Eliane Brum

Eliane Brum: Os manifestos estão brancos demais

A classe média progressista precisa compreender que, sem enfrentar o racismo estrutural do Brasil, não há “pacto civilizatório” possível nem há democracia

Há um apagão nos dois principais manifestos que moveram o Brasil nas últimas semanas. Uma ausência que revela: 1) a qualidade da democracia que conseguimos ter após o fim da ditadura militar; 2) a dificuldade das elites (majoritariamente brancas) reconhecerem o racismo estrutural como o principal problema do país; 3) a impossibilidade de enfrentar o autoritarismo representado pelo Governo de Jair Bolsonaro sem colocar no topo da lista o enfrentamento ao racismo. Sem exterminar o racismo não há democracia. Nem há projeto civilizatório possível. Essa não é uma questão para decidir depois. Este é justamente o agora.

Para esclarecer já no início. Não me alinho a Lula (PT), que fez o desserviço de não apoiar os manifestos suprapartidários porque estaria ao lado de pessoas que ou apoiaram o impeachment de Dilma Rousseff (PT) ou não lamentaram a sua prisão. Assinei o “Estamos Juntos” com pessoas que admiro muito, com quem compartilho sonhos e visões políticas, e outras que considero terem feito muito mal ao país, algumas delas me atacaram pessoalmente não muito tempo atrás. Numa frente ampla, a gente engole os sapos, segura as tripas e fecha com a única parte que todos concordam, a de lutar pela democracia. Como tantos disseram e escreveram, depois, com o processo democrático já garantido, discute-se as diferenças democraticamente. E elas são enormes, posso assegurar.

O problema é que, ao observar os textos do “Estamos Juntos” e do “Basta!”, percebe-se que há algo que não está lá e que não dá para discutir mais tarde. E este algo é o racismo. Textos de manifestos são textos de consenso, e é exercício da melhor política buscar esse consenso. Chegar à formulação divulgada certamente exigiu muito esforço e trabalho dos articuladores. Que a palavra racismo não esteja bem no alto é sinal justamente da deformação da democracia que conseguimos construir após 1985. Se isso não ficar bem compreendido neste momento, seguiremos às voltas com os déspotas da ocasião.

O que deve nos assombrar, e imediatamente nos fazer despertar, é o fato de que o enfrentamento do racismo, a esta altura, ainda não seja um consenso entre aqueles que defendem a democracia. Ainda não esteja dentro do amplo guarda-chuva de uma frente ampla suprapartidária como uma obviedade do mesmo nível de dizer que defendemos a liberdade, por exemplo. Não estou aqui jogando pedras em quem está se movendo, muito pelo contrário. Minha crítica reivindica uma mudança de rota nos movimentos de resistência ao autoritarismo liderados pela classe média progressista, autoritarismo representado por Bolsonaro, pelos generais e pela miliciarização das polícias.

O racismo é o debate inadiável não só no Brasil, mas no mundo, como os protestos nos Estados Unidos têm mostrado. O Brasil, porém, tem uma tarefa maior do que a maioria dos países porque não só foi o último país das Américas a abolir a escravidão como a fez sem nenhuma política pública de inclusão dos negros na sociedade. O racismo estrutural se manteve e, hoje, mais de 130 anos depois, os negros ocupam um lugar subalterno na sociedade em todas as áreas e morrem mais e mais cedo. Que o grito contra o racismo tenha se unido ao grito pela democracia nos protestos de rua, que não tiveram o apoio nem da maioria da classe média nem da maioria dos partidos nem dos articuladores dos principais manifestos, é bastante ilustrativo.

O argumento de evitar aglomerações devido à pandemia é totalmente respeitável ― e deve ser respeitado. Deixar de ir às ruas por temer se contaminar com covid-19 e, contaminando-se, contaminar os mais frágeis, é gesto de responsabilidade e faz todo o sentido. Afinal, até semanas atrás, ocupar as ruas e aglomerar-se numa pandemia era ato exclusivo de Bolsonaro e dos extremistas de direita, os que usam símbolos neonazistas, os amantes de armas, os antidemocratas e os defensores do autoritarismo. Ficar em casa significava, no contexto, não só cumprir as normas sanitárias determinadas pela Organização Mundial da Saúde mas também um gesto político de resistência.

A questão é que a realidade é sempre muito mais desafiadora e complexa. Ficar em casa tornou-se também uma questão política, atravessada pela desigualdade racial. Como são majoritariamente os brancos, de classe média para cima, que tem o privilégio de poder ficar em casa para se proteger do novo coronavírus, e muitos deles obrigam seus empregados a trabalhar em suas casas, não há como desconectar os protestos de rua contra o fascismo representado por Bolsonaro da desigualdade racial que impede uma parte da população, a mais pobre, majoritariamente negra, de permanecer em casa.

Essa foi a fala dos jovens negros, das jovens negras que foram às ruas, e também dos brancos e brancas que participaram da manifestação. “Tenho mais medo do racismo do que da pandemia. Obviamente o coronavírus mata, mas o racismo é muito cruel”, explicou Julia, uma jovem negra da zona sul de São Paulo que aderiu ao protesto do domingo (7/6), ao EL PAÍS. “O que adianta ficar em casa se a maior parte da população negra não esta podendo ficar em quarentena?”, justificou Tânia Aquino. Uma das lideranças declarou no carro de som: “A democracia nunca existiu. O racismo faz parte do DNA do branco, vocês são criminosos [...] Agora é hora de a pretitude tomar conta”.

Reproduzo aqui parte do melhor texto que li sobre esse impasse, de autoria do cientista social negro Deivison Mendes Faustino: “Nós, aqueles a quem não foi permitido ficar em casa, seguros/as, esperando a crise passar; Nós, que seguimos em risco: amontoados nos transportes coletivos, entregando o seu delivery ou garantindo as suas futilidades básicas; aqueles que presenciaram os filhos serem mortos pela polícia, em casa ou na casa da patroa, enquanto levávamos o seu pet para passear; Nós, a quem fizeram escolher entre a morte, sem ar, pela covid-19, ou a vida sem fôlego, por medo da fome, da violência e do desamparo; Nós, os que morrem 40% mais por corona, os 70% mais assassinados pela polícia, mas cuja representação política e poder efetivo junto aos ‘70%’ que se pretendem oposição à tragédia atual, é ínfima; Nós, enfermeiras, faxineiras, seguranças, carteiros, diaristas, ubers, entregadores, estudantes, mães e pais de filhos pretos, veados, sapatões, não binários, ou os/as militantes verdadeiros que seguem nas ruas coletando e entregando mantimentos, ajudando o velório de famílias vitimadas pela conjuntura genocida; Nós, aqueles que não podem mais respirar, há 500 anos, mas que sentimos aumentar sob o nosso pescoço o joelho militarizado do poder, cada vez mais, assumidamente genocida; Nós, que assistimos há décadas, a indignação performática, da maior parte da esquerda e de uma parcela da direita, acompanhada da negligência em relação ao racismo de lá ou de cá; Nós, diante da chance real de velar a nossa própria quase-morte, em um protesto vivo, nas ruas, neste domingo… estamos com receio: de um lado, o risco do protesto físico facilitar a exposição à covid-19… do outro lado, a ameaça real de criminalização da luta por justiça… (...) Ainda assim, uma parte de Nós, marchará neste domingo, junto com outros movimentos sociais, não por estarmos dormindo no barulho, mas por entendermos ser essa a Nossa tarefa histórica. Marcharemos por estamos cansados de ficar na arquibancada de um jogo político que nos afeta diretamente. Marcharemos porque não podemos mais respirar!”. (leia o texto inteiro aqui)

Respirar tornou-se um ato político, sua negação um gesto da desigualdade racial. Aos negros lhes falta o ar ― pelos joelhos brancos no seu pescoço, pela covid-19 que os mata mais, pela precarização da vida, pela violência da morte, pelo lugar subalterno reservado à maioria racial do país pela minoria branca. A tensão dentro do campo democrático, entre aqueles que defendiam ir para a rua e aqueles que eram contra ir para a rua, foi ― e é ― atravessada pelo racismo. Porque não se escapa do racismo no Brasil (leia “No Brasil, o melhor branco só consegue ser um bom sinhozinho).

Dizem que o vírus escancarou a brutal desigualdade social do Brasil. Essa afirmação, porém, não faz sentido. A desigualdades sempre foi escancarada. O que aconteceu com o coronavírus é que os negros e os indígenas não têm permitido que ela siga normalizada neste momento. E têm apontado, muito enfaticamente, que a desigualdade no Brasil é racial.

Ao definir o social como preponderante, neste caso há um encobrimento da ferida, na medida que a maioria dos pobres é preta. Ou seja, a pobreza tem cor. Do mesmo modo, vários projetos de expropriação das terras indígenas apontam para a conversão de indígenas em pobres urbanos, o que os lançaria na falsa homogeneidade sem cor e sem história do vasto guarda-chuva dos “pobres”. Pobres, é necessário deixar explícito, é um conceito genérico usado politicamente à esquerda e à direita para promover apagões de memórias e de identidades.

O apagão dos dois principais manifestos contra o autoritarismo é resultado do racismo estrutural que foi mantido pela democracia. O Brasil não julgou os crimes da ditadura, provocando o que, na coluna anterior, eu chamei de “fetiche da farda”: fenômeno que faz o país tremer com a opinião de cada general de pantufa que arrota do seu sofá e faz com que os generais no governo sintam-se à vontade para fazer declarações antidemocráticas e ameaças às instituições. Como seus antecessores lideraram um regime que autorizava o sequestro, a tortura e a execução de opositores políticos e nunca foram responsabilizados pelos seus atos criminosos, tanto Jair Bolsonaro, o militar que planejou colocar bombas nos quartéis nos anos 1980, quanto seu círculo verde-oliva têm a certeza da impunidade. E esta é a impunidade que fez ― e faz ― mais mal à democracia brasileira.

A questão, porém, é que, durante a democracia, uma parte da classe média enfrentou a impunidade dos militares e dos agentes de Estado. Com muita dificuldade, ainda foi possível fazer uma Comissão Nacional da Verdade para apurar os crimes cometidos pelos agentes do regime de exceção. Entidades importantes, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), tentaram e tentam reformar a Lei da Anistia, de 1979. Uma parte das elites lembra, com alguma frequência, que crimes contra a humanidade, casos das violações praticadas por agentes do Estado a serviço da ditadura, são imprescritíveis e não estão sujeitos a anistias.

Mas há um porém. O processo democrático e seus principais agentes, a maioria deles de classe média branca, enfrentaram muito menos os crimes e a desigualdade resultantes do racismo. O racismo seguiu normalizado na construção da Nova República. A sociedade continuou compactuando com as torturas dos que são erroneamente chamados de “presos comuns” nas delegacias de polícia e nas prisões, a maioria deles pretos; com a invasão ilegal das casas do mais pobres pela polícia, a maioria deles pretos; com as condições incompatíveis com qualquer conceito de dignidade das prisões abarrotadas, majoritariamente por pretos; com as leis que lançam pequenos traficantes de drogas nestas prisões, a maioria deles pretos, e absolve os consumidores, a maioria deles brancos; e, finalmente, com o genocídio da juventude negra nas periferias e favelas.

O processo democrático e seus principais agentes não enfrentaram o racismo estrutural com a urgência que essa abominação exige. No pouco que foi feito, como na questão das cotas raciais nas universidades, houve gritaria da classe média branca, que se sentiu insultada ao perder um privilégio que confundia com direito. Para combater uma das primeiras e atrasadas políticas públicas para a inclusão dos negros na sociedade, fortaleceu a vergonhosa tese da meritocracia, como se todos, brancos e negros, partissem de bases semelhantes para disputar espaços em igualdade de condições.

Tudo isso tem consequências, obviamente. E tem consequências para a democracia, que assim jamais se completa, fragilizando-se aos autoritários de tocaia. Uma parte significativa da população têm pouca relação com a democracia porque não consegue perceber que faça grande diferença na sua vida. Não é porque são ignorantes e porque desconhecem a história. Ao contrário, eles vivem a história no cotidiano. A Polícia Militar segue lá, derrubando portas e explodindo as cabeças das suas crianças ou abatendo-as pelas costas. Seus queridos estão em prisões descritas por um ex-ministro da Justiça como “medievais”, muitas vezes sem julgamento ou porque foram pegos com 100 gramas de maconha. E, na pandemia de covid-19, eles nem têm casas que permitem o isolamento nem têm condições de parar de trabalhar nas ruas, caso dos informais, nem seus patrões brancos permitem que façam confinamento, caso da minoria empregada.

Bolsonaro, assumidamente racista em suas declarações, disse para essa população algo que nenhum branco com responsabilidade pública tinha tido a coragem de dizer antes dele: “e daí?”. A vida cotidiana no Brasil lança um grande “e daí?” sobre os negros, cuja existência é marcada por menos tudo o que é da vida e por mais mortes por doença, bala e descaso há pelo menos quatro séculos. Se são os pretos que proporcionalmente morrem mais ao contrair a covid-19 e se são os pretos os mais expostos ao novo coronavírus, porém, o “e daí?” de Bolsonaro formalizou o racismo como política de Estado e lançou a pandemia, já totalmente atravessada pela desigualdade racial, diretamente no coração da disputa política que se dá em torno da democracia.

O movimento de rua iniciado pelas torcidas de futebol, algumas delas, como a Gaviões da Fiel (Corinthians), criadas no combate à ditadura, apontam que a denúncia do racismo é que leva à luta pela democracia com apoio popular, neste momento. E não o contrário. Se a classe média progressista não compreender isso, rapidamente, estará fora da centralidade do momento. E, mais uma vez, defenderá uma democracia que nega a si mesma, ao ignorar os negros, quase 56% da população brasileira, condenados aos porões da sociedade, em todas as áreas, depois de mais de três décadas de democracia formal.

Não por acaso, entre os manifestos lançados que encontraram ressonância, o mais contundente na posição antirracista é o do “Esporte pela democracia”, ao repudiar com veemência o racismo em pelo menos três partes do texto. “A banalização da vida negra soma historicamente milhares e milhares de mortos por violência, discriminação, práticas racistas diárias bem diante dos nossos olhos”, afirma. “Pelo nosso repúdio integral ao racismo, à violência, e nosso desejo de voltar a crer num futuro possível e igualitário, hoje nos colocamos diante de questões políticas importantes. Como representar um país em que práticas autoritárias se tornam cotidianas? Em que a diversidade cultural, uma de nossas maiores riquezas, é frontalmente atacada? Como nos comportar diante do que temos vivido nos últimos tempos, da triste imagem nacional passada para o mundo? Queremos voltar a nos sentir orgulhosos de nosso país, representando em Copas do Mundo, Olimpíadas e outras competições internacionais o legado de nossa cultura, nossa história, nosso povo”.

O crescente autoritarismo do Brasil atual ― no qual Bolsonaro pode ser o ápice mas não é de forma nenhuma a origem ― dificultou mas não conseguiu interromper o movimento de pressão dos negros por protagonismo e espaços de poder. O Brasil estava no início de um debate que previa não apenas enfrentar os crimes da ditadura, mas também enfrentar as violações normalizadas no processo democrático. Ações como a criação da Comissão da Verdade sobre os Crimes da Democracia Mães de Maio, lançada em 2015 por vários movimentos de São Paulo, marcavam essa nova fase da democracia que o conservadorismo tradicional tentou interromper. Tentou interromper e, no processo, foi parte absorvido, parte atropelado pelo bolsonarismo. Marielle Franco encarnava essa irrupção das minorias que são maiorias – e foi silenciada a tiros.

A repressão a essas forças emergentes tem sido brutal, mas até esse momento não foi capaz de interrompê-las. É isso que os movimentos de rua estão mostrando, desde as campanhas de solidariedade e combate à pandemia, na base do “nós por nós”, promovidas pelos movimentos nas comunidades periféricas, até os recentes protestos de rua iniciados pelas torcidas de futebol, com o apoio no último domingo (7/6) de setores populares importantes como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e coletivos da população negra. Talvez o que a classe média progressista branca precise entender neste momento é que precisará seguir ― e não ser seguida.

O racismo estrutural do Brasil é tão explícito que a realidade o desenha com sangue. João Pedro, de 14 anos, estava dentro da casa dos tios, em 18 de maio, quando foi morto pelas costas pela polícia que invadiu a residência em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Seria mais do que suficiente para negros ― e também brancos ― se insurgirem com tanta força quanto a demonstrada pelos afroamericanos após a morte de George Floyd, nos oito minutos e 46 segundos que durou sua asfixia por um joelho branco.

O imperativo de se insurgir contra o racismo é de todos, brancos e pretos, direita e esquerda. O racismo é limite insuperável. Não há como afirmar que o Brasil é uma democracia quando a polícia invade uma casa e mata uma criança. No Brasil, Floyd não seria exceção, João Pedro não é exceção. Essa normalização é o crime além do crime. E deste todos são cúmplices.

E então, Miguel Otávio, de cinco anos, foi assassinado num prédio de luxo no Recife, em 2 de junho. É uma cena de Casa Grande e Senzala no século 21. A mãe preta, Mirtes Renata Souza, é obrigada a trabalhar na casa da patroa branca, em plena pandemia. Leva o filho, porque as escolas estão fechadas por causa da covid-19. A patroa, Sari Corte Real, primeira-dama do município de Tamandaré, manda que ela vá passear com o cachorro. Com o cachorro. Ela então deixa seu menino de cinco anos com a patroa. Mas a criança chora porque está assustada e quer ficar com a mãe, que avista pela janela passeando com o cachorro. Com o cachorro. A patroa está ocupada com a manicure, e o menino a está perturbando. Ela então o despacha sozinho no elevador. No elevador de serviço. Ele não sabe o que fazer nem como chegar até a mãe. Então desce quando a porta abre no nono andar. Escala as grades que protegem os equipamentos de ar condicionado e cai de uma altura de 35 metros. Miguel Otávio alcança a mãe. Morto. A patroa é presa, mas paga 20 mil reais de fiança e volta para casa.

