da floresta e do cerrado àqueles que os destroem.
No escalão mais subalterno, há um ministro do Meio Ambiente condenado por violar o meio ambiente, um ruralista escolhido pelos ruralistas. Há uma ministra da cota evangélica que vai cuidar de temas tão amplos como direitos humanos, mulheres e indígenas, a partir de uma leitura literal da Bíblia. Há um ministro de Cidadania que será responsável também pela área da cultura, mas já afirmou não entender nada da área.
Há ainda os ministros da cota afetiva de Bolsonaro, como o chanceler Ernesto Araújo, que assumiu para si a tarefa de construir a base intelectual da ideologia de Bolsonaro. Em artigo publicado numa revista americana, o diplomata que parece desprezar a diplomacia lançou uma espécie de nacionalismo religioso: “Deus através da nação”. E há o ministro da Educação que acredita que o golpe que levou o Brasil a 21 anos de ditadura deve ser comemorado. O apagamento da história, sacrificando os fatos em nome da ideologia, é uma das missões do governo Bolsonaro.
E há, finalmente, aquele que é talvez o grupo mais significativo, composto por sete militares ocupando postos chaves no governo. Nem sempre esses grupos concordam sobre o que é melhor para o Brasil. É provável que em alguns pontos possam discordar radicalmente. Como então o garoto Bolsonaro vai lidar com a disputa de gente grande?
Como o menino mimado vai se haver com a realidade, agora que a campanha acabou? Como vai ser quando a corrosão dos dias ameaçar a paixão das massas? E, no lado oposto, como os adultos da sala vão lidar com a criança cheia de vontades quando ela não puder ser manipulada – ou estiver sendo manipulada pelo grupo adversário – e ameaçar seu projeto de poder? Como se dará essa negociação? Quais são os riscos de ruptura?
Como todo medíocre, Jair Bolsonaro arrota ignorância como se fosse sabedoria. Mas, também como todo medíocre, no fundo, bem no fundo, ele suspeita que é medíocre. E busca desesperadamente a aprovação dos adultos.
No momento, Bolsonaro está encantado por ter um intelectual ligado à Escola de Chicago dizendo a ele o quanto é especial. Um herói da Operação Lava Jato lhe tecendo elogios. E, principalmente, generais batendo continência ao capitão. Mas a realidade é implacável com as ilusões.
Para acirrar a possibilidade de conflitos, há ainda a família de Bolsonaro, com seu trio de principezinhos, desta vez mimados pelo pai, que ainda chama marmanjos sem limites de “garotos”. Extasiados com o poder, eles já mostraram o quanto gostam do palco e quanta confusão podem aprontar. Como pai típico deste momento histórico, Bolsonaro protege seus meninos. Neste caso, da própria mediocridade. Os Bolsonaros Júnior parecem ter certeza de que são excepcionais e que a realidade vai se dobrar à sua vontade. Se não se dobra, sempre podem chamar “um cabo e um soldado” para fazer o serviço.
A experiência de Brasil que agora se inicia é fascinante. Mas só se vivêssemos em Marte e se a maior floresta tropical do planeta não estivesse ameaçada. Em algum momento, Jair Bolsonaro se olhará no espelho e verá apenas Fabrício Queiroz, o PM e ex-assessor do filho que não consegue explicar de onde vem o dinheiro que depositou na conta da primeira-dama. Em algum momento, Jair Bolsonaro poderá se olhar no espelho e verá apenas a imagem mais exata de si mesmo. Assombrado pela verdade que não poderá chamar de “fake news”, ele correrá para as ruas para ouvir os Queiroz gritarem: “Mito! Mito! Mito!”. Mas o grito pode ter sido engolido pela realidade dos dias. Saberemos então, em toda a sua magnitude, o que significa Bolsonaro no poder.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A
Eliane Brum: A esquerda que não sabe quem é
Como deixar de apenas reagir, submetendo-se ao ritmo imposto pela extrema direita no poder, e passar a se mover com consistência, estratégia e propósito?
Quero propor uma conversa. Ou talvez duas. A esquerda foi demonizada pela turma do Bolsonaro, do MBL (Movimento Brasil Livre), do Olavo de Carvalho e outras. Para uma parte da população, virou tudo o que não presta, seja lá o que for. Às vezes esquerda e comunismo e marxismo viram uma coisa só no discurso repetitivo e feito para a repetição. E essa coisa que viram pode ser qualquer coisa que alguém diz que é ruim. A reação daqueles que se identificam com a esquerda é acusar os que estimulam esse desentendimento, aqui no sentido de não entender mesmo do que tratam os conceitos, de manipuladores e de desonestos. E com frequência é isso mesmo que são. Mas se fosse só isso seria mais fácil.
O problema é que está muito difícil saber o que a esquerda é. E o que a esquerda propõe que seja claramente diferente da direita. O PT se corrompeu no poder. É um fato. Pode se discutir bastante se o PT é um partido de esquerda. Eu, pessoalmente, acho que foi de esquerda só até a Carta ao Povo Brasileiro, durante a campanha de 2002. Outros encontram marcos anteriores de rompimento com um ideário de esquerda.
Negar que o PT se corrompeu no poder é quase tão delirante quanto negar o aquecimento global provocado por ação humana
Para o senso comum, porém, o PT é um partido de esquerda. Não só é como foi a principal experiência de um partido de esquerda no poder da história da democracia brasileira. Logo, não se corromper no poder, fazer diferente da velha política conservadora, já não é uma diferença da esquerda para a população. Negar que o PT se corrompeu no poder é quase tão delirante — ou mau caráter — quanto negar o aquecimento global provocado por ação humana.
Garantir o emprego e os direitos trabalhistas poderia ser uma outra diferença visível, mas o desemprego voltou a crescer e os direitos do trabalhador começaram a ser cortados já no governo de Dilma Rousseff, a última experiência que a população teve de um governo de esquerda. A reforma agrária poderia ser outra diferença, mas ela não avançou de forma significativa no governo de esquerda. O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que hoje está sendo criminalizado pelo governo de extrema direita, se domesticou quando o PT estava no poder. O mesmo aconteceu com grande parte dos movimentos sociais, que viraram governo em vez de continuar sendo movimentos sociais, o que teria sido importante para garantir a vocação de esquerda do partido no poder. Esta, aliás, é uma história que precisa ser melhor contada.
Também nos governos do PT foram fortalecidos os laços com a bancada ruralista, que foi ganhando cada vez mais influência no cotidiano do poder, e se iniciou um claro projeto de desmantelamento da Funai (Fundação Nacional do Índio). Não é permitido esquecer nenhuma palavra de Gleisi Hoffmann atacando a Funai, quando era ministra da Casa Civil de Dilma Rousseff, assim como não é permitido esquecer nenhuma palavra da ruralista Kátia Abreu, ministra da Agricultura de Dilma, sobre as terras indígenas.
Não custa lembrar que, segundo a Constituição de 1988, as terras indígenas são públicas, de domínio da União, mas de usufruto exclusivo dos indígenas. Toda a articulação para enfraquecer a Funai, até hoje, entre outras várias ações, tem por objetivo mudar a Constituição e abrir as terras indígenas para exploração e lucros privados.
Lula chegou a dizer, em 2006, que os ambientalistas, os indígenas, os quilombolas e o Ministério Público eram entraves para o crescimento do país. Dilma foi a presidente que menos demarcou terras indígenas. A lei antiterrorista, que pode ser piorada e usada para criminalizar ativistas e movimentos sociais no governo de Bolsonaro, foi sancionada por ela. Nenhuma dessas ações e omissões podem ser relacionadas com um ideário de esquerda, pelo menos de uma esquerda que mereça esse nome.
Os governos de Lula e de Dilma reeditaram na Amazônia uma versão das grandes obras da ditadura militar, com hidrelétricas como Jirau e Santo Antônio, estas ainda no tempo de Marina Silva como ministra do Meio Ambiente, no rio Madeira; Teles Pires, no rio Teles Pires; e Belo Monte, no rio Xingu. E só não houve (ainda) as grandes hidrelétricas no rio Tapajós por conta da resistência do povo indígena Munduruku e dos ribeirinhos de Montanha-Mangabal. O complexo hidrelétrico no Tapajós foi temporariamente suspenso também pelo enfraquecimento do governo no processo do impeachment, pela desestabilização das empreiteiras pela Operação Lava Jato e pela desaceleração das exportações de matérias-primas para a China.
Nos governos do PT, comunidades urbanas pobres foram expulsas de suas casas para as obras superfaturadas da Copa e da Olimpíada, assim como povos da floresta foram arrancados de suas ilhas e beiradões para a construção de hidrelétricas. Foi também nos governos do PT que a Força Nacional foi usada para reprimir greve de trabalhadores na construção de Belo Monte e também reprimir protestos da população atingida contra a hidrelétrica.
No enfrentamento da questão das drogas, o governo Lula agravou ainda mais os problemas. A chamada Lei de Drogas, sancionada em 2006, é apontada como uma das causas do aumento do encarceramento de jovens e negros, assim como de mulheres, por pequenas quantidades de substâncias proibidas. Além de acentuar o horror do sistema prisional brasileiro, ainda fortaleceu a desastrosa política de “guerra às drogas”, comprovadamente falida. O Brasil perdeu uma oportunidade histórica de alinhar-se com as políticas públicas mais eficientes já testadas em outros países do mundo.
No final do governo de Dilma Rousseff, até mesmo os melhores projetos construídos nos governos do PT, os claramente de esquerda, como na área da saúde mental, começaram a ser desmanteladas para tentar salvar a presidenta ameaçada de impeachment. Espero que ninguém tenha esquecido que as salas da Coordenação de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde foram ocupadas por pacientes e trabalhadores da rede pública em protesto contra a nomeação de um diretor de manicômio para a área. A luta antimanicomial é claramente uma bandeira ligada à esquerda.
Se a esquerda quiser se mover, é preciso enfrentar as contradições do PT no poder
A lista pode continuar. Mas acredito que já está de bom tamanho para expor aquilo que acho importante afirmar se quisermos compreender esse momento tão delicado. De forma nenhuma eu entendo que o governo do PT foi igual aos anteriores, muito menos que seja parecido com o governo de extrema direita que já começou.
O avanço nas cotas raciais, a ampliação do acesso ao ensino superior, a expansão do Bolsa Família, o aumento real do salário mínimo, a consequente redução da miséria e da pobreza mudaram o país. Já escrevi bastante sobre isso e me posicionei com bastante clareza nestas eleições. Mas não é permitido desviar das contradições. É necessário caminhar com elas e enfrentar as complexidades se a esquerda quiser se mover — e não apenas reagir e reagir. E reagir de novo.
O que afirmo é que a última — e em certa medida única — experiência de esquerda que marca a memória da população foi construída pelos governos do PT. E que as diferenças não são suficientes para que a população possa compreender um projeto de esquerda. Como o cérebro humano em geral recorda e torna totalizante o que vem por último, a diferença de um governo de esquerda para qualquer outro fica ainda mais nebulosa. É possível que, no futuro, quando for um passado mais distante, os anos de Lula ganhem os tons da nostalgia.
Mas não agora. Logo na sequência, os anos de melhoria de vida determinadas por políticas públicas vão sendo apagados pelas dificuldades imediatas num país formado em sua maioria por sobreviventes com medo de perder o que ainda têm. A vitória de Fernando Haddad (PT) sobre Bolsonaro no Nordeste mostra justamente que, nos estados mais pobres do país, a maioria entendia muito claramente qual era a diferença. Mas essa diferença, marcada por políticas públicas como o Bolsa Família, não teve o mesmo impacto nas demais regiões de um país gigante, desigual e culturalmente diverso.
Uma das chaves para compreender por que Lula ocupava um primeiro lugar folgado nas pesquisas pré-eleitorais para a presidência, em 2018, antes de sua candidatura ser impedida pelo judiciário, também aponta para algo importante. O Brasil cheio de potência da primeira década do século está intimamente ligado à figura de Lula, que terminou o segundo mandato com quase 90% de aprovação — e não está ligado ao PT e à esquerda, ou está muito menos ligado ao PT e à esquerda. Também nisso não se fez diferente da extrema direita populista.
O tratamento de eleitores como adultos infantilizados – e não como cidadãos emancipados – é uma conta alta que o PT e toda a esquerda estão pagando agora
A relação de Lula com os eleitores, em especial a partir do segundo mandato, foi populista e paternalista. Os eleitores não eram tratados como cidadãos autônomos, que conferiam ao governante um mandato de poder temporário, que seria rigorosamente fiscalizado por eles, mas sim filhos a quem um pai afetuoso concedia agrados. Foi também como “mãe do PAC” ou “mãe dos pobres” que Dilma foi apresentada na primeira eleição, embora não tenha funcionado graças ao desconforto louvável que ela sentia com o figurino.
O tratamento de eleitores como adultos infantilizados — e não como cidadãos emancipados — é uma conta alta que o PT e toda a esquerda estão pagando agora. O PT tem grande responsabilidade em converter direitos em concessões ou favores no imaginário popular, o que marca o pior da política.
Não me parece, portanto, que a demonização da esquerda seja apenas conferida pela manipulação articulada pela extrema direita e também resultado da ignorância de grande parte da população sobre conceitos básicos. Em parte, sim. Mas há algo concreto, factual e legítimo, embora nem sempre claro, na reação de parte da população contra a esquerda. Se você não consegue ver a diferença entre os projetos e a sua vida está ruim, o culpado é quem estava no governo. E o PT esteve no governo por mais de 13 anos. Se você não consegue ver diferença, esquerda é o nome de tudo o que você odeia.
É óbvio que esse sentimento é manipulado pelos grupos que disputam o poder, mas isso não significa que não exista lastro, experiência e racionalidade nessa interpretação. Todos têm direito a querer uma vida melhor e todos sabem qual é a vida que estão vivendo.
A eleição de Bolsonaro mostrou que a esquerda não convenceu a maioria dos eleitores de que pode mudar sua vida para melhor. Então muita gente preferiu tentar algo extremo, porque o desamparo é grande. E como a vida no Brasil está ruim mesmo, é catártico poder culpar alguém por todas as merdas que acontecem no seu dia, assim como pela imensa sensação de fracasso e de insegurança. A esquerda — ou o comunismo ou o marxismo — virou esse nome para tudo o que não presta, já que não dá para saber o que ela é e o que propõe de fato.
Quando se exige uma autocrítica do PT é exatamente porque sem ela não é só o PT que não avança, mas todo o campo da esquerda que foi identificado com o PT, com ou sem razão. Como o PT usa inúmeras justificativas para não fazer autocrítica, o que me parece não só desrespeito aos eleitores, mas também um tremendo equívoco político, nada avança. Se você não pode falar sobre o que errou, e que todo mundo viu que errou, como alguém vai acreditar em seus acertos?
Como o PT é a experiência de esquerda que a população viveu, a autocrítica é fundamental para que a esquerda possa construir um outro projeto para o país
A credibilidade se dá também pela coragem de assumir os erros cometidos e de ter respeito suficiente pelo voto de quem o elegeu para debater seus equívocos publicamente. Quando insisto na autocrítica do PT não estou preocupada com o futuro do partido, mas sim com a necessidade de a esquerda ser capaz de criar um projeto que mostre a sua diferença. Como o PT é a experiência de esquerda que a população viveu, a autocrítica é fundamental para que a esquerda possa construir um outro projeto. Autocrítica não como expiação cristã, mas como dever democrático, compromisso público com o público.
No início de dezembro, durante uma palestra na Universidade de Londres, a ativista Bianca Jagger afirmou que o movimento que confronta a ditadura de Daniel Ortega, na Nicarágua, não é de esquerda ou de direita. Os manifestantes, muitos deles estudantes, “walk for life”. Esta é possivelmente a interpretação acurada da ativista sobre movimentos que se caracterizam por não serem marcados por uma coesão ideológica. Mas é também uma resposta à estratégia dos apoiadores do regime de opressão.
Daniel Ortega e Rosario Murillo, sua mulher e vice-presidente, assim como seus partidários e parte da esquerda mundial tentam vender à opinião pública internacional a ideia de que Ortega estaria sendo atacado por um complô de direita. O problema da teoria conspiratória é que Ortega não tem mais qualquer resquício de identificação com um projeto de esquerda há vários anos. Mas essa parcela da esquerda, corroída e ultrapassada, finge não saber disso e insiste em contornar os fatos porque eles mancham seus heróis e suas revoluções.
As ditaduras de Daniel Ortega e Rosario Murillo, na Nicarágua, e de Nicolás Maduro, na Venezuela, colaboram bastante para que as diferenças entre esquerda e direita sejam apagadas. Há muitos anos Ortega traiu a revolução sandinista e qualquer ideário de esquerda e está fortemente conectado ao que há de pior na direita. Da mesma forma, Maduro não pode ser considerado um democrata de esquerda por várias razões, uma delas a de matar e prender opositores de um regime que há muito deixou de ser uma democracia.
Essa esquerda apodrecida, que morre abraçada com ditadores e não consegue admitir que se corrompeu, precisa ser superada
Parte da esquerda mundial, dos partidos que se dizem de esquerda e dos intelectuais que se dizem de esquerda, porém, simplesmente ignora os fatos ou torce as evidências para defender o indefensável. Como afirmar então que a população é que é ignorante e não consegue compreender a diferença entre esquerda e direita? Se a esquerda não se dá o respeito, a esquerda não merece respeito. Essa esquerda apodrecida, que morre abraçada com ditadores e não consegue admitir que se corrompeu, precisa ser superada. Essa esquerda que já não é está atrapalhando a esquerda que quer ser.
Há muita gente, de diferentes matizes ideológicos, defendendo que “essa coisa de esquerda e direita acabou”. Não é minha posição. Pelo contrário. Acho mais urgente do que nunca a criação de um projeto de esquerda para o Brasil, uma visão de esquerda para um dos países mais culturalmente diversos do mundo. Um projeto criado junto com os vários povos brasileiros, porque uma das diferenças da esquerda é criar junto, como num dia longínquo o PT fez com o orçamento participativo de cidades como Porto Alegre.
Em artigo no The Intercept, a cientista social e antropóloga Rosana Pinheiro-Machado escreveu sobre o que tem chamado de “revoltas ambíguas”. Aquelas que não se definiriam por estar alinhadas com a esquerda ou com a direita, como aconteceu nas manifestações de 2013, com a greve dos caminhoneiros, em 2018, no Brasil, e acontece agora com os “coletes amarelos”, na França. Tentar enquadrá-las como de esquerda ou de direita é um equívoco:
“Fruto da crise econômica de 2007 e 2008, as revoltas ambíguas são um fenômeno que veio para ficar. Elas são uma resposta imediata do acirramento de austeridade do neoliberalismo do século 21, marcado pela crescente captura dos estados e das democracias pelas grandes corporações. Se o neoliberalismo flexibiliza as relações de trabalho e, consequentemente, as formas de fazer política sindical, atuando como uma máquina de moer coletividades, des-democratizar, desagregar e individualizar, os protestos do precariado tendem a ser desorganizados, uma vez que a esfera de politização deixa de ser o trabalho, mas ocorre de forma descentralizada nas redes sociais. Os protestos ocorrem mais como riots (motins) para chamar atenção. Eles nascem, muitas vezes, de forma espontânea e contagiosa, sem grande planejamento centralizado e estratégico, expressando um grande sentimento de revolta contra algo concreto vivenciado em um cotidiano marcado por dificuldades. São um grito de ‘basta”.
Ao voltar a entrevistar os jovens que participaram dos “rolezinhos”, em 2016, Rosana e a antropóloga Lúcia Scalco constataram que parte deles virou “bolsominion”, nome pejorativo dado aos seguidores de Bolsonaro. Outra parte aderiu a lutas mais identificadas com a esquerda, como contra o machismo, contra o racismo e contra a homofobia. Mas os rolezinhos não eram um movimento de a esquerda ou de direita quando aconteceram, como ficou claro, embora tivessem uma expressão política. “Direita e esquerda são os polos para onde as rebeliões ambíguas podem pender. São, portanto, uma disputa, um fim. (...) Isso significa que a ambiguidade não é um lugar no qual conseguimos nos manter por muito tempo”, escreveu Rosana.
Parte dos pensadores de esquerda decidiu parar de pensar com medo de enfrentar as contradições da experiência concreta de poder
Se a ambiguidade é uma marca das revoltas recentes no Brasil e no mundo, me parece que o desafio não está em superar os conceitos de esquerda ou de direita, mas sim de atualizar os conceitos de esquerda e de direita, exatamente para que as pessoas consigam estabelecer as diferenças. Não são os conceitos que estão ultrapassados, mas muitos dos pensadores de esquerda é que decidiram parar de pensar, com medo de enfrentar as contradições, e se blocaram em significados de um mundo que já não é. O pensador só é vivo enquanto continuar pensando e se pensando. O que estanca, paralisa, é dogma.
Há um enorme risco quando tudo se confunde, como hoje. Se os limites entre esquerda e direita são borrados, como fazer escolhas consistentes? Como criar um projeto se você não consegue dizer claramente nem mesmo aquilo que não é?
No caso dos “coletes amarelos”, na França, há um ponto que também vale a pena prestar atenção, como assinalaram alguns analistas. Como se sabe, o presidente francês, Emmanuel Macron, colocou um “imposto ecológico” sobre os combustíveis, causando revolta naqueles que dependem deles para trabalhar. A taxação de combustíveis fósseis é uma das medidas importantes para enfrentar as mudanças climáticas provocadas por ação humana, que podem destruir o planeta e nossa vida nele, assim como a das outras espécies, se não forem tomadas medidas urgentes.