A jornalista Joana Rozowykwiat desenhou em seu Facebook:

“O horror que é a morte do menino Miguel é a história com mais símbolos de que eu tenho lembrança:

A empregada que trabalha durante a pandemia;

A empregada que não tem com quem deixar o filho;

A empregada é negra;

A patroa é loura;

A patroa é casada com um prefeito;

O prefeito tem uma residência em outro município, que não é o que governa;

A patroa tem um cachorro, mas não leva ele pra passear, delega;

A patroa está fazendo as unhas em plena pandemia, expondo outra trabalhadora; A patroa despacha sem remorso o menino no elevador;

O menino se chama Miguel, nome de anjo;

O sobrenome da patroa é Corte Real;

A empregada pegou covid com o patrão;

A empregada consta como funcionária da Prefeitura de Tamandaré;

Tudo isso acontece nas torres gêmeas, ícone do processo e verticalização desenfreada, especulação imobiliária e segregação da cidade do Recife;

Tudo isso acontece em meio aos protestos Vidas Negras Importam;

Tudo isso acontece no dia em que se completaram cinco anos da sanção da lei que regulamentou o trabalho doméstico no Brasil;

É muita coisa, muito símbolo”.

É mesmo muita coisa e muito símbolo.

E aí alguém diz, com genuína preocupação e muita razão, que não dá para ir para as ruas protestar numa pandemia. E esta exatamente seria a razão pela qual a mãe de Miguel Otávio não deveria estar trabalhando naquele dia. Só que este é o país da desrazão, este é o país em que uma mulher negra arrisca a sua vida para passear o cachorro da madame branca, este é o país liderado ― e representado ― pelo “e daí?” de Bolsonaro. Este é o Brasil que lidera o número de mortes pela covid-19 porque o antipresidente decidiu que é natural que uma parte da população morra mesmo. Mas os negros e os indígenas sabem que parte da população é esta, a que sempre pôde morrer na visão da parcela do Brasil que Bolsonaro representa.

Se neste momento há consenso entre os progressistas de que Bolsonaro é “uma ameaça à civilização”, é urgente compreender que, caso se trate mesmo de “civilizar” o Brasil, é imperativo exterminar o racismo. No Brasil, a barbárie tem sido a dos brancos contra os negros e contra os indígenas. Bolsonaro a exalta, mas não a inventou. Achar que dá para ter democracia com racismo é um delírio persistente de uma parcela dos brasileiros.

Por enquanto, é a juventude preta periférica politizada que está mais presente nas ruas lutando contra o fascismo/racismo. O que todos os sinais estão apontando é que, desta vez, o racismo não será silenciado na disputa política em torno da democracia. Pode até acontecer um movimento aos moldes das “Diretas Já”, que marcaram o começo do fim da ditadura militar, liderado pelos progressistas brancos de classe média, em que o racismo seja só uma nota de rodapé na luta pela destituição do maníaco do Planalto e pela restituição da democracia hoje em frangalhos. Neste caso, não será então apenas uma oportunidade histórica perdida. Será muito mais. Será uma vergonha histórica.

O novo Diretas Já (e já com outro nome), nascido nas periferias que reivindicam seu legítimo e real lugar de centros, colocado em curso por movimentos sociais e coletivos, e não mais por partidos políticos, ou será com os negros ― ou não será.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).

Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Eliane Brum: Brasil sofre de fetiche da farda

Sem superar os traumas da ditadura, parte das instituições e da imprensa se comporta como refém diante do Governo militar liderado por Bolsonaro, demonstrando subserviência e alienação dos fatos

O bolsonarismo revelou em todo o seu estupor um fenômeno cujos sintomas podiam ser percebidos durante a democracia, mas que foram apenas timidamente diagnosticados. Vou chamá-lo de “fetiche da farda”. Trata-se de uma construção mental sem lastro na realidade que faz com que algo se torne o seu oposto no funcionamento individual ou coletivo de uma pessoa, um grupo ou mesmo de um povo. O mecanismo psicológico guarda semelhanças com o que é chamado de “Síndrome de Estocolmo”, quando a vítima se alia ao sequestrador como forma de suportar a terrível pressão de estar subjugada a um outro que claramente é um perverso, seguidamente imprevisível, do qual depende a sua vida na condição de refém. O fetiche da farda tem se mostrado em toda a sua gravidade desde o início do Governo de Jair Bolsonaro e, durante o mês de maio, tornou-se assustador: mesmo à esquerda e ao centro, os militares são descritos como aquilo que os fatos provam que não são ― nem foram nas últimas décadas ―, e tratados com uma solenidade que suas ações ― e suas omissões ― não justificam.

O fetiche da farda não é uma curiosidade a mais na crônica política do Brasil, já repleta de bizarrices. O fenômeno molda a própria democracia e está determinando o presente do país. Criou-se uma narrativa fantasiosa de que, no Governo Bolsonaro, os militares são uma “reserva moral”, uma “fonte de equilíbrio” em meio ao “descontrole” de Bolsonaro. O debate se dá em torno de o quanto os generais seriam capazes de conter ou não o maníaco que ajudaram ― e muito ― a botar no Planalto.

Categorizou-se o Governo em “alas”, em que existiria a “ideológica”, composta pelo chanceler Ernesto Araújo e outros pupilos do guru Olavo de Carvalho, e a “ala militar”, entre outras, forjando assim uma fantasmagoria de que os militares no Governo não tivessem ideologia e que a palavra “militar” já estivesse qualificada em si mesma e por si mesma. A cada flatulência do antipresidente, a imprensa espera ansiosamente a manifestação da “ala militar”. Não pelo que efetivamente são e representam os militares, mas porque seriam uma espécie de “oráculo” do presente e do futuro.

Colunistas por quem tenho grande respeito, ao se referir às Forças Armadas, penduram nelas adjetivos como “honrosas” e “respeitáveis”. Quando algum dos generais diz algo ainda mais truculento do que o habitual afirmam que está destoando da tropa, porque as Forças Armadas supostamente se pautariam pela “honra” e pela “verdade”. Ao longo do Governo desenhou-se uma imagem dos militares como algo próximo dos “pais da nação” ou “guardiões da ordem”, e tudo isso confundido com a ideia de que seriam também uma espécie de pais do incorrigível garoto Bolsonaro.

Como é possível? Qual é o mecanismo psicológico que produz essa mistificação em tempos tão agudos? O fenômeno é fascinante, não estivesse nos empurrando para um nível ainda mais fundo do poço sem fundo.

Bolsonaro não é uma anomalia das Forças Armadas, mas sim seu fiel produto

Tenho escrito desde o início do Governo, e mesmo antes, que Bolsonaro não é uma anomalia das Forças Armadas, algo que deu errado e que nega a sua origem. Ao contrário. Desde sua gênese, ele é tanto o produto quanto a expressão daquilo que os militares representam no Brasil das últimas décadas ― ou possivelmente em toda a história republicana do país. Bolsonaro contém toda a deformação do papel e do lugar dos militares numa democracia. (Leia em Mourão, o Moderado).

Bolsonaro é o garoto de classe média baixa que adorava fardas e viu no Exército uma possibilidade de ganhar posição e importância. Como a história mostrou, entendeu tudo certinho. Sua trajetória é muito bem contada no livro O cadete e o capitão: a vida de Jair Bolsonaro no quartel (Todavia), do jornalista Luiz Maklouf Carvalho, morto por câncer em 16 de maio. Na obra, o repórter mostra, a partir de rigorosa pesquisa nos autos, como o julgamento de Bolsonaro por planejar colocar bombas em quartéis ignorou provas inequívocas. O Superior Tribunal Militar absolveu-o num julgamento constrangedor, desde que ele deixasse a corporação. Bolsonaro assim o fez, já eleito vereador do Rio de Janeiro com o voto de seus colegas, que depois o reelegeriam também como deputado federal durante os quase 30 anos que passou no Congresso. (Leia em Por que Bolsonaro tem problemas com furos).

Bolsonaro existe politicamente e está no poder porque a cúpula militar absolveu um membro da corporação que trabalhava na execução de um plano terrorista para chamar a atenção para uma reivindicação salarial. Tivesse sido condenado pelo que de fato era e fez, a história seria outra. Foi a impunidade que os militares seguiram autorizados a cultivar, em função de seus interesses corporativos, mesmo após a redemocratização, que gestou o personagem Bolsonaro.

Ele, que tanto fala em impunidade, é produto da impunidade que supostamente critica. Já está mais do que claro que, para Bolsonaro, seus filhos e seus amigos, a impunidade é a própria razão de ser do poder. Responsabilização é para os outros. Não tenho informação para afirmar que aprendeu essa lição com seus pais, mas há informação suficiente para afirmar que a aprimorou com seus superiores. Se um plano terrorista não é motivo suficiente para condenar alguém, então nada é.

Durante todos os seus anos como parlamentar, Bolsonaro sempre defendeu a ditadura (1964-1985), não só normalizando o sequestro, a tortura e a morte de civis, mas defendendo que os militares deveriam ter matado “pelo menos uns 30 mil”. Votou pelo impeachment de Dilma Rousseff homenageando o único torturador reconhecido pela Justiça como torturador, o coronel facínora Carlos Alberto Brilhante Ustra. E naquele momento lançou simbolicamente a sua candidatura ― e mais uma vez foi beneficiado pela impunidade garantida tanto pelos seus pares como pelo judiciário brasileiro.

A candidatura de Bolsonaro tinha por vice um general, Hamilton Mourão, que em várias ocasiões expressou sua vocação golpista, inclusive durante a campanha. Não é possível afirmar ou não que Bolsonaro foi eleito devido ao apoio de uma parcela estrelada de militares à sua campanha, mas é possível afirmar que esse apoio foi importante e deu legitimidade a Bolsonaro. Em troca, ele militarizou o Governo, que hoje tem nove ministros militares e quase 3 mil militares ocupando o segundo escalão. E crescendo. Bolsonaro tornou possível que os militares voltassem ao poder num país em que ainda há mais de duas centenas de corpos de pessoas desaparecidas pela ação criminosa do Governo dos generais durante o regime de exceção.

Bolsonaro e os generais que o sustentam não são feitos de matéria diferente. Não há uma e outra coisa. É a mesma coisa e o mesmo projeto de poder. Por que razão foi feita essa dissociação mental é tema para historiadores e sociólogos. Talvez mais ainda para a psiquiatria e para a psicanálise. Bolsonaro é criatura do militarismo brasileiro. E não como o monstro de Frankenstein, que na obra de ficção de Mary Shelley foi renegado pelo criador. Não. Bolsonaro é o rebento bem sucedido que foi estimulado e apoiado para virar o presidente do Brasil e então redimir seus pais inconformados, que queriam não só voltar ao poder, mas também eliminar a mancha histórica de assassinos e ditadores.

A perigosa operação mental que dissocia a imagem dos militares de seus atos

Mais grave que a dissociação entre Bolsonaro e os generais de sua entourage, porém, é a dissociação entre o que os militares efetivamente fizeram e fazem no poder ― e a forma como essa ação é descrita e convertida em imagem pública. Não é necessário analisar todo o período republicano, desde 1889. Se olharmos apenas para as últimas décadas, em 1964 os militares deram um golpe na democracia. Tiraram do poder um presidente eleito democraticamente. João Goulart era vice-presidente até 1961. Com a renúncia de Jânio Quadros, assumiu a presidência. E então veio o golpe. Jango, como era chamado, viveu no exílio até a sua controvertida morte.

Os militares tomaram o poder pela força, num golpe clássico, e permaneceram no poder pela força por 21 anos, com o apoio de parte do empresariado nacional. Em dezembro de 1968, com o Ato Institucional número 5, hoje amplamente revivido como ameaça explícita nos discursos dos bolsonaristas, o Governo de exceção endureceu. O AI-5 eliminou o que ainda restava dos instrumentos democráticos e inaugurou a época mais violenta do regime, tornando o sequestro, a tortura e a morte de opositores instrumentos de Estado, executados por agentes do Estado.

Durante esse período tenebroso, há amplas provas e depoimentos mostrando que, além dos milhares de adultos, vários deles mulheres grávidas, pelo menos 44 crianças foram torturadas (leia em Aos que defendem a volta da ditadura). Uma delas, Carlos Alexandre Azevedo, o Cacá, torturado quando tinha 1 ano e oito meses de vida, não suportou as marcas psicológicas e se suicidou em 2013, depois de uma existência muito penosa. Há famílias de brasileiros que ainda não conseguiram encontrar os cadáveres dos mais de 200 desaparecidos pela ditadura. São pais, mães, irmãos e filhos que há décadas procuram um corpo para sepultar. “A Ponta da Praia”, para onde Bolsonaro ameaçou mandar os opositores em discurso durante a campanha de 2018, era um desses lugares de tortura e de desova de civis no Rio de Janeiro.

Durante a ditadura militar, a imprensa foi censurada; filmes, livros e peças de teatro foram proibidos; as universidades sofreram intervenções; milhares de brasileiros foram obrigados a viver no exílio para não serem mortos pelo Estado. Durante a ditadura, houve ampla corrupção nas obras públicas, como há farta bibliografia para comprovar. Foi também durante a ditadura que as grandes empreiteiras, que mais tarde estariam nas manchetes pelo esquema de corrupção conhecido como “mensalão”, cresceram, multiplicam-se e locupletaram-se em obras megalômanas do “Brasil Grande” e em seus esquemas nos Governos militares.

A ditadura torturou e matou milhares de indígenas. As “grandes obras” na Amazônia, que mais tarde seriam conhecidas como “elefantes brancos” do regime, foram construídas por essas empreiteiras sobre cadáveres da floresta e sangue de seres humanos. A ditadura militar inaugurou o desmatamento como projeto de Estado e tornou o extermínio dos indígenas uma política ao ignorar sua existência na propaganda oficial da Amazônia, como no slogan “terra sem homens para homens sem terra”. O Exército promoveu alguns dos mais cruéis massacres da história, como o dos Waimiri Atroari, que quase foram dizimados nos anos 1970.

Como é possível que alguém que viveu ou estudou esse período possa tratar a crescente ocupação militar do Governo Bolsonaro como algo remotamente semelhante a uma “reserva moral” ou a uma “fonte de equilíbrio” ou a um “exemplo de honradez”? Sério? Além do fetiche da farda devemos investigar um possível estresse pós-traumático no fenômeno. Ou talvez uma parcela dos brasileiros tenha tanto medo que o horror se repita que distorça o que enxerga porque a realidade alcançou o nível da insuportabilidade.

Alguns vão afirmar, como têm afirmado, que os militares hoje no poder, diferentemente de seus antecessores e mestres, são amantes da democracia. Qual é o lastro nos fatos para fazer tal afirmação? Há inúmeros exemplos de comportamentos golpistas por vários dos personagens do militarismo, começando pelo general Eduardo Villas Bôas, uma mistura de conselheiro e fiador do atual Governo, e terminando no vilão de quadrinhos chamado Augusto Heleno, que se houver justiça um dia responderá pelo que as tropas brasileiras comandadas por ele fizeram no Haiti. Cité Soleil, a maior favela de Porto Príncipe, é um nome que provoca tremores ao ser pronunciado em alguns círculos. Mourão, por sua vez, antes de se tornar vice-presidente, já era uma metralhadora giratória de declarações golpistas.

Em qual momento do Governo Bolsonaro os militares deram um exemplo de respeito à democracia? Basta examinar um episódio seguido do outro. A relação entre crescimento dos militares e aumento das manifestações golpistas é diretamente proporcional. O número de militares só aumenta e o Governo só piora seu nível de boçalidade, de autoritarismo e também de incompetência. Tudo isso culmina no momento atual, no qual Jair Bolsonaro se tornou o vilão número um da pandemia e os brasileiros passaram a ser recusados até nos Estados Unidos de Donald Trump. E o que temos hoje? A militarização da Saúde. Dois ministros civis, médicos, recusaram-se a ceder à pressão de Bolsonaro para usar cloroquina, medicamento sem eficácia científica comprovada para tratar de covid-19. Deixaram o Governo. Bolsonaro colocou então um militar como ministro da Saúde e conseguiu empurrar a cloroquina, jogando com a saúde de 210 milhões de pessoas. Em vez de quadros técnicos, com experiência na área, na crise sanitária mais séria em um século, o Brasil transforma o Ministério da Saúde num quartel do Exército.

Antes da pandemia, o Governo militar de Bolsonaro provocava o horror do mundo pela destruição acelerada da Amazônia. Com a covid-19, os alertas apontam que o desmatamento explodiu. É visível que os grileiros se aproveitam da necessidade de isolamento daqueles que sempre combateram suas ações, seus pistoleiros e suas motosserras colocando seus corpos na linha de frente.

E o que temos hoje? A militarização das ações de fiscalização ambiental na Amazônia. O Ibama e o ICMBio passaram a ser subordinados ao Exército, como numa ditadura clássica. Na primeira investida, segundo relatório obtido pela Folha de S. Paulo, mais de 90 agentes em dois helicópteros e várias viaturas foram mobilizados para uma operação no Mato Grosso contra madeireiras e serrarias que terminou sem multas, prisões ou apreensões. O Ibama havia sugerido outro alvo na região que, segundo fiscais, contava com fortes evidências de ilegalidades. Foi ignorado. O recém-criado Conselho Nacional da Amazônia, comandado por Mourão, tem 19 integrantes: todos militares.

A realidade mostra os grileiros atuando com desenvoltura só vista na ditadura, todos eles apoiadores entusiásticos de Bolsonaro e dos militares no poder. Invadem, destroem e pressionam pela legalização do roubo de áreas públicas de floresta, legalização anunciada pela MP da grilagem de Bolsonaro, no final de 2019, e agora pelo PL da grilagem em discussão no Congresso. O projeto dos militares para a Amazônia é o mesmo da ditadura e todos nós já sabemos como acaba. Ou, no caso, como continua.

Se alguém ainda pudesse ter alguma dúvida sobre o caráter dos militares no governo, o show de horrores exposto na reunião ministerial de 22 de abril escancarou o nível do generalato que lá está. O vídeo da reunião, apresentado por Sergio Moro como prova de que Bolsonaro tentou interferir na Polícia Federal, teve o sigilo retirado pelo ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal. Só ser conivente com aquela atmosfera e com aqueles pronunciamentos já seria uma overdose de desonra capaz de fazer uma pessoa com níveis medianos de honestidade pessoal vomitar por dias. Mas, não. Os militares são patrocinadores da meleca toda de baixíssimo nível intelectual e moralidade abaixo de zero. A reunião ministerial expõe um cotidiano de desrespeito à democracia em ritmo de boçalidade máxima. Não daria para aturar o nível de estupidez daqueles caras nem no boteco mais sórdido.

A deformação da democracia instalada nas últimas três décadas tem as digitais dos militares

A qualidade da democracia que o Brasil obteve entre o final dos anos 1980 e o impeachment de Dilma Rousseff (PT), em 2016, é resultado das negociações que costuraram o fim da ditadura e a redemocratização do país. Diferentemente de outros países que amargaram ditaduras militares, como a Argentina, o Brasil não julgou os crimes do regime de exceção. Assim, assassinos, torturadores e sequestradores a serviço do Estado seguiram impunes, ocupando funções públicas e ganhando salários públicos. Suas vítimas podiam encontrá-los tanto no elevador como na padaria da esquina como na escola dos filhos, e encontros macabros como estes aconteceram mais de uma vez.

Mesmo após a redemocratização, o Brasil seguiu também tolerando a anomalia que é uma polícia militar. Hoje, parte dela se transformou em milícia, controlando e explorando comunidades pobres, nas periferias das cidades. No Rio de Janeiro, onde as milícias e o Estado se confundem, Bolsonaro e sua família já provaram ter relações íntimas com alguns milicianos famosos, uma das razões pelas quais o presidente tanto quer controlar a Polícia Federal. O assassinato de Marielle Franco, vereadora do PSol no Rio de Janeiro, segue não solucionado há mais de 800 dias, com indícios de envolvimento de milícias próximas de Bolsonaro e seus filhos.

Outra parte dos policiais militares tem se tornado cada vez mais autônoma, respondendo apenas a si mesma. A recente greve de PMs no Ceará revelou a gravidade desse fenômeno. Em 2017, o cenário já tinha ficado evidente na greve dos PMs do Espírito Santo, quando a população se tornou refém das forças de segurança do Estado.

A polícia militar tem seu DNA cravado no genocídio da juventude negra e pobre das favelas, em massacres de presos como o do Carandiru, em 1992, e em chacinas de camponeses como o de Eldorado dos Carajás, em 1996. Nos protestos de junho de 2013, a ação violenta da polícia militar contra os manifestantes tornou-se visível também para uma parcela da classe média brasileira.

É claro que há policiais militares honestos, competentes e bem intencionados. Mas não é uma questão apenas da qualidade dos indivíduos ― e sim da incompatibilidade entre um regime democrático e uma polícia militarizada atuando junto aos cidadãos.

A democracia instalada no Brasil sempre tolerou tanto os abusos das polícias, civil incluída, quanto o genocídio do negros e dos indígenas, e isso mesmo durante os Governos de centro-esquerda de Lula e de Dilma Rousseff (PT). Essa mesma democracia pós-ditadura convive com as torturas nas prisões e as condições torturantes das prisões superlotadas de jovens negros, hoje morrendo também por covid-19.

Em parte, a democracia brasileira é deformada porque não foi capaz de julgar os crimes da ditadura e eliminar as excrescências da ditadura, mantendo uma relação de temerosa subserviência com os militares. A mesma que hoje faz o país inteiro esperar a manifestação desses generais no poder, como se dependesse do humor deles cumprir a lei ou não, apoiar ou não o golpismo, manter ou não a democracia. Claramente as elites, uma parcela da imprensa incluída, se comporta como se fosse normal que os militares tivessem a última palavra sobre o destino da democracia no Brasil, como se fosse natural um tipo de manchete como as que têm destacado os humores verde-oliva como se fossem o oráculo de Delfos.

É subserviência embrulhada em liturgia e travestida de respeito. Não são os militares que precisam “enquadrar” Bolsonaro, algo que já ficou provado que não podem nem querem fazer. São as instituições democráticas que precisam enquadrar os militares e botá-los no seu lugar. E todas as instâncias de poder, imprensa incluída, têm de parar de se curvar como se fosse levar uma botinada na testa a qualquer momento. Vejo camponeses pobres e desamparados na Amazônia enfrentarem os fardados com muito mais firmeza. No final do ano passado testemunhei uma liderança comunitária enfrentar de peito aberto um coronel armado de fuzil que queria censurar seus cartazes durante uma audiência pública em Altamira. Ele disse que não admitia uma cena como aquela porque o Brasil ainda era uma democracia. E não admitiu. Isso é dignidade.

Em artigo na Folha de S. Paulo de 24 de maio, o cientista político Jorge Zaverucha mostrou o quanto “a forte presença militar no Estado reflete a fragilidade da democracia no Brasil”. Mesmo a Constituição de 1988, a carta-magna que marcou a retomada do processo democrático depois da ditadura, foi solapada pela subserviência aos militares, determinada pelo entendimento de líderes constituintes como Ulysses Guimarães de que não seria possível retomar a democracia sem tais concessões. Ainda que seja possível eventualmente concordar com as dificuldades do momento, houve mais de três décadas para que os autoritarismos sobreviventes fossem deletados, como foi feito em países vizinhos, mas nada disso foi levado adiante no Brasil. Nesse sentido, em alguns momentos a democracia pareceu uma concessão dos generais ― e não uma conquista da sociedade civil, o que é péssimo para a cidadania.

artigo 142 da Constituição determina que as Forças Armadas “são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Como é possível, questiona o pesquisador Jorge Zaverucha, se submeter e garantir algo simultaneamente? E, citando o filósofo italiano Giorgio Agamben: “O soberano, tendo o poder legal de suspender a lei, coloca-se legalmente fora da lei”.

Para pesquisadores do período, como Jorge Zaverucha, a elite brasileira “não possui um ethos democrático”. Ela aposta, desde o princípio, em um governo democrático eleitoral, mas não em um regime democrático. “No Brasil, as Forças Armadas deixaram o Governo, mas não o poder”, afirma o cientista político. E, hoje, como qualquer um é capaz de constatar, voltaram também ao Governo.

E agora?

A ambiguidade do artigo 142 da Constituição resulta nesses dias em ambiguidade alguma. Claramente gente demais se comporta no país como se os militares não apenas estivessem fora da lei, mas teriam o direito de estar fora da lei. A ambiguidade da Constituição, no que se refere ao papel das Forças Armadas, se desfez na prática dos dias. Guardadas as exceções, o cotidiano mostra que em todas as instituições e também em uma parcela da imprensa há predominância de lambe-botas de generais, como se a ditadura nunca tivesse acabado. Se faz obrigatória a pergunta: a democracia então começou? Votar a cada eleição é suficiente para fazer um país ser considerado democrático?

O fetiche da farda pode nos levar a muitos caminhos de investigação. Tem qualquer coisa mais prosaica, também, de homenzinhos que gostam da mística da masculinidade, a estética da testosterona pelo uso de armas e pelo monopólio do uso da força costuma ficar em alta em momentos de grande insegurança. Quando leio a carta dos militares de pantufa em solidariedade a Augusto Heleno, o ameaçador-mor da República, parece mesmo que eles acreditam serem, como arrotam, os guardiões da honra. Que se ponham no seu lugar. “Chega” dizemos nós.

Nosso dinheiro paga suas aposentadorias e a reforma da Previdência deles foi de filho para pai. Quem esses homens pensam que são para ameaçar o Supremo Tribunal Federal, a instituição? São funcionários públicos aposentados e não ungidos por nenhum deus para decidir o destino de ninguém, muito menos de um país. Tampouco foram formados por “SAGRADA CASA” nenhuma, como ostentam em caixa alta, confundindo conceitos básicos. Se depois de mais de 30 anos de democracia temos que aguentar esse tipo de declaração golpista daqueles que deveriam estar servindo à democracia é porque a democracia que o Brasil conseguiu fazer derrete.

Ao apoiar Bolsonaro, os generais queriam muito fraudar a história do golpe de 1964, garantir que a lei de anistia, de 1979, nunca fosse reformada, e se assegurar de que os crimes cometidos durante a ditadura seguissem impunes. Quando Bolsonaro tentou festejar o 31 de março, data do golpe militar, como efeméride patriótica, no primeiro ano do seu mandato, houve protestos de diferentes áreas da sociedade. O problema, porém, era muito mais grave. E o risco, muito maior.

fraude da história está se dando na prática, na subjetividade que constitui cada um, na naturalização dos militares determinando destinos, proferindo ameaças e colocando-se acima da lei. Essa é a pior fraude, porque se infiltra nas mentes, altera os comportamentos e se converte em verdade. Fica cada vez mais evidente que a ditadura nunca saiu de nós, porque ao deixarmos os assassinos impunes, seguimos reféns dos criminosos que nos subjugaram por 21 anos.

Não vejo no mundo um país mais desafiado que o Brasil. Precisa lutar contra uma pandemia com um perverso no poder que contraria todas as leis sanitárias, que está levando o país ao pódio em número de casos e de mortes por covid-19, que está destruindo a Amazônia, da qual depende o futuro de todo o planeta, como se realmente não houvesse amanhã, e que está convertendo os brasileiros em párias globais. Ao mesmo tempo, o Brasil tem que restaurar a democracia que nunca se completou e, em plena crise, vestir as pantufas nos generais que foram infectados pela febre messiânica do poder e do autoritarismo.

Na penúltima vez que os generais estivaram no poder, deixaram um rastro de desaparecidos, torturados e mortos por assassinato. Isso sem contar a inflação explodindo e a corrupção vicejando. Na atual, deixarão um rastro de dezenas de milhares de mortos por covid-19, um número que poderia ser consideravelmente reduzido tivesse o governo seguido as normas sanitárias da Organização Mundial da Saúde, mantivesse no Ministério da Saúde um quadro técnico composto por profissionais experientes em saúde pública e epidemiologia e estivesse concentrando todos os seus melhores esforços para construir um plano consistente para enfrentar a pandemia. Poderão ainda, caso se mantenha o atual ritmo de destruição, levar a floresta amazônica ao ponto de não retorno. Abraçados, claro, com os vendilhões do Centrão, no que já é chamado de Centrão Verde-Oliva.

Lamento. Mas ou desdobramos a espinha agora ou peçam desculpas aos seus filhos porque seus pais são, como diria elegantemente Bolsonaro, uns bostas.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com | Email: elianebrum.coluna@gmail.com | Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Eliane Brum: O nojo

É isso que diremos aos nossos filhos, que vamos esperar passivamente Bolsonaro nos matar a todos?

A menina tem pouco mais de dois anos. Está trancada em casa com os pais há dois meses devido à pandemia de covid-19. Sente falta dos amigos da creche, sente falta da sorveteria, sente falta da rua. Mas este não é o problema da menina. Nem é o problema de seus pais. O problema é que a menina tem medo. E não do vírus. Mas daquele que ela chama de “o homem mau”. Tem dificuldade de dormir, quer ficar agarrada à mãe, acorda assustada à noite. A menina tem pesadelos com “o homem mau”. E, quando desperta, “o homem mau” continua lá.

O “homem mau” é Jair Bolsonaro. De todo o medo daqueles que estão ao seu redor, a menina entendeu que o vírus vai ficar do lado de fora, se permanecerem em casa. Mas o homem mau não tem limites. Ele abusa. Invade. Viola. Mata. Os pais criaram uma história, a de que as árvores cresceram e cobriram o prédio, e assim o homem mau não enxerga a casa deles e, como não enxerga, não pode lhes fazer mal. Ela olha com seus olhos imensos, quer acreditar, mas já compreendeu que nem mesmo as árvores podem protegê-la, até porque descobriu que o homem mau também derruba a floresta. Há um novo vilão, e ele não vem dos contos de fadas ou dos filmes da Pixar.

Como ser uma criança e lidar com um vilão que é real, se nem os adultos parecem saber como se defender dele, se nesse conto da realidade ninguém parece saber como parar o vilão real? Se essa história parece não ter outro final que não seja a morte? A menina ainda não tem recursos para nomear o horror de estar num mundo a mercê de um vilão, e também o horror de perceber que nem seus pais, que nessa idade são quase todo o seu universo, podem protegê-la dele. Então, só balbucia: “o homem mau”, “o homem mau”, “o homem mau”. E não dorme.

Eu escuto muito. É minha profissão escutar muito e escutar pessoas de todas as cores, origens e classes sociais. A criança expõe, com os poucos recursos de que dispõe aos dois anos, um pânico que vai muito além dela e se espalha por todas as faixas etárias. Se o mundo vive um momento especialíssimo, o de uma pandemia global que está matando uma parte da espécie humana, nós, no Brasil, estamos sendo violentados dia após dia pela perversão do homem no poder em meio à expansão exponencial de um vírus que pode nos matar e já começou a matar pessoas que amamos. Tenho escutado gente muito diferente entre si afirmando que passou a ter reações físicas diante da imagem de Bolsonaro. Ou da voz. Ou mesmo se outra pessoa pronuncia o nome do presidente do Brasil.

Também acontece comigo. Comecei a sentir náusea diante de qualquer alusão a Bolsonaro. Não o enjoo de quando como um alimento que me faz mal. Mas o enjoo do asco. Sou possuída pelo nojo. Há mulheres que têm essa reação diante do estuprador, quando por alguma razão são obrigadas a vê-lo novamente. Outras pessoas manifestam reação semelhante no convívio com o sequestrador. Outras na presença do torturador. Bolsonaro é tudo isso. Ele tem nos violentado, sequestrado nossa sanidade, nos ameaçado com sua irresponsabilidade deliberada e também nos torturado todos os dias, usando para isso a máquina do Estado.

Somos um país de reféns, e o sequestrador está matando. Ele mata quando boicota as ações de combate à covid-19. Ele mata quando dissemina mentiras sobre remédios sem comprovação científica de eficácia. Ele mata quando contradiz a ciência. Ele mata quando diz que a covid-19 é um “resfriadinho”. Ele mata quando afirma que “o vírus não é tudo isso”. Ele mata quando forja a falsa oposição entre se proteger da doença e “salvar” a economia. E ele pode estar matando literalmente quando vai às ruas estimular outras pessoas a ir para as ruas, quando espirra e aperta mãos com seus dedos lambuzados de ranho, quando manipula celulares alheios, quando faz selfies com seus seguidores, quando pega crianças no colo. Ele mata e tenta dar um golpe quando faz tudo isso em manifestações golpistas contra a democracia, contra o Congresso e contra o Supremo Tribunal Federal. Bolsonaro mata quando, diante de milhares de brasileiros mortos por covid-19, ele zomba, tripudia e debocha: “E daí?”. Como diz Emicida, “eleja um assassino e espere um genocídio”.

Está acontecendo agora. Neste momento. É grande a possibilidade de que, no futuro, Bolsonaro seja julgado pelo Tribunal Penal Internacional e seja condenado por crimes contra a humanidade, como aconteceu com outros perversos antes dele. Pelo menos duas denúncias já alcançaram a corte. Mas, quando isso acontecer, será muito tarde. Poderemos estar todos mortos.

O que vamos fazer agora, já? Ou vamos deixar “o homem mau” nos matar a todos? O que, afinal, vamos dizer às crianças que esperam ser protegidas por nós?

Tenho nojo de Bolsonaro. Cada palavra que contorce sua face ao sair da boca é uma palavra violenta. O homem cospe cadáveres. Seus três filhos mais velhos são suas cópias, numeradas, como ele mesmo diz (zeroum, zerodois, zerotrês...), comprovadamente estúpidos como o pai e também perversos, pelo menos um deles claramente rondando a psicopatia. Precisei escrever um livro para compreender como foi possível eleger o pior humano para a presidência do Brasil. E não paro de seguir tentando compreender. Mas, para além de compreender, é preciso impedir. Nossa emergência é barrar Bolsonaro, porque a cada segundo a pilha de cadáveres aumenta. Não são números “os inumeráveis”, são pessoas que alguém amou.

Temos informação, pesquisa e capacidade de interpretação dos fatos para concluir que Bolsonaro não é uma anomalia, no sentido de que só existe ele. Se fosse assim, seria bem mais fácil. Bolsonaro representa uma parcela dos brasileiros. Não teria sido eleito não fosse esse núcleo que se identifica com ele e o reconhece como espelho. Segundo as pesquisas, Bolsonaro é a expressão de quase um terço dos brasileiros, que o apoiam mesmo em sua política de morte —ou provavelmente o apoiam exatamente pela sua política de morte. Teremos que nos debruçar por muito tempo e com muito afinco para compreender como nos tornamos um país capaz de produzir um tipo de humano tão desprezível e tão violento. Já temos bastante material de pesquisa para começar.

Sabemos também que não é apenas o Brasil. O mundo já produzia pessoas capazes de urrar de prazer diante de execuções de outros seres humanos ou diante de pessoas sendo devoradas por animais na arena antes de o Brasil existir. A história é pródiga em mostrar a massa gritando e pedindo mais sangue, mais dor, mais violência. Os horrores do século 20, como o nazismo, tão em evidência no momento, estão bem próximos de nós. Mas era possível desejar que talvez pudéssemos ter chegado ao século 21 com mais capacidade de lidar com nossa humana monstruosidade, mais aptos a nos proteger de personagens como Bolsonaro.

Por uma série de razões, já presentes no fato de termos sido o último país das Américas a abolir a escravidão negra, a sociedade brasileira tem suas deformações particulares para lidar. Como, por exemplo, a que nos faz um dos países campeões em linchamentos. Uma parcela dos brasileiros gosta de derramar o sangue dos outros, goza com a dor dos outros, traveste seu horror pessoal em moralidade. Amarra uma bandeira do Brasil no pescoço e vai defecar pela boca em praça pública, ameaçando todo o já desorganizado e insuficiente combate ao coronavírus e, portanto, condenando os mais desprotegidos à morte. É o pessoal capaz de buzinar na frente de hospitais, onde pessoas agonizam, e trancar ambulâncias no trânsito. Nós os conhecemos, seguidamente eles fazem parte da família.

Nenhum deles, porém, tinha chegado à presidência. Sempre parava no Congresso. E, então, esse limite foi rompido. O limite em que um Bolsonaro deixa de ser o pária do Congresso, o bufão que garantia sua reeleição como deputado mas não tinha nenhuma influência real, para se converter no presidente do Brasil. E mais: no “mito”. Ele assume o poder e, como anunciou que faria, converte o Governo numa máquina de produção de morte.

Sabemos que Bolsonaro não conquistou essa façanha sozinho. Que ele foi apoiado por parte das elites nacionais, em todas as áreas. Muitos já compreenderam o que fizeram e o abandonaram por medo de contaminar sua biografia com o sangue produzido em quantidades cada vez maiores por Bolsonaro. Hoje quase só restaram os piratas do empresariado, os generais com nostalgia de ditadura, os predadores do agronegócio e os evangélicos de mercado. Não é pouco o que ainda restou. Mas é menos do que já foi. Quem ainda tem o que perder, como Sergio Moro —herói decaído, mas não tanto que não tenha esperança de juntar os cacos—, está debandando. Do sangue, afinal, ninguém escapa. E há cada vez mais sangue nesse governo.