O aumento dos combustíveis seria um dos vários passos em direção ao compromisso da França de reduzir as emissões de carbono em 40% até 2030 e proibir a venda de veículos a gasolina e a diesel até 2040. Aumentar o preço do carbono tem sido apontado por alguns economistas como uma ferramenta essencial para manter o aquecimento global abaixo do nível perigoso de 1,5 graus Celsius.
O problema foi a escolha feita por Macron: o ônus não estava sendo compartilhado de forma justa. A maioria dos manifestantes estava nas ruas porque gasta uma parte desproporcional de seus ganhos em combustível e transporte. Em contrapartida, o imposto seria usado principalmente para reduzir o déficit orçamentário da França, pagando credores ricos. Na prática, o “imposto ecológico” de Macron agravaria a desigualdade.
Embora alinhada com a necessidade de tomar medidas urgentes diante do aquecimento global, a escolha de Macron não foi orientada por princípios de esquerda, mas sim por princípios de direita. Visto como um político de centro, quando foi eleito, o presidente francês é da nova safra de políticos que se elegeu repetindo não ser “nem de direita nem de esquerda”. No Brasil, a principal expoente dessa linha nem cá nem lá é Marina Silva.
A esquerda brasileira é incapaz de dar à mudança climática o lugar central que ela tem na realidade
Cito o caso francês não só porque está se desenrolando nestes dias, mas porque uma grande parcela do que se chama esquerda, principalmente no Brasil, é incapaz de colocar a mudança climática como uma questão central que deve ser enfrentada a partir de princípios de esquerda. A mudança climática foi causada por ação humana, mas não de todos os humanos. Alguns humanos, os mais ricos, assim como os países mais ricos, Estados Unidos na liderança, são os grandes responsáveis pela destruição em curso do planeta. Mas as consequências atingirão primeiro os mais pobres e muito mais os mais pobres. É o que já está acontecendo.
Não há nenhuma grande questão atual que não seja atravessada e determinada pela crise do clima. Um outro exemplo deste momento: a caravana de milhares de pessoas de Honduras, El Salvador e Guatemala que marchou rumo à fronteira do México com os Estados Unidos pode apontar a primeira migração em massa da América Latina provocada por mudança climática. Eles falam de fome e de violência, mas porque isso é o que aparece como causa imediata. Ao serem entrevistados por jornalistas que sabem perguntar, porém, uma parcela significativa conta que o clima começou a mudar e as colheitas diminuíram, causando um série de consequências que os levou a essa marcha desesperada.
Qual é a resposta da esquerda brasileira para a mudança climática? Qual é o projeto para enfrentar e se adaptar ao que virá, para além dos discursos habituais? Não há. Fora iniciativas pontuais, parte dos partidos e políticos de esquerda sequer compreende o que está em jogo.
Quando Ernesto Araújo, o chanceler de Bolsonaro, afirma que a mudança climática é uma “ideologia de esquerda”, ele não está apenas sendo irresponsável e falando uma tremenda bobagem. Ele está também superestimando a esquerda. E especialmente o PT. Alguns, inclusive, devem ter acordado naquele instante para o aquecimento global e corrido para a Wikipédia.
Lula e Dilma Rousseff, os dois últimos presidentes do PT, nunca chegaram sequer perto de compreender que a mudança climática era assunto deles. Ao contrário. Deixavam claro que adoravam ver as ruas cheias de carros individuais, movidos a combustíveis fósseis, construir hidrelétricas na Amazônia e ver a floresta convertida em soja e boi. Os dois estavam cimentados no século 20, às vezes no 19. Como afirmou o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, em entrevista a esta coluna, a esquerda que estava no poder era uma “esquerda velha”, que não alcançou sequer 1968, referindo-se às mudanças profundas provocadas pelos movimentos de maio daquele ano, na França.
Há vários pensadores no mundo elaborando respostas de esquerda para o desafio da mudança climática provocada por ação humana. Ou enfrentando a necessidade de refletir sobre o que pode ser uma resposta de esquerda para um fenômeno que é, ao mesmo tempo, causado pela desigualdade e causador de desigualdades.
Uma resposta de esquerda, por exemplo, seria taxar os grandes produtores de combustíveis fósseis ou taxar todos aqueles que causam danos ao que é comum a todos, ao que é patrimônio coletivo, inclusive de outras espécies. Se há bastante sendo pensado no mundo, essa reflexão não parece estar acontecendo no Brasil, para além de nichos especializados. Acredito não cometer injustiça ao dizer que a maior parte dos intelectuais brasileiros não tem ideia das implicações e efeitos da mudança climática, o que compromete qualquer análise do momento atual.
Se a esquerda não tem resposta consistente nem mesmo para o maior desafio da trajetória humana, para que serve a esquerda?
Em várias partes do mundo, os jovens estão chamando os atuais líderes e também seus pais de “uns merdas” que estão ferrando o planeta que viverão. São adolescentes como a sueca Greta Thunberg, de 15 anos, que em setembro deixou de ir à escola para se plantar em frente ao parlamento para protestar contra a falta de medidas para combater o aquecimento global, ou os estudantes australianos que foram às ruas no final de novembro inspirados por ela.
Esses adolescentes vão virar adultos num mundo em que a esquerda não mostrou a sua diferença. Mesmo que tenham sido beneficiados por políticas públicas de esquerda no passado, eles não saberão. Se a esquerda não tem resposta consistente nem mesmo para o maior desafio da trajetória humana, para que serve a esquerda?
Qualquer projeto de esquerda para o Brasil precisa ter uma resposta de esquerda para o enfrentamento da mudança climática e do desmatamento da Amazônia e do Cerrado. Sem isso não há qualquer possibilidade de começar qualquer conversa que possa interessar quem vive no século 21 e que sabe que suas crianças viverão num planeta pior, o que já é uma certeza, ou num planeta terrível, o que acontecerá caso as medidas necessárias não sejam tomadas nos próximos 12 anos. Sem isso não há qualquer possibilidade de começar qualquer conversa que possa interessar quem vive no país que tem a maior porção da maior floresta tropical do planeta no seu território e no país mais biodiverso do mundo.
Ao contrário de muitas pessoas engajadas no enfrentamento da mudança climática e nas medidas de adaptação à nova realidade do planeta, eu acredito que esse enfrentamento precisa ser travado a partir de princípios de esquerda. Não estamos todos no mesmo barco. Não estamos mesmo. Muitos só têm barquinhos de papel.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Eliane Brum: Os “malucos” sapateiam no palco
Aqueles que não eram levados a sério hoje têm poder atômico e também o de destruir a Amazônia
Nas últimas décadas existiu um consenso de que, diante dos absurdos que eram ditos nas redes e em outros espaços, a melhor estratégia era não responder. Contestar pessoas claramente mal intencionadas e intelectualmente desonestas, em sua busca furiosa por fama, seria legitimá-las como interlocutor, dando crédito ao que diziam. E, assim, servir de escada para que ganhassem mais visibilidade. A frase popular que expressa essa ideia é: “Não bata palmas para maluco dançar”. A eleição de Donald Trump, de outros populistas de extrema-direita e agora de Jair Bolsonaro revelou que este foi um equívoco que vai custar muito caro.
Os “malucos” não só dançaram, como sapatearam. Em seguida, passaram a afirmar seus pensamentos como “verdades” – e verdades únicas. O próximo passo foi conquistar o poder. Hoje os “malucos” não só ocupam os palcos mais centrais como têm o poder atômico de explodir o mundo, como Trump, ou acabar com a Amazônia, como Bolsonaro.
Se a eleição de Trump já havia exposto essa realidade, a de Bolsonaro é ainda mais emblemática. No caso de Trump, ao menos se poderia contrapor que o presidente americano é um bem sucedido homem de negócios, algo bastante valorizado no país do “faça-se a si mesmo”, frase usada para encobrir desigualdades decisivas para o destino de cada um. No caso de Bolsonaro, apesar de ele se apresentar e ser apresentado como “capitão reformado”, o presidente eleito passou os últimos 28 anos como um político profissional com pouca ou nenhuma importância para as grandes decisões do Congresso, ganhando espaço no noticiário apenas como personagem burlesco. Conseguiu se eleger sem sequer participar de debates no segundo turno – ou exatamente por isso –, porque dominava os palcos que importavam para ganhar a eleição.
Bolsonaro, que é chamado de “mito”, é um mitômano
Embora Bolsonaro só assuma oficialmente em janeiro, claramente o governo de Michel Temer acabou em 28 de outubro, quando o deputado se elegeu presidente. Hoje os brasileiros percebem que aquilo que parecia ser um universo paralelo, que só em situações excepcionais cruzava com o real, se tornou o que podemos chamar de realidade. O homem que já governa o Brasil, chamado de “mito” por seus seguidores, é um “mitômano”.
O que sabemos até agora é que Bolsonaro venera três figuras masculinas: Carlos Alberto Brilhante Ustra, militar e torturador da ditadura (1964-85); Olavo de Carvalho, que se apresenta como filósofo e se popularizou na internet depois de ser colunista da grande imprensa, e Donald Trump. Ustra desponta como a referência ética de Bolsonaro, Carvalho como seu guru intelectual e Trump é seu farol como líder. Por enquanto, temos uma trindade. E, neste ponto, Bolsonaro poderia interromper para afirmar que Deus acima de todos, já que Deus passou a ser um ativo na economia política que tem regido o Brasil atual.
A trindade de Bolsonaro é composta por um torturador, um guru e... Trump
Carlos Alberto Brilhante Ustra já foi amplamente descrito. Ele é reconhecido como torturador pela justiça brasileira e, conforme testemunhos, seria responsável por pelo menos 50 assassinatos. Como torturador, foi capaz de espancar grávidas e de levar crianças para ver o corpo destruído dos pais. Olavo de Carvalho já se manifestou contra campanhas de vacinação, isso num país que assiste a doenças consideradas erradicadas voltarem a ameaçar por baixa cobertura vacinal. Mora nos Estados Unidos desde 2005 e dá cursos de filosofia em vídeos transmitidos pela internet. Em recente entrevista à jornalista Júlia Zaremba, na Folha de S. Paulo, Carvalho assim se manifestou, ao ser perguntado sobre educação sexual nas escolas:
"Quanto mais educação sexual, mais putaria nas escolas. No fim, está ensinando criancinha a dar a bunda, chupar pica, espremer peitinho da outra em público. Acham que educação sexual está fazendo bem, mas só está fazendo mal. O Estado não tem que se meter em educação sexual de ninguém".
A linguagem que o mentor intelectual do novo presidente do Brasil leva para a imprensa formal é a que rege a internet. Não há qualquer base para o que afirma, não há um único caso confirmado de que alguma criança foi ensinada na escola a “dar a bunda, chupar pica, espremer peitinho da outra em público”. Isso até hoje não existe como fato. Mas não importa. As afirmações não precisam estar enraizadas em fatos, basta serem ditas. A verdade foi convertida em autoverdade. E a credibilidade não é construída por uma reputação de conhecimentos postos à prova e expostos ao debate, mas pela percepção emocional de “autenticidade” daquele que a consome.
É “verdade” porque Olavo de Carvalho diz que é verdade o que claramente inventou. E é verdade porque, individualmente, cada seguidor de Olavo de Carvalho decidiu que é verdade. E, desde 29 de outubro, dia seguinte ao segundo turno eleitoral, é verdade também porque Olavo de Carvalho é a referência intelectual do presidente da (ainda) oitava economia do mundo.
A partir de suas autoverdades, Olavo de Carvalho indicou dois ministros do novo governo: o das Relações Exteriores, o diplomata Ernesto Araújo, e o da Educação, o colombiano radicado no Brasil Ricardo Vélez Rodríguez. Na mesma entrevista, Carvalho conta o processo pelo qual conseguiu emplacar dois ministros para governar o Brasil:
"Coloquei no Facebook, creio que coloquei também na área de mensagens do Eduardo Bolsonaro (em rede social). Foi tudo. Eu sei que o Bolsonaro lê as minhas coisas e a gente está vendo que leva bastante a sério. Eu fico muito lisonjeado com isso. (...) Sugeri esses dois simplesmente porque me ocorreu na hora".
A conturbada escolha do ministro da Educação explicitou a forma como o novo governo já começou a operar. O primeiro indicado, Mozart Neves Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna, foi derrubado pelos evangélicos porque seria “esquerdista”. Em seguida, foi cogitado o procurador Guilherme Schelb, próximo do líder evangélico Silas Malafaia e defensor do “Escola Sem Partido”, projeto que busca censurar conteúdos e professores. Ao sair do encontro com Bolsonaro, Schelb fez a seguinte afirmação à imprensa:
"Eu não posso dar tarefa de casa, como tem sido feito, para criança de 8, 9 anos aprender discussão de gênero, o que é sexo grupal, como dois homens transam? O que é boquete? Isso é uma discussão de gênero, é uma violação da dignidade da criança".
Como a autoverdade dispensa os fatos, Schelb não foi incomodado pelo inconveniente de provar o que diz. Como por exemplo: em quais escolas do país e em quantas escolas do país crianças de 8 e 9 anos estão aprendendo sobre o que é boquete e sobre como dois homens transam? Onde está a tarefa de casa em que uma criança de 8, 9 anos precisa descrever um boquete e como dois homens transam?
A sociedade é levada a acreditar que as salas de aula são uma suruba permanente enquanto o real problema é empurrado para as sombras
Seria preciso perguntar onde isso está acontecendo e em que proporção isso está acontecendo no país. E o procurador precisaria responder. Com provas verificadas. Mas não há necessidade de provar. Basta dizer. Qualquer coisa. E assim vai crescendo no país o número de pessoas que acreditam que o cotidiano das salas de aula brasileiras é uma suruba permanente, quando os reais problemas, o baixo salário dos professores e a comprovada baixa qualidade do ensino ministrado no Brasil, são convenientemente empurrados para as sombras.
Dito de outro modo: o problema inventado se torna mais real do que o problema que de fato existe e que condena milhões de brasileiros às consequências de uma educação falha, limitando seu acesso ao mundo e suas possibilidades de uma vida plena.
Por fim, Bolsonaro acolheu a indicação de seu guru, Olavo de Carvalho: entre as várias crenças de Vélez Rodríguez, o futuro ministro da Educação, está a de defender que 31 de março de 1964, data do golpe que deu origem a uma ditadura de 21 anos, “é um dia para ser lembrado e comemorado”. Também critica a Comissão da Verdade, que apurou as torturas, sequestros e assassinatos cometidos por agentes de Estado durante o regime de exceção: “A malfadada ‘Comissão da Verdade’ que, a meu ver, consistiu mais numa encenação para ‘omissão da verdade’, foi a iniciativa mais absurda que os petralhas tentaram impor”. Nos próximos meses, a sociedade brasileira descobrirá como será ter a área da educação comandada por alguém que frauda os fatos históricos.
O futuro chanceler acusa a esquerda de ser “antinatalista”, mas omite que seu chefe defendeu a esterilização de mulheres para combater a pobreza e o crime
Vélez Rodríguez foi o segundo nome emplacado por Olavo de Carvalho. O primeiro foi Ernesto Araújo. As crenças do futuro chanceler já se tornaram piada internacional. Em seu blog chamado “Metapolítica 17” (número de Bolsonaro na cédula eleitoral), criado para apoiar seu futuro chefe, Araújo afirma que mudança climática é uma “ideologia de esquerda”. Também acusa o PT e a esquerda de “criminalizar o desejo do homem pela mulher, os filmes da Disney, a carne vermelha” e “o ar-condicionado”. Chegou a escrever que o PT “quer impedir que crianças nasçam” porque, para a esquerda, “todo o bebê é um risco para o planeta porque aumentará as emissões de carbono”.
Ao empilhar falsidades, Araújo omitiu uma verdade comprovada e documentada sobre seu candidato e agora chefe: nas últimas duas décadas, Bolsonaro defendeu a esterilização de mulheres e um rígido controle de natalidade como meios para combater a pobreza e a criminalidade. Mas quem se importa com fatos quando seus seguidores acreditam em qualquer mentira que ele disser que é verdade?
O problema é que nenhuma das afirmações escritas do futuro chanceler é piada. Ao contrário. É muito sério. Primeiro, porque Bolsonaro e parte de seu entorno manipulam essas mesmas mentiras. Segundo, porque os seguidores do presidente acreditam que são verdades. Terceiro, porque elas já começam a produzir consequências. O Brasil desistiu de sediar a próxima Conferência do Clima, a COP 25, em 2019, uma distinção que o governo brasileiro pediu e, dois meses atrás, Michel Temer (MDB) comemorou. Bolsonaro afirmou ter participado desta decisão e feito uma recomendação ao seu futuro ministro, Ernesto Araújo, para evitar a realização do mais importante evento mundial do clima no Brasil.
Está em curso a sexta extinção em massa na trajetória do planeta, a primeira causada pelos humanos
A liderança no debate da crise climática é a única que o Brasil teria as melhores condições para disputar, por ter no seu território a maior porção da maior floresta tropical do planeta, estratégica para o controle do aquecimento global. O país é também o mais biodiverso do mundo. Entre 1970 e 2014, a humanidade já destruiu 60% de todos os mamíferos, pássaros, peixes e répteis. Desde que os humanos apareceram na Terra, já desapareceram metade das plantas. O continente sul-americano é um dos que mais rapidamente está perdendo biodiversidade. Está em curso a sexta extinção em massa, a primeira causada pelos humanos.
Até a eleição de Bolsonaro, o Brasil tinha um papel de protagonista no debate do clima e da biodiversidade, no cenário mundial. Estes são os dois maiores desafios da atualidade, porque afetam todas as outras áreas, inclusive e muito fortemente o agronegócio. Hoje, em Katowice, na Polônia, é realizada a COP 24. Graças às declarações de Bolsonaro e Araújo, o Brasil é má notícia. Como foi má notícia no final de novembro, durante a Conferência Mundial da Biodiversidade.
Ao aceitar o convite para ser o futuro chanceler, Araújo abriu uma conta no Twitter. Como seu chefe, ele quer falar diretamente com os seguidores. Recentemente, escreveu um texto defendendo que sua indicação representaria um “mandato popular” no Itamaraty. Suas crenças supostamente representariam a vontade do povo no cenário externo. Araújo tenta seguir o mesmo caminho de seu padrinho, Olavo de Carvalho. Falando diretamente com os seguidores e desqualificando qualquer mediador, como a imprensa, a academia e mesmo seus pares, Araújo não precisa provar o que diz nem ter suas afirmações confrontadas com os fatos. Fala sozinho. Mas, para isso ser legítimo, como membro de um governo populista, precisa convencer o povo que fala pelo povo. Ou que o povo fala pela sua boca.
A certa altura, escreve: “E o povo brasileiro? Vocês não se preocupam com o que o povo brasileiro vai pensar de vocês? Sabem quem é o povo brasileiro? Já viram? Já viram a moça que espera o ônibus às 4 horas da manhã para ir trabalhar, com medo de ser assaltada ou estuprada? A mulher que leva a filha doente numa cadeira de rodas precária, empurrando-a de hospital em hospital sem conseguir atendimento? O rapaz triste que vende panos no sinal debaixo do sol o dia inteiro para mal conseguir comer? A mulher que pede dinheiro para comprar remédio, mas na verdade é para comprar crack e esquecer-se um pouco da vida? O outro rapaz atravessando a rua de muletas, com uma mochila toda rasgada às costas, na qual pregou o adesivo do Bolsonaro, talvez sua esperança de dar dignidade e sentido à sua luta diária? O pai de família com uma ferida na perna que não cicatriza nunca porque ele precisa trabalhar três turnos para poder alimentar os filhos? Aí está o povo brasileiro, não está no New York Times”.
Não é porque o chanceler de Bolsonaro não acredita em aquecimento global que o planeta vai deixar de aquecer e afetar a vida de milhões de pessoas
Como Araújo pretende falar diretamente com “o povo”, mas numa via de mão única, em que ele fala e o povo engole, ele prefere não explicar ao povo que são os mais pobres que sofrerão o maior impacto das mudanças climáticas. As pessoas em regiões de baixa renda têm sete vezes mais chances de morrer quando expostas a riscos naturais do que populações equivalentes em regiões de alta renda. Os mais pobres também têm seis vezes mais chances de serem feridos ou de precisarem se deslocar, abandonando suas terras e casas. O Brasil tem perdido mais de 6,4 bilhões de reais por ano com eventos extremos, como tempestades e inundações, provocados por mudanças climáticas.
A crise do clima tanto reflete a desigualdade abissal do Brasil quanto a amplia. São estas mesmas pessoas que Araújo diz conhecer – e seus críticos não – as que vão sofrer mais por ter um chanceler como ele. Não é porque Araújo não acredita em aquecimento global que o planeta vai deixar de aquecer e afetar a vida de milhões também no Brasil.
Ao final do texto, o chanceler se trai. Parte do povo, aquela que discorda dele, não entende nada. O chanceler com “mandato popular” diz ao “povo” que ele precisa deixar as decisões para quem sabe e para quem estudou: “Se você repudia a ‘ideologia do PT’, mas não sabe o que ela é, desculpe, mas você não está capacitado para combatê-la e retirá-la do Itamaraty ou de onde quer que seja. Ao contrário, você está ajudando a perpetuá-la sob novas formas. Se a prioridade é extrair a ideologia de dentro do Itamaraty, não lhe parece conveniente ter um chanceler capaz de compreender a ideologia que existe dentro do Itamaraty? Alguém que estuda essa coisa nos livros, há muitos anos, e não simplesmente ouviu alguma referência num segmento do Globo Repórter?”.