Já escrevi bastante sobre isso, antes e depois da eleição. Os artigos estão disponíveis para quem quiser lê-los. Agora, porém, preciso repetir que Bolsonaro está nos matando. É imperativo agir no modo emergência. Lutar contra Bolsonaro já não é apenas lutar por bandeiras essenciais como justiça social, igualdade de raça e de gênero, equidade na distribuição da renda, taxação das grandes fortunas, preservação da Amazônia e de seus povos. Passamos a um estágio muito mais agudo. Lutamos hoje para nos manter vivos, porque Bolsonaro boicota as ações contra o coronavírus. Bolsonaro não é coveiro, categoria corajosa e digna de brasileiros. Bolsonaro é assassino.

Não podemos lidar com um perverso como se o que ele faz fosse do jogo democrático. Nossa pergunta é clara: como vamos impedir Bolsonaro de usar a máquina do Estado para continuar a matar?

Nossos vizinhos temem por suas fronteiras. O Paraguai já constatou que a maioria de seus casos estão vindo do Brasil. No mundo inteiro o Brasil está se tornando um pária dominado por um pária. Brasileiros já são olhados com desconfiança. Governados por um maníaco, vivemos uma explosão no crescimento da contaminação por covid-19 e ninguém quer o vírus voltando a entrar pela sua porta depois de tanto esforço para tentar controlá-lo. O planeta já começa a enxergar uma tarja de risco biológico na nossa testa. É isso, sim, que pode prejudicar a economia por muito mais tempo.

Prestem atenção em quem está morrendo mais. São os negros, são os pobres. São os presos trancados em viveiros de vírus, numa violação de direitos inacreditável até para os padrões medievais do Brasil. Quem está morrendo mais são aqueles que desde a campanha Bolsonaro trata como matáveis —ou como coisas. O vírus mata cada vez mais nas aldeias indígenas e vai se espalhando pela floresta amazônica. Quando os invasores europeus chegaram, os vírus e as bactérias que trouxeram com eles exterminaram 95% da população indígena entre os séculos 16 e 17. Há chance de que o novo coronavírus produza um genocídio dessa dimensão caso não exista um movimento global para impedi-lo.

Bolsonaro já demonstrou que apreciaria se os indígenas desaparecessem ou se tornassem outra coisa. “Humanos como nós”, nas suas palavras. Humanos vendedores e arrendadores de terra, humanos mineradores, humanos plantadores de soja e de cascos de boi, humanos amantes de hidrelétricas, de ferrovias e de rodovias. Humanos que se descolam da natureza e a convertem em mercadoria.

São os povos indígenas que colocam literalmente seus corpos diante da destruição da Amazônia e de outros biomas. Mas parte dos apoiadores de Bolsonaro, que hoje também lideram campanhas de “abertura do comércio” nas cidades amazônicas, tem matado os indígenas (e também camponeses e quilombolas) à bala. O vírus pode completar o extermínio de uma forma muito mais rápida e numa escala muito maior. Basta fazer exatamente o que Bolsonaro está fazendo: nada para protegê-los e tudo para estimular a ruptura das regras sanitárias da Organização Mundial da Saúde; nada para protegê-los e tudo para estimular a invasão de suas terras por garimpeiros e grileiros. O que está em curso é exatamente isso: um genocídio.

E também ecocídio, porque na Amazônia esses entes não andam separados. Como sabemos, os destruidores da floresta não fazem home office. O desmatamento avança aceleradamente, aproveitando a oportunidade da pandemia. Os alertas cresceram 64% em abril, depois de já terem batido recordes no início do ano. Bolsonaro demitiu os chefes de fiscalização do Ibama que estavam tentando impedir o massacre da floresta. Está militarizando tanto a saúde, ao colocar militares em postos importantes do ministério, quanto a proteção do meio ambiente, ao subordinar o Ibama e o ICMBio ao Exército nas ações de fiscalização. Em toda a região, camponeses, ribeirinhos e indígenas denunciam que os caminhões cheios de árvores recém derrubadas não param de atravessar as estradas vindos da floresta. Eles gritam. Mas quem os escuta?

Bolsonaro está transformando (também) a Amazônia num gigantesco cemitério. Ele é tão perverso que usa a pandemia para matar a floresta e tudo o que é vivo. O presidente do Brasil pode se tornar o primeiro vilão da história que, sem poder nuclear, tem grande poder de destruição. Sem floresta amazônica não há como controlar o superaquecimento global. Sem controlar o superaquecimento global o futuro será hostil para a espécie humana. Se a Amazônia chegar ao ponto de não retorno, do qual se aproxima velozmente, seu território poderá se tornar um disseminador de vírus nos próximos anos. Neste momento, por mais que os demais países promovam ações de controle e fechem suas fronteiras, sem conter o novo coronavírus num país com 210 milhões de habitantes será muito difícil controlar a pandemia no planeta.

É disso que se trata. É real. Aqueles que lavam as mãos, como disse o ator Lima Duarte, “o fazem numa bacia de sangue”. Lima Duarte fez essa declaração após o suicídio de seu colega Flávio Migliaccio, que tirou a própria vida dolorosamente decepcionado com o Brasil e com os brasileiros. Eu iria ainda mais adiante que Lima Duarte. Quem segue com Bolsonaro não está apenas lavando as mãos numa bacia de sangue. Está matando junto com ele. Uma das perversidades do perverso é produzir cúmplices. E é isso que Bolsonaro faz. Não é possível testemunhar o que está acontecendo e seguir com o humano monstro sem se tornar o humano monstro. Não haverá sabonete, álcool gel, desinfetante capaz de apagar esse sangue das mãos dos assassinos, estejam eles na Fiesp, no Congresso ou no Theatro Municipal.

O que vamos dizer à criança de dois anos que denuncia a nossa impotência em protegê-la quando ela pede socorro contra “o homem mau”?

Neste momento, seguidores de Bolsonaro se aglomeram em Brasília. Alegam que estão praticando a desobediência civil. Como tudo o que tocam vira mentira, todas as palavras saem estupradas depois de passar por sua boca, o que fazem nada tem a ver com desobediência civil, conceito caro a tantos movimentos que tornaram o mundo mais justo e igualitário. O que exercitam diariamente é a mais vil obediência ao maníaco do Planalto e também aos seus próprios instintos de morte, ao seu gozo por sangue e pela dor dos outros. O que treinam cotidianamente é a obediência ao seu próprio sadismo e desejo de violência que Bolsonaro libertou pelo exemplo e pela impunidade que desfrutou. Tentam encobrir seus piores instintos com a bandeira do Brasil, da qual também se apropriaram como se o país pertencesse apenas a quem mata o Brasil.

Desobediência civil hoje é ficar em casa apesar do maníaco que manda sair. Desobediência civil é cuidar de todos os outros apesar do perverso que diz “e daí?”. Desobediência civil é desobedecer ao projeto de genocida que está no poder. E para isso é necessário usar os instrumentos de nossa cada vez mais ferida democracia para tirá-lo de lá e impedir que continue matando. É isso ou dizer para a criança de dois anos que somos covardes demais para protegê-la e, depois da palavra o gesto, abrir a porta da casa para a morte.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Eliane Brum: O futuro pós-coronavírus já está em disputa

Como impedir que o capitalismo, que já nos roubou o presente, nos roube também o amanhã?

Nós, os que hoje estamos vivos, nunca enfrentamos uma ameaça como o novo coronavírus. Se tantos repetem que o mundo nunca mais será o mesmo, qual é então o mundo que queremos?

Ninguém se iluda. Enquanto a pandemia é enfrentada, essa resposta já está sendo disputada. É ela que vai determinar o futuro próximo. Lutar pela vida ameaçada pelo vírus é o imperativo da emergência. É preciso, porém, fazer algo ainda mais difícil: lutar pelo futuro pós-vírus. Se não o fizermos, a retomada da “normalidade” será a volta da brutalidade cotidiana que só é “normal” para poucos, uma normalidade arrancada da vida dos muitos que diariamente têm seus corpos esgotados. O rompimento do “normal”, provocado pelo vírus, pode ser a oportunidade para desenhar uma sociedade baseada em outros princípios, capaz de barrar a catástrofe climática e promover justiça social. O pior que pode nos acontecer depois da pandemia será justamente voltar à “normalidade”.

As grandes corporações já começam a se mover para garantir o controle do que virá. Na semana passada, as companhias de petróleo foram recebidas por Donald Trump na Casa Branca. Não foram discutir como salvar os mais pobres dos efeitos da pandemia. No Reino Unido, as companhias de aviação fazem lobby por subsídio governamental e, claro, desregulamentação. Tampouco elas foram se reunir para tomar chá e discutir investimentos na área social.

Diante do novo coronavírus, até baluartes da imprensa liberal, como The Economist e Financial Times, ambos nascidos no berço do capitalismo, têm anunciado que é preciso dar um passo atrás. Maior intervenção do Estado e políticas como renda mínima e taxação de fortunas, antes consideradas “exóticas” por esses segmentos, têm sido elencadas na abordagem do novo contrato social no mundo pós-pandemia. Conceder um pouco para garantir que nada mude no essencial é um truque antigo.

Com o vírus, descobrimos que aqueles que afirmavam ser impossível parar de produzir, reduzir o número de voos, aumentar os investimentos dos governos e mudar radicalmente os hábitos apenas mentiam. O mundo mudou em menos de três meses em nome da vida. É também em nome da vida que precisamos manter as boas práticas que surgiram deste período e pressionar como nunca antes por outro tipo de sociedade, tecida com outros fios.

A tarefa é inadiável. Se não fizermos isso, o mundo pós-coronavírus será ainda mais brutal e o colapso climático se aprofundará. Para o extermínio da natureza não há nem jamais haverá vacina. Nosso futuro depende de enterrar o sistema capitalista que exauriu o planeta e nos trouxe até o tempo das pandemias. E para isso também não serve o comunismo que explorou, destruiu vidas, corroeu a natureza e oprimiu os corpos. Precisamos encontrar outros caminhos. E rápido. Muitos dizem que é ingênuo. Outros dizem que é impossível. O que é ingênuo é sentar na cadeira de pregos que se tornou o presente e esperar os efeitos da brutal superexploração da natureza (terminar de) deformar a face do planeta. Impossível é seguirmos vivendo como temos vivido.

O isolamento físico tem que ser usado para produzir pensamento social e para atuar coletivamente, em rede. Este artigo, dividido em duas partes, é uma colaboração para o debate do futuro que precisa ser travado no presente. Agora.

1) No Brasil, todos os caminhos levam ao neoliberalismo

O presente, no Brasil, é uma armadilha. Temos um antipresidente – e a antipresidência é um conceito criado pelo bolsonarismo – que faz oposição ao seu próprio governo. A técnica ficou clara desde o início do mandato, mas ganhou contornos dramáticos na pandemia, quando Jair Bolsonaro abriu guerra contra seu próprio ministro da Saúde. A negação da realidade, como método de manutenção do poder, tem vários efeitos sobre a população. Um deles é ocupar o noticiário e sequestrar o debate.

Em vez de debater a ameaça mais urgente, estamos travando o falso debate lançado contra os brasileiros por Bolsonaro: isolamento ou não isolamento, ou saúde versus economia. É o que acontece quando se elege um homem que, no passado, planejou explodir bombas nos quartéis para pressionar por aumento salarial. As bombas de Bolsonaro hoje são de desinformação, visam ao caos e também podem matar.

O problema é ainda maior porque a negação da realidade também produz realidade. Neste caso, não só a de colocar a população em risco, mas também a de fazer acreditar que há oposição real. Essa ilusão que cresce no Brasil, até por desespero, pode comprometer o futuro de forma irreversível.

Se Jair Bolsonaro (sem partido) renunciar, o que parece bastante improvável no momento, ou se for impedido, o que também ainda parece distante, quem assume é o vice. Hamilton Mourão é um general quatro estrelas da reserva que até a eleição era considerado golpista, devido a várias declarações públicas. Ainda na campanha, chegou a dizer, em entrevista à GloboNews, que em “caso de anarquia” um presidente pode dar um “autogolpe” com “o emprego das forças armadas”. Comparado a Bolsonaro, até um pitbull torna-se “moderado”. É o que vem acontecendo com Mourão, como escrevi mais de um ano atrás.

O terceiro na hierarquia é Rodrigo Maia (DEM). Além de indiciado pela Polícia Federal por corrupção, o presidente da Câmara dos Deputados é totalmente identificado com o neoliberalismo que nos trouxe até a situação atual e com as forças mais conservadoras do país, com exceção (por enquanto) dos evangélicos de resultados. O que tornou Maia um exemplo de moderação e competência para o que chamam de “mercado” foi realizar a reforma previdenciária que, se era necessária, claramente o modelo aprovado não foi nem o melhor nem o mais justo para os trabalhadores, que tiveram suas vidas ainda mais precarizadas. Maia, a quem até o advento do bolsonanorismo parte dos brasileiros preferia ver pelas costas (ou na cadeia), tornou-se uma espécie de oráculo do bom senso, o que mostra o nível do abismo em se encontra o Brasil.

E então temos os novos candidatos a estadistas, na figura dos governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro. João Doria (PSDB) e Wilson Witzel (PSC). Doria, o gerente privatizador, e Witzel, defensor da violência policial nas favelas. Até ontem, ambos eram unha e carne com Bolsonaro. Ou vogal e consoante, no caso de Doria, que se elegeu como “Bolsodoria”. Para conter a pandemia, eles apenas seguem em seus estados as orientações sanitárias internacionais, mas, como fazer o óbvio é fazer o oposto do que Bolsonaro prega, despontam como defensores do povo contra o bolsovírus. Têm os olhos grudados na eleição presidencial de 2022.

Bolsonaro presta um grande serviço aos ex-melhores amigos. Em São Paulo, especialmente, ele livra Doria de explicar o pouco investimento na rede de saúde pública pelo seu partido, que comanda o Estado há mais de 25 anos. Na ponta, é essa falta de investimento no Sistema Único de Saúde (SUS) que vai resultar em mortes por coronavírus.

Em todo o país, o falso debate eclipsa o verdadeiro debate. A pandemia tornou explícita a importância do estatuto público da saúde. E revelou toda a monstruosidade da PEC-95, a do teto dos gastos públicos do governo de Michel Temer (MDB), típica política neoliberal de Estado mínimo, que tirou bilhões da saúde. Grande parte desta conta está sendo paga agora. Com vidas.

No atestado de óbito, as vítimas terão “morte por coronavírus”. Mas, em parte dos casos, o que as terá matado é a precarização da saúde pública, o aumento da desigualdade e da miséria nos últimos anos, a falta de investimento em saneamento e moradia digna. E, finalmente, o fato de que há uma parte da população que segue exposta ao vírus porque não lhes é permitido parar de trabalhar.

A imagem da armadilha em que o Brasil está enfiado é a do ministro da Saúde, Luiz Henrique MandettaAo afrontar o chefe e tomar medidas óbvias na pandemia, Mandetta se tornou o novo herói nacional. Todos os erros, como demorar a providenciar testes, máscaras e outros equipamentos de proteção, são perdoados. Principal opositor de seu ministro, Bolsonaro também presta um grande serviço a ele. E a seu próprio governo, já que, qualquer que seja o resultado, pode ser atribuído ou distanciado do governo. Essa é a esperteza de abarcar a situação e a oposição.

Vejamos quem é o novo herói nacional, hoje adulado e apoiado por todos os campos ideológicos. Mandetta, conhecido defensor dos ruralistas, na saúde se manifestou frontalmente contra o programa Mais Médicos e militou contra o aborto. Também já lamentou a fragmentação das famílias causadas pela Lei do Divórcio. Dilma Rousseff demarcou muito menos terras indígenas que seus antecessores, uma das razões porque recebe severas críticas de indígenas e ativistas do meio ambiente. Ainda assim, Mandetta achou que a presidenta exagerava. “A presidente está dirigindo a sua raiva contra os produtores rurais, colocando todo o seu querer mal ao Brasil no agronegócio", discursou no plenário, em 2016. No ano seguinte, foi um crítico feroz da Carne Fraca, operação da Polícia Federal que investigou as irregularidades nos frigoríficos.

O novo herói brasileiro aponta onde está o Brasil. Cada um conclua. A oposição real, como já se tornou explícito, é fraca. E não consegue mostrar qual é a sua grande diferença, muito menos convencer a população de que é diferente. Enroscada com Lula e com o PT, ou brigando com Lula e com o PT, a esquerda deixou de disputar o país. Acha que disputa, é claro, mas ninguém liga. O desempenho mais sólido é o do Psol, mas o partido ecoa apenas num número pequeno de brasileiros.

Isso não significa dizer que a esquerda seria uma solução, na medida em que parte significativa da esquerda brasileira segue cimentada no século 20, totalmente alienada das grandes questões atuais, como a crise climática e a destruição da vida natural no planeta. Quem fez oposição de fato, no Brasil pré-pandemia dos últimos anos, foram grupos identitários: mulheres, jovens, negros e indígenas. A oposição é política, mas não tem partidos políticos como protagonistas. E ainda é preciso ter partidos políticos para fazer a disputa do futuro.

Assim, no período pós-pandemia, ou mesmo durante a pandemia, já que não se sabe se ela acaba, todos os caminhos levam à direita neoliberal. Este é o buraco diante do Brasil. É também o buraco em muitos países – grande parte deles atolados na crise das democracias ocidentais, alguns às voltas com os déspotas eleitos.

O Brasil tem, portanto, dois gigantescos desafios. O primeiro é impedir que o vírus mate milhares de brasileiros. Não há dúvida de que serão os mais pobres que morrerão mais. Os que não têm casas compatíveis com o isolamento; os que têm sido obrigados pelos patrões a trabalhar; os que foram demitidos; os que vivem de bicos, na informalidade, e já não conseguem trabalhar. Os que não vão conseguir se alimentar com os 600 reais que o governo está oferecendo. Os que não têm esgoto, não têm água e logo não terão também comida. Os que ficarem doentes e não encontrarem vagas na rede pública de saúde, sabotada nos últimos anos em nome da privatização e do lobby dos planos privados de saúde.

auxílio emergencial de 600 reais para os informais é mais uma prova do buraco paradoxalmente grande – e ao mesmo tempo claustrofóbico – em que o país está enfiado. Diante dos 200 reais inicialmente propostos pelo ministro da Economia Paulo Guedes, de repente 600 reais passaram a soar com notas de decência. O valor, porém, é totalmente indecente. Ninguém vive no Brasil com dignidade mínima com 600 reais. Para a outra metade dos trabalhadores, a que têm carteira assinada, o governo permitiu cortes de jornada e de salários.

Para quem se enrosca com o significado de neoliberal, é isso. Vale a pena pesquisar para encontrar definições mais sofisticadas e completas. Em um parágrafo, o que pode ser dito é que os neoliberais acreditam que o Estado deve interferir o mínimo possível e que o Mercado se autorregula. Para isso, é fundamental enfraquecer as representações de trabalhadores e a palavra para tudo é “flexibilização”. Privatizar, desregulamentar, flexibilizar – estes são os verbos favoritos do neoliberalismo. Perceba então que toda vez que “flexibilizaram” algo no Brasil, foram os trabalhadores urbanos e rurais, os indígenas, a natureza e outras espécies que se ferraram. Ao trabalhador precarizado e com cada vez menos direitos deram o nome bonito e moderno de “empreendedor”. Livre e autônomo para morrer trabalhando. E, se não conseguiu “empreender”, as razões para o fracasso também lhe pertencem. Veja agora você, que é “empreendedor”, em que situação está. E veja se é isso que você quer continuar a ser.

No estágio neoliberal do capitalismo todas as relações são, ao mesmo tempo, reduzidas ao consumo – e submetidas ao consumo. O que define cada “indivíduo” é sua capacidade de consumir. Suas escolhas se reduzem a escolher entre produtos, marcas, preços, cores, formatos; sua liberdade é a de consumir o que sua renda permitir e a de desejar se exaurir mais para ter mais dinheiro para consumir. Toda a vida é mediada por mercadorias e, acima de qualquer outra identidade, você é consumidor.

É neste sistema que o planeta, supostamente à disposição dos consumidores, foi consumido; que espécies inteiras foram destruídas e outras subjugadas para terem seus corpos consumidos em produção industrial. É assim que você nasce para, consumindo seu corpo e seu tempo, se consumir. E é assim que os humanos se tornaram, a partir da revolução industrial, que iniciou um processo cada vez mais veloz de emissão de CO2 pela queima de combustíveis fósseis (carvão, petróleo etc), uma força de destruição do planeta.

Pressionadas pelo colapso da natureza que provocaram e pela evidência de que haverá mais pandemias, as grandes corporações que controlam o mundo e aqueles que se beneficiam delas tentam agora reinventar o sistema de destruição, como já fizeram no passado, para continuar no controle. Têm muita chance de conseguir.

No Brasil, Bolsonaro fez o serviço de esticar tanto os limites, que tornou todas as forças conservadoras ao seu redor aceitáveis. Não sei o quanto ele percebe que este é o seu principal papel. O fato é que o executa brilhantemente. Cada vez que se comporta como um maníaco, faz figuras que até ontem causariam arrepios despontarem como estadistas. Antes dele, um Mourão na presidência era inimaginável depois de mais de 20 anos de ditadura militar. Antes dele, Rodrigo Maia era só mais um representante tradicionalíssimo de um Congresso marcado por corrupção e fisiologia. Antes dele, Doria e Witzel, cada um no seu estilo, jamais receberiam aplausos de parte da esquerda ou afagos de Lula. Antes dele, Mandetta era um político preocupado em apoiar projetos corporativos de setores da saúde e fazer lobby para ruralistas. Graças a Bolsonaro e à incompetência da oposição real, todos eles nos lideram.

É assim que vai ser, então?

O Brasil tem dois enfrentamentos urgentes para fazer: a disputa do presente, que é o novo coronavírus, e a disputa do futuro, que se dá também agora, no presente.

Enfrentar uma pandemia num país em que desigualdade e pobreza extrema aumentaram nos últimos anos pelas políticas neoliberais é um imenso desafio. Mas talvez seja ainda maior o desafio de imaginar um futuro que não seja a volta de uma normalidade que só era normal para os privilegiados de sempre. Na armadilha que se tornou o país, todos os caminhos levam ao mesmo lugar. Os personagens que disputam o presente e o futuro dentro da estrutura do Estado são no fundo todos iguais – ou pelo menos muito parecidos.

Como aprender com o coronavírus a criar um futuro que não seja mais aniquilação?

Parece quase impossível quando todas as saídas estão barradas pelas tropas neoliberais. Elas já se organizam para chicotear a população após a pandemia, com o imperativo de produzir para poder superar a recessão e retomar o dogma do crescimento. Já tivemos indícios de que o coronavírus será usado para impor perdas de direitos e de liberdades. A China, com seu comunismo capitalista (sim, isso é possível), ampliou ainda mais sua vigilância despótica sobre a população. É apenas um sinal do que está por vir.

Em breve, pode apostar, os governos vão pedir o sacrifício de todos, que nunca é o de todos, mas o dos de sempre. Prestem atenção ao significado que será dado à palavra “retomada” – e pensem no que será retomado. A pandemia é nova. Os métodos dos que trouxeram o planeta até este estado de coisas, não.

Parece impossível disputar o futuro nessas condições. Mas tudo o que temos é encontrar um caminho para minar a criatura chamada capitalismo, que no nosso tempo se expressa pelo neoliberalismo, e impedir que se regenere. Mais do que nunca, hoje lutamos pela vida.

2) Temos que barrar os senhores do mundo antes de eles conseguirem dar o golpe (mais uma vez)

Há tempos os pensadores ocidentais não se empenhavam tanto em interpretar um momento. Faz todo o sentido. Nada é – ou foi – maior do que essa pandemia como ameaça global capaz de mudar tudo em um segundo. Inclusive o olhar dos humanos sobre si mesmos, ao descobrir a espécie, esta que sempre se considerou dona do planeta, ameaçada por um ser microscópico. Já existe pelo menos um livro com coletânea de artigos de filósofos sobre o coronavírus e seus efeitos. Há uma diferença, porém. Há os pensadores que compreenderam a crise climática e há os que seguem às voltas com dilemas do século 20, como grande parte da esquerda mundial, e que não foram afetados pelas angústias da época atual.

Entre os pensadores conectados com a emergência do clima, o francês Bruno Latour é o autor de uma das melhores contribuições para pensar o momento já como ação. O texto foi traduzido pela filósofa brasileira Déborah Danowski, outra pensadora relevante sobre o contexto atual. Em sua análise, Latour assim define a lição posta pelo novo coronavírus: “A primeira lição do coronavírus é também a mais espantosa. De fato, ficou provado que é possível, em questão de semanas, suspender, em todo o mundo e ao mesmo tempo, um sistema econômico que até agora nos diziam ser impossível desacelerar ou redirecionar. A todos os argumentos apresentados pelos ecologistas sobre a necessidade de alterarmos nosso modo de vida, sempre se opunha o argumento da força irreversível do ‘trem do progresso’, que nada era capaz de tirar dos trilhos, ‘em virtude’, dizia-se, da ‘globalização’”.

E aponta o risco: “Qualquer motorista sabe que, para ter alguma chance de se salvar fazendo uma rápida manobra no volante, sem sair da estrada, é melhor primeiro desacelerar... Infelizmente, não são só os ecologistas que veem nessa pausa súbita no sistema de produção globalizado uma grande oportunidade de fazer avançar seu programa de aterrissagem. Os adeptos da globalização, aqueles que, em meados do século 20, inventaram a ideia de escapar das restrições planetárias, também veem nela uma excelente oportunidade de se desvencilhar ainda mais radicalmente do que resta de obstáculos à sua fuga para fora do mundo. Para eles, essa é uma oportunidade boa demais de se livrar do resto do Estado social, da rede de segurança dos mais pobres, do que ainda resta de regulamentação contra a poluição e, mais cinicamente ainda, de se livrar de toda essa gente em excesso que atulha o planeta. (...) Os adeptos da globalização são perigosos porque eles sabem que perderam, sabem que a negação das mudanças climáticas não poderá continuar indefinidamente, que não há mais nenhuma chance de conciliar seu ‘desenvolvimento’ com os vários ‘envelopes’ do planeta com os quais a economia terá que se haver mais cedo ou mais tarde. Isto é o que os torna dispostos a tentar de tudo para se aproveitar mais uma (última?) vez das condições excepcionais, para poder durar um pouco mais e proteger a si próprios e aos seus filhos”.

Antes que alguém levante a balela do desenvolvimento “sustentável” como a panaceia capaz de colocar o capitalismo de novo nos trilhos, vale escutar outro pensador, este indígena. Autor de Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras), Ailton Krenak provocou ódio e ranger de dentes tempos atrás, ao afirmar que “sustentabilidade era vaidade pessoal”. Toda corporação, incluindo as mais destrutivas, tem hoje um gerente de sustentabilidade. Faz parte da capacidade de cooptação e adaptação do capitalismo. Sempre uma cretinice a mais.

Em março, já com a pandemia atravessando o globo, Krenak assim explicou na abertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, ao falar sobre perspectivas anticoloniais: “Nós vivemos precariamente uma relação de consumir o que a mãe natureza nos proporciona. E nós sempre fizemos um uso do que a nossa mãe nos proporciona da maneira mais folgada possível. Até que um dia nós nos constituímos numa constelação tão imensa de gente que consome tudo, que a nossa mãe natureza falou: peraí, vocês estão a fim de acabar geral com tudo que pode existir, aqui, como equilíbrio e como possibilidade daquilo que é fluxo da vida? Vocês vão esquadrinhar a produção da vida e decidir quantos pedaços de vida cada um pode obter? E, nessa desigualdade escandalosa, vocês vão sair por aí administrando a água, o oxigênio, a comida, o solo? E então [a natureza] começou a botar limites à nossa ambição.

Uma maneira que os humanos fizeram para administrar isso foi criando a ideia, por exemplo, de que existe um meio ambiente e que esse universo é uma coisa que você pode gerenciar. E dentro desse meio ambiente alguns fluxos vitais podem ser medidos, avaliados e habilitados, alguns deles inclusive com selos de sustentabilidade.

Se você tirar água do aquífero Guarani, por exemplo, uma água de muito boa qualidade, e se você engarrafar direitinho, você é uma empresa sustentável. Mas quem disse que tirar água do aquífero Guarani é sustentável? Você pratica uma violência na origem e recebe um selo sustentável no caminho. E assim com a madeira. Isso é uma sacanagem, não tem esse papo de água sustentável e não tem esse papo de madeira sustentável”.

Diz então a verdade terrível, que é também o ponto de partida de qualquer proposta para o futuro que formos capazes de esboçar: “Nós somos uma civilização insustentável, nós somos insustentáveis. Como é que então vamos produzir alguma coisa em equilíbrio?”.

Este é o desafio.

Assim que novo coronavírus der uma brecha, os profetas do neoliberalismo começarão a sua pregação: “É preciso produzir e crescer!”. Não há dogma maior na economia do que o do crescimento. Milhares de economistas perderão seu emprego no ramo da astrologia econômica caso o dogma do crescimento seja desmascarado. Crescer é o imperativo de todo país. Quem não lembra do “fazer o bolo da economia crescer para então repartir o bolo” que o ministro da ditadura e astrólogo econômico maior do Brasil, Delfim Netto, repetia no regime de exceção? Mais tarde, com a expansão do neoliberalismo, nem isso. Bastava que os mais pobres soubessem que, se o país crescesse, alguma coisinha poderia eventualmente sobrar pra eles.

O dogma do crescimento é construído sobre uma mentira: a possibilidade de explorar infinitamente os recursos de um planeta com recursos finitos. Bastam dois neurônios para entender que não é possível. E aí vem o outro dogma, o da sustentabilidade, como se fosse possível tornar sustentável o que, em sua estrutura, é insustentável.

O que o dogma do crescimento faz é proteger os privilégios dos muito ricos: o problema deixa de ser a distribuição igualitária das riquezas existentes e passa a ser o crescimento insuficiente, que não permite garantir o suficiente para todos. O imperativo de crescer é repetido à exaustão para encobrir a injustiça estrutural: a desigualdade na distribuição de riquezas. Carregando seu corpo exaurido, mesmo o pobre passa a acreditar que sua miséria é provocada por falta de crescimento. Sem reparar que nos momentos em que o tal bolo cresceu, as fatias se tornaram maiores para os que já eram donos do bolo e sobrou para ele, quando muito, a farofa da cobertura.

No Brasil, o 1% mais rico concentra quase um terço da renda (28,3%), o que dá ao país o título de vice-campeão mundial em desigualdade, segundo o último Relatório de Desenvolvimento Humano da Organização das Nações Unidas (ONU). O Brasil só perde para o Catar – e apenas por 0,7%. Cinco bilionários brasileiros concentram a mesma riqueza que a metade mais pobre do país, segundo estudo da organização não-governamental britânica Oxfam, publicado em 2018. Cinco pessoas concentram a mesma renda que 100 milhões de brasileiros. Este é o problema. Não é por falta de exploração da natureza que o país é tremendamente desigual. Ao contrário. O esgotamento dos suportes de vida do planeta é um dos principais geradores de pobreza e de desigualdade.

O dogma do crescimento, que faz as engrenagens do capitalismo girar, foi determinante para produzir a emergência climática. O que a emergência climática torna explícito é que já não será possível “crescer”. É necessário mudar radicalmente o modo de vida porque, como diz a jovem Greta Thunberg, “nossa casa está em chamas”. Diante do superaquecimento global e da perda de ecossistemas vitais, realmente imperativo é distribuir as riquezas existentes.

É esse conteúdo explosivo que faz com que as grandes corporações que dominam o planeta apoiem negacionistas do clima como Donald Trump e Jair Bolsonaro. Com esses déspotas eleitos disseminando mentiras e distraindo o mundo com falsos problemas, elas ganham tempo. Já sabem que não dá mais para seguir, mas farão o impossível para ganhar o máximo enquanto for possível. Guardadas as proporções, é como a indústria do cigarro: negou os malefícios por décadas, contra todas as pesquisas científicas, e ganhou dinheiro produzindo câncer enquanto deu. Ainda hoje, contabiliza cifras bilionárias.

O desafio que nossa geração tem pela frente é imenso. E será duro. Muito duro. Como a crise climática se desenrola num outro tempo, o encontro com a realidade era sempre adiado pela maioria, apesar dos gritos dos cientistas e dos jovens. Os negacionistas foram eleitos porque grande parte da população mundial quer continuar negando o inegável junto com eles. Então o vírus escancara a realidade. Dele não dá para fugir, já que fugir é morrer.

O que temos hoje é uma janela de realidade, o momento em que todos, absolutamente todos, são obrigados a se encontrar com a verdade. É por isso que Bolsonaro se tornou ainda mais pirotécnico. Para manter o poder ele precisa falsificar a realidade. Vinha conseguindo, e o vírus arrancou de uma vez essa possibilidade. Diz então que “o vírus não é tudo isso que dizem”. Porque, apavorado, sabe que o vírus é muito mais. Diante da verdade da morte, nenhuma mentira vinga.

Bruno Latour assim anuncia o impasse da janela aberta pelo coronavírus: “Se a oportunidade serve para eles, serve para nós também. Se tudo para, tudo pode ser recolocado em questão, infletido, selecionado, triado, interrompido de vez ou, pelo contrário, acelerado. Agora é que é a hora de fazer o balanço de fim de ano. À exigência do bom senso: ‘Retomemos a produção o mais rápido possível’, temos de responder com um grito: ‘De jeito nenhum!’. A última coisa a fazer seria voltar a fazer tudo o que fizemos antes”.

Para que possamos seguir esse debate, reproduzo aqui as perguntas que ele lança para cada um e para o coletivo:

“Aproveitemos a suspensão forçada da maior parte das atividades para fazer um inventário daquelas que gostaríamos que não fossem retomadas e daquelas que, pelo contrário, gostaríamos que fossem ampliadas. Responda às seguintes perguntas, primeiro individualmente e depois coletivamente:

1) Quais as atividades agora suspensas que você gostaria que não fossem retomadas?

2) Descreva por que essa atividade lhe parece prejudicial / supérflua / perigosa / sem sentido e de que forma o seu desaparecimento / suspensão / substituição tornaria outras atividades que você prefere mais fáceis / pertinentes. (Faça um parágrafo separado para cada uma das respostas listadas na pergunta 1).

3) Que medidas você sugere para facilitar a transição para outras atividades daqueles trabalhadores /empregados / agentes / empresários que não poderão mais continuar nas atividades que você está suprimindo?

4) Quais as atividades agora suspensas que você gostaria que fossem ampliadas / retomadas ou mesmo criadas a partir do zero?

5) Descreva por que essa atividade lhe parece positiva e como ela torna outras atividades que você prefere mais fáceis / harmoniosas / pertinentes e ajuda a combater aquelas que você considera desfavoráveis. (Faça um parágrafo separado para cada uma das respostas listadas na pergunta 4).

6) Que medidas você sugere para ajudar os trabalhadores / empregados /agentes / empresários a adquirir as capacidades / meios / receitas / instrumentos para retomar / desenvolver / criar esta atividade?

Acrescento à lista uma pergunta minha. Não há nada que as grandes corporações que controlam o planeta, assim como os políticos neoliberais que os representam nas várias instâncias do Estado, temam mais do que a desobediência civil. No Brasil, as esmolas que concedem para que os mais pobres sobrevivam à pandemia têm por objetivo estancar a possibilidade do “caos social” ou de uma “convulsão social”. Ou seja: o povo nas ruas e já sem nada a perder.

Desde o final de 2018, o movimento que mais balançou a “normalidade” que os senhores do mundo tanto prezam foi a desobediência civil dos adolescentes, que se recusaram a ir para a escola a cada sexta-feira. No ato da greve escolar, eles denunciavam que os adultos roubaram o seu futuro ao não fazer o necessário para conter o colapso climático. Sem futuro, para que estudar? Como são crianças e adolescentes, esta era a desobediência civil disponível. E como funcionou.

Assim, a minha pergunta é: qual poderia ser a melhor ação de desobediência civil neste momento?

No Brasil de Bolsonaro, sabemos que nossa principal desobediência civil é sobreviver. Mas, para além de nos mantermos vivos, como podemos desobedecer aos produtores de morte para criarmos um futuro onde possamos existir com todos os outros?

Encerro com Ailton Krenak, porque acho que as melhores ideias virão dos pensadores indígenas, daqueles que sabem como viver sem esgotar o planeta e sem produzir iniquidades. Ele diz: “O próprio enunciado de alguma coisa que virá depois anima nosso sentido de viver. É a ideia de adiar o fim do mundo. Nós adiamos o fim de cada mundo, a cada dia, exatamente criando um desejo de verdade de nos encontrarmos amanhã, no final do dia, no ano que vem. Esses mundos encapsulados uns nos outros que nos desafiam a pensar um possível encontro das nossas existências – é um desafio maravilhoso”.