Como tudo pode ser muito pior, o Brasil não tem apenas um chanceler desastroso, mas dois. Na semana passada, o presidente eleito despachou um de seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro, para bajular Donald Trump, o terceiro personagem de sua trindade. Como ressaltou Matias Spektor, na Folha: “O filho chegou fazendo compromissos numa agenda cara ao governo americano —Cuba, Jerusalém, China e Venezuela. Nada pediu em troca além da deferência americana a Bolsonaro. Como Trump não respeita quem faz concessões unilaterais, a equipe de Bolsonaro desvalorizou o próprio passe. (...) Trata-se de crença irracional que ignora o gosto de Trump por arrancar concessões de seus principais parceiros a troco de nada. (...) Os americanos irão à forra".
Como a Família Bolsonaro pretende conseguir os melhores acordos para o Brasil usando o boné de quem está do outro lado da mesa de negociações?
Ao cumprir agenda oficial em Washington, o filho do presidente usou um boné onde estava escrito “Trump 2020”. Talvez a maioria possa compreender como é constrangedor um representante do presidente eleito do Brasil usar um boné defendendo a reeleição do atual presidente americano. É como se o próprio Brasil estivesse usando um boné de Trump 2020. Como se espera negociar os interesses do país em boas condições a partir desta posição de subalternidade explícita, como se fosse um fã vestindo a cabeça com o nome do seu ídolo? O pai não fez melhor durante a visita ao Brasil do assessor de Trump, John Bolton. Como se fosse um subalterno, bateu continência. E não foi correspondido.
É isso. Os “malucos” estão dançando no palco e não precisam que ninguém dê palco para eles. Nem precisam das palmas de setores que acreditavam ter o monopólio dos aplausos. Ao dançar, afirmam que os fatos são “fake News” e que a ciência é “fake News”. Como estão em posições de poder, e um deles será o próximo presidente do Brasil, os jornais são obrigados a reproduzir suas falas e sua dança.
As universidades serão governadas por eles. A política científica será decidida por eles. A Escola Sem Partido pode virar lei, estabelecendo a censura com a justificativa de combater um problema que não existe. E tudo indica que o SUS poderá ser desmantelado em nome da privatização da saúde. O destino da Amazônia e de seus povos será determinado por aqueles que querem abrir a floresta para exploração.
Quando muitos creem no mesmo delírio, o que acontece com a realidade?
Ernesto Araújo se tornou uma piada internacional porque suas afirmações são absurdas. Elas não se sustentam quando confrontadas aos fatos. Mas, quando muitos creem no mesmo delírio, o que acontece com a realidade? Esta é uma pergunta crucial neste momento. E um desafio para o qual precisamos construir uma resposta. E rápido.
Quando já não há uma base comum de fatos a partir da qual se pode conversar, não há linguagem possível. Por exemplo: nas últimas décadas, religiosos fundamentalistas defendem que a teoria da evolução, de Charles Darwin, deveria ser ensinada nas escolas junto com o “criacionismo”, crença pela qual tudo foi criado por Deus. Segundo eles, as duas se equivalem. A questão é que essa afirmação equivale a dizer que uma cadeira e uma laranja são o mesmo. Não são.
A evolução é uma teoria científica, o criacionismo é uma crença religiosa. A primeira foi preciso provar pelo método da ciência. Mesmo se você não acreditar nela, os processos que a teoria da evolução descreve continuarão existindo e agindo. A segunda você pode acreditar ou não e jamais poderá ser provada pelo método científico. As duas não se misturam nem se comparam. Misturá-las faria com que deixássemos de compreender uma parte da Ciência que faz esse mundo funcionar – e faria também com que a dimensão mítica dos textos religiosos se perdesse naquilo que têm de mais poético.
O mesmo vale para a mudança climática provocada por ação humana. Não é uma questão de crença ou de fé. Está provado pelos melhores cientistas do mundo. É tão evidente que a maioria já pode perceber mesmo numa investigação empírica, na sua própria experiência cotidiana. Se o futuro chanceler do Brasil acredita que o aquecimento global é uma “ideologia de esquerda”, o planeta não vai deixar de aquecer por conta da sua crença. Só crianças muito pequenas acreditam que algo vai deixar de existir se elas fingirem que não existe.
Como restabelecer a linguagem, de forma que possamos ter uma base mínima comum a partir da qual possamos voltar a conversar?
Mas, ao tratar fatos como crença – ou como “ideologia” –, tanto Araújo como o presidente eleito podem impedir que o Brasil faça o que precisa para reduzir as emissões de CO2, as principais responsáveis pelo aquecimento global, assim como impedir que o Brasil tome medidas de adaptação ao que está por vir. Temos apenas 12 anos para impedir que o planeta aqueça mais de 1,5 graus Celsius. Se passar disso, os efeitos serão catastróficos. É grave que, nestes 12 anos, em pelo menos quatro o Brasil terá no poder pessoas que confundem fatos com crenças. Ou, para seu próprio interesse, afirmam que aquilo que é fato é a “ideologia” dos outros.
A segunda pergunta crucial neste momento é: como restabelecer a linguagem, de forma que possamos ter uma base mínima comum a partir da qual possamos voltar a conversar? Também precisamos construir uma resposta. E rápido.
A terceira é como devolver o significado às palavras. Por exemplo: uma laranja. De novo. Eu e você precisamos concordar que uma laranja é uma laranja. Se eu disser que uma laranja é uma cadeira, como vamos conversar? Podemos discutir qual qualidade de laranja é melhor, como melhorar a produção de laranjas, de que forma ampliar o acesso de todos ao consumo de laranjas etc etc, mas não podemos discutir se a laranja é uma cadeira ou uma laranja, do contrário não avançaremos em nenhuma das questões importantes sobre a laranja. Tudo o que é relevante, como seu valor nutricional e a evidência de que os mais pobres não têm possibilidade de comprar ou plantar laranjas, ficará bloqueado pelo impasse de o interlocutor insistir que a laranja é cadeira.
Não é uma questão de opinião a laranja ser laranja – e não cadeira. Também não há fatos alternativos. Há fatos. E não há alternativa de a laranja ser uma cadeira. Atualmente, porém, o truque de tratar laranjas como cadeiras para impedir o debate é amplamente utilizado.
Enquanto metade da sociedade brasileira é chamada de “comunista” sem nunca ter sido, os temas que afetam a vida das pessoas são decididos sem participação popular
Se as palavras são esvaziadas de significado comum, não há possibilidade de diálogo. É o que está acontecendo com a palavra “comunismo”, entre muitas outras. Não há uma base mínima de entendimento sobre o que é comunismo. Então, tudo o que os seguidores de Bolsonaro não gostam ou são estimulados a atacar é chamado de “comunismo”, assim como todos aqueles que eles consideram seus inimigos são chamados de “comunistas”.
O significado de comunismo, porém, foi quase totalmente perdido. E assim a conversa está interditada, porque o que é laranja virou cadeira para uma parte da sociedade brasileira. Enquanto metade da sociedade brasileira é chamada de “comunista” sem nunca ter sido ou querer ser, os temas que afetam diretamente a vida das pessoas estão sendo decididos sem debate nem participação popular, como, por exemplo, a reforma da previdência.
Os “malucos” que hoje dançam em todos os palcos não são tão malucos assim. Ou, se são, também parecem bem espertos. É claro que há alguns deles que acreditam que, por exemplo, crise climática é “climatismo” ou uma “ideologia de esquerda”, como diz Araújo. Mas a maioria deles sabe que afirmar isso é quase tão estúpido quanto dizer que a Terra é plana. Então, depois de fazer bastante alarme com isso, eles vão para a próxima etapa do roteiro. Qual é?
Enquanto a turma de Bolsonaro faz a dancinha da invasão estrangeira, a Amazônia vai sendo tomada por seus amigos
Afirmar que, sim, é claro que o aquecimento global é um fato, mas “os países ricos já destruíram todas as suas riquezas naturais e agora usam a crise climática para manipular países como o Brasil”. Basta acompanhar as declarações recentes de Bolsonaro e outros do seu entorno para constatar que a estratégia usada para manter os seguidores alinhados será reavivar a falsa acusação de que os indígenas e as ONGs internacionais querem tomar a Amazônia do Brasil. A mentira da ameaça à soberania nacional nunca deixou de se manter ativa na disputa da Amazônia. Mas, em tempos de WhatsApp, pode atingir muito mais gente disposta a acreditar. Já começou.
Enquanto parte dos brasileiros se distrai com a dança dos “malucos”, os ruralistas vão tentar avançar no seu propósito de abrir as terras indígenas para exploração. Não custa lembrar, mais uma vez, que as terras indígenas são de domínio da União. Os indígenas têm apenas o usufruto exclusivo sobre elas. Quando Bolsonaro compara os indígenas em reservas com “animais num zoológico” e diz que os indígenas “querem ser gente como a gente”, querem poder vender e arrendar as terras, ele não está sendo apenas racista.
Ele também está manipulando. A sua turma quer que as terras públicas sejam convertidas em terras privadas, que possam ser vendidas e arrendadas e exploradas. Enquanto fazem a dancinha da invasão estrangeira, a floresta vai sendo tomada por dentro. O nacionalismo da turma de Bolsonaro bate continência não só para os Estados Unidos, mas também para os grandes latifundiários e para as corporações e mineradoras transnacionais.
No futuro bem próximo assistiremos ao que acontece quando um delírio coletivo, construído a partir de mentiras persistentes apresentadas como verdades únicas, é confrontado com a realidade. Às vezes parece que Bolsonaro acredita que tudo vai acontecer apenas porque ele está dizendo que vai. Ele diz, depois se desdiz, aí diz que inventaram que ele disse o que disse. Em resumo: ele diz qualquer coisa e o seu oposto. Em alguns sentidos, Bolsonaro parece uma criança extasiada com o sucesso que faz no mundo dos adultos, com bonés e figurinhas de seus ídolos. Parte do seu entorno, que não é burra, acredita que pode controlar a criança mimada e voluntariosa – e convencê-la a agir conforme seus interesses. Veremos.
Em algum momento, o seguidor de Bolsonaro vai descobrir que não pode sentar na laranja – nem comer a cadeira
O confronto das promessas com o exercício do poder já começou. Como explicar que serão mais de 20 ministérios e não os 15 prometidos? Ou como explicar as consequências de transferir a embaixada para Jerusalém, desrespeitando parceiros comerciais importantes como os árabes? Como lidar com a China, grande importador dos produtos brasileiros, batendo continência para Trump em meio a uma guerra comercial entre as duas grandes potências? Como lidar com os impactos que tudo isso terá na economia e na vida dos mais pobres? Como justificar que postos de saúde poderão ficar sem médicos porque os cubanos foram embora e os brasileiros não querem ocupar os lugares mais difíceis e com menos estrutura? Como lidar com o possível aumento de gestações na adolescência, assim como de Aids e DSTs por falta de políticas públicas de prevenção e educação sexual nas escolas?
A realidade é irredutível. É quando o seguidor descobre que não pode sentar na laranja – nem comer a cadeira. Bolsonaro e sua turma já começaram a experimentar esse confronto. A compreensão ainda não atingiu seus seguidores. Mas atingirá.
Quem se anima com essa ideia, porém, deveria se envergonhar. Quem sofre primeiro e sofre mais numa sociedade desigual são os mais pobres. Se os “malucos” estão dançando no palco é também porque a maioria da população brasileira foi excluída da conversa mesmo na maior parte do período democrático e mesmo na maior parte dos governos do PT. Ainda que Bolsonaro tenha conseguido unir as pessoas em torno não de um projeto, mas de um afeto, o ódio, seu grande número de seguidores se sentiu parte de algo. Desde 2013 já havia ficado muito claro que havia um anseio da sociedade brasileira por maior participação.
Durante parte de sua permanência no poder, o PT também investiu mais nos afetos do que na construção de um projeto junto com as pessoas. Parou de conversar, não achou que precisasse mais das ruas e foi expulso delas em 2013. Depois da corrupção do PT no poder, e não me refiro apenas à corrupção financeira, a esquerda se mostrou incapaz de criar um projeto capaz de unir as pessoas. Isso não é culpa de Bolsonaro. Não adianta acusar o outro de ter um projeto de destruição. É preciso lidar com as próprias ruínas e apresentar um projeto de reconstrução e reinvenção do Brasil que convença as pessoas porque junto com elas.
Se alguém ainda não compreendeu, é o seguinte: para disputar uma ideia de Brasil será preciso, primeiro, ter uma ideia; segundo, convencer a maioria dos brasileiros que este é o melhor projeto para melhorar suas vidas; terceiro, tentar voltar a dançar no palco para recompor a linguagem, restabelecer a importância dos fatos e devolver substância às palavras. Não vai ser fácil.
A maior vitória de Bolsonaro é quando seu opositor fala como ele
Nestas eleições, o Brasil foi esgarçado até quase rasgar. Em alguns pontos, rasgou. Talvez o maior triunfo de Bolsonaro tenha sido interditar qualquer possibilidade de diálogo. Esse processo não foi iniciado por ele nem ele é o maior responsável. Mas, sem bloquear o diálogo, Bolsonaro possivelmente não ganharia a eleição. Hoje, de um lado e outro, as pessoas só sabem desqualificar – e destruir. Aqueles que denunciam Bolsonaro não compreenderam que, ao adotar o mesmo vocabulário e a mesma sintaxe, apenas em sentido oposto, tornam-se iguais. E dão ao seu opositor a maior vitória que ele pode ter. Neste sentido, o do ódio, Bolsonaro unificou o país. Todos odeiam. Não há complemento nesta gramática. Odiar esgota-se no próprio verbo, mas o substantivo destruído é o corpo dos mais frágeis.
Quem quer resistir à redução do Brasil, em tantos sentidos, precisa primeiro resistir na linguagem. Diferenciar-se, também para poder acolher. O único jeito de voltar a conversar é voltar a conversar. Mesmo que para isso tenhamos que falar sobre laranjas e cadeiras.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Eliane Brum: O ataque dos machos brancos
A tensão de gênero, raça e classe marcou a eleição de 2018
A apresentadora Fernanda Lima foi linchada nas redes sociais por ter encerrado a edição do seu programa “Amor & Sexo”, de 6 de novembro, na TV Globo, com as seguintes palavras. É bom ler vírgula por vírgula, porque a quantidade de gente que comenta, julga e condena sem sequer ler tem se multiplicado mais do que baratas. E, às vezes, com o cérebro de uma. Fernanda disse:
Chamam de louca a mulher que desafia as regras e não se conforma. Chamam de louca a mulher cheia de erotismo, de vida e de tesão. Chamam de louca a mulher que resiste e não desiste. Chamam de louca a mulher que diz sim e a mulher que diz não. Não importa o que façamos nos chamam de louca. Se levamos a fama, vamos sim deitar na cama. Vamos sabotar as engrenagens desse sistema de opressão. Vamos sabotar as engrenagens desse sistema homofóbico, racista, patriarcal, machista e misógino. Vamos jogar na fogueira as camisas de força da submissão, da tirania e da repressão. Vamos libertar todas nós e todos vocês. Nossa luta está apenas começando. Prepare-se porque essa revolução não tem volta. Bora sabotar tudo isso?
O programa havia sido gravado em julho, como ela afirmou nas redes sociais, mas de imediato uma horda de seguidores de Jair Bolsonaro (PSL) interpretou a fala da apresentadora como um manifesto contra a eleição de seu “mito”. Como é possível? É bastante possível, é mesmo até previsível. Se a apresentadora está conclamando as mulheres a lutar contra a homofobia, o racismo, o patriarcado, o machismo e a misoginia (ódio às mulheres), e os eleitores de Bolsonaro se ofendem e revidam o que consideram um ataque pessoal ao seu líder, é porque compreendem que o presidente eleito defende e proclama a homofobia, o racismo, o patriarcado, o machismo e a misoginia. Entendem tudo muito bem.
Se Fernanda Lima invoca o público a combater a submissão, a tirania e a repressão, e os eleitores de Bolsonaro se ofendem, é porque entendem que Bolsonaro – e também eles – defendem a submissão (das mulheres, dos LGBTQIe dos negros), a tirania e a repressão. Nenhuma novidade. Quem denunciou o projeto autoritário de Bolsonaro já sabia disso. Ao contrário de parte do eleitorado do deputado profissional, quem a ele se opôs acreditou na violência que Bolsonaro propagou publicamente durante quase 30 anos. Acreditou no que ele disse. Exatamente por acreditar, milhões de pessoas lutaram contra a sua candidatura. Esta, a propósito, é mais uma característica curiosa desta eleição: parte dos eleitores dizia não acreditar que seu candidato faria o que dizia que faria – e por isso votaram nele. É difícil de entender? É.
O que talvez ainda pudesse surpreender é uma horda de pessoas linchar verbalmente alguém porque a vítima defende valores fundamentais da civilização, que pareciam já consolidados, como a luta contra o racismo, o machismo, a homofobia e a tirania. Mas chegamos a este ponto. E certamente daqui passaremos para muito mais abaixo. Não estamos nem perto do fundo do poço sem fundo.
1) Quando as “fraquejadas” incomodam
Um dos mais raivosos com a luta de Fernanda Lima contra o machismo respondeu com a elegância e o respeito que caracterizam uma parcela dos seguidores de Bolsonaro, feitos a imagem e semelhança do “mito”. Assim, o cantor Eduardo Costa expressou a si mesmo: “Mais de 60 (sic) milhões de brasileiros e brasileiras votaram no Bolsonaro e agora essa imbecil com esse discurso de esquerdista! Ela pode ter certeza de uma coisa, a mamata vai acabar, a corda sempre arrebenta pro lado mais fraco, e o lado mais fraco hoje é o que ela está. Será que essa senhora só faz programa pra maconheiro, pra bandido, pra esquerdista derrotado, e pra esses projetos de artista assim como ela?”.
Que ser de esquerda signifique também combater a tirania, o machismo, o racismo, a homofobia e a misoginia, perfeitamente justo. E bastante honroso. Mas duvido que parte da direita não compartilhe dos mesmos valores humanitários básicos. Há uma direita que suspeito que possa ficar ofendida por ter sido apartada destes valores. Mas cadê ela? Muda como uma freira que fez voto de silêncio.
Os que não fazem votos de silêncio são os pastores de certas igrejas evangélicas– não todas, definitivamente não todas. Conhecedor de seus fiéis, o deputado Marco Feliciano (Pode) se manifestou na imprensa Gospel com a certeza de que seu público só leria o que ele disse, não o que Fernanda efetivamente falou. E seu público nunca o decepciona. Então mentiu: “Em uma das últimas apresentações, ela (Fernanda Lima) vociferou críticas ferozes e mentirosas ao presidente eleito Jair Bolsonaro. Sua fala denotava um ódio escancarado e uma falta de respeito à maioria do povo brasileiro, entre eles muitos de seus espectadores, numa linguagem de revolucionário clandestino, como se estivesse falando de alguma caverna do Afeganistão”.
Leiam mais uma vez o que Fernanda Lima disse. Como ela pode ter ofendido Jair Bolsonaro? Como as dependências da TV Globo (!!!!) podem ser comparadas com uma caverna do Afeganistão? Para que possamos conversar, é preciso manter uma afinidade mínima com os fatos. Embora se saiba que Bolsonaro defende o racismo, a homofobia, o machismo, a misoginia e a tirania, ter ideias diferentes não é ofender, apenas discordar. Neste caso, apenas cumprir a lei, já que racismo, por exemplo, é crime. Sem contar que Bolsonaro jamais foi citado no programa, gravado muito antes do primeiro turno das eleições.
Mas a fala de Feliciano, um pastor que já foi acusado de tentativa de estupro e que já afirmou que os negros descendem de um “ancestral amaldiçoado por Noé”, não surpreende ninguém. O que surpreende é ele “denunciar” que alguém é contra a opressão das mulheres e o racismo. O evangelismo dele seria a favor? Feliciano pode ser o que ele é e responder pelo que diz e faz na justiça, mas não pode tratar seu comportamento como se fosse a forma correta de se mover numa sociedade. Esta é a insanidade do momento. Tratar comportamentos antiéticos e imorais, alguns deles previstos no Código Penal como crime, como a forma correta de agir – ou como se a eleição de Bolsonaro tivesse bastado para rasgar a Constituição e defecar no Código Penal.
Dias depois do ataque à Fernanda Lima, duas manifestações de homens brancos e velhos clarearam um pouco mais o atual cenário brasileiro. (Para deixar explícito desde já, quem me lê sabe a defesa contundente que eu faço da velhicee minha crítica com relação a expressões como “terceira idade” ou “melhor idade”). Os dois homens brancos e velhos têm vozes com poder de ecoarem longe, um deles tem também microfone e concessão de TV. Mas ambos têm trajetórias bastante diferentes. Neste momento de tantas velhas novidades, porém, também eles se aproximam no pensamento.
O primeiro é Silvio Santos. Ao vivo, na TV, o apresentador e dono do SBT, ao receber a cantora Claudia Leitte, afirmou que não a abraçaria. "Esse negócio de ficar dando abraço me excita e eu não gosto de ficar excitado", disse o apresentador. Surpreendida pelo desrespeito, Claudia retrucou: "No sentido feliz da palavra, né? De alegria, euforia, excitação”. Silvio, obviamente, perdeu a chance de se redimir em público: "Não, não é euforia, não. É excitação mesmo”. E a câmera focou nas pernas da cantora, para deixar claro para os milhões que assistiam ao programa o que deixava o patrão tão sexualmente excitado.