Vamos?

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Eliane Brum: O vírus somos nós (ou uma parte de nós)

O futuro está em disputa: pode ser Gênesis ou Apocalipse (ou apenas mais da mesma brutalidade)

No princípio era o vírus. Coronavírus. Em menos de dois meses após a primeira morte, registrada na China em 9 de janeiro, ele atravessou o mundo a bordo de nossos corpos que voam em aviões. Tornou-se onipresente no planeta, ainda que tão invisível quanto certos deuses para olhos humanos. Hoje, 1,7 bilhão de pessoas, cerca de um quinto da população global, está em isolamento. Escolas, restaurantes, cinemas e até shoppings cerraram as portas, fronteiras de países e de continentes fecharam, aviões se esvaziaram, presidentes maníacos finalmente foram reconhecidos como presidentes maníacos, neoliberais foram vistos clamando —“cadê o Estado? cadê o Estado?” —, ardorosos defensores dos planos privados de saúde compartilharam campanhas pelo fortalecimento do SUS, terraplanistas exigiram respostas da ciência. Pelas janelas do Facebook, Twitter, Whatsapp e Instagram, pessoas decretam: o mundo nunca mais será o mesmo.

Não será. Mas talvez seguirá sendo bastante do mesmo. Além de nossa sobrevivência, o que disputamos neste momento é em que mundo viveremos e que humanos seremos depois da pandemia. Essas respostas vão depender do modo como vivermos a pandemia. O depois, o pós-guerra global do nosso tempo, vai depender de como escolhemos viver a guerra. Não é verdade que na guerra não há escolhas. A verdade é que, na guerra, as escolhas são muito mais difíceis e as perdas decorrentes dela são muito maiores do que em tempos normais.

Na guerra, temos dois caminhos pessoais que determinam o coletivo: nos tornarmos melhores do que somos ou nos tornarmos piores do que somos. Esta é a guerra permanente que cada um trava hoje atrás da sua porta. Momentos radicais expõem uma nudez radical. Isolados, é também com ela que nos viramos. O que o espelho pode mostrar não é a barriga flácida. Pouco importa, já não há onde nem para quem desfilar barrigas-tanquinho. O duro é encarar um caráter flácido, uma vontade desmusculada, um desejo sem tônus que antes era mascarado pela espiral dos dias. O duro é ser chamado a ser e ter medo de ser. Porque é isso que momentos como este fazem: nos chamam a ser.

Em tempos mais normais, podemos fingir que não escutamos o chamado a ser. Cobrimos essa voz com automatismos, a vida se resume a consumir a vida consumindo o planeta. Consumidores não são, já que consomem o ser. E agora, quando já não se pode consumir, porque logo pode não haver o que consumir nem quem possa produzir o que consumir, como é que se aprende a separar os verbos? Como se faz um consumidor se tornar um ser?

Se usamos a palavra guerra, precisamos olhar cuidadosamente para o inimigo. É o vírus, essa criatura que parece uma bolinha microscópica cheia de pelos, quase fofa? É o vírus, esse organismo que só segue o imperativo de se reproduzir? Penso que não. O vírus não tem consciência, não tem moral, não tem escolha. Vamos precisar derrotá-lo em nossos corpos, neutralizá-lo para reiniciar isso que chamamos de o outro mundo que virá. Tudo indica, porém, que outras pandemias acontecerão, outras mutações. A forma como vivemos neste planeta nos tornou vítimas de pandemias. O inimigo somos nós. Não exatamente nós, mas o capitalismo que nos submete a um modo mortífero de viver. E, se nos submete, é porque, com maior ou menor resistência, o aceitamos. Escapar do vírus da vez poderá não nos salvar do próximo. O modo de viver precisa mudar. Nossa sociedade precisa se tornar outra.

O impasse imposto pela pandemia não é novo. É o mesmo impasse colocado há anos, décadas, pela emergência climática. Os cientistas —e mais recentemente os adolescentes— repetem e gritam que é preciso mudar urgentemente o jeito de viver ou estaremos condenados ao desaparecimento de parte da população. E, quem sobreviver, estará condenado a uma existência muito pior num planeta hostil.

Todos os dados mostram que a Terra, esta que segue redonda, está superaquecendo em níveis incompatíveis com a vida de muitas espécies. Esse superaquecimento mudará radicalmente —para pior— o nosso habitat. Todas as informações científicas apontam que é preciso parar de devorar o planeta, que há que se mudar radicalmente os padrões de consumo, que a ideia de crescimento infinito é uma impossibilidade lógica num mundo finito. É um fato comprovado que os humanos, pela emissão de carbono desde a revolução industrial, cortando árvores, queimando carvão e depois petróleo, se tornaram uma força de destruição capaz de alterar o clima do planeta.

Desde o segundo semestre de 2018 adolescentes do mundo inteiro abandonam as escolas toda sexta-feira para gritar nas ruas que os adultos estão roubando seu futuro. Eles dizem: parem de consumir, fiquem no chão, nosso planeta não aguenta mais tanta emissão de carbono. Dizem ainda, literalmente: “vocês estão cagando no nosso futuro”. Greta Thumberg, a jovem ativista sueca, avisou repetidamente: “nossa casa está em chamas”. Acordem.

Está tudo escrito, falado, repetido, documentado. Ninguém pode dizer que não sabe. Bem, Bolsonaro, o maníaco que nos governa, sempre pode, porque diz e desdiz a cada minuto. Mas, sério, quem ainda aguenta falar nesse demente, que está criminosamente aumentando o risco de morte dos brasileiros, a não ser para gritar “Fora!”? Isolemos esse boçal, deixemos Bolsonaro procurando onde estão suas orelhas, aprendendo a como enfiar a máscara no rosto sem tapar os olhos.

O efeito da pandemia é o efeito concentrado, agudo, do que a crise climática está produzindo de forma muito mais lenta. É como se o vírus desse uma palhinha do que viveremos logo mais. Conforme os níveis de superaquecimento global, chegaremos a um estágio de transformação do clima e, por consequência do planeta, para o qual não há volta, não há vacina, não há antídoto. O planeta será outro.

É por isso que cientistas, intelectuais indígenas e ativistas climáticos têm gritado para uma maioria que se finge de surda, para não ter que sair do seu conforto mudando velhos hábitos, que é preciso alterar os padrões de consumo radicalmente, que é preciso pressionar radicalmente os governantes para políticas públicas imediatas, que é preciso combater radicalmente as grandes corporações que destroem o planeta. Mas, como a crise climática é lenta, sempre foi possível fingir que não estava acontecendo, chegando ao paroxismo de eleger negacionistas como Jair Bolsonaro, Donald Trump e toda a conhecida corja de destruidores do mundo.

O vírus não permite fingimentos. Ele possivelmente saltou de um morcego, espécie cujo habitat também destruímos, para se hospedar no organismo dos humanos. Nada mais fez do que tocar sua vida de vírus. De repente, homens e mulheres do mundo inteiro que fingiam não ter nem corpo nem limites, transbordando na internet, tiveram que se haver com a própria carne e com os próprios contornos. Já não há mais como escapar do corpo. E já não há mais como permanecer refestelado no próprio umbigo.

Toda a ilusão de que o mundo é controlado pelos humanos se desfez em tempo recorde. E a humanidade finalmente descobriu que há um mundo além de si, povoado por outros que podem até mesmo acabar com a nossa espécie. Outros que a gente nem consegue enxergar. No nosso furor de espécie dominante, extinguimos tantas outras e tantos modos de vida, trancamos animais maravilhosos em jaulas, criamos campos de concentração de bois, porcos e galinhas, envenenamos peixes com mercúrio apenas porque gostamos de ouro, promovemos holocaustos diários para nos alimentar, estupramos vacas com aparelhos porque desejamos comer seus tenros bebês em refinadas refeições e desejamos roubar seu leite dia após dia, arrancamos a floresta para fazer campo de soja para alimentar animais escravizados. Podíamos tudo.

E aí vem o vírus, que não está interessado em nos passar nenhuma mensagem, só está mesmo cuidando da própria vida, e mostra: vocês, humanos, não estão sozinhos nesse planeta nem têm o controle que acreditam ter. E então aqueles que debochavam dos cientistas do Clima e da Terra, chamavam a crise climática de “complô marxista”, querem agora saber como a ciência pode salvá-los da bolinha peluda. Até tentaram inventar que o novo coronavírus é uma “gripezinha”, “uma fantasia”, “uma histeria”. Mas o povo brinca com tudo e está pronto a acreditar em qualquer bobagem, até em Terra Plana, desde que lhe garantam seguir no seu modo zumbi. Mas o povo não brinca com saúde. Quando o assunto é saúde, até a Terra Plana dá voltas.

Menciono “humanidade”, “povo”, “população”. Mas não há homogeneidade aí, não existe um genérico chamado “humano”. Assim como não estamos todos no mesmo barco. Nem para o coronavírus nem para a crise climática. Mais uma vez, a comparação entre coronavírus e crise do clima faz todo o sentido. A ONU criou o conceito de “apartheid climático”, um reconhecimento de que as desigualdades de raça, sexo, gênero e classe social são determinantes também para a mudança do clima, que as reproduz e as amplia. Aqueles que serão os mais atingidos pelo superaquecimento global —negros e indígenas, mulheres e pobres —foram os que menos contribuíram para provocar a emergência climática. E aqueles que produziram a crise climática ao consumir o planeta em grandes porções e proporções —os brancos ricos de países ricos, os brancos ricos de países pobres, os homens, que nos últimos milênios centralizaram as decisões, nos trazendo até aqui— são os que serão menos afetados por ela. São esses que já passaram a erguer muros e a fechar as fronteiras muito antes do coronavírus porque temem os refugiados climáticos que criaram e que serão cada vez mais numerosos no futuro bem próximo.

Na pandemia de coronavírus há o mesmo apartheid. É bem explícito qual é a população que tem o direito a não ser contaminada e qual é a população que aparentemente pode ser contaminada. Não é coincidência que a primeira morte por coronavírus no Rio de Janeiro foi uma mulher, empregada doméstica, a quem a “patroa” nem reconheceu o direito à dispensa remunerada do trabalho, para fazer o necessário isolamento, nem achou necessário contar que poderia estar contaminada por coronavírus, cujos sintomas já sentia depois de voltar de um Carnaval na Itália. Essa primeira morte no Rio é o retrato do Brasil e das relações entre raça e classe no país, expostas em toda a sua brutalidade criminosa pela radicalidade de uma pandemia.

O espantoso é que a necessidade de muitos de ter sua casa limpa e a comida pronta pela empregada doméstica, a quem negaram o direito ao isolamento remunerado, é maior até do que o instinto de sobrevivência. Isso nos informa muito sobre uma parcela da sociedade brasileira, esta em que os porteiros continuam abrindo a porta dos edifícios para os moradores não tocarem eles mesmos na maçaneta, quando vão ao jardim arejar ou ao supermercado comprar comida. Ficar sem empregados domésticos parece ser mais trágico do que enfrentar o vírus para uma parcela das classes média e alta brasileiras. Esta última muito acostumada a acreditar-se a salvo do pior, porque em geral está.

O poder de devastação do vírus é determinado pelas escolhas dos governos e da população que elegeu os governantes. Neste momento, os brasileiros estão tendo que se haver com a escolha de sucatear o SUS, com a escolha de reduzir o investimento em programas sociais que pudessem reduzir a desigualdade, com a escolha de não fazer reforma agrária nem redistribuição de renda, com a escolha de não priorizar o saneamento básico e a moradia digna. Com a escolha de fazer teto para gastos públicos também em áreas essenciais como saúde e educação.

Os brasileiros estão sendo obrigados a se haver, principalmente, com a escolha de fazer do “Mercado” um deus-entidade que se autorregula. Se o Mercado foi a explicação de tudo para as medidas mais brutais defendidas por essa praga persistente chamada “economistas neoliberais” ou “ultraliberais”, que se autodeclararam com autoridade e poder para determinar todas as áreas de nossa vida, cadê o Mercado agora? Por que não pedem que o Mercado resolva a pandemia? Ao contrário, os representantes do Mercado estão demitindo e dispensando os empregados e pedindo ajuda emergencial do Governo para não falir.

Mas, não se iludam. Assim que a pandemia passar, o Mercado voltará com todo o seu poder de oráculo para, por meio de suas sacerdotisas, os economistas neoliberais ou ultraliberais, nos ditar tudo o que temos que fazer para sair da recessão. Este ônus, como sempre, será dividido igualmente entre os mais pobres.

O vírus —e não as péssimas escolhas— será o culpado de todas as mazelas. Até o corona, como sabemos, a economia do mundo capitalista e do Brasil de Paulo Guedes estava uma maravilha, parece até que domésticas estavam planejando uma excursão para a Disney quando foram impedidas pelo maldito vírus com nome de ducha. E, claro, o maníaco do Planalto vai dizer que não é nem ele nem seu Posto Ipiranga os incompetentes, mas “a histeria” com a “gripezinha”.

Nada está dado, porém. Não é só o futuro que está em disputa, mas o presente. Isoladas em casa, as pessoas passaram a fazer o que não faziam antes: enxergar umas as outras, reconhecer umas as outras, cuidar umas das outras. Justo agora, quando ficou muito mais difícil, parece ter se tornado mais fácil alcançar o outro. Quem criou esse conceito —“isolamento social”— estava com falha de raciocínio. O que temos que fazer e muitos estão fazendo é “isolamento físico”, como apontou no Twitter o sociólogo Ben Carrington. O que está acontecendo hoje é exatamente o contrário de isolamento social. Fazia muito tempo que as pessoas, no mundo inteiro, não socializavam tanto.

No Brasil, o grande momento de socialização é o panelaço de “Fora Bolsonaro!” nas janelas. Em outros países têm música, até poesia, nas sacadas. Para os brasileiros, mostrar que se encontraram com a realidade do outro é reconhecer a realidade de que botaram um maníaco no Planalto e precisam tirá-lo de lá se quiserem sobreviver. Mas também por aqui há festas de aniversário com bolinho na porta e vizinhos cantando parabéns das janelas, jovens fazendo compras para os velhos do prédio, avós almoçando com as netas pelo FaceTime, famílias e grupos de amigos conversando por aplicativos como há tempo não faziam. É incrível, mas finalmente os humanos descobriram que podem usar o celular para se encontrarem, em vez de se isolarem cada um no seu aparelho em torno de mesas de bares e restaurantes.

Muitas das ações da direita e da extrema direita no Brasil dos últimos anos tiveram como objetivo neutralizar e sepultar uma insurreição das periferias, no sentido mais amplo, que começava a questionar, de forma muito contundente, os privilégios de raça e de classe. Começava a reivindicar sua justa centralidade. Marielle Franco era um exemplo icônico destes Brasis insurgentes que já não aceitavam o lugar subalterno e mortífero ao qual haviam sido condenados. A pandemia mostrou explicitamente que a rebelião continua viva. O Brasil das elites boçais, aliado à nova boçalidade representada pelos mercadores da fé alheia, não conseguiu matar a insurreição. O “Manifesto das Filhas e dos Filhos das Empregadas Domésticas e das Diaristas”, afirmando que não permitiriam que os patrões deixassem suas mães morrer pelo coronavírus, foi talvez o grito mais potente deste momento, impensável apenas alguns anos atrás.

Dezenas de “vaquinhas” estão em curso, grande parte delas organizadas a partir das favelas e das periferias, para garantir alimentação e produtos de limpeza para a parcela da população a quem o direito ao isolamento é sequestrado pela desigualdade brasileira. Em geral, o lema é “Nós por Nós”: séculos de história provaram que só os explorados e os escravos podem salvar a si mesmos.

Alguns organizadores dessas campanhas temem que o tempo dos corações abertos, onde brotam margaridas de solidariedade, pode acabar em algumas semanas, quando a comida escassear e a fome se estabelecer, quando o medo de o dinheiro acabar, para aqueles que ainda têm dinheiro mas não sabem por quanto tempo, empedre veias e artérias, quando o número de casos estiver tão fora do controle que o sistema de saúde implodir. É lá, neste lugar ao qual possivelmente ainda chegaremos, que vamos definir quem de fato somos —ou quem queremos ser. Então saberemos. Não me parece que, desta vez, as pessoas aceitarão morrer como gado. Em especial, as mesmas pessoas de sempre.

A consciência da própria mortalidade costuma ter um efeito muito poderoso sobre as subjetividades. Filósofos têm disputado a interpretação do que será ou pode ser o mundo do pós-coronavírus. O esloveno Slavjoj Zizek acredita no poder subversivo do vírus, que pode ter dado um golpe mortal no capitalismo: “Talvez outro vírus muito mais benéfico também se espalhe e, se tivermos sorte, irá nos infectar: o vírus do pensar em uma sociedade alternativa, uma sociedade para além dos Estados-nação, uma sociedade que se atualiza nas formas de solidariedade e cooperação global”.

sul-coreano Byung-Chul Han, que dá aulas na Universidade de Artes de Berlim, acredita que Zizek está errado. “Após a pandemia, o capitalismo continuará com ainda mais pujança. E os turistas continuarão a pisotear o planeta”, afirma. “A comoção é um momento propício que permite estabelecer um novo sistema de Governo. Também a instauração do neoliberalismo veio precedida frequentemente de crises que causaram comoções. É o que aconteceu na Coreia e na Grécia. Espero que após a comoção causada por esse vírus não chegue à Europa um regime policial digital como o chinês. Se isso ocorrer, como teme Giorgio Agamben, o estado de exceção passaria a ser a situação normal. O vírus, então, teria conseguido o que nem mesmo o terrorismo islâmico conseguiu totalmente”.

Mas também ele se aproxima da ideia de uma outra sociedade possível no pós-guerra pandêmica: “O vírus não vencerá o capitalismo. A revolução viral não chegará a ocorrer. Nenhum vírus é capaz de fazer a revolução. O vírus nos isola e individualiza. Não gera nenhum sentimento coletivo forte. De alguma maneira, cada um se preocupa somente por sua própria sobrevivência. A solidariedade que consiste em guardar distâncias mútuas não é uma solidariedade que permite sonhar com uma sociedade diferente, mais pacífica, mais justa. Não podemos deixar a revolução nas mãos do vírus. Precisamos acreditar que após o vírus virá uma revolução humana. Somos NÓS, PESSOAS dotadas de RAZÃO, que precisamos repensar e restringir radicalmente o capitalismo destrutivo, e nossa ilimitada e destrutiva mobilidade, para nos salvar, para salvar o clima e nosso belo planeta”.

Penso que a beleza que ainda resta no mundo é justamente que nada está dado enquanto ainda estivermos vivos. O vírus, que arrancou todos do lugar, independentemente do polo político, está aí para nos lembrar disso. A beleza é que, de repente, um vírus devolveu aos humanos a capacidade de imaginar um futuro onde desejam viver.

Se a pandemia passar e ainda estivermos vivos, será no momento de recompor as humanidades que poderemos criar uma sociedade nova. Uma sociedade capaz de entender que o dogma do crescimento nos trouxe até este momento, uma sociedade preparada para compreender que qualquer futuro depende de parar de esgotar o que chamamos de recursos naturais —e que os indígenas chamam de mãe, pai, irmão.

O futuro está em disputa. No amanhã, demorando ou não a chegar, saberemos se a parte minoritária, mas dominante, da humanidade seguirá sendo o vírus hediondo e suicida, capaz de exterminar a própria espécie ao destruir o planeta-corpo que a hospeda. Ou se barraremos essa força de destruição ao nos inventarmos de outro jeito, como uma sociedade consciente de que divide o mundo com outras sociedades. Saberemos, após tantas especulações, se o que vivemos é Gênesis ou Apocalipse, na interpretação do senso comum. Ou nada tão grandiloquente, mas imensamente decepcionante: a reedição de nossa invencível capacidade de adaptação ao pior, com a imediata adesão aos discursos salvacionistas que já nos escravizaram tantas vezes.

A pandemia de coronavírus revelou que somos capazes de fazer mudanças radicais em tempo recorde. A aproximação social com isolamento físico pode nos ensinar que dependemos uns dos outros. E por isso precisamos nos unir em torno de um comum global que proteja a única casa que todos temos. O vírus, também um habitante deste planeta, nos lembrou de algo que tínhamos esquecido: os outros existem. Às vezes, eles são chamados novo coronavírus. Ou SARS-CoV-2.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).


Eliane Brum: Por que Bolsonaro tem problemas com furos

Para compreender a brutal misoginia do antipresidente é necessário falar de Cassia e de Dilma

Em 18 de fevereiro, o antipresidente Jair Bolsonaro precisava tirar o foco da morte do miliciano Adriano da Nóbrega, pessoa-chave para esclarecer o esquema de “rachadinhas” no gabinete de Flávio Bolsonaro, a relação da família Bolsonaro com as milícias que atuam no Rio de Janeiro e também quem mandou matar Marielle Franco – e por quê. A eliminação de Nóbrega, com vários indícios de execução, voltava a colocar em destaque as relações dos Bolsonaros com as milícias. Era preciso desviar a atenção. Como de hábito, Bolsonaro usou o velho truque: criou um novo fato ao atacar a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo. A repórter, uma das mais competentes da sua geração, estava entre os jornalistas que denunciaram o uso fraudulento de nomes e CPFs para disparos de mensagens no WhatsApp em benefício de Bolsonaro. Uma de suas fontes, Hans River, ao depor na CPMI das Fake News do Congresso, disse que Patrícia teria tentado obter informações “a troco de sexo”, embora as trocas de mensagens entre os dois provem exatamente o contrário. Em sua coletiva informal diante do Alvorada, a mesma em que costuma mostrar bananas para os jornalistas, Bolsonaro atacou: “Ela [Patrícia] queria um furo. Ela queria dar o furo [pausa para risos] a qualquer preço contra mim”.

Este episódio, amplamente divulgado, revela mais do que o truque do manual dos novos fascistas para desviar a atenção do público. Bolsonaro tem problemas com furos. Em vários sentidos. Sua obsessão com o que cada um faz com seu ânus é notória. Está sempre tentando regular onde cada um coloca o próprio pênis. Volta e meia dá um jeito de falar de cocô, como fazem as crianças pequenas. Para ele, a vagina é um furo, visão bastante surpreendente para um homem com mais de 60 anos que já deveria, para o próprio bem, ter conhecido um pouco mais sobre o órgão sexual das mulheres. Chegou a dizer que a Amazônia “era uma virgem que todo tarado de fora quer”. Só um/a psicanalista que um dia recebesse Bolsonaro no seu divã poderia encontrar pistas para o que essa redução da sexualidade a uma coleção de furos – uns feitos para o estupro, outros proibidos para o sexo – significa. Nós, os governados por tal homem, só conseguimos entender que ele tem obsessão por furos, por cocô e por pênis. E que isso determina seu Governo.

Bolsonaro tem obsessão também por furos no sentido jornalístico da palavra, a notícia dada em primeira mão, a revelação do repórter sobre o que ninguém sabia. Patrícia, ao revelar junto com seu colega Artur Rodrigues o uso ilegal do Whatsapp na campanha, deu um furo que incomodou muito Bolsonaro e sua corte. E foi isso que a tornou um alvo. Essa história, a dos furos jornalísticos e da conflituosa relação de Bolsonaro com mulheres jornalistas é, porém, muito mais antiga. Ela funda a própria relação de Bolsonaro com a imprensa mais de 30 anos atrás, quando ele ainda era capitão do Exército. A história da misoginia (ódio às mulheres) da parcela dos brasileiros que Bolsonaro representa e também de parcelas dos brasileiros que não representa é, porém, ainda mais perigosa, porque não começa nem termina com Bolsonaro. A misoginia determinou os acontecimentos que culminaram na sua eleição.

Na semana em que o mundo comemorou o dia da mulher (8 de março) e que terão passados dois anos do assassinato de Marielle Franco (14 de março) sem sabermos quem a mandou matar e o porquê vale a pena olhar com toda a atenção para o que os fatos contam de Bolsonaro e também para o que os fatos contam da sociedade brasileira. Bolsonaro só se tornou o primeiro antipresidente da história porque parte da sociedade brasileira quer que as mulheres voltem a ser “belas, recatadas e do lar”. E não são apenas os toscos como Bolsonaro que querem isso, embora só estes saiam por aí contando orgulhosamente para o mundo.

1) A jornalista que denunciou Bolsonaro por planejar explodir bombas nos quartéis

A relação de Jair Bolsonaro, então capitão do Exército, com a imprensa iniciou em setembro de 1986, com a revista Veja. Naquele tempo, a Veja era a principal revista semanal do país e ser a principal revista semanal do país era algo muito importante. A tiragem chegava perto de um milhão de exemplares, o que é muito para um país de não leitores. Todas as pessoas que tinham qualquer poder, em diferentes áreas e níveis, liam a Veja já no sábado pela manhã. Na segunda-feira ou ainda no domingo, os principais jornais do país com frequência repercutiam algum furo da Veja. Foi neste palco midiático que Bolsonaro fez sua estreia muito bem sucedida na política: em artigo intitulado “O salário está baixo”, o jovem capitão reclamava da política salarial para os militares de José Sarney, o primeiro presidente civil depois da ditadura que oprimira o país de 1964 a 1985.

Após a publicação, Bolsonaro foi punido com 15 dias de prisão disciplinar, mas tornou-se muito popular entre soldados, oficiais e até mesmo entre generais de pijama. Bolsonaro gostou tanto de seus 15 minutos de fama que foi pessoalmente agradecer ao chefe da sucursal da revista no Rio de Janeiro. Naquele momento, ele via na imprensa a possibilidade de ganhar a importância que achava que merecia e talvez “ficar rico”, o que mais de uma vez afirmou desejar.

Um ano depois, porém, Bolsonaro odiaria a Veja. A “culpa” era de uma mulher: a jornalista Cassia Maria Rodrigues. Ela revelou o plano “Beco Sem Saída”, feito por Bolsonaro e um colega conhecido como “Xerife” (Fábio Passos), que consistia em botar bombas nos quartéis, mas sem ferir ninguém, para chamar a atenção para os baixos salários dos militares. Esta história está minuciosamente contada no livro O Cadete e o Capitão (Todavia, 2019), do jornalista Luiz Maklouf Carvalho, cuja leitura recomendo.

A cúpula do Exército, que havia criticado duramente Bolsonaro pelo artigo um ano antes, desta vez fechou-se para supostamente proteger a corporação. Ter dois oficiais ensandecidos e fora do controle planejando botar bombas bem na cara dos generais, e tudo isso na delicada transição para a democracia após uma ditadura militar que formalmente tinha acabado apenas dois anos antes, era uma notícia que os militares não queriam.

Cassia e a Veja foram acusadas de inventarem toda a história. Bolsonaro negou ter falado com a jornalista. Anos mais tarde, já deputado federal, a chamaria de “maluca”. A Veja então publicou na edição seguinte dois croquis feitos a mão por Bolsonaro quando deu a entrevista à repórter, mostrando o funcionamento do plano: em um deles, segundo a revista, viam-se as tubulações do que seria a adutora do Guandu, responsável pelo abastecimento de água no Rio de Janeiro e, junto delas, o desenho de uma carga de dinamite (“petardo de TNT”). Bolsonaro e Passos seguiram negando as informações da revista. Veja jamais recuou.

Para escrever o livro, Luiz Maklouf Carvalho destrinchou a gravação de todo o julgamento do caso no Superior Tribunal Militar, em 1988. Dois dos três laudos periciais grafotécnicos concluíram que Bolsonaro era o autor dos croquis. Cinco meses antes, um conselho de justificação do Exército já considerara o capitão culpado por 3 a 0 por ter tido “conduta irregular e praticado atos que afetam a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro de classe”.

Quando esperava ser chamada para dar seu depoimento à corte, Cassia foi ameaçada por Bolsonaro. O então capitão fez com os dedos o sinal que se tornaria sua marca registrada na presidência: a arma apontada. Ela então teria lhe perguntado se era uma ameaça de morte. Bolsonaro teria respondido que não, mas que ela “poderia se dar mal se continuasse com essa história”.

O ministro relator do caso, general Sérgio de Ary Pires, não hesitou em atacar a repórter de forma muito semelhante a que Bolsonaro usaria contra Patrícia Campos Mello e outras jornalistas quando na presidência, guardadas as diferenças de linguagem, de época e de referências. “A mentira está presente em todas as declarações e afirmações dessa famigerada repórter Cassia Maria”, afirmou. “Essa moça não deixa de ser uma vivandeira, sendo que as vivandeiras prestam serviços, lavam roupa dos soldados, e essa quer lavar a roupa suja dos quartéis”. Em uma de suas acepções, “vivandeiras” são as prostitutas que acompanhavam as tropas nos períodos de guerra. Como se vê, nunca faltou inspiração para Bolsonaro nas Forças Armadas do Brasil.

A forma como o julgamento foi manipulado para que Bolsonaro fosse liberado é flagrante. Tudo indica que Bolsonaro foi absolvido com o acordo de que deixasse o Exército. Seis meses depois do julgamento, já eleito vereador pelo Rio de Janeiro, Bolsonaro passou para a reserva. Começava então sua exitosa carreira como político profissional que converteria três de seus filhos homens também em políticos profissionais. Carreira exitosa no sentido fisiológico, já que, em seus quase 30 anos como deputado federal, Bolsonaro conseguiu aprovar apenas dois projetos – fato que não impediu os eleitores de elegerem-no presidente da República em 2018.

O germe de tudo o que Bolsonaro se tornaria estava lá, no episódio das bombas. Seu ódio à imprensa que não come na sua mão. Seu ódio à jornalista mulher que denunciou o seu plano e, por pouco, não abortou sua carreira política iniciante e suas grandes esperanças para si mesmo, o que poderia ter acontecido em caso de uma condenação pelo Superior Tribunal Militar. O gesto da arminha para ameaçar seus desafetos, hoje uma parte da população brasileira.

Naquele momento, Bolsonaro absorveu profundamente dois aprendizados que norteariam sua vida como político profissional: 1) é legítimo manipular a verdade e a justiça para proteger seus interesses, como a cúpula do Exército fez ao absolvê-lo apesar de todas as provas; 2) é possível planejar até mesmo um atentado terrorista, desmentir o que fez e o que efetivamente disse e sair não apenas ileso, mas eleito.

Hoje, na presidência, Bolsonaro chegou ao ponto de constantemente desmentir inclusive a si mesmo. Nenhum outro político corrompeu a verdade como ele, ao tornar-se o principal expoente da autoverdade: o conceito de que a verdade é uma escolha pessoal, do indivíduo, desconectada dos fatos.

Em 1993, em entrevista aos pesquisadores Maria Celina D’Araújo e Celso Castro, o general Ernesto Geisel, quarto militar a presidir o Brasil durante a ditadura, afirmou: “Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar”. Quando uma parte dos generais apoiou a candidatura de Bolsonaro, em 2018, não importava que fosse um “mau militar”. Sabiam quem era Bolsonaro e queriam Bolsonaro. Não há um grupo de militares de alta patente responsável que de repente se surpreendeu com o descontrole de Bolsonaro – ou um grupo de militares responsáveis e outros tresloucados, os bons e os maus, os ideológicos e os não ideológicos. Tudo isso é narrativa para criar oposição sem oposição.

Na mesma linha, quando uma parte dos generais apoiou a candidatura de Bolsonaro, em 2018, era exatamente Bolsonaro quem queriam. Não há um grupo de militares de alta patente responsável que de repente se surpreendeu com o descontrole de Bolsonaro – ou um grupo de militares responsáveis e outros tresloucados, os bons e os maus, os ideológicos e os não ideológicos. Tudo isso é narrativa para criar oposição sem oposição.

O descontrole de Bolsonaro é útil. É possível que alguns generais tenham a ilusão de que, na hora certa, poderão controlá-lo. No momento, porém, Bolsonaro está fazendo exatamente o que se esperava que fizesse. Os militares voltaram ao Planalto, o que parecia impensável apenas alguns anos atrás, e parte deles visto como poços de temperança diante do “Cavalão” que ocupa o cargo máximo da República. O roteiro segue seu curso. Um exagero ali, um acidente aqui, mas tal qual como previsto no essencial.

Bolsonaro é, por vários caminhos, produto de uma parcela influente do Exército brasileiro – e não uma anomalia deste mesmo Exército. Passou da hora de compreender isso.

2) Precisamos falar sobre Dilma Rousseff

Se Jair Bolsonaro fosse apenas uma aberração na trajetória do Brasil, uma espécie de pesadelo distópico que pudesse ser superado em quatro anos, como acreditam alguns, a situação do país seria muito mais tranquilizadora. A questão é tanto que o bolsonarismo vai muito além de Bolsonaro quanto que Bolsonaro não foi eleito por acaso. Há um Brasil que ele representa. Por um lado, há os tais 30% que as pesquisas mostram permanecerem com ele de forma incondicional, ou seja, independentemente do que ele faça (ou não faça). E 30% não é pouca coisa. Por outro, Bolsonaro não inventou o Brasil que ele representa, embora tenha ajudado a criá-lo e siga lhe dando forma. Esta é a parte mais complicada. E por isso será mais difícil enfrentá-la do que enfrentar o homem que a encarna.

Não é possível analisar a última década do Brasil sem olhar com muita atenção para a resistência das mulheres e a resistência às mulheres. A misoginia e o machismo não foram as causas diretas do impeachment de Dilma Rousseff. Mas foi a primeira mulher presidenta da história que sofreu um impeachment sem nenhuma base legal. A misoginia, o machismo, o racismo e a homofobia não foram as causas diretas do assassinato de Marielle Franco. Mas foi uma mulher negra, lésbica e criada na favela que foi assassinada no crime político mais marcante dos últimos anos. A maior manifestação organizada por mulheres da história do Brasil foi contra Bolsonaro. O “Ele Não” foi também o maior movimento de resistência à eleição de Bolsonaro. Assim como o grupo que mais rechaçou Bolsonaro como candidato foi o das mulheres negras e pobres.

Não há coincidências. Bolsonaro canaliza várias forças, entre elas esse homem que teme perder seu lugar e que bota toda a precarização da sua vida na conta de um mundo cujos signos já não reconhece. Um homem que acha que tudo pode se resolver se os meninos voltarem a vestir azul e as meninas, rosa. Um homem que acha uma ótima piada falar do furo da jornalista porque enxergar a vagina como um buraco aplaca o seu medo de fracassar.

Não é por acaso que a economia é um reduto de machos liderado por Paulo Guedes, o ilustrado da “Escola de Chicago” que comete uma violência verbal atrás da outra, muito mais parecido com Bolsonaro do que com qualquer outro. Os neoliberais da economia e os defensores do patriarcado pertencem ao mesmo mundo. Não é por acaso que estão no mesmo governo. Essa mania de compartimentalizar as coisas entorna qualquer análise séria.

Quando parte da sociedade brasileira se choca com a violência de Bolsonaro contra as jornalistas mulheres, é necessário voltar os olhos para a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT). Perguntar-se o porquê de tanto ódio contra Dilma, o que é muito diferente de divergir de suas ideias e de seu governo. Ódio é de outra ordem, movido por outras ordens de circunstâncias.

Jair Bolsonaro tornou-se presidenciável no dia em que cometeu uma violência contra Dilma Rousseff e, mais uma vez, não foi punido. Ao votar pela destituição de Dilma homenageando o torturador, coronel Carlos Alberto Brilhante UstraBolsonaro converteu o impeachment em uma nova tortura contra a então presidenta que foi uma das mulheres torturadas pela ditadura. Era 17 de abril de 2016, data em que o Brasil se envergonhou diante de si mesmo e do mundo. Bolsonaro, então deputado federal, fez ainda o aposto nojento: “Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”. Simbolicamente, aquele momento foi tanto o último dia de Dilma no governo como o primeiro dia da campanha de Bolsonaro.

Bolsonaro só chegou neste ponto, porém, porque podia. E só ultrapassa todos os limites hoje porque segue podendo. Bolsonaro descobriu, nos anos 1980, que a justiça não o barraria, fosse a militar, fosse a civil. Até hoje ele não teve motivo para duvidar desta certeza.

E por que podia contra Dilma? Porque uma parcela significativa da sociedade chamava Dilma de “vaca” e de “vagabunda” nas janelas e sacadas enquanto espancava suas panelas, sem que houvesse grande revolta por essa brutalidade. Parte da imprensa, que hoje acertadamente denuncia a violência de Bolsonaro contra as mulheres jornalistas, no máximo lamentava a deselegância e a má escolha dos termos, mas tratava as agressões misóginas, machistas e violentas contra Dilma como liberdade de expressão.