Silvio Santos é notório por pelo menos duas características: bajular todos os governos, ditatoriais ou não, ao ponto do constrangimento, e acreditar que assediar e ofender mulheres é um direito adquirido que não pode ser barrado pelo “politicamente correto”. A expressão, a propósito, é a mais odiada por pessoas como ele, já que acham injusto refrear seus instintos em nome da convivência e do respeito ao outro. Em julho, o dono do SBT fez o seguinte comentário a respeito de Fernanda Lima: “Com essas pernas finas e essa cara de gripe, ela não teria nem amor nem sexo”.
Em entrevista à Band, Fernanda rebateu: “Silvio, por que não te calas?”. Ele disse que não se calaria. Fernanda usou então suas redes sociais: "O corpo da mulher não é território público onde se pode meter a mão, avaliar, invadir, usar, agredir. Sigamos firmes e juntas construindo um grande abrigo de proteção para todas as mulheres contra qualquer violência machista”. O embate entre a apresentadora do Amor & Sexo e os machos alfas da TV não é novo, como se vê. Uma mulher falar de sexo e amor para milhões de telespectadores parece afetar masculinidades inseguras.
No programa Teleton, em 2017, depois da apresentação de um grupo de bailarinas plus size, Silvio chamou uma delas para entrevistar. Saiu-se com essa: "Você é muito graciosa. Embora seja a única negra entre as brancas, é bonita. É bonita de verdade!”. É possível que ele acredite que reconhecer a beleza de uma negra, mesmo com tantas brancas ao redor, seja um elogio, o que já é bastante impressionante. Mas ele é exímio em tornar tudo ainda pior: "Quem casar contigo vai ter dois prazeres: um na hora do bem-bom e outro na hora em que você sai de cima".
Silvio Santos já deveria ter respondido pelas violações da lei que cometeu ao vivo, diante de milhões, em horário nobre, há muito. Mas cresce o número daqueles que o acham apenas “engraçado”. E dos que acreditam que tudo isso é apenas “normal”. O que essas pessoas que normalizam o que jamais poderia ser considerado normal não percebem é o quanto esses exemplos – e sua impunidade – repercutem nos atos cotidianos e se entranham nas relações sociais, estimulando crimes também contra o corpo. Ou percebem. E é por isso que o apoiam.
A manifestação mais surpreendente veio do ator Carlos Vereza. Durante a ditadura civil-militar (1964-85), ele era visto como um dos artistas mais atuantes e engajados contra a opressão. Vereza é também considerado um dos mais brilhantes atores da sua geração. Eleitor de Bolsonaro, ele fez a seguinte afirmação, em entrevista à Folha de S. Paulo: “Uma coisa que eu não entendo é por que, em todo ato de protesto, precisa ficar nu. E são corpos muito feios. (...) São mulheres feias, com cabelo embaixo do braço, barriga. Protesto tem que ser com calça jeans e uma camisa Lacoste. Não é nu”.
É claro que Vereza é muito mais sofisticado ao disseminar as suas agressões. Mas a declaração é bastante violenta. Para ele, apenas mulheres com determinado padrão de beleza têm o direito de exibir o corpo em público. Ao mesmo tempo, ele ecoa uma mentira que foi amplamente disseminada no WhatsApp. A última grande manifestação organizada por mulheres foi o movimento #EleNão, em 29 de setembro, contra o autoritarismo representado pela candidatura de Bolsonaro. Não houve nudez naquele protesto. Mas, no WhatsApp, partidários de Bolsonaro difundiram imagens de protestos diferentes, alguns deles nem ocorridos no Brasil. Como as TVs desistiram do jornalismo na ocasião, mal cobrindo as manifestações, virou “verdade”. Havia inclusive imagens de mulheres quebrando símbolos religiosos, o que nunca aconteceu no #EleNão.
Carlos Vereza não se refere nominalmente ao #EleNão, mas podemos suspeitar que, como eleitor de Bolsonaro, pudesse estar se referindo ao maior protesto contra o seu candidato na eleição de 2018. Ainda que não seja a este protesto que ele se refira, e ainda que o #EleNão tivesse de fato envolvido a nudez de mulheres, por que o corpo feminino usado como expressão política seria tão ofensivo? Será que, para Vereza, a nudez feminina só é legítima se servir ao gozo do homem, como foi por tantos séculos (e ainda é em muitos espaços)? Será que seria preciso passar por uma seleção coordenada por Vereza para que ele nos diga se nosso corpo é bom o suficiente para ser exposto sem ofender sua sensibilidade? Por que essa necessidade de atacar as mulheres desqualificando seu corpo?
E, então, a frase mais elitista: “protesto tem que ser com calça jeans e uma camisa Lacoste”. Para quem não sabe, Lacoste é uma marca francesa, cara, cujo produto mais famoso são as camisas polo. É aquela que tem um jacarezinho, amplamente pirateada pelos camelôs. O que Vereza está dizendo é que protesto é para homens, usuários mais habituais de camisas polo do que mulheres, gente vestida com roupas de grife, brasileiros capazes de pagar por isso. Protesto, portanto, não seria para pobres, na opinião do ator que já foi um símbolo de resistência contra o autoritarismo.
2) A polarização marcada por gênero e raça
Não me parece que essa coincidência de vozes seja apenas mais um dos ataques que as mulheres sofrem há tanto. A eleição de Bolsonaro, cujas frases desqualificando as mulheres já são bem conhecidas, destampou o ódio – e também o medo – de certo tipo de homem, que sofre por perder seus privilégios. Inclusive o privilégio de poder assediar uma mulher sem ser reprimido por isso. E não destampou apenas entre seus eleitores. Destampou no geral.
A dificuldade em perder privilégios de gênero marca tanto a direita quanto a esquerda, parte dela também machista, misógina e homofóbica. Atravessa as diversas classes sociais – e atravessa também as raças. Às vezes o único “privilégio” que um homem pobre tem é o de se sentir superior à mulher e poder assediar todas as que quiser livremente. Só que, se isso é entendido como privilégio, é preciso começar a compreender que não é um privilégio. É desigualdade e é violência. É inaceitável.
Esse aprendizado foi conquistado pela luta histórica das feministas e, mais recentemente, por movimentos como #primeiroassédio, no Brasil, e #MeToo, nos Estados Unidos, assim como o “Nenhuma a menos”, que se espalhou pela América Latina. Os avanços recentes das mulheres, com a emergência de jovens feministas e o nascimento de novos feminismos, com uma marca forte do crescente protagonismo das mulheres negras, assinalam este momento. Nenhum outro movimento se mostrou tão forte e fez tantas conquistas nos últimos anos quanto o das mulheres.
Bolsonaro reage também a isso. Ele jamais admitirá, mas ele e seus seguidores temem as “fraquejadas”. Bolsonaro é o macho destampado, que disfarça a ignorância como “sinceridade” e “autenticidade”, que se orgulha de poder dizer qualquer barbarismo simplesmente porque é homem e porque é branco. É um macho em defesa feroz do seu lugar no topo da cadeia alimentar. O presidente eleito majoritariamente por homens, mas também por muitas mulheres, representa bastante gente, até quem não confessa que, neste quesito, sente-se secretamente vingado por ele.
A ofensiva contra as mulheres não é algo colateral ou secundário na eleição de 2018, como pode parecer. É central. Na minha opinião, a grande marca desta eleição é gênero, raça e classe social. Como mostrou pesquisa do EL PAÍS, no primeiro turno Bolsonaro venceu nas dez cidades mais ricas do país e Fernando Haddad (PT) ganhou nas dez cidades mais pobres. Como é sabido, no Brasil a maioria dos mais pobres é negra e a maioria dos mais ricos é branca. Na pesquisa do Ibope, encomendada pela TV Globo e pelo jornal O Estado de S. Paulo, Bolsonaro ganhava por muito entre os homens (54% a 37%) e perdia por pouco entre as mulheres (41%, contra 44% de Haddad). A pesquisa foi realizada nos dias 26 e 27 de outubro, com margem de erro de 2 pontos e nível de confiança de 95%.
O candidato de extrema direita também ganhava por muito entre os mais escolarizados (53% a 35%) e perdia por muito entre os menos escolarizados (36%, contra 54% de Haddad). O populista também perdia por muito entre os que vivem com até 1 salário mínimo (32%, contra 56% de Haddad) e ganhava por muito entre os que recebem mais de cinco salários mínimos (63% a 29%). O candidato autoritário também ganhava por muito entre os brancos ( 58% a 31%) e perdia por pouco entre os negros (41%, contra os 47% de Haddad).
Esta é a polarização que revela bastante sobre o atual momento do país e sobre o peso das lutas identitárias nesta eleição. Não é a única variável determinante, mas sem dúvida uma delas. A religião, como já havia ficado claro, também é uma variável fundamental. Segundo a mesma pesquisa do Ibope, se entre os católicos houve empate técnico dos candidatos, entre os evangélicos Bolsonaro disparou.
3) As mulheres são a principal oposição a Bolsonaro
A grande oposição a Bolsonaro – e também a mais visível – é representada pelas mulheres. Mas é preciso lembrar que as mulheres não são um genérico. Bolsonaro perdeu mais votos entre as negras do que entre as brancas, entre as nordestinas mais do que entre as do Sul e Sudeste. A divisão regional, que já havia ficado clara na eleição de 2014, é outro indicador importante da partição histórica do Brasil.
A maior manifestação organizada por mulheres da história do Brasil foi o #EleNão, que colocou centenas de milhares de pessoas nas ruas em 29 de setembro. O #EleNão foi também a maior manifestação da eleição de 2018. Esse protesto foi contra Bolsonaro. E começou numa página de Facebook – “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro” – criada por Ludmilla Teixeira, uma mulher nordestina da Bahia, de origem periférica e negra.
Negar a centralidade desse movimento de mulheres na oposição a Bolsonaro e ao autoritarismo que ele representa, na eleição mais complexa da democracia brasileira, obedece à mesma lógica sexista, machista e patriarcal que o presidente eleito representa. Parte da esquerda foi rápida em “culpar” o movimento #EleNão pelo aumento das intenções de voto em Bolsonaro. Intelectuais inteligentes fizeram questão de esquecer de outras variáveis e também que política não é instante, mas processo.
Excluído o #EleNão, haveria muito pouco para a parcela dos brasileiros que rejeitou Bolsonaro poder contar ao mundo, assim como afirmar que fez oposição consistente ao projeto autoritário de poder. O #EleNão foi o principal movimento de resistência a Bolsonaro e, num momento tão polarizado, conseguiu unir pessoas que até então nem se falavam, para muito além dos partidos políticos. Provou algo transgressor em um contexto tão precário: é possível conviver com as diferenças e lutar por aquilo que é comum.
Como Fernanda Lima entra nesta história? Ela, tão sulista, tão branca, tão loira, um modelo de beleza tão padrão que talvez fosse aprovado até mesmo pelos rigorosos critérios de seleção de Carlos Vereza, o que não quer ver “corpos feios” nas ruas? Quando “Amor & Sexo” começou, em 2009, possivelmente muitos esperavam apenas a excitação (no sentido Silvio Santos) de uma mulher jovem e bonita falando de sexo com pouca roupa. Fernanda mostrou que é possível discutir sexo com inteligência e franqueza sem nem se tornar um clichê de revista “feminina” nem uma Barbie para consumo masculino. Com boa direção e equipe de redatores, Amor & Sexo é um programa que foi se tornando cada vez mais interessante.
Especialmente nas últimas duas temporadas, o programa soube interpretar o momento político das lutas identitárias e levou o debate ao palco. Mas não apenas na boca de Fernanda. A apresentadora branca e heterossexual “soube compreender seu “lugar de fala”. Fernanda compartilhou o microfone e o programa tornou-se um espaço para ecoar várias identidades de gênero e de raça. E fez isso num momento em que outras vozes, em especial a de pastores evangélicos neopentecostais e a de sua bancada no Congresso, negociavam poder e recursos públicos a partir de ideias como a de que só existe um tipo de família, a do homem com a mulher, e a de que homossexualidade pode ser “curada”, como se doença fosse.
De objeto do desejo de homens pelo país, a Fernanda que não se deixou objetificar passou a ser odiada por uma parcela dos machos nacionais – e nacionalistas. Ela não só falava de sexo sem ser para o gozo dos homens como repudiava publicamente o assédio sexual. Ao compartilhar o microfone com outras identidades de gênero e raciais, a apresentadora, de certo modo, tornou-se uma traidora de seu gênero e raça, num país marcado pelo racismo e pela homofobia, que agora também tem um presidente declaradamente racista e homofóbico.
Fernanda Lima poderia ser apenas a mãe daquela que alguns consideram a “família perfeita”. Tem um marido igualmente branco, loiro e bonito, tem filhos gêmeos igualmente brancos, loiros e bonitos. Estão prontos para posar para as revistas de celebridades, o que também fazem. Mas Fernanda recusou o que para muitos era seu melhor papel, ou o único, e usou o espaço que conquistou para debater as outras possibilidades de existir neste mundo. É chamada de “imbecil” pelo eleitor de Bolsonaro exatamente por não ser a “imbecil” que esperavam que ela fosse. Se fosse “imbecil”, o clichê da “loira burra”, o bolsomacho estaria coçando a barriga satisfeito, porque acreditaria que tudo tinha voltado ao seu lugar.
4) De Dilma a Amélia, de Marcela a Fernanda
Fernanda é exatamente aquela que não se tornou “bela, recatada e do lar”, como foi descrita a mulher de Michel Temer (MDB), em perfil da revista Veja. O alvoroço causado pela jovem e loira esposa de Michel Temer ainda precisa ser melhor estudado. Ela foi vendida como uma personagem de propaganda de geladeira dos anos 60, mas muitos de seus admiradores, ao falar sobre ela, soavam como personagens de folhetim de Nelson Rodrigues. Quem ela é, de fato, o público não sabe.
O marido de Marcela traiu a companheira de chapa, Dilma Rousseff (PT), a primeira mulher presidente da história do Brasil – ou presidenta, como ela preferia, que tomou posse ao lado da filha e não de um marido. Temer, o vice conspirador, estreou como presidente, por força de um impeachment, com um ministério totalmente branco e masculino, como se o Brasil ainda estivesse na República Velha.
O deslocamento do lugar da mulher, da primeira presidenta, o papel de máximo protagonismo de um país, para o de uma primeira-dama clássica, a sombra por trás do “grande homem”, não é um dado qualquer. O roteiro do impeachment tem muitas faces, uma delas é a da primeira mulher que assumiu o poder no Brasil sendo expulsa pela traição ética de um homem que ocupava um lugar subalterno e pela imoralidade corrupta de um Congresso composto majoritariamente por homens. A tragédia culminou com a declaração do então deputado Jair Bolsonaro ao votar pelo impeachment: “Em memória de Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff....”.
Naquele momento ninguém afirmaria que, apenas dois anos depois, Bolsonaro seria eleito presidente. Mas talvez sua corrida rumo à vitória tenha começado ali, com a intersecção da tortura sofrida durante a ditadura por uma mulher, a presidente que seu voto ajudava a expulsar do posto para o qual foi eleita, e a apologia ao torturador. Quando nada aconteceu após a fala criminosa e sádica de Bolsonaro, quando o impeachment sem justificativa consistente foi consumado, a sociedade brasileira ultrapassou um limite para o qual já não sabemos se há retorno. Naquele momento, o impeachment deixou de ser um instrumento previsto na Constituição. Bolsonaro o converteu em um novo episódio de tortura para Dilma Rousseff. As instituições compactuaram com o crime, e/ou se omitiram, mostrando-se aquém da democracia.
Durante o processo eleitoral, outra vítima de tortura foi atacada pelos seguidores de Bolsonaro. De novo, uma mulher. E, de novo, não acredito que sexo e gênero sejam coincidências. De Amélia Teles, o herói de Bolsonaro primeiro mandou que lhe arrancassem a roupa. Depois, aplicaram choques em seus seios, na vagina, no ânus, no umbigo, nos ouvidos e dentro da boca. Em outra sala de tortura estava seu marido, também sendo torturado. Ele entraria em coma pelos golpes infligidos em seu corpo. Quando Amelinha já estava urinada e vomitada, o militar mandou chamar seus dois filhos: uma menina de cinco anos, um menino de quatro. O menino não reconheceu a mãe, pelo tanto que a tortura a tinha desfigurado. “Só reconheci você pela voz”, ele lembraria muito mais tarde. A menina perguntou: “Mãe, por que você está azul?”. Só então Amelinha percebeu que os hematomas tinham deixado seu corpo inteiramente azul.
No segundo turno da campanha eleitoral, a pedido da equipe de Fernando Haddad (PT), Amélia e sua filha gravaram um depoimento para o programa político na TV, testemunhando o que viveram. Na sequência, seguidores de Bolsonaro promoveram um linchamento nas redes sociais: inventaram que ela tinha esquartejado dois militares quando fazia a resistência à ditadura. Criaram uma ficção em que a vítima seria a torturadora e assassina. Inverteram e subverteram a realidade. E a ameaçaram de morte. Agora com 74 anos, é como se Amélia estivesse sendo torturada mais uma vez. O judiciário, que nada fez com relação a apologia ao torturador, cometida por Bolsonaro, desta vez censurou a voz de Amelinha, ao proibir o programa. A liminar que a calou foi concedida pelo ministro Luis Felipe Salomão, do Tribunal Superior Eleitoral, com a justificativa de que o programa promovia uma “distopia simulada”.
Os depoimentos das torturadas na ditadura revelam que havia um sadismo particular no ato de infligir sofrimento às mulheres. Primeiro, muitas delas foram estupradas. Ou seja. A violência sexual era usada como tortura. Baratas e ratos enfiados em suas vaginas era outra “técnica” habitual. Ao dar seu depoimento sobre a tortura que sofreu no regime de opressão, a jornalista Miriam Leitão relatou que os torturadores botaram uma jiboia viva em sua cela, apagaram a luz e a deixaram lá. O presidente eleito, Jair Bolsonaro, comentou na ocasião: “Coitada da cobra!”.
Choques nos seios, no ânus e na vagina eram habituais. Muitas mulheres, como Crimeia Schmidt, foram torturadas mesmo estando grávidas. Irmã de Amelinha, Crimeia foi espancada diretamente por Ustra. Ela estava com sete meses de gestação. Ustra a tirou da cela pelos cabelos e começou dando tapas em seu rosto. Ela foi sendo arrastada pelo corredor, sempre apanhando. Desmaiou e, quando recuperou a consciência, já estava na sala de tortura, toda urinada. Era só o primeiro dia. Nos seguintes, Crimeia foi torturada pela equipe do coronel. Ustra só entrava na sala de tortura para dar uns tapas e ia embora. Este é o homem que inspira Bolsonaro e cujo rosto foi estampado em camisetas exibidas por seus filhos e seguidores durante a campanha eleitoral, sem que o judiciário achasse que fosse um problema.
O ódio das mulheres que ousam sair do lugar destinado a elas emergiu com toda a força neste momento, depois de ser reprimido nos últimos anos pelo “politicamente correto” que Bolsonaro e seus seguidores tanto abominam. Fernanda Lima é só o alvo mais recente. Haverá muitas outras. Logo depois do episódio, um site anunciou que a Globo teria decidido encerrar o programa Amor & Sexo, após o fim da temporada em exibição. A razão seria a “baixa audiência”. Seguidores de Bolsonaro urraram de gozo. É o que acontece com mulheres que enfrentam o “mito”, vociferavam. Não há confirmação oficial.
5) O silenciamento de Marielle Franco
Quando começa um estado de opressão? Quando a exceção se instala? Em The Handmaid’s Tale ( O Conto da Aia), a excelente série de TV baseada num livro de Margareth Atwood, há um diálogo sobre isso. “Mas quando isso começou?”, pergunta a personagem. E a resposta: “Estava acontecendo aos poucos e não percebemos”.
Para quem não viu, The Handmaid’s Tale é a obra que mais reflete o momento do Brasil – e de parte do mundo. Quem só viu a primeira temporada, não deixe de assistir à toda a segunda. “Submissão” (Alfaguara), o já tão falado livro do francês Michel Houellebecq, é outra obra que hoje faz muito mais sentido do que ontem. Tanto a série quanto o livro têm na opressão das mulheres a base do regime comandado por homens. O poder é exercido a partir do controle dos corpos femininos, do sexo e da reprodução. A boa ficção só vai melhorando com o tempo, porque foi capaz de ecoar o que apenas se balbuciava nos cantos da realidade.
Há muitos começos para a eclosão do autoritarismo representado pela eleição de Bolsonaro. Um deles é a escolha da sociedade brasileira e das instituições que a compõem de silenciar sobre os crimes da ditadura, deixando de punir os assassinos, torturadores e sequestradores do regime que oprimiu o país por 21 anos e abdicando de produzir marca e memória. Naquele momento, a democracia se corrompeu e passou a girar em falso. O outro começo, este decisivo para a vitória de Bolsonaro, foi o silenciamento diante da apologia à tortura em pleno parlamento, ligando um torturador, Ustra, à tortura sofrida por Dilma Rousseff – no passado e no presente.
O terceiro começo, este talvez definitivo, foi o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), em 14 de março deste ano. Negra, lésbica e criada na favela da Maré, no Rio de Janeiro, Marielle ecoava uma multiplicidade de vozes até então silenciadas. No legislativo, ela representava as várias periferias que avançavam sobre o centro. Então a calaram com quatro tiros na cabeça.
A aterradora impunidade do crime, há mais de oito meses sem resolução, com uma investigação povoada de estranhezas e de censuras, é mais um silenciamento. No sentido simbólico das forças opressoras que se moveram nesta eleição, a execução de Marielle pode ser considerada o ato inaugural da campanha de 2018. Mais tarde, seguidores de Bolsonaro arrancariam a placa de rua que a homenageava no Rio. Dias depois, opositores espalharam mil outras placas com o nome de Marielle.
O abismo vivido pelo Brasil foi escavado por silenciamentos. Em particular pelo silenciamento das vozes de mulheres, no caso de Marielle Franco literalmente. A melhor maneira de enfrentar a opressão que se infiltra desde o cotidiano, nos pequenos atos e nas pequenas desistências, dia após dia um pouco mais, é falar. Junt@s. Mulheres e homens que amam as mulheres: “ninguém solta a mão de ninguém”. Não sabemos quando acabará. Mas o fim do que só começou – ou continuou – depende do tamanho da resistência. E da capacidade de voltar a dar significado às palavras pelo debate e pelo confronto das ideias. O Brasil não pode mais tolerar silenciamentos. Como enfrentar a opressão? Recusando-se a silenciar.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Eliane Brum: A revanche dos ressentidos
Depois da eleição de Bolsonaro, os demônios interiores saíram para passear
Eu acompanhava uma amiga no aeroporto, em São Paulo. Os elevadores que levavam do estacionamento aos terminais demoraram. Quando finalmente entramos, estava lotado. Um homem com um bebê no colo, possivelmente seu neto, gritou: “Quando Bolsonaroassumir, isso aqui vai andar rápido!”. E acrescentou: “Pá! Pá! Pá!”. Abri a boca para perguntar: “Você está atirando no seu neto?”. E então percebi que não poderia fazer isso sem me arriscar a sofrer violência. O homem e a família que o rodeava realmente pareciam acreditar que Bolsonaro dará “um jeito em tudo”, dos “comunistas” que supõem existirem aos milhões, à velocidade dos elevadores.
Gays são ameaçados de espancamento se andarem de mãos dadas, ou simplesmente por existir, mulheres com roupa vermelha são xingadas por motoristas que passam, negros são avisados que devem voltar para a senzala, mulheres amamentando são induzidas a esconder os seios em nome da “decência”. Aquele amigo de infância de quem se guardava uma boa lembrança escreve no Facebook que chegou a sua vez de contar o quanto o odiava em segredo e que pretende exterminá-lo junto com a sua família de “comunistas”. Um conhecido que passou a vida adulta acreditando merecer mais sucesso e reconhecimento do que tem, agora espalha sua barriga no sofá da sala e vocifera seu ódio contra quase todos. Outro, que se sempre se sentiu ofendido pela inteligência alheia, sente-se autorizado a exibir sua ignorância como se fosse qualidade.
Mensagens no Facebook anunciam que vão caçar todos os que votaram contra Bolsonaro e jogá-los na fronteira. Aqueles que se opuseram ao autoritarismo são tratados por essa multidão enraivecida como se fossem estrangeiros – e o país tivesse deixado de pertencer também a eles. Como nos princípios do regime totalitário do cada vez mais atual 1984, clássico de George Orwell: “Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força”.
A atmosfera tóxica do Brasil atual pode ser resumida por um trecho da carta que chegou ao Centro Acadêmico da Geografia, na Universidade Federal do Pará, em Altamira: “Bem vindos ao fascismo! Agora é a nossa vez, agora é o nosso momento, vocês vão ter que engolir porque vamos passar por cima de cada um de vocês, cada gay, cada sapatão, preto e preta. Vamos exterminar cada um de vocês. (...) Vão morrer um por um, cada preto e preta que acham que podem sair da senzala”. A carta anônima termina com: “Viva Bolsonaro! Viva a ditadura! Viva o Fascismo! Viva o Carlos Alberto Brilhante Ustra!”.
Como as palavras se esvaziaram de sentido no Brasil, “comunismo” e “comunista” virou o nome para tudo e todos que se odeia, seja pela orientação sexual, pela cor da pele ou pela atuação política. O termo não tem mais nenhuma relação com seu conceito, mas foi apropriado como o pecado da parcela da população que denunciou o autoritarismo criminoso de Bolsonaro, um apologista da tortura e dos torturadores. E assim o Brasil inaugura um outro tipo de Guerra Fria.
O pacto civilizatório, aquele que permitia a convivência, já vinha sendo rompido nos últimos anos no país. Agora foi rasgado por completo. Este é o primeiro sinal.
Eliane Brum: Bolsonaro quer entregar a Amazônia
Transformar as terras protegidas da floresta em mercadoria é a principal missão do presidente eleito
Ninguém se iluda com o vaivém da fusão ou não do Ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura. É jogo de cena. Bolsonaro pode fingir que é democrata e ouviu a população, especialistas e o suposto agronegócio moderno, fingir que recuou porque escuta, mas o fato é que já está tudo decidido. Não é necessário fundir os ministérios para fazer o serviço sujo de abrir ainda mais a Amazônia para a exploração. Se concluir que é mais conveniente manter o ministério, basta escolher um ministro identificado com o projeto de comercializar a floresta. Quando o populista de extrema direita que, na prática, já governa o Brasil desde 29 de outubro, diz que botará alguém “sem o caráter xiita” à frente da gestão ambiental, é isso que está dizendo. Bolsonaro pode apregoar que não tem compromisso com nenhum partido, mas esta é apenas mais uma bravata. Os fatos mostram que ele deve bastante do sucesso de sua candidatura a dois grandes “partidos” não formais e poderosos, com atuação fora e dentro do Congresso: os ruralistas e os evangélicos. Essa conta ele vai ter que pagar. E, dado o seu perfil, vai pagar com gosto. A conta dos ruralistas é a Amazônia. E o que ainda resta do Cerrado.
O problema, e este é um enorme problema, é que todos pagaremos muito caro pela operação na Amazônia que Bolsonaro e seus articuladores já anunciaram de várias maneiras. Muitos com a vida. E não apenas a vida dos que morrem à bala, mas a vida dos que morrerão pelos efeitos da mudança climática. Há algumas coisas que quem ainda não entendeu precisa entender agora, já, se não quiser continuar fazendo papel de bobo.
Bolsonaro quer transformar o que é terra pública protegida em terra privada comercializável
As terras dos indígenas são terras públicas, de domínio da União. São minhas, são suas, são do país. Os indígenas, segundo a Constituição de 1988, que é a constituição da democracia, têm apenas o usufruto exclusivo de suas terras ancestrais. Podem viver nelas e delas, sem destruí-las, mas não podem fazer negócio com elas. Estas terras não são, portanto, mercadoria. Este é o ponto.
São muitos os fogos de artifício lançados por Bolsonaro, mas é na Amazônia que os olhos dos fiadores de sua candidatura estão cravados
Tudo indica que a principal meta do governo de Bolsonaro, ou a principal razão de ter um Bolsonaro à frente do Brasil, é transformar a floresta amazônica em mercadoria. Este é o trabalho prioritário de Bolsonaro para uma parcela poderosa dos articuladores de sua candidatura. Por uma razão bastante objetiva: é na Amazônia que está o estoque de terras supostamente ainda disponíveis no Brasil, para o avanço da pecuária e da soja, e é também na floresta que estão as grandes jazidas minerais.
Basta acompanhar os números da agropecuária, especialmente a partir dos anos 90, para constatar como tem crescido a importância da região amazônica para o gado e para a soja. Só de bois já são 85 milhões, três bois para cada humano. Também basta checar o congestionamento de pedidos de licenças de mineração na floresta. A Amazônia é a região do Brasil onde o capitalismo ainda vê espaço para a exploração predatória num país que vem sendo dilapidado desde as capitanias hereditárias. Enquanto Bolsonaro e seus estrategistas criam jogos de cena e fogos de artifício em outras áreas, é na floresta que os olhos dos fiadores de sua candidatura estão cravados.
Os indígenas têm sido tratados como “entraves para o progresso” – ou para “o desenvolvimento” – há vários governos, inclusive os do PT. Porque os indígenas são de fato “entraves”. Mas entraves para a destruição da Amazônia. De novo, basta olhar os mapas e os números. É nas terras indígenas, seguidas pelas unidades de conservação, onde a floresta está mais preservada. Como o direito ao usufruto das terras ancestrais é garantido pela Constituição, os indígenas são os principais entraves para a conversão da floresta em mercadoria.
Há uma mudança recente na estratégia de desqualificação dos indígenas. Em anos anteriores, a campanha que buscava tirar a legitimidade do seu direito às terras ancestrais concentrava-se em convencer a população que: 1) os indígenas teriam terras demais; 2) uma parcela dos indígenas seria composta por falsos indígenas ou, como chegaram as ser chamados, “indígenas paraguaios”. Ser índio e usar celular ou uma camiseta da seleção brasileira era propagandeado como incompatível por aqueles que querem botar a mão em suas terras. Os indígenas eram tratados como uma espécie de estrangeiros nativos, uma contradição em si, mas vista como normal por uma parcela dos brasileiros.
Houve uma mudança de tática para botar a mão na terra dos indígenas: de “índio falso” a “ser humano como nós”
Bolsonaro tem uma expressão estúpida, claramente não é um leitor assíduo, os olhos perseguem cursos erráticos quando fala, mas ele não é burro. Ninguém passa 28 anos no Congresso e mesmo assim consegue se vender como “não político” e “antissistema” e se eleger presidente, sem alguma inteligência. Talvez aqueles do seu círculo que pensam manipulá-lo facilmente terão alguma surpresa. Mais espertos ainda são aqueles que estão ao redor dele, dentro e fora do país, sustentando seu projeto autoritário.
Essa esperteza marca a mudança de tática de Bolsonaro com relação aos indígenas durante a campanha e também após eleito. O discurso passa a ser o de que “o índio é um ser humano como nós”. O que é óbvio e que jamais precisaria ser dito não houvesse uma intenção oculta. Segundo Bolsonaro, o indígena quer “empreender”, quer “evoluir”. O que significa isso? Significa, como Bolsonaro já explicou, que os indígenas deveriam ter o direito de vender e arrendar a terra, algo que está em curso no Governo e no Congresso há bastante tempo.
Os indígenas supostamente gostariam de ser como os brancos. Mas ser como brancos em qual sentido? No sentido de poderem tornar a terra mercadoria, uma característica intrínseca “dos brancos”. E então a terra pode ser vendida e aberta à exploração. “Evoluir” e “empreender”, no entendimento de Bolsonaro, é dar à floresta o mesmo status que um carro, uma mesa, um celular ou um pirulito. Mas, atenção. O presidente eleito também diz: “Os índios não querem ser latifundiários”.
Não é difícil adivinhar quem vai comprar as terras ou explorar suas riquezas. É bastante esperto o discurso de “ser humano como nós”, que converte o que é sequestro das terras dos indígenas em um “direito” dos indígenas a poderem fazer o que querem com elas, inclusive e principalmente vendê-las, arrendá-las ou abri-las para exploração. Assim, o que hoje é terra pública – minha, sua, do país – passaria para a mão privada de poucos.
Esse projeto de usurpação das terras da União tem avançado de várias maneiras ao longo dos últimos anos, inclusive com o apoio de setores do PT. O governo de Dilma Rousseff já tinha intensificado a aproximação com os ruralistas iniciada no governo de Lula. Figuras como Kátia Abreu e Gleisi Hoffmann foram decisivas para o desmantelamento da Fundação Nacional do Índio (Funai). Não é permitido esquecer que, até 2016, quando foi afastada por um impeachment sem fundamento, Dilma foi a presidente que menos tinha demarcado terras indígenas.
Já com os quilombolas, povos muito mais frágeis que os indígenas, a estratégia empregada para avançar sobre as suas terras ainda é a antiga. Por que Bolsonaro falaria tanto em quilombo e quilombolas durante a campanha? Porque um de seus serviços no poder é botar a mão nas terras a que os descendentes de escravos rebelados têm direito constitucional.
Bolsonaro se vende como alguém de língua solta, mas ele é um homem que calcula e sabe por que lança frases racistas para consumo midiático
Como as terras dos indígenas, as dos quilombolas já deveriam estar demarcadas, mas há uma grande parcela que ainda não está. Como o Brasil é um país estruturalmente racista e, nos últimos anos, o protagonismo negro alcançado com medidas como as cotas raciais nas universidades incomodou muitos dos potenciais eleitores de Bolsonaro, desqualificar os quilombolas se revelou um caminho mais fácil. Sem contar que os quilombolas têm muito menos expressão internacional e ecos no imaginário do que os indígenas.
Quando Bolsonaro escolhe contar sobre uma visita a um quilombo na palestra no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro, não é algo que surge do nada na sua cabeça, como parece à primeira vista. Ele está calculando. Quando ele diz que “o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas”, seguida por “nem para procriar servem mais”, ele não está sendo apenas o racista habitual. Ele está calculando. E atingindo o alvo, preparando-se para “legitimar” para a opinião pública a futura retirada de direitos dos quilombolas às suas terras.
Depois de ter sido denunciado por racismo, Bolsonaro mudou de tática e uniformizou o discurso: “Eles (os quilombolas) querem ser libertos. (...) Acho até que se quiser vender aquela área quilombola, que venda, opinião minha. Se quiser explorar, tirar minério, ter maquinário, a exemplo do seu irmão fazendeiro do lado...”. É fundamental prestar atenção na operação de linguagem para botar as mãos nas terras ancestrais: o indígena “é ser humano como nós”, o quilombola quer ser “liberto”. Para tornar-se humano como nós e ser liberto tem que ter o “direito” de vender as terras hoje protegidas. O complacente Supremo Tribunal Federal absolveu Bolsonaro da denúncia de racismo pouco antes da eleição.
O discurso da “indolência” e da “malandragem”, associado a indígenas e negros, também aventado por seu vice, o general reformado Hamilton Mourão, é o capítulo anterior ao capítulo do “ser humano como nós”. Ambos estão no manual sobre como transformar terras públicas protegidas em terras privadas exploradas por poucos. O capítulo introdutório, como todos sabem, é o extermínio direto dos povos da floresta, seguido pelo dos negros. As três estratégias ainda convivem simultaneamente no Brasil, como os números de assassinados mostram. Mas, no mundo globalizado, é sempre melhor evitar o sangue e eliminar os corpos de uma maneira mais “limpa”.
E esta maneira será tentada primeiro dentro da lei, também no governo populista de extrema direita de Bolsonaro. Esta é uma característica dos governos autoritários que estão sendo produzidos dentro da democracia. Basta olhar para outros casos do mundo. Bolsonaro vai intensificar e acelerar o que já vinha acontecendo nos últimos anos. O “novo” Código Florestal, um tremendo retrocesso na proteção do meio ambiente, é um exemplo. Mas talvez o exemplo mais cristalino seja o daquela que foi chamada de “Lei da Grilagem”.
Grilagem, como se sabe, é o roubo de grandes porções de terras públicas. Houve casos de “grilos” maiores do que países da Europa na floresta amazônica. Por muito tempo, a grilagem foi feita na base da pistolagem. Ainda é. Mas também vem sendo feita na base da lei. Em julho de 2017, Michel Temer (MDB) sancionou uma lei “regularizando” terras públicas que foram tomadas até 2011 no limite de 2.500 hectares, o equivalente a 57 Vaticanos. Bastava expandir a produção de “laranjas”, legalizando de 2.500 em 2.500 hectares, para tornar legal o roubo de enormes porções de floresta.
Enquanto for possível, a barbárie será consumada dentro da lei; depois, pode valer a alternativa de Mourão
Esta foi a “Lei da Grilagem número 2”. A “Lei da Grilagem número 1” é de 2009, ainda no governo Lula (PT), quando foram “regularizadas” terras públicas ocupadas até 2004, no limite de 1.500 hectares. Ou seja: a “lei” foi só melhorando para os ladrões de terras públicas. Em seguida, eles passam a ser chamados de “fazendeiros”, “desbravadores” ou representantes do “agronegócio”. São duas as operações: uma no plano da lei, outra no plano da linguagem. “Regularizar”, em vez de “legalizar”, arranca pela linguagem o caráter criminoso da operação de grilagem, responsável pelo maior número de mortes no campo e na floresta.
É também por esse caminho que a Amazônia vem sendo destruída. Assim como não foi o PT que inventou a corrupção no Brasil, também não será Bolsonaro que inventará a legalização do crime de grilagem. Essa operação já vem acontecendo há muito, se acelerou enormemente no governo Temer e deverá ganhar proporções inéditas no governo de Bolsonaro. Tudo dentro da lei. A princípio. E enquanto for possível. O judiciário já deu provas contundentes de que não é capaz – e em muitos casos não deseja – barrar essa operação de legalização do crime.
Para botar a mão na terra ancestral dos indígenas, porém, é mais complicado. O agrobanditismo vem atacando por vários flancos. Um deles é o que chamam de “marco temporal”. Sempre colocam um nome esquisito, que pouco diz para a maioria, para confundir a população. Por esse instrumento, só teriam direito às suas terras os povos indígenas que estavam sobre elas em 1988, quando a Constituição foi promulgada.
Para ficar mais fácil de entender, é mais ou menos o seguinte: você foi expulso da sua casa por pistoleiros ou por projetos do Estado. Era, portanto, fugir ou morrer. Mas você perde o direito de voltar para a sua casa porque não estava lá naquela data. Não é só estapafúrdio. É perverso. Mas esta é uma maneira “legal” de consumar algo criminoso. E assim impedir a demarcação das terras indígenas ainda não demarcadas.
Bolsonaro já declarou que não vai “demarcar nem um centímetro a mais de terras indígenas”. A aprovação da tese do “marco temporal” é só uma das maneiras e depende do Supremo Tribunal Federal, este que o filho do presidente eleito disse que “basta um cabo e um soldado para fechar”. Talvez nem isso, já que o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, já se submete ao autoritarismo por gosto pessoal, como quando fraudou a história ao dizer que o período de 21 anos de regime de exceção no Brasil não foi ditadura, mas um “movimento”.
O “marco temporal” é uma das estratégias legais para roubar os direitos dos indígenas determinados pela Constituição de 1988
Na segunda-feira, na mesma entrevista para a TV Bandeirantes, Bolsonaro reafirmou suas intenções e deixou claro com qual parte da população tem compromisso: “Afinal de contas, temos uma área mais que a região Sudeste demarcada como terra indígena. E qual a segurança para o campo? Um fazendeiro não pode acordar hoje e, de repente, tomar conhecimento, via portaria, que ele vai perder sua fazenda para uma nova terra indígena”. O presidente eleito tenta vender a falsa ideia de que as terras indígenas é que são “novas” e que o fazendeiro, que já as ocupou sabendo disso, é “surpreendido” pela notícia. Sem contar que o processo de demarcação é longo e criterioso, impossível de representar qualquer surpresa para quem invadiu terras indígenas ou foi lá colocado por projetos de governos passados.
A aprovação do marco temporal ajudaria a evitar novas demarcações de terras, mas não resolveria o problema das terras já demarcadas. Para abrir a Amazônia para a exploração do agronegócio e da mineração, além de estradas, ferrovias, pontes e hidrelétricas, Bolsonaro vai ter que mudar a Constituição de uma forma mais radical. Por isso o general Mourão, sempre falando na hora errada, já antecipou em setembro uma “nova Constituição”, feita por uma “comissão de notáveis”. Uma Constituição sem povo, portanto.
Como a declaração produziu mal-estar, Bolsonaro, notável por sua delicadeza de linguagem e de gestos, afirmou que “faltou um pouco de tato” ao seu general. O que significa isso? Que não era hora de mencionar a intenção. Nem era a forma de sugeri-la. Se não conseguir mudar a Constituição ou fazer uma nova Constituição, sempre há o que o mesmo Mourão já antecipou: a possibilidade de um “autogolpe”, com o apoio das Forças Armadas.
Alguns indicativos sobre o que está em curso. Em pesquisa recente, a antropóloga Ana Carolina Barbosa de Lima e os biólogos Adriana Paese e Ricardo Bonfim Machado mostraram que os municípios amazônicos que mais desmataram desde 2000 teriam elegido Bolsonaro já no primeiro turno. Nos municípios bolsonaristas, a média do desmatamento foi duas vezes e meia maior do que nos municípios que preferiram Fernando Haddad (PT). Segundo o Observatório do Clima, dados do Deter B, sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais que monitora a Amazônia em tempo quase real, a taxa de desmatamento subiu 36% entre junho e setembro, período da pré-campanha e campanha eleitoral.
No governo Temer, o agrobanditismo está no poder. No governo Bolsonaro, eles serão o poder
Na Amazônia, fazendeiros e grileiros já apoiavam Bolsonaro quando a maior parte dos brasileiros ainda duvidava que ele seria capaz de vencer a eleição. Assim como muitos dos prefeitos do PSDB da região, que nunca cogitaram votar em Geraldo Alckmin. Também será interessante observar como Bolsonaro, que mesmo antes de assumir já está de namoro avançado com Donald Trump, vai lidar com os interesses da China, cada vez mais presente na floresta e uma das principais importadoras de soja do país.
É na Amazônia que vai se dar a disputa do governo de Bolsonaro. O Brasil já é o país mais mortal para defensores do meio ambiente, segundo a organização Global Witness, e o estado amazônico do Pará é o lugar mais letal do planeta. O “agronegócio” superou a mineração como causador das mortes. Todas as variáveis apontam que esta violência vai se multiplicar com Bolsonaro. Até o governo Temer o agrobanditismo estava no poder. Agora, ele será o poder. E com autorização para matar dada pelo próprio presidente, em suas várias manifestações durante a campanha.
A Amazônia pode parecer longe para a maioria dos brasileiros. Mas nada afetará mais o futuro próximo de todos do que o destino da floresta. No Brasil, a agropecuária e o desmatamento, ambos relacionados, são as principais fontes de gases de efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento global. Em outubro, autores do relatório do Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (IPCC) já alertaram que a humanidade tem apenas 12 anos para limitar o aquecimento da Terra em 1,5 graus Celsius. Meio grau a mais multiplicaria os riscos de seca, inundações, calor extremo e pobreza para centenas de milhões de pessoas. Sem a maior floresta tropical do mundo em pé não será possível atingir essa meta. É por isso que Bolsonaro se tornou também uma ameaça para o planeta. Para enfrentar a crise climática e recuperar a floresta seria necessário um presidente com ideias opostas às de Bolsonaro.
Somente a Bacia do Xingu, segundo monitoramento do Instituto Socioambiental, teve 150 milhões de árvores derrubadas em 2018, e o ano ainda nem acabou. A floresta amazônica chega aos dias atuais já desmatada em cerca de 20%. Um estudo publicado no início deste ano na Science Advances, assinado por cientistas de renome internacional, o americano Thomas Lovejoy e o brasileiro Carlos Nobre, mostrou que a floresta alcançará um “ponto de inflexão” se o desmatamento alcançar entre 20% e 25%. A partir daí, a Amazônia sofreria mudanças irreversíveis, tornando-se uma região de vegetação esparsa e baixa biodiversidade.
Se a eleição de 2018 foi brutal, pelo resultado e pela decepção com os políticos de centro-esquerda, graças à sociedade civil democrática também foi uma das mais belas campanhas da história
Estamos muito perto deste ponto de não retorno. E Bolsonaro ainda nem assumiu oficialmente. Querendo ou não, gostando ou não, acreditando ou não, estamos todos implicados neste futuro bem próximo. Os sinais estão todos aí para quem é capaz de ver. Mas, se preferir não ver, também não vai adiantar nada. É rápido. É no tempo da sua vida e na da vida de seus filhos. E não é porque a gente finge que não existe que a crise climática vai deixar de existir.
Eleger Bolsonaro foi a pior ação para o Brasil e para o planeta. Mas está feito. A pergunta agora é: o que faremos para resistir ao que está por vir e proteger a floresta e com ela a nossa vida? A eleição de 2018 revelou algo duro, mas importante: os candidatos estavam aquém da população. Primeiro, Lula e o PT mostraram-se incapazes de articular uma candidatura de centro-esquerda que pudesse vencer o projeto autoritário. Depois, Ciro Gomes e Marina Silvaprovaram-se incapazes de subir no palanque do segundo turno para defender a democracia.
Mas as pessoas se moveram. Apesar da brutalidade de, mesmo assim, ter sido eleito um defensor da ditadura e da tortura, esta foi uma das campanhas mais bonitas da história recente. Poucas cenas são tão memoráveis quanto a de pessoas anônimas, sozinhas, que na tentativa de virar o voto para o projeto democrático, levantaram um cartaz no centro das cidades dizendo: “vamos conversar?”.
É dessa força que precisamos agora para, unidos com indígenas, quilombolas e ribeirinhos, lutarmos pela Amazônia e pela vida de todos. Mesmo que os eleitores de Bolsonaro não sejam capazes de perceber, resistir ao projeto destruidor da floresta já anunciado pelo presidente de extrema direita é também lutar pela vida deles e de seus filhos.
* Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Eliane Brum: Bolsonaro é uma ameaça ao planeta
O candidato de extrema direita já anunciou medidas que vão abrir a Amazônia ao desmatamento
Jair Bolsonaro, chamado nas redes sociais de “o coiso”, não é uma ameaça apenas ao Brasil, mas ao planeta. O candidato de extrema direita, que liderou o primeiro turno das eleições no Brasil, com o voto de quase 50 milhões de brasileiros, pode vencer no segundo turno, em 28 de outubro. Se ele se tornar presidente do Brasil, já avisou que pretende seguir Donald Trump e anunciar a retirada do Brasil do Acordo de Paris. Ele e seus apoiadores também já anunciaram várias medidas que abrirão a Amazônia ao desmatamento. A floresta, que já teve 20% de sua cobertura vegetal destruída, está perigosamente perto do ponto de virada. A partir dele, a maior floresta tropical do mundo se tornará uma região com vegetação esparsa e baixa biodiversidade. E o combate ao aquecimento global se tornará quase impossível.
O ultradireitista que flerta com o fascismo já anunciou que pretende fundir o ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura e que o ministro desta aberração será “definido pelo setor produtivo”. O que Bolsonaro chama de “setor produtivo” é tanto o agronegócio quanto os grileiros, criminosos que se apropriam de terras públicas na base da pistolagem. No Brasil, parte do agronegócio se confunde com a grilagem e é representado no Congresso pelo que se chama de “bancada do boi”.
Essa frente, que reúne parlamentares de diferentes partidos conservadores, tem atuado fortemente nos últimos anos para avançar sobre as áreas protegidas da Amazônia. Querem transformar terras indígenas e áreas de conservação, hoje as principais barreiras contra a devastação da floresta, em pasto para boi, latifúndio de soja e mineração. Nesta eleição, anunciaram seu apoio a Jair Bolsonaro. O Partido Social Liberal (PSL) de Bolsonaro, que deverá engordar a “bancada do boi”, passou de um para 52 deputados, tornando-se o segundo maior partido da Câmara a partir de 2019.
Bolsonaro já garantiu aos grandes fazendeiros e grileiros que vai “segurar as multas ambientais”. "Não vai ter um canalha de fiscal metendo a caneta em vocês!”, discursou em julho. “Direitos humanos é a pipoca, pô!” Também já disse que não haverá “nem um centímetro a mais para terras indígenas” e defendeu que as já demarcadas possam ser vendidas. Entusiasta da ditadura que controlou o Brasil entre 1964 e 1985, ele também já declarou que vai “colocar um ponto final no ativismo xiita ambiental”. O candidato, que exalta a tortura, afirma que “as minorias têm que se curvar à maioria” ou “simplesmente desaparecer”.
Apenas a possibilidade de ser eleito tem funcionado como uma espécie de autorização para desmatar a floresta e matar aqueles que a protegem. Vários casos de violência contra lideranças e assentamentos de camponeses ocorreram na Amazônia nesta eleição. O Brasil já é o país mais letal para defensores do meio ambiente. Com Bolsonaro, os conflitos devem explodir.
Em 8 de outubro, autores do relatório do Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (IPCC) alertaram que o aquecimento global não pode ultrapassar 1,5°C. Meio grau a mais multiplicaria os riscos de seca, inundações, calor extremo e pobreza para centenas de milhões de pessoas. Alertaram também que só há 12 anos para reverter esse processo. Doze anos. A floresta amazônica é essencial para controlar o aquecimento global. E Bolsonaro já anunciou medidas que vão colocá-la abaixo.
Como o debate foi sequestrado no Brasil, o maior risco quase não é mencionado ou é simplesmente ignorado. Dentro do país. E também fora, onde o silêncio de governos e parlamentos da maioria dos países sobre a ameaça que assombra o Brasil é uma vergonha de dimensões globais.
Se não for por posicionamento humanitário, representado pelo risco de um defensor da ditadura, da tortura e do extermínio dos diferentes se tornar o presidente do maior país da América do Sul, que pelo menos seja por cálculo: o Brasil pode estar se tornando um país cada vez mais periférico em vários sentidos, mas a Amazônia é central no debate mais importante deste momento histórico e que atravessa todos os outros temas: o climático.
Quem acredita que a possibilidade de o Brasil ser governado por um homem declaradamente racista, misógino e homofóbico é apenas mais uma bizarrice da América Latina não compreendeu que, em tempos de aquecimento global, a ameaça alcança a sua porta.
Eliane Brum: “O ódio deitou no meu divã”
Relatos de psicanalistas revelam a violência que cresce e se infiltra no Brasil com a possibilidade de Jair Bolsonaro chegar à presidência da República
Ele entra sem dizer uma palavra e logo começa a chorar. Pergunto o que aconteceu e ele me diz, assustado, que foi abordado por um cara da faculdade, com as seguintes palavras:
Depois, é a menina que já entra chorando e me diz:
— Sil, me ajuda... não sei o que fazer... você não vai acreditar no que aconteceu comigo hoje... Eu estava na escola e fui pegar um livro no meu armário... Tinha uma folha de papel...
Aí ela me mostra uma foto no celular, porque entregou a tal folha na diretoria, com esta mensagem aqui:
– Achou mesmo que era só sair gritando #elenão pra parar o bolsomito, feminazi??? Perdeu, escrota!! E daqui a pouco você vai ter motivo pra gritar de verdade!!!
O relato, feito pelas redes sociais, é da psicanalista Silvia Bellintani, pouco antes do primeiro turno das eleições. Devidamente autorizada pelos pacientes, ela conta o que escutou de dois deles no seu consultório, numa mesma tarde: ele, homossexual, 19 anos; ela, heterossexual, 17 anos, feminista.
Nos últimos dias, começaram a circular posts de psicanalistas e psicólogos que decidiram levar para o debate público o que escutam no seu consultório. Sem expor os pacientes, mas apontando o que vem acontecendo na sociedade brasileira apenas pela possibilidade, bastante grande, de um homem como Jair Bolsonaro, defensor da ditadura, da tortura e da violência, assumir a presidência do país.
Em um post intitulado “Ser analista sob o ódio”, Ilana Katz escreveu:
“Alguém, dilacerado, conta que apanhou em casa por defender suas posições e, na sessão seguinte, outro alguém refere como fake news o que a colega conta sobre amigos homossexuais sofrerem agressões. Alguém diz que não pode votar em corrupto, xinga os corruptos, odeia os corruptos e se inflama ao dizer que as instituições da República vão controlar a misoginia e o racismo de Bolsonaro, e então renova seus votos. Entra depois a menina que sofreu constrangimento público no metrô por vestir #EleNão, e nem pessoa nem instituição nenhuma correu em seu socorro. Essas não são conversas de WhatsApp. Nas duas últimas semanas, o ódio deitou no meu divã e não saiu mais. Entra e sai gente: criança, adulto, adolescente, e esse é o tipo de afeto que circula. Desde o final do primeiro turno, o ódio tomou mais corpo. Mais corpos”.
"Palavras que incentivam a negação absoluta do outro são como balas perdidas: encontrarão um ponto de parada para perfurar"
Várias instituições de psicanálise fizeram manifestos pela democracia –e contra a opressão representada pela candidatura de extrema direita. Entre elas, a Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano:
“A política da psicanálise se associa à ética do bem-dizer e nos leva a fazer frente ao discurso do ódio ao outro, em pleno Estado democrático. O discurso do analista deve circular na pólis e, quando nos dirigimos ao mundo, o silêncio do ‘terror conformista’ não nos cabe”.
Psicanalistas da Escola Brasileira de Psicanálise também posicionaram-se, propondo “um movimento de circulação de breves relatos do que tem sido escutado nas ruas do país sobre os efeitos nefastos que a ameaça do fascismo é capaz de provocar”. Em texto veiculado nas redes, afirmam:
“Quando o valor das palavras é banalizado, a ponto de o pior poder ser dito por um candidato à presidência da República, como se fossem apenas palavras ao ar, perdemos a noção de que estamos escrevendo, com elas, nossa história. Perdemos a noção de que palavras se cravam na história, nos ouvidos e nos corpos de um país. Palavras que incentivam a negação absoluta do outro são como balas perdidas: encontrarão um ponto de parada para perfurar. E nunca se sabe ao certo, de antemão, onde será. Não será sem consequências nos fazermos de surdos para o pior. Escutemos, pois”.
Em seguida, enumeram alguns relatos escutados nas ruas do Brasil nos últimos dias:
“Uma amiga estava amamentando seu filho, que tem menos de um ano, em uma padaria próxima à sua casa, quando passaram dois caras e um deles gritou, olhando pra ela: ‘Quando ele ganhar, essas vagabundas não vão mais poder fazer isso!’”;
“Um casal de meninas anda na rua e ouve de um passante: ‘Aproveita, porque o 17 vem aí!’”;
“Depois de uma longa conversa com alguém, na tentativa de argumentar contra o que representa o ‘Coiso’, o alguém perde os argumentos e enuncia a verdade velada. 'Ah, quer saber, foda-se se ele defende a tortura. Comunista pode ser torturado!’”;
“Meu enteado andando na rua com camiseta da faculdade (UERJ) ouviu de cinco homens passando de carro: isso vai acabar quando o mito ganhar, você estuda nessa merda e nunca vai ganhar dinheiro”;
“Minha filha, ontem, na saída da escola, foi abordada por um cara, que, por conta do adesivo do Haddad, que ela trazia colado na camisa, mandou essa: 'Fica esperta que eu sou do exército Bolsonaro que esfola comunista'".
A crise no Brasil não é só política e econômica, mas uma crise da palavra
Tenho escrito há anos que a crise do Brasil não é só política e econômica, mas uma crise da palavra. Quando tudo pode ser dito, nada mais diz. As palavras, no Brasil, se tornaram palavras fantasmas, porque nada movem. Essa realidade ficou explícita quando Jair Bolsonaro, ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff, homenageou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos mais sádicos torturadores da ditadura, responsável pela morte de pelo menos 50 pessoas e pela tortura de centenas –e nada aconteceu.
Nesta eleição, seus filhos e apoiadores vestiram camisetas com o rosto do torturador e as palavras “Ustra vive!” – e, mais uma vez, nada aconteceu. Enquanto isso, mães ainda choram por seus filhos assassinados por Ustra – e mulheres torturadas por ele, que levaram choques elétricos nos seios e vaginas e tiveram baratas e ratos enfiados nos seus corpos, ainda acordam gritando à noite.
Se as palavras se tornam cartas extraviadas, cartas que não chegam ao seu destino, o diálogo é interditado, e o ódio se instala. O fenômeno Bolsonaro pode ser compreendido também a partir do esvaziamento das palavras. É uma resposta possível para o fato de que quase 50 milhões de brasileiros foram capazes de votar em alguém que diz o que Bolsonaro diz. Muitos deles, inclusive assistindo a vídeos em que ele diz o que diz, negam que ele disse o que diz. Veem, mas não veem. Ouvem, mas não escutam.
Sem diálogo, as palavras perfuram os corpos. É urgente que as palavras voltem a dizer no Brasil –ou elas serão cada vez mais balas perdidas. E sabemos que balas perdidas acham corpos. É este o movimento dos psicanalistas que escolheram não se omitir neste momento de tanta gravidade para o Brasil, certamente o momento mais grave da história recente do país, talvez o momento mais grave desde o golpe de 1964.
Algo muito profundo, muito tenebroso, se infiltra mais e mais nos ossos deste país
O ódio ao PT, explicação dada por parte dos que votam em Bolsonaro e por muitos que pretendem votar em branco ou anular o voto ou se abster de votar não é a doença, mas o sintoma. Algo muito profundo, muito tenebroso, se infiltra mais e mais nos ossos deste país. É no divã dos psicanalistas, em que a palavra tem espaço e carne, que essa escuridão emerge em todo o seu horror.
Ao iniciar o seu relato, Silvia Belintani afirma: "Eu poderia dizer que estou sem palavras para descrever o que testemunhei hoje no meu consultório. Mas tive o dever de encontrá-las, para não deixar que algo assim, gravíssimo, fique sem registro”. E, mais adiante: “O cenário das eleições sequer foi definido, mas já encoraja o sadismo e promete ser palco do terror. Fico imaginando o que vem pela frente”.
Em seu post, Ilana Katz faz uma análise profunda sobre o papel de um analista também neste momento (abaixo reproduzo o post). E afirma: “O antipetismo é um dos nomes para o ódio. De novo, palavras que encurtam o dizer: autocrítica, criminoso, preso, poste. São palavras que falam de todos e de tudo ao mesmo tempo. Mas, o que dizem para quem diz de quem diz?”
E termina:
“Por força e por exercício do ofício, um psicanalista não pode recuar no espaço público diante da ameaça à democracia. Não pode se curvar ao ódio, e não deve responder especularmente ao ódio. Para que os odiadores e os odiados possam seguir se deslocando de seus lugares e posições, para que possamos achar palavra e movimento, hoje desdobro minha condição de psicanalista em direção à cidade para dizer #DemocraciaSim”.
"Ser analista sob o ódio"
Alguém, dilacerado, conta que apanhou em casa por defender suas posições e, na sessão seguinte, outro alguém refere como “fake news” o que a colega conta sobre amigos homossexuais sofrerem agressões. Alguém diz que não pode votar em corrupto, xinga os corruptos, odeia os corruptos e se inflama ao dizer que as instituições da República vão controlar a misoginia e o racismo de Bolsonaro e então renova seus votos. Entra depois a menina que sofreu constrangimento público no metrô por vestir #EleNão, e nem pessoa nem instituição nenhuma correu em seu socorro.
Essas não são conversas de WhatsApp.
Nas duas últimas semanas, o ódio deitou no meu divã e não saiu mais. Entra e sai gente: criança, adulto, adolescente, e esse é o tipo de afeto que circula.
Desde o final do primeiro turno, o ódio tomou mais corpo. Mais corpos. Ouço as histórias, tento escutar, procuro as sutis diferenças. No esforço de escutar esses sujeitos, brigo comigo para abandonar o ritmo do WhatsApp. Aqui, assim como lá, não há trégua porque não há outro tema. Há odiados e odiadores. E eu aprendo, mais uma vez, que ódio varia pouco, e permite poucas variações também.
As palavras, em looping, não permitem que o sujeito possa se dizer. São as mesmas palavras que ocupam o discurso de uns (corrupção-ladrão- quadrilha-dinheiro-justiça. Eu-não-sou-idiota), e o mesmo medo que distribui os termos dos outros (fascismo-direitos sociais-apanhar-fugir-lutar. Medo-pânico-medo).
O antipetismo é um dos nomes para o ódio. De novo, palavras que encurtam o dizer: autocrítica, criminoso, preso, poste. São palavras que falam de todos e de tudo ao mesmo tempo. Mas, o que dizem para quem diz de quem diz?
O estancamento do dizer é uma tarefa do analista na clínica. É preciso fazer isso trabalhar. É preciso procurar a ligação particular entre esses termos em cada história. Drenar o ódio e oferecer a chance da subjetivação das experiências. Como direção, tocar o gozo, alçar responsabilidade subjetiva.
Por força e exercício do ofício de psicanalistas, sabemos o que a palavra quer dizer como possibilidade para o sujeito e para suas formas de laço. Para que seja possível um viver com os outros. É assim que aprendemos que psicanálise e democracia se fazem valer do mesmo princípio condicionante, que é a circulação livre das palavras. A diferença entre clínica e espaço público guarda a também fundamental diferença dos níveis de tratamento que a palavra que circula deve receber. A tão famosa neutralidade do analista só vale se, sustentada no Desejo do Analista, garantir a possibilidade de que aquele que fala seja o mais livre possível na sua relação com o que diz.
No exercício do seu ofício, um psicanalista suporta, em sua clínica, a hiância entre o singular e o coletivo que o sintoma sustenta. Por força e exercício do ofício, um psicanalista se responsabiliza pelo que a psicanálise e a clínica lhe ensinam sobre o que é o controle do dizer, que é também o controle do pensar e do limite do gesto de um outro. Por força e por exercício do ofício, um psicanalista não pode recuar no espaço público diante da ameaça à democracia. Não pode se curvar ao ódio, e não deve responder especularmente ao ódio.
Para que os odiadores e os odiados possam seguir deslocando-se de seus lugares e posições, para que possamos achar palavra e movimento, hoje desdobro minha condição de psicanalista em direção à cidade para dizer #DemocraciaSim.”
(Ilana Katz, psicanalista, São Paulo)
Eliane Brum: Como resistir em tempos brutos
Um manual para enfrentar as próximas três semanas e transformar luto em verbo
Cubro eleições como jornalista desde que elas voltaram a existir no Brasil. Minha estreia como repórter, junto com o Brasil que recém havia emergido do longo e tenebroso inverno da ditadura, foi em 1988, nas eleições para prefeito. A primeira eleição presidencial foi em 1989. Fernando Collor de Mello, segundo a capa da revista Veja, “o caçador de marajás”, foi eleito. O filho do coronelismo de Alagoas proclamava que Lula, o filho do sertão nordestino, tinha um aparelho de som maior que o dele em casa. As pessoas acreditavam que Lula era mais rico que Collor, porque muita gente gosta mesmo é de acreditar, em qualquer coisa que lhe convém. Na época, Edir Macedo, o poderoso dono da Igreja Universal do Reino de Deus, já se chamava de bispo e era o feliz proprietário de um império religioso. Mas bem mais modesto do que hoje, quando seu império tornou-se religioso-político-midiático.
Naquela época Edir já conversava diretamente com o Estado Maior do Céu e anunciou aos fiéis que o próprio Espírito Santo havia lhe informado que Collor era o cara. Ou Edir foi enganado pelo Espírito Santo, os mais estudados em temas bíblicos podem nos dizer se isso é possível, ou ele ouviu sussurros mais terrenos e se confundiu. Ou então ele simplesmente mentiu. Entre a possibilidade de o Espírito Santo ter mentido ou Edir Macedo ter mentido usando o nome do Espírito Santo, me parece mais prudente apostar na idoneidade do Espírito Santo. Mas as pessoas evangélicas, as realmente evangélicas, que me digam se meu pensamento tem lógica ou não. Nesta eleição, Edir declarou que Jair Bolsonaro (PSL) é o cara. É acompanhado na preferência por outros coronéis da religião, como Silas Malafaia, que me chamou de “vagabunda” em 2011, em entrevista ao The New York Times. Um exemplo do tratamento destinado às mulheres por esses homens que dizem falar em nome de Deus enquanto contam o dinheiro suado dos fiéis. E uma perfeita identificação com seu candidato a presidente, que afirmou não estuprar uma deputada porque ela não mereceria por ser “muito feia”, assim como afirmou que as mulheres são produto de uma “fraquejada” do macho no ato sexual.
Me dou a licença deste primeiro parágrafo porque completo, neste primeiro turno de 2018, 30 anos cobrindo eleições. Acompanhei todas as campanhas eleitorais da redemocratização do Brasil, do que se convencionou chamar de Nova República. E nunca, em 30 anos, vi o que vi nesta eleição de 2018.
Vi as pessoas adoecendo, estranguladas por uma espécie de pânico paralisante. Vi amigos combativos, acostumados à dureza da luta, prostrados pelo sentimento de impotência diante da possibilidade de um homem como Jair Bolsonaro, um homem que diz o que ele é capaz de dizer, vencer. Vi pessoas chorando dia após dia. Recebi centenas de mensagens no WhatsApp com as mesmas quatro frases, a maioria delas vindas de mulheres.
“Estou em pânico.”
“Estou assustada.”
“Estou com medo.”
“Estou apavorada.”
1) Na eleição determinada pelo fenômeno da autoverdade, a melancolia adoece o corpo
Jair Bolsonaro, aquele que é chamado de “coiso” nas redes sociais, ganhou esta eleição mesmo antes da votação no primeiro turno. O Brasil está mergulhado numa crise ampla, complexa, que é muito mais do que uma crise econômica e política. É uma crise também de identidade e de palavra, como tantas vezes já escrevi aqui nos últimos anos. A pobreza está aumentando, a mortalidade infantil voltou a crescer, doenças que estavam erradicadas são novamente ameaças, por falta de cobertura vacinal eficiente. A malária retornou com toda a força na região amazônica. E a febre amarela ressurgiu no Sudeste do país. A violência no campo aumentou, e a Amazônia e o Cerrado estão ainda mais ameaçados pelo desmatamento. O Brasil tem ainda 13 milhões de desempregados e um número crescente de pessoas que parou de procurar uma vaga porque sequer tem esperança de voltar a ter trabalho.
A campanha de Bolsonaro reduziu a eleição a uma batalha de memes e de ameaças “bíblicas” pelo WhatsApp
Jair Bolsonaro venceu mesmo antes deste domingo, 7 de outubro, porque, num cenário tão grave, sua candidatura conseguiu impedir qualquer debate sério. Sua candidatura interditou a discussão das ideias, a criação de um projeto para o Brasil. A campanha eleitoral ficou reduzida a uma batalha de memes e a ameaças “bíblicas” pelo WhatsApp, onde cheguei a receber uma mensagem que dizia o seguinte: “Já está encomendado daqui de Novo Hamburgo-RS, 100 touros para serem sacrificados para Satanás em favor do babuê Luiz Inácio Lula da Silva, bruxo, pela perturbação das eleições, e para favorecê-lo. Crianças também serão sacrificadas no altar de Belzebu”. E as pessoas do grupo de evangélicos, ligado à Assembleia de Deus, pareciam acreditar seriamente nisso. Várias pessoas deste grupo têm dificuldades para escrever, mas o português deste post era corretíssimo. Em áudios e vídeos amplamente disseminados pelo WhatsApp, líderes religiosos desenhavam o apocalipse caso Bolsonaro fosse derrotado —ou caso o PT vencesse. Sem serem incomodados pelas instituições que têm a obrigação de preservar a lisura das eleições.
Jair Bolsonaro venceu porque em vez de usarmos o momento da campanha para debatermos projetos, o tempo foi gasto em explicar o autoexplicável: explicar por que razão não é aceitável votar num candidato que diz que negros de quilombos não servem nem para a procriação, que é melhor ter um filho morto num acidente de trânsito do que namorando “um bigodudo” (certamente ele nunca perdeu um filho para dizer algo assim), que seus filhos jamais vão namorar uma negra porque “são muito bem educados”, que as mulheres têm que ganhar menos porque engravidam, que é a favor da tortura e que a ditadura civil-militardeveria ter matado pelo menos uns 30 mil e que se morrerem inocentes tudo bem (desde, claro, que não sejam da sua família). Alguém que é vítima de um ataque à faca e, em vez de convocar o país para a paz, como cabe a um líder responsável em momentos de gravidade, faz sinal de atirar da cama de hospital como se tivesse cinco anos de idade. Alguém que diz uma coisa e depois disse que não disse o que está gravado em áudio e vídeo que disse. Alguém que os apoiadores têm que começar o discurso dizendo: “Ele não é o mais inteligente... nem o mais preparado, mas...”.
Jair Bolsonaro ganhou mesmo antes de ser o mais votado no primeiro turno porque, mesmo defendendo a barbárie, foi o escolhido de quase 50 milhões de brasileiros. E, quando é preciso explicar por que não é possível escolher um candidato que faça essas declarações e acredite nelas, esta batalha já está perdida. Explicar que uma mulher não nasce de uma fraquejada de um homem nem deve ganhar menos porque engravida? Explicar que não é melhor ter um filho morto em acidente do que gay? Explicar que não é possível falar que um negro nem para procriar serve? Explicar que não é possível matar e torturar? Não faz sentido ter que explicar isso. Nenhum sentido.
Se, nos Estados Unidos, a eleição de Donald Trump foi marcada pela pós-verdade, a eleição do Brasil, liderada por Jair Bolsonaro, é a eleição da autoverdade
Por não fazer nenhum sentido, também não faz nenhuma diferença explicar. Vivemos o que tenho definido como “autoverdade”: o conteúdo não importa, importa o ato de dizer. Assim, checar os fatos também não importa, porque os fatos não importam. O ato de dizer é confundido com “autenticidade”, com “sinceridade”, com “verdade”. Não importa o que seja dito. A estética foi colocada no lugar da ética. A “verdade” tornou-se uma escolha pessoal. É o indivíduo levado à radicalidade. Se, nos Estados Unidos, a eleição de Donald Trump foi marcada pela pós-verdade, a eleição do Brasil, liderada por Jair Bolsonaro, é a eleição da autoverdade. E, tanto quanto a pós-verdade, ela ecoa a lógica das redes sociais na internet e suas bolhas.
A democracia pode ser uma grande festa em que cabem todas as diferenças. A democracia só é democracia, aliás, quando cabem todas as diferenças. Projetos que não acolham as diferenças, que querem eliminar —e inclusive exterminar— as diferenças e executar aqueles que encarnam as diferenças, estes não cabem na democracia. Porque defender a eliminação dos diferentes, dizendo que não deveriam existir ou que valem menos que os outros, não é uma opinião, mas um crime. Um crime previsto pela legislação brasileira, mas curiosamente este crime persistente nesta campanha não tem sido identificado como crime e punido pelas instituições responsáveis.
Bolsonaro ganhou mesmo antes de ganhar porque não apenas ampliou o ódio, mas também sequestrou o debate
Jair Bolsonaro ganhou mesmo antes de ficar em primeiro lugar no primeiro turno da eleição porque todos os debates importantes para o Brasil foram suspensos, todas as discussões em andamento se perderam, e o cotidiano foi reduzido a espasmos. Ele não apenas ampliou o ódio, ele também sequestrou o debate. Este tempo já foi perdido por quem aposta na democracia. Mas o tempo não foi perdido para os que apostam no caos, porque o ódio foi ampliado e os muros ficaram ainda maiores e mais difíceis de serem atravessados por qualquer diálogo.
Jair Bolsonaro vem ganhando há muito tempo porque nem mesmo precisou explicar como seu guru econômico e futuro ministro da Fazenda, Paulo Guedes, o ultraliberal que é desprezado pelos liberais moderados, propõe uma mudança que cobrará mais impostos dos pobres e menos dos ricos. Ou como seu vice, Hamilton Mourão, chama o décimo-terceiro salário do trabalhador de “jabuticaba”. Nem isso ele precisou explicar, até porque o médico teria desaconselhado debates na Globo mas permitido entrevistas no mesmo horário para a Record.
Jair Bolsonaro ganhou mesmo antes de ter ganhado um número expressivo de votos no primeiro turno porque conseguiu mergulhar uma parte das pessoas numa paralisia amedrontada, como se estivessem estragadas por dentro. Jamais se esqueçam que a primeira vitória da opressão é sobre a subjetividade. É o que faz uma mulher cotidianamente espancada ficar calada. Ou uma mulher estuprada não denunciar o estuprador. Há algo que a amarra por dentro. É como se perdesse a voz mesmo tendo voz, perdesse a força mesmo tendo força. Esse é o efeito de ser violentada ou violentado. Vi muita gente assim no final da campanha de primeiro turno, vivendo a campanha violenta de Bolsonaro e de seus apoiadores como uma violência sobre o próprio corpo, sobre sua mente e sobre seu espírito. Mulheres, principalmente, mas também homens.
É o seguinte.
Jair Bolsonaro ganhou, mesmo antes de ganhar, mas não pode continuar ganhando. E a primeira luta acontece dentro de cada um. Não renunciem à sua subjetividade. Não permitam que roubem a sua voz e a sua força. Não deixem a vida ser tomada pelo medo. É preciso lutar neste segundo turno para o autoritarismo não se instalar no Brasil pelo voto, mais uma contradição da democracia. E é preciso resistir primeiro nas pequenas coisas do cotidiano. No amor, na amizade, no sexo, no prazer de ver um filme ou ouvir uma música, num café bem coado. No que uma amiga minha chama de “cotidianices”. E, principalmente, no prazer de estar junto. Como disse alguém na minha página do Facebook: “Mesmo se tudo der errado, o que me interessa agora é que meus filhos saibam que a mãe deles lutou contra o horror”.
Não permitam que “o coiso” corrompa seu espírito. Aprendam com as crianças que leram Harry Potter: se os dementadores (criaturas que controlam, oprimem e derrotam roubando a alegria) se aproximarem, comam chocolate para combatê-los. Parece uma referência demasiado infantil, mas J. K. Howling sabia o que escrevia: a comida e a música são o que faz a maioria dos refugiados conseguirem viver longe das suas pátrias e mátrias, porque acionam lugares da mente que a opressão não alcança. Só com a batalha ganha dentro de cada um, é possível ter mais força no que o poeta do Xingu Élio Alves da Silva refere-se como “Eu+ Um”. Sozinhos nós contamos apenas como um. Como Um+Um+Um... nós somos milhões.
2) Democracia, autoritarismo e a omissão das instituições que deveriam combater os crimes
Há muitos desafios neste segundo turno de Jair Bolsonaro com Fernando Haddad (PT). Se Lula fosse um estadista, ele teria apoiado um nome fora do PT. Alguém que pudesse aglutinar a esquerda e o centro, como Ciro Gomes (PDT). E Haddad poderia ter sido o vice. Mas Lula, infelizmente para o país, não é um estadista. Lula é um grande líder, mas não um estadista. Moveu-se nesta eleição por vingança, não pelo bem do Brasil. Quis mostrar que, mesmo de dentro da cadeia, poderia dominar a campanha.
É possível entender a sua raiva, já que estava em primeiro lugar nas pesquisas e foi impedido de ser candidato. Nem mesmo dar entrevista pode. Como jornalista, já fiz entrevistas com dezenas de presos, essa proibição é uma arbitrariedade. É possível entender a sua raiva, mas de uma liderança se espera que domine a raiva e seja capaz de pensar nos interesses do país acima dos seus. Lula não foi capaz. E cá estamos.
A eleição do contra vai se acirrar no segundo turno – e muito
Essa eleição, desde o início, foi a eleição “do contra”. E a eleição do “contra” vai se acirrar no segundo turno. Contra Bolsonaro X Contra o PT. O país inteiro sabe que há uma avalanche antipetista. Que se manifesta como ódio. Os motivos são variados. Uma parte concentra, inclusive, ódio pelas virtudes do PT no poder, como as cotas raciais nas universidades e a ampliação dos direitos das empregadas domésticas.
Estas duas ações do PT no governo explicam grande parte do ódio, sem que assim ele seja nomeado. Foram essas duas políticas que alteraram as relações de poder e confrontaram de fato privilégios, já que Lula jamais mexeu na renda dos mais ricos. Mas ele e Dilma Rousseff mexeram, sim, no equilíbrio de poder, concreto e simbólico, quando os negros entraram nas universidades e quando as domésticas deixaram de ser uma versão contemporânea da escravidão para se tornar mais uma categoria explorada de trabalhadores, entre tantas outras. Essas políticas, não concessões do governo, mas reconhecimento de lutas históricas, geraram mudanças que são imparáveis e seguiram confrontando privilégios mesmo depois que o PT foi afastado do poder pelo impeachment de Dilma Rousseff.
Uma parte, na qual me incluo, terá que segurar o estômago para votar num partido que reeditou o projeto da ditadura civil-militar na Amazônia, reduzindo a floresta a objeto de exploração, evidenciado nas grandes hidrelétricas como Belo Monte, Jirau e Santo Antônio, e na expulsão dos povos da floresta. Uma parte, na qual eu também me incluo, terá que tampar o nariz para votar num partido que assinou a lei antiterrorismo e que usou a Força Nacional para perseguir e reprimir manifestantes e trabalhadores nas cidades e na floresta. Uma parte, na qual eu também me incluo, terá pesadelos para votar num partido que até hoje não se manifestou contra a ditadura assassina de Nicolás Maduro na Venezuela (Nem isso, PT, nem isso...). Uma parte, na qual eu também me incluo, sofrerá para votar num partido que consumiu os esforços de pelo menos duas gerações de brasileiros com a promessa de que seria diferente dos outros e, como os outros, se corrompeu no poder e se aliou ao que havia de mais nefasto na política nacional. E sofrerá também porque o PT fez tudo isso e nenhuma autocrítica. Nem uma autocrítica bem pequenina, uma autocriticazinha. Nada que mereça esse nome.
Uma parte dos eleitores de Bolsonaro usa o ódio contra o PT para justificar o injustificável: é um truque
Mas uma parte, na qual de jeito nenhum eu me incluo, usa o ódio contra o PT para justificar o injustificável. É um truque. E esse truque precisa ser desmascarado. Se você votou e votará em Bolsonaro, não é porque é contra a corrupção. Havia outros candidatos que não eram suspeitos de corrupção e você não votou neles no primeiro turno. Você votou em Bolsonaro porque compartilha de suas ideias e compartilha do seu ódio. E se você compartilha com quem afirma o que ele afirma — ser contra negros, contra mulheres, contra LGBTQ, contra indígenas, contra camponeses e a favor das armas e do autoritarismo e da tortura e do atirar para matar —então é isso que você defende. E, principalmente, é esse tipo de pessoa que você é.
Ou então você estava muito furioso e muito triste com o país e votou com raiva, votou como quando dá aquela vontade de quebrar tudo e ver o circo pegar fogo. Acontece. E em geral a gente se arrepende do que faz nestes momentos quando a respiração volta ao normal, mas as consequências se estendem, às vezes pela vida toda. Mas agora tem outra chance, e essa é definitiva. É preciso deixar a raiva de lado e votar com a razão, escolher com consciência. Porque se a dupla de “profissionais da violência”, como o próprio Hamilton Mourão definiu, assumir o poder, será muito grave para o país. Quando se vota em profissionais de violência é preciso saber o que esperar.
Quem defende a violência contra outras pessoas apenas porque são diferentes ou porque confrontam seus privilégios é um corrupto. Mesmo que nunca tenha se corrompido pelo dinheiro, é a alma que é corrompida. Então, não é possível se esconder atrás da corrupção. Nem começar nenhum discurso com “Ele não é inteligente nem preparado, mas...”. Neste caso, é preciso assumir o real desejo de exterminar os que são diferentes. Não dá para votar num racista sem ser racista, num homofóbico sem ser homofóbico, num machista sem ser machista. Este é um limite. Ao fazê-lo, se você não era, se torna um. Mesmo que você for mulher ou homossexual ou negro. E este voto fará parte de sua história. É também o seu legado para os que virão.
O fato de a eleição ser “do contra” não autoriza a imprensa e outros espaços de documentação, análise e interpretação da realidade a igualar o inigualável. Não se trata de dois iguais. Não é isso o que acontece hoje no Brasil. Há um projeto autoritário para o país, que está negando a própria democracia. Jair Bolsonaro efetivamente disse que só aceitaria o resultado da eleição se fosse o vencedor. Depois voltou atrás, mas voltar atrás não elimina aquilo que disse quando exerceu sua tão propagada “sinceridade”. Seu vice, Hamilton Mourão, efetivamente disse que era possível, depois de eleito, em caso de “anarquia”, dar um “autogolpe”, com o apoio das Forças Armadas.
Bolsonaro já deixou claro, mais de uma vez, que só aceitará o resultado das eleições se vencer, e mesmo assim as instituições não tomam providências à altura da gravidade dessa campanha contra a democracia
A primeira declaração de Bolsonaro, logo após o resultado do primeiro turno, foi justamente questionar a lisura do sistema de apuração dos votos: “Se tivesse confiança no sistema eletrônico, já teríamos o nome do novo presidente”. Mais uma vez ele ataca o avançado sistema de apuração do Brasil, uma das poucas coisas que dão inveja em países muito mais ricos, de não funcionar. E deixa claríssimo que, se não ganhar no segundo turno, é porque as urnas eletrônicas foram fraudadas. É uma ameaça nada velada ao processo democrático, a de que não aceitará o resultado de eleição, a não ser em caso de vitória. E é um ataque persistente com o objetivo de corroer a confiança do eleitor nas urnas eletrônicas, para tê-lo do seu lado caso o resultado do segundo turno não lhe dê a vitória. Isso é gravíssimo. E as instituições não tomam providências à altura.
E há o outro projeto que disputa este segundo turno, que tem vários problemas que precisam ser apontados e radiografados, mas que não está confrontando a democracia. O PT confrontou a democracia, quando foi governo, na sua atuação na Amazônia e na repressão aos manifestantes e às manifestações contra as grandes hidrelétricas e contra a Copa do Mundo. Mas o projeto de Fernando Haddad não é um projeto antidemocrático nem o candidato ameaça se rebelar contra o resultado das urnas ou contra a própria democracia, como faz seu oponente. Haddad precisa esmiuçar muito mais o seu projeto durante o debate do segundo turno, e se comprometer muito mais com os direitos dos povos da floresta, mas não representa um projeto autoritário como seu adversário.
Estes são os fatos.
3) Parte da imprensa e do judiciário atuam partidariamente, mas se declaram imparciais
A cobertura —ou a não cobertura— do movimento #EleNão serviu de alerta para um problema que pode se agravar neste segundo turno. Uma mulher negra, de origem periférica e anarquista iniciou um protesto autônomo pelo Facebook: Mulheres Unidas Contra Bolsonaro. Hoje, a página, que só aceita mulheres, tem quatro milhões de seguidoras. A partir deste espaço, foi gerado um movimento com a hashtag #EleNão. Este movimento levou às ruas do Brasil e do mundo, em 29 de setembro, centenas de milhares de pessoas para protestar contra o que a candidatura de Bolsonaro representa. Só essa história já é extraordinária, além do grande potencial simbólico de que são as mulheres pobres, a maioria negras, que se colocaram no caminho do projeto autoritário de Jair Bolsonaro. #EleNão realizou a maior manifestação organizada por mulheres da história do Brasil.
O que a TV fez? Quase ignorou as manifestações. Qualquer um pode lembrar com riqueza de detalhes como a Globo cobriu ao vivo as grandes manifestações pelo impeachment e contra o PT. Nunca poderemos saber com precisão o quanto a própria cobertura influenciou o número de pessoas nas ruas. Em qualquer manual de jornalismo, centenas de milhares de pessoas nas ruas do Brasil e do mundo, pela primeira vez não a favor de um candidato ou de ideias, mas contra um candidato e suas ideias, é uma tremenda notícia. Mas a manifestação foi quase ignorada. E, quando foi abordada, em alguns casos os movimentos pró e contra foram apresentados como se tivessem tido a mesma proporção.
Os grandes jornais deram fotos na capa, mas preferiram outras manchetes. A maioria também se limitou a dizer que houve manifestações contra e houve manifestações a favor, como se tivesse sido tudo igual. A quem isso ajuda? Não ao país, e certamente não ao bom jornalismo. A cobertura que dá o mesmo peso a dois lados com pesos diferentes lembrou muito a cobertura da mudança climática durante vários anos: meia dúzia de cientistas, parte deles financiada por grandes emissores de CO2, defendendo que o aquecimento global não era causado por ação humana, ganhavam o mesmo espaço nos jornais que o consenso de mais de 95% dos cientistas mais respeitados do mundo, afirmando que a o aquecimento global é causado por ação humana. Essa distorção da realidade era chamada de “isenção”. E cá estamos, o planeta corroendo-se a cada dia mais.
A Polícia Militar, que costuma dimensionar o número de pessoas nos eventos e nas manifestações, desta vez preferiu não fazer a contagem. Simples assim. Um movimento histórico ficou sem números porque a força de segurança do Estado serviu a seus próprios interesses privados ( e à sua própria escolha eleitoral), sem maiores contestações. Como se isso pudesse ser de alguma forma normal ou aceitável.
A Record já deixou claro que abandonou qualquer pretensão de fazer jornalismo depois da entrevista chapa-branca com Bolsonaro
Será preciso observar com toda a atenção como o que se chama de “grande imprensa” ou “mídia tradicional” se comportará neste segundo turno, especialmente as TVs. A Record já deixou claro que abandonou qualquer pretensão de fazer jornalismo ao colocar a entrevista chapa-branca com Jair Bolsonaro no horário do debate da Globo entre os presidenciáveis, em 4 de outubro. Eram só perguntas para Bolsonaro chutar para o gol. Um assessor de imprensa de Bolsonaro não faria melhor.
O candidato disse-que-não-disse-o-que-disse-e-que-está-gravado-que-disse e não houve nenhuma contestação por parte do entrevistador. Sem contar a edição apelativa. Em nenhum outro momento da história, Edir Macedo, comandante da Igreja Universal do Reino de Deus e do grupo Record, fundiu tão completamente o projeto de poder, mídia e religião como nesta entrevista, ocorrida dias depois de ele ter apoiado Bolsonaro publicamente. Ao contrário. A Record, por vários anos, fez um visível esforço para separar as esferas, pelo menos para o público ver, com o objetivo de ganhar credibilidade como um grupo sério de comunicação. Essa farsa acabou. E o fato de Edir acreditar que não é preciso mais fazer de conta é um forte indicativo do que está por vir.
Por outro lado, a Globo continua cada vez mais perto do outro lado do paraíso. Apostou todas as suas fichas no impeachment de Dilma Rousseff. Conseguiu, articulada a várias outras forças. Apostou todas as suas fichas na renúncia de Michel Temer após as denúncias de corrupção que divulgou com exclusividade. Não conseguiu, porque as outras forças seguiam achando que era melhor continuar com ele, já que a corrupção, se importou para o povo, nunca importou para os articuladores do impeachment. A aposta num candidato de centro, que poderia reacomodar as forças que sempre estiveram no poder, falhou.
A Globo vive o inferno de ser odiada pelos dois candidatos que disputam o segundo turno
A Globo encontra-se no momento entre duas oposições que têm em comum apenas o ódio à Globo: Bolsonaro e o PT. Em resumo: o próximo presidente, que determinará o destino das grandiosas verbas publicitárias do governo, odiará a Globo. Mas este é apenas o retrato do momento. As forças sempre tendem a se reacomodar para manter seu poder ou o que é possível manter dele. No governo Lula, o então presidente esqueceu até a edição fraudulenta do debate de 1989, decisiva para a sua derrota, e empreendeu uma espécie de namoro sério com o maior grupo de comunicação do Brasil.
Para que lado será acomodado —e a que preço— é o que será preciso acompanhar. Contra a acomodação da Globo com Bolsonaro há um adversário poderoso: esta é a grande chance da Record e do projeto de poder de Edir Macedo. A divulgação da entrevista com Bolsonaro na Record, na mesma hora do debate na Globo, a que o candidato em primeiro lugar nas pesquisas disse que não poderia comparecer por razões de saúde, deverá ser só o primeiro confronto. Quem assistiu ao debate esvaziado da Globo, com aqueles candidatos engravatados, exceção para Marina Silva e para Guilherme Boulos, e aquele formato sonolento de sempre, com aquela descontração de maquete, comprovou mais uma vez que esta foi a campanha do WhatsApp. O ritmo agora é outro —e a linguagem também.
Sergio Moro é o que mais envergonha o judiciário, mas está longe de ser o único
Como se comportará a parcela da imprensa que apostou numa saída de centro (e não levou) deverá ser observado de muito perto neste segundo turno. Este também será o grande desafio para o jornalismo ou se fortalecer, mostrando o quanto é insubstituível numa democracia, ou então descer pelo ralo da irrelevância como nunca antes. Se a pauta jornalística servir para rearranjar os projetos de poder das empresas de mídia, acabou. Ainda falta uma autocrítica profunda de parte da imprensa sobre o seu papel no impeachment e já vem outro desafio muito mais intrincado. Vamos torcer para que a maior parte da imprensa se mostre à altura, porque o Brasil precisa muito de jornalismo sério.
Outro protagonista que precisa ser observado com muita atenção é o judiciário que não faz justiça, mas faz muita política partidária. A liberação de Sergio Moro de parte da delação de Antonio Palocci, uma delação feita em abril, sem novidade e escassas provas, a seis dias da eleição, é uma afronta ao Brasil. E já não é a primeira afronta ao Brasil feita por Moro. Esse personagem acredita que é herói, mas corre o risco de entrar para a história como um vilão. As palavras usadas por Tasso Jereissati para definir o que aconteceu com o PSDB servem para Moro: “engolido pela tentação do poder”. O juiz se comporta como se a lei fosse a sua vontade, transformando-se não num xerife, como gostam de chamá-lo, mas num coronel pago por dinheiro público.
Moro é o que mais envergonha o judiciário, seguido de pertíssimo por Gilmar Mendes, e agora também por Luiz Fux e Dias Toffoli. Mas está longe de ser o único. Toda essa crise é também a história de uma longa série de abusos de juízes, de todas as instâncias, incluindo os do Supremo Tribunal Federal, que esqueceram que são servidores públicos, o que significa servir à população cumprindo à Constituição, não aos seus projetos privados de poder e aos seus egos mais inflados que boneco de manifestação. É preciso ficar muito atento a como o judiciário vai se comportar no segundo turno mais complicado da jovem democracia brasileira.
Há ainda o que se chama de “Mercado”. Quem é este “Mercado”, algo que é pronunciado como se não se tratasse de gente. Basta ver as manchetes dos jornais da Europa e dos Estados Unidos, para constatar que uma vitória de Bolsonaro é vista como a vitória de um ditador. Como isso ajudaria o Brasil nas relações econômicas e políticas internacionais? A própria The Economist, a bíblia dos liberais, definiu Bolsonaro “como a maior ameaça da América Latina”. Mas os porta-vozes do “Mercado” no Brasil estão eufóricos com a possibilidade de um homofóbico, racista, misógino defensor da ditadura assumir o poder. Bolsonaro cresce nas pesquisas, a Bolsa sobe e o dólar cai. Como disse um destes iluminados, Felipe Miranda, da Empiricus, em entrevista ao El País Brasil, ao avaliar uma “situação hipotética”: caso o Congresso fosse fechado e uma reforma da previdência aprovada na marra, a bolsa subiria.
É autoexplicativo.
4) Como tornar a eleição do contra uma eleição a favor
A corrosão do cotidiano no Brasil é uma imagem explícita nas ruas de cada dia. Nos últimos anos, as calçadas voltaram ser habitadas por vivos que parecem cadáveres. E nós, que não perdemos nossas casas, passamos por esses seres humanos como mortos que parecem vivos. Porque fingir que não vemos a dor dos outros também mata. Esse Brasil precisa mudar. E não será com as pessoas apontando armas umas para as outras que isso vai acontecer.
Nem será com o medo. Quando sinto que a opressão me estrangula, e o medo tenta se infiltrar nos meus ossos, recorro à literatura. A arte conversa com o mais profundo da gente, por isso foi tão atacada pelas milícias da internet. A arte conversa com a liberdade que resiste dentro de nós.
Recorro especialmente a uma autora que viveu a repressão de uma forma muito intensa, uma alemã que viveu a ditadura comunista de Nicolae Ceausescu, na Romênia. Em um livro de ensaios, Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio(Companhia das Letras), Herta Müller, ganhadora do Nobel de Literatura de 2009, escreve sobre a resistência, a resistência nas pequenas coisas, naquilo que chama de “naturalidade”. E que a minha amiga chama de “cotidianices”.
“Todos aqueles que não se viravam contra essa política eram parte dela”
Compartilho um trecho com vocês, em que ela fala da infiltração do nazismo nos corações e mentes dos “cidadãos de bem”:
“A naturalidade, aprendi a partir dos poemas de Theodor Kramer, é a coisa menos extenuante que temos. Ela está no momento e não tem um nome, para existir ela precisa se manter despercebida, porque nós também precisamos nos deixar despercebidos dela. Os poemas mostram de uma maneira agudamente clara como a naturalidade pode se extraviar quando é cassada pela arbitrariedade política.
Os poemas de Kramer mostram que o escândalo não começa pelo extermínio dos judeus nos campos de concentração, mas anos antes, com o roubo da naturalidade nas casas, cafés, lojas, bondes ou parques pela maioria dos correligionários. Que, no nazismo, a política era feita não somente pelos convictos, mas também pelos ignorantes subservientes. (...) Todos aqueles que não se viravam contra essa política eram parte dela”.
Todos aqueles que não se viraram contra essa política eram parte dela.
Herta conta que os judeus viviam neste tempo o roubo diário da naturalidade. Me parece que, neste primeiro turno, com a ameaça concreta do domínio da opressão, ainda que o projeto autoritário alcance o poder pelo voto, parte dos brasileiros, os mais frágeis muito antes, viveram o roubo diário da naturalidade de uma outra maneira. A ameaça de perder a possibilidade já foi vivida como perda da possibilidade. E então a possibilidade dos pequenos atos deixou de existir. E, vale repetir: esta é a primeira vitória do opressor.
Mais uma vez, a tessitura do presente foi suspensa por um projeto autoritário. A democracia, no Brasil, vive aos soluços, interrompida pela exceção. Tem sido essa a nossa história. Quando começamos a discutir um projeto original de país, quando os indígenas e os negros e as mulheres começam a ocupar novos espaços de poder, o processo é interrompido. Quando começamos a ter paz, a guerra recomeça. Porque, de fato, a guerra contra os mais frágeis nunca parou. Arrefeceu, algumas vezes, mas nunca parou. Desta vez, a perversão é que, até agora, o projeto autoritário vem se estabelecendo com a roupagem da democracia.
Mesmo votando contra, é preciso jamais perder de vista do que somos favor
Bolsonaro define esse momento: aparentemente ele disputa dentro da democracia, mas realizando crimes previstos na legislação desta democracia, como racismo, sem ser punido; aparentemente ele disputa dentro da democracia, mas se perder no segundo turno é porque o sistema de apuração foi fraudado, se perder não aceitará a derrota; disputa dentro da democracia, mas só aceita um resultado, o da sua vitória. Essa deslógica é a lógica dos perversos. E enlouquece. Viemos sendo adoecidos – e enlouquecidos – desde que Eduardo Cunha (MDB) afirmava os maiores absurdos e nada acontecia, porque ele só podia ser afastado e preso depois de fazer o serviço sujo do impeachment.
Mais uma vez o tecimento do presente foi suspenso. Mas não podemos permitir que nossos dias sejam devorados, porque, no banquete dos perversos, nossas almas é que são comidas. Há que se resistir ao devoramento das almas.
Essa eleição foi sequestrada pelo “contra”. Ser contra é —e foi— muito importante. E será. Em momentos de tanta gravidade, como já viveram outros países ao longo da história, tudo o que se pode fazer é ser contra. Contra o autoritarismo. Contra a opressão. Contra a ameaça da ditadura. Contra o extermínio das minorias. Contra o sequestro da liberdade. Mas, mesmo fazendo campanha e votando contra, é preciso jamais perder de vista do que somos a favor. Ou as almas se envenenam. E a gente adoece por dentro, o estrago interno que Freud chama de melancolia.
Temos que ser contra e ao mesmo tempo ir tecendo um projeto de futuro, tanto no plano pessoal como no coletivo. Um projeto de futuro onde possamos viver. O presente no Brasil não será possível sem voltar a imaginar um futuro. É preciso compreender que criar um futuro serve muito mais ao presente do que ao próprio futuro. Não dá para viver vendo pela frente apenas horror ou vazio. Tem que sonhar fazendo. Sonhar com um país, sonhar com uma vida. É pelo desejo que nos humanizamos. Resistir nas próximas três semanas é principalmente desejar uma vida viva – vivendo uma vida viva. Se conseguirmos, voltaremos a ganhar mesmo antes de ganhar.
Aprendi com os povos da floresta amazônica, que tiveram suas vidas destruídas junto com a floresta mais de uma vez, e que resistem e resistem e resistem, que o principal instrumento de resistência é a alegria. Oswald de Andrade dizia que a alegria é a prova dos nove. Mas eles já sabiam disso muito antes. Metem o dedo na cara do opressor, que continua lá, e riem por gostar de rir. Riem só por desaforo.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Eliane Brum: #EleNão. #NósSim
É com corpos que se recusam a ser determinados pelo ato de ser violentada ou pelo ato de violar que podemos criar um outro jeito de ser e de estar nesse mundo
Demorei a entender que a violência de ter um corpo sempre em risco não era um dado a mais na trajetória de uma vida. Não era um trauma ou uma história triste. Ou vários traumas ou várias histórias tristes. A violência é tão constituinte do que é ser uma mulher como nossos ossos, órgãos, sangue. A violência é estrutural no nosso ser e estar no mundo.
Compreendemos o que somos pela ameaça aos nossos corpos.
Ser mulher é ser um corpo que não se sente seguro em lugar algum.
Se cada uma de nós pensar com coragem, descobrimos que a maioria de nossas decisões passa por onde colocar nosso corpo. Como colocar nosso corpo. Como nosso corpo é visto.
E, principalmente, como proteger nosso corpo. Dos olhos, das mãos, das facas, dos pintos que não autorizamos a entrar.
Ser mulher é ser uma Palestina.
Se o olhar do outro é o que nos funda, nos descobrimos mulher antes de nos descobrirmos mulher, antes mesmo da podermos pronunciar a palavra mulher, pelo olhar que nos invade. Não o que nos ama, mas o que nos julga. Não o que nos reconhece, mas o que nos converte em objeto. Não o que pede permissão, mas o que viola. Se o olhar do outro nos diz quem somos, mesmo antes de compreender a palavra medo nós já tememos.
Ser mulher é ser uma ilha do Xingu arrebentada por Belo Monte.
É com esse corpo que pode ser violado que andamos pelas ruas nos defendendo dos olhares e das mãos. Que entramos no ônibus e no metrô nos defendendo dos olhares e das mãos, às vezes dos pintos. Que tememos os professores homens, os médicos homens, os chefes homens. Que tememos às vezes os tios e os primos. Que tememos os padrastos e às vezes o pai. Que tememos o homem que vende balas. Que tememos o homem que senta ao lado no cinema. Que tememos os colegas de escola e mais tarde os de faculdade. Que tememos os colegas do trabalho. Que tememos. E tememos.
Ser mulher é ser o povoado de Mariana que virou lama.
Nós que fechamos as pernas quando sentamos porque nossa vagina deve ser escondida, mesmo que ela seja um mistério muito mais para dentro do que para fora. Um maravilhoso mistério que somos ensinadas a silenciar, justamente nós que temos grandes e pequenos lábios e uma língua que fica ereta no meio do nosso sexo somos as caladas. E caladas ficamos quando nossas vaginas e nossos cus e nossas bocas são violadas.
Ser mulher é ser palavra que não pode ser pronunciada, é ser uma pintura censurada no Facebook.
Porque nos ensinarem que é nossa responsabilidade saber onde e como botar o nosso corpo, saber com que roupa vestir o nosso corpo, porque nos ensinaram que é nossa responsabilidade escapar dos pintos e das mãos e das facas. E porque é nossa responsabilidade escapar da violência do macho que não pode resistir à sua natureza de invadir, perfurar e atravessar, somos culpadas. Por ter escolhido o lugar errado, a hora errada, a roupa errada, o cara errado. Somos culpadas de sangrar e de doer e de querer morrer para não ser mais invadida, atravessada, perfurada.
Ser mulher é ser estuprada por 30 homens no Rio de Janeiro. Ser mulher é também ser estuprada 30 vezes ao longo de uma vida pelo marido ou pelo namorado ou por um homem numa festa.
Se converter de menina em mulher é uma história que pode ser narrada pelas mãos sobre nossas bucetas, pelos pintos que nos mostram nas ruas (ou em casa), pelas piadas nojentas na escola e no trabalho, pelas frases jogadas contra nossos corpos que tentam passar, pelas palavras vadia, puta, vagabunda. Vadia, puta, vagabunda. Vadia, puta, vagabunda. Mil vezes. Vadia, puta, vagabunda. Se converter de menina em mulher é um conto contado pelo medo, medo, medo. É saber que o peito que cresce será violado mesmo antes que ele termine de crescer e que a vagina que amadurece será tocada sem permissão. E olhada. Olhada sem amor.
Ser mulher é ter a cabeça arrebentada a balas por ousar desafiar o poder. É ser Marielle Franco, Dorothy Stang, Luana.
Quando não é o nosso corpo de carne que abusam, eles cortam e mutilam a nossa expressão com palavras que são navalhas afiadas. Eles cortam e mutilam as nossas palavras escritas com suas canetas e seus dedos. Eles cortam e mutilam nossas performances com seus gritos de “gostosa”. Eles chamam nossa literatura e nossa arte de feminina porque só podemos existir em caixas rotuladas. Eles interrompem nossas falas, eles completam nossas frases porque não somos capazes de chegar ao fim sozinhas. E quando reagimos eles nos chamam de vadias e de loucas. De putas e de histéricas. De mal comidas porque acreditam que seu pinto é o que nos falta.
Ser mulher é ser mutilada também sem sangue e sem marca. Ser mulher é ser palavra ausente, letra deletada com um clique no teclado.
Dizem que nem os criminosos perdoam o estupro, e por isso estupram os estupradores, como se alguma justiça houvesse em botar o pinto no cu de quem não quer ser comido, perpetrando mais uma violência e gozando com ela. Mas muitos desses homens que supostamente não perdoam o estupro violam suas esposas na cama, batem nas suas filhas, controlam as vaginas que consideram suas com mil olhos. E quando são presos delegam essa tarefa para quem está fora enquanto suas mães passaram décadas tendo a vagina e o ânus revirados na porta das prisões.
Ser mulher é ficar azul com choques elétricos nos seios e na vagina por ordem de Carlos Alberto Brilhante Ustra e depois testemunhar o coronel chamar os seus filhos de 4 e 5 anos para ver você nua, urinada e vomitada. Ser mulher é ser Amelinha Teles.
Nesse Brasil de sangue gerações de homens acreditaram virar homens violentando as empregadas domésticas como seus pais e avôs também o faziam. E viram. E fazem. Mulheres aterrorizadas, a maioria delas negras, sem nenhuma chance de denunciar ou mesmo de gritar. Mulheres submetidas à lógica de que sua carne é para uso (e abuso). Essa modalidade da Casa Grande e Senzala que nunca foi considerada estupro, porque a empregada doméstica era uma escrava que jamais poderia ter alforria.
Ser mulher é ter seu estupro definido como “traço cultural”. É gritar com o lençol dentro da boca no cubículo que chamam de quarto de empregada.
Por que #EleNão?
Porque queremos que a violência deixe de determinar a experiência do que é ser uma mulher. Porque queremos que a violência abandone nossos ossos.
Porque não queremos um presidente que diga: “Não vou estuprar você porque você é muito feia”. Porque não queremos um presidente que diga que seus filhos não namoram mulheres negras porque foram “muito bem educados”. Porque não queremos um presidente que defenda que as mulheres devem ganhar menos porque engravidam. Porque não queremos um presidente que prefere que o filho morra num acidente de trânsito do que seja homossexual. Porque não queremos um presidente que diga que os negros dos quilombos não servem nem para “procriador”. Porque não queremos um presidente que defenda a tortura. Porque não queremos um presidente que tenha Carlos Alberto Brilhante Ustra como herói. Porque não queremos um presidente que defenda que a solução para a violência que ele e os seus ajudaram a produzir é armar a população. Porque não queremos um presidente que defenda o ódio.
Por que #EleNão?
Porque não queremos que nossas netas vivam num país governado por um homem que faz sinal de atirar com as mãos. Nem queremos que vivam sob o governo de um homem que diz que elas nasceram de uma “fraquejada”.
Porque não queremos que as mulheres que nascem agora tenham que viver com medo como nós e nossas filhas vivemos. Dos homens que usam pintos como armas e armas como pintos.
Porque não queremos que as mulheres sigam sendo vítimas. E votar nele é apertar a tecla de vítima mais uma vez.
Porque ser mulher é também ser um corpo insurrecto. É ser um corpo que luta contra a opressão há milênios. Mesmo com o risco de ser destruído pelo fogo dos inquisidores.
Porque ser mulher é ter como passado grandes mulheres que lutaram pela liberdade e nos trouxeram até aqui fazendo do nosso corpo rebelião.
Porque ser mulher hoje é ter feito a Marcha das Vadias, é ter gritado Nosso Corpo, Nossas Regras nas ruas, é seguir afirmando #MariellePresente. É ter feito #PrimeiroAssedio. É ser #MeToo. Se mulher é dizer que Luto é Verbo.
Lutaremos.
Porque essa longa noite precisa terminar. E somos nós que precisamos barrar a violência colocando nossos corpos nas ruas. Nós, unidas com os homens que também inventam um corpo que não se constitui pelo ato de violentar. Corpos desejantes que se unem na luta também para recuperar a possibilidade de estar juntos sem violência.
O Brasil tem que parar de construir ruínas, o Brasil não pode mais ser um corpo em ruínas.
É com corpos que se recusam a ser determinados pelo ato de ser violentada ou pelo ato de violar que podemos criar um outro jeito de ser e de estar nesse mundo.
Por que #EleNão?
Porque #NósSim.