Afirmo e seguirei repetindo que Dilma Rousseff foi uma má governante e que cometeu vários atos autoritários, em especial na Amazônia. Mas esse debate é no plano dos fatos e das ideias. O que se viu no Brasil, em especial no segundo mandato, foi um ataque misógino contra Dilma. Não por discordar de suas ideias e atos, mas por ser mulher. Algumas vezes esse ataque, como apontou a jornalista Cynara Menezes em seu site, partiu de jornalistas mulheres que hoje acusam as agressões de Bolsonaro. Não se trata de justificar uma agressão com a outra. Todas elas são terríveis e há que se lamentar uma por uma. Além disso, a violência contra as mulheres praticadas por um presidente da República será sempre a de maior consequência porque não há maior responsabilidade do que a de quem ocupa o cargo máximo de um país pelo voto da maioria. Mas isso não exime a imprensa de refletir sobre o seu papel na escalada dos últimos anos. O desrespeito contra Dilma, mesmo quando ela ainda permanecia no cargo, foi tratado como “natural”.

Um dos ataques mais vergonhosos foi a imagem do estupro recorrente da presidenta. No segundo semestre de 2015, um adesivo apareceu no tanque de gasolina de carros pelo país. Representava a figura de uma Dilma sorridente, de pernas abertas. Quando o carro era abastecido, a bomba de gasolina penetrava sexualmente a presidenta do país. Quem usava o adesivo justificava a montagem criminosa como um protesto contra o aumento da gasolina, mas a mensagem era tão explícita quanto o ato. A presidenta era estuprada a cada vez que o tanque era abastecido.

Imagens semelhantes são hoje disseminadas para agredir jornalistas e intelectuais mulheres. E não só pela extrema direita. Também pela extrema esquerda. O fato precursor foi a violência contra Dilma Rousseff. Se todas as vítimas de violência devem ser lamentadas, também é evidente que a violência contra a mulher que ocupa o cargo máximo da nação, ao ser tolerada, tem um outro nível de consequência e de mensagem para a população do país que ela governa. A maior parte da sociedade e também uma parcela significativa da imprensa se indignou muito menos do que deveria com o estupro coletivo e em série de Dilma pelas bombas de gasolina espalhadas pelo país. Com Dilma, aparentemente, tudo podia.

Em abril de 2016, pouco antes da votação pela abertura do impeachment, a revista IstoÉ deu a seguinte manchete: “As explosões nervosas da presidente”. Na foto de capa, Dilma aparecia gritando. A fotografia documentava o momento em que a presidenta comemorava um gol da seleção brasileira na Copa de 2014. Mas foi tirada do seu contexto e, junto com o título, usada para dar a ideia de que Dilma estava fora do controle, logo precisava ser tirada do poder. No texto, era dito literalmente que ela teria perdido “as condições emocionais para conduzir o governo”. A matéria relatava os calmantes que a presidenta estaria tomando, usando o preconceito persistente contra os distúrbios mentais para desqualificá-la. Dilma era apresentada como o clichê clássico da mulher histérica.

Antes de arrancarem-na do governo para o qual fora eleita, por meio de um impeachment sem fatos que o justificassem, Dilma Rousseff foi tratada com os dois estereótipos costumeiramente usados contra as mulheres. No tanque de gasolina dos “cidadãos de bem” era a puta; na revista era a louca. A primeira “merecia” ser estuprada, a segunda deveria ser alienada de seus direitos, como o eram os loucos na lógica manicomial que voltava com toda a força. E ela de fato seria alienada do direito de governar que seus eleitores haviam lhe garantido pelo voto.

O que se escolhe para desqualificar aquele ou aquela que se busca destruir não é um dado secundário. Quando as paixões emergiram e o cálculo dos que calculam as instrumentalizaram para derrubar uma presidenta eleita, as subjetividades irromperam para arrancar Dilma Rousseff do lugar máximo de poder no país e recolocá-la no lugar tradicional reservado às mulheres que ousam reivindicar igualdade. A facilidade com que um Congresso de maioria comprovadamente corrupta anulou o voto da população com o apoio de parte da sociedade e da imprensa é indissociável da tolerância, estímulo e muitas vezes protagonismo desta mesma sociedade e imprensa em atos de violência contra a primeira mulher que alcançou o posto. Ninguém tem o direito de se iludir: escolhas como estas têm custo.

Vale ainda um destaque que costuma causar incômodo em leitores que até então vinham gostando do texto. Muitos minimizam o papel da equiparação dos direitos das empregadas domésticas ao dos demais trabalhadores, a chamada “PEC das Domésticas”, que ficou associada ao nome de Dilma Rousseff. Na minha opinião, foi determinante para o ódio que parte da classe média passou a sentir pela presidenta. As empregadas domésticas, a maioria delas negras, eram consideradas um direito adquirido da classe média. A emancipação feminina no Brasil não foi feita com políticas públicas, como creches para os filhos e escola integral, ou com divisão do trabalho doméstico entre homens e mulheres. Foi a exploração das mulheres mais pobres, que deixavam suas próprias casas e filhos para cuidar da casa e dos filhos dos mais ricos, em troca de uma jornada extenuante e um salário que garantia apenas a reprodução da miséria, que garantiu uma carreira para as mulheres de classe média.

Me refiro à classe média porque os mais ricos não tiveram a renda familiar abalada pelo aumento do custo de manter uma empregada doméstica, ainda que parte deles também tenha reclamado muito – “Onde esse mundo vai parar?!!! Daqui a pouco vão querer ir pra Disney”. Igualar essas domésticas, seguidamente com trabalho análogo à escravidão, à precariedade dos demais trabalhadores foi algo que muitos – e muitas – não perdoaram à Dilma Rousseff. Ela teria se metido onde não devia: no quartinho sem janela dos fundos da casa e dos apartamentos da classe média brasileira.

Quem acha que esta não foi uma das questões determinantes para o que era ódio – e não discordância de ideias – deve lembrar do recente episódio de Paulo Guedes, reclamando dos tempos da “festa” do dólar baixo, em que “até empregada doméstica ia pra Disneylândia”. Mais uma vez, não há compartimentos. Desigualdade racial e social, patriarcado e política econômica sempre estiveram visceralmente ligados no Brasil.

O ano em que a “nova direita” liderou as manifestações de rua contra a primeira mulher na presidência também foi o ano do que seria chamado “primavera feminista” no Brasil. Milhares de mulheres foram às ruas denunciar o machismo e lutar contra a ameaça de retrocessos em curso no Congresso de Eduardo Cunha. A campanha #PrimeiroAssedio, lançada pelo site feminista Think Olga, em que as mulheres contavam os abusos que sofreram, causou enorme impacto.

A nova geração de feministas se movia com desenvoltura nas redes sociais e deu enorme potência aos movimentos iniciados por suas mães e avós. Era ainda fortalecida pelo protagonismo crescente das mulheres negras, muitas delas as primeiras de sua família a chegar à universidade. Mesmo homens que se consideravam feministas se assustaram com o que consideravam “excessos” e “radicalidade” e lidaram mal com os questionamentos persistentes. Assim como havia acontecido com os negros e o racismo no debate das cotas, a confrontação dos privilégios de gênero atingiu fortemente aqueles que nunca antes haviam se percebido como machistas – ou nunca antes haviam sido acusados de serem machistas.

O privilégio de se considerar “um cara bacana” é, assim como o de se considerar “um branco bacana”, muito mais enraizado do que parece. Intelectuais de esquerda bateram forte nas mulheres em artigos e nas redes sociais, já que não podiam bater nelas fisicamente. Espremendo toda a retórica e o usual name-dropping, vários artigos foram escritos apenas para dizer, com muito ódio e ressentimento, que as mulheres não são capazes de pensar bem e não deveriam estar ocupando o espaço que alguns homens queriam continuar mantendo como uma reserva de mercado natural. Como em colunas de opinião publicadas na imprensa, por exemplo. Mulheres deveriam apenas fazer crônicas sentimentais, não analisar política. É claro que esses sentimentos pouco sofisticados não eram confessados, mas sim disfarçados pelo linguajar acadêmico e protegido por teses intelectualizadas. Ainda assim, para quem se dedica a escutar, eram explícitos.

O impeachment de Dilma Rousseff e a crescente ocupação das ruas pelas mulheres não foi uma coincidência de datas. A força dos novos feminismos e a violenta reação a eles, expressa tanto na política, por meio de projetos de lei, quanto no aumento do número de estupros e de feminicídios, podem estar intimamente conectadas. O que aconteceu e está em curso no Brasil se expressa numa teia intrincada. A pressão das novas mulheres – e o deslocamento do lugar do homem provocado por elas – são um dos fios dessa trama.

Não é obra do acaso que quem substituiu a primeira mulher na presidência, aquela que foi empossada trazendo com ela uma filha e não um marido, foi um vice como Michel Temer (MDB). Levou com ele ao Planalto a imagem de uma primeira-dama rodrigueana, “bela, recatada e do lar”, como titulou a revista Veja. Quem é, de fato, Marcela Temer, nunca soubemos, o que já diz bastante. Talvez ela nos surpreendesse. O retrato naftalínico do primeiro ministério de Temer foi apenas a transição para o meme colorido e explicitamente violento de Bolsonaro, apimentando as velhas elites que o apoiam com fardas e neopentecostalismo evangélico.

Entre as tantas perdas promovidas por um governo autoritário está a da anulação das diferenças das posturas, dos caráteres e das ideias. Quando há democracia, quando não é necessário escrever sobre um presidente que cria factoides como forma de manter o país em guerra, o debate avança, se torna sofisticado e mais amplo. E o país avança com ele. Lamentavelmente, esse processo costuma ser interrompido no Brasil, como acontece hoje. A função do autoritarismo é também a de interditar o debate.

Hoje, mais uma vez, é preciso fazer alianças com pessoas que até ontem cometiam violências semelhantes as que hoje denunciam porque o bolsonarismo é uma ameaça não apenas à democracia, esta que já se desfaz, mas à civilização, na falta de palavra melhor. O bolsonarismo é uma ameaça ao planeta, já que está destruindo a Amazônia numa velocidade sem precedentes. Quando uma ameaça da proporção do bolsonarismo se realiza e avança, é necessário suspender as dores mais do que justas e costurar as alianças possíveis para impedir a destruição dos valores fundamentais. Jamais, porém, devemos abdicar da memória. Alianças, sim. Apagamentos, não. Que ninguém se esqueça: seguiremos lembrando.

Quando Bolsonaro ataca a jornalista Patrícia Campos Mello, ele revela o quanto teme o bom jornalismo, o mesmo que décadas atrás denunciou seu plano de explodir bombas em quartéis. Bolsonaro também está desesperadamente tentando se esquivar de uma outra mulher. Quem assombra o seu Governo, a sua família e o seu futuro político é uma mulher negra: Marielle Franco. Enquanto a execução da vereadora do PSol não for desvendada, ela seguirá assombrando Bolsonaro. É este o furo que Bolsonaro mais teme.

Pelo bom senso, o presidente deveria ser o mais interessado em elucidar o crime. Infelizmente, por razões que a razão possivelmente não desconheça, ele não parece especialmente empenhado. Dois anos neste sábado, 14 de março, desde os tiros que arrebentaram a cabeça de uma mulher brilhante e continuamos sem saber quem mandou matar Marielle. Teremos, portanto, que seguir perguntando, e cada vez mais alto: Quem mandou matar Marielle? E por quê?

Bolsonaro, é necessário afirmar mais uma vez, não é um produto da ditadura. Bolsonaro é um produto da democracia deformada que se seguiu à ditadura. Foi essa democracia tantas vezes covarde e acovardada – conivente tanto com a impunidade dos crimes do regime de exceção quanto com a tortura e a morte dos mais pobres – que garantiu a sua impunidade desde o plano terrorista de 1987. O antipresidente que hoje governa o Brasil é o principal exemplo de toda a corrupção do sistema que finge denunciar. Só as instituições que até hoje falharam, deliberadamente ou não, em responsabilizá-lo pelos seus atos e falas podem impedir Bolsonaro de seguir produzindo violências contra as mulheres, contra os negros, contra os indígenas, contra a Amazônia, contra o planeta que depende da Amazônia. Contra o Brasil. Só a democracia efetiva pode barrar Bolsonaro.

Os golpes do século 21, vale repetir, não acontecem mais de repente, como era no século 20. No Brasil, assim como aconteceu e acontece em outros países neste momento, a democracia está sendo devorada ao modo dos parasitas: desde dentro, um pouco mais a cada dia. As chances desse corpo enfraquecido resistir diminuem com as horas. Não há milagre nem mágica. Só com o que ainda resta de democracia, e isso enquanto restar, é possível impedir os violentos de exercerem sua violência, os golpistas de completarem o golpe.

Termino com o desejo de que, inspiradas por Marielle Franco, as mulheres brasileiras e os homens feministas – porque feminismo é posição política, não depende de sexo e gênero – se coloquem em movimento. Que, junt@s, sejamos capazes de resistir e obrigar as instituições brasileiras a se reencontrarem com a vergonha enquanto ainda é possível. O tempo se esgota.

* Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: desacontecimentos.com | Email: elianebrum.coluna@gmail.com | Twitter: @brumelianebrum | Facebook: @brumelianebrum | Instagram: brumelianebrum


Eliane Brum: O golpe de Bolsonaro está em curso

Já está acontecendo: a hora de lutar pela democracia é agora

Só não vê quem não quer. E o problema, ou pelo menos um deles, é que muita gente não quer ver. O amotinamento de uma parcela da Polícia Militar do Ceará e os dois tiros disparados contra o senador licenciado Cid Gomes (PDT), em 19 de fevereiro, é a cena explícita de um golpe que já está sendo gestado dentro da anormalidade. Há dois movimentos articulados. Num deles, Jair Bolsonaro se cerca de generais e outros oficiais das Forças Armadas nos ministérios, substituindo progressivamente os políticos e técnicos civis no Governo por fardados – ou subordinando os civis aos homens de farda nas estruturas governamentais. Entre eles, o influente general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, segue na ativa, e não dá sinais de desejar antecipar seu desembarque na reserva. O brutal general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, chamou o Congresso de “chantagista” dias atrás. Nas redes, vídeos com a imagem de Bolsonaro conclamam os brasileiros a protestar contra o Congresso em 15 de março. “Por que esperar pelo futuro se não tomamos de volta o nosso Brasil?”, diz um deles. Bolsonaro, o antipresidente em pessoa, está divulgando pelas suas redes de WhatsApp os chamados para protestar contra o Congresso. Este é o primeiro movimento. No outro, uma parcela significativa das PMs dos estados proclama sua autonomia, transformando governadores e população em reféns de uma força armada que passa a aterrorizar as comunidades usando a estrutura do Estado. Como os fatos já deixaram claro, essas parcelas das PMs não respondem aos Governos estaduais nem obedecem a Constituição. Tudo indica que veem Bolsonaro como seu único líder. Os generais são a vitrine lustrada por holofotes, as PMs são as forças populares que, ao mesmo tempo, sustentam o bolsonarismo e são parte essencial dele. Para as baixas patentes do Exército e dos quartéis da PM, Bolsonaro é o homem.

É verdade que as instituições estão tentando reagir. Também é verdade que há dúvidas robustas se as instituições, que já mostraram várias e abissais fragilidades, ainda são capazes de reagir às forças que já perdem os últimos resquícios de pudor de se mostrarem. E perdem o pudor justamente porque todos os abusos cometidos por Bolsonaro, sua família e sua corte ficaram impunes. De nada adianta autoridades encherem a boca para “lamentar os excessos”. Neste momento, apenas lamentar é sinal de fraqueza, é conversinha de sala de jantar ilustrada enquanto o barulho da preparação das armas já atravessa a porta. Bolsonaro nunca foi barrado: nem pela Justiça Militar nem pela Justiça Civil. É também por isso que estamos neste ponto da história.

Essas forças perdem os últimos resquícios de pudor também porque parte do empresariado nacional não se importa com a democracia e a proteção dos direitos básicos desde que seus negócios, que chamam de “economia”, sigam dando lucro. Esta mesma parcela do empresariado nacional é diretamente responsável pela eleição de um homem como Bolsonaro, cujas declarações brutais no Congresso já expunham os sinais de perversão patológica. Estes empresários são os herdeiros morais daqueles empresários que apoiaram e se beneficiaram da ditadura militar (1964-1985), quando não os mesmos.

Uma das tragédias do Brasil é a falta de um mínimo de espírito público por parte de suas elites financeiras. Elas não estão nem aí com os cartazes de papelão onde está escrita a palavra “Fome”, que se multiplicam pelas ruas de cidades como São Paulo. Como jamais se importaram com o genocídio dos jovens negros nas periferias urbanas do Brasil, parte deles mortos pelas PMs e suas “tropas de elite”. Adriano da Nóbrega – aquele que, caso não tivesse sido morto, poderia dizer qual era a profundidade da relação da família Bolsonaro com as milícias do Rio de Janeiro e também quem mandou assassinar Marielle Franco – pertencia ao BOPE, um destes grupos de elite.

Não há nada comparável à situação vivida hoje pelo Brasil sob o Governo de Bolsonaro. Mas ela só é possível porque, desde o início, se tolerou o envolvimento de parte das PMs com esquadrões da morte, na ditadura e além dela. Desde a redemocratização do país, na segunda metade dos anos 1980, nenhum dos governos combateu diretamente a banda podre das forças de segurança. Parte das PMs se converteu em milícias, aterrorizando as comunidades pobres, especialmente no Rio de Janeiro, e isso foi tolerado em nome da “governabilidade” e de projetos eleitorais com interesses comuns. Nos últimos anos as milícias deixaram de ser um Estado paralelo para se confundir com o próprio Estado.

A política perversa da “guerra às drogas”, um massacre em que só morrem pobres enquanto os negócios dos ricos aumentam e se diversificam, foi mantida mesmo por governos de esquerda e contra todas as conclusões dos pesquisadores e pesquisas sérias que não faltam no Brasil. E seguiu sustentando a violência de uma polícia que chega nos morros atirando para matar, inclusive em crianças, com a habitual desculpa de “confronto” com traficantes. Se atingem um estudante na escola ou uma criança brincando, é “efeito colateral”.

Desde os massivos protestos de 2013, governadores de diferentes estados acharam bastante conveniente que as PMs batessem em manifestantes. E como ela bateu. Era totalmente inconstitucional, mas em todas as esferas, poucos se importaram com esse comportamento: uma força pública agindo contra o cidadão. Os números de mortes cometidas por policiais, a maior parte delas vitimando pretos e pobres, segue aumentando e isso também segue sendo tolerado por uns e estimulado por outros. É quase patológica, para não dizer estúpida, a forma como parte das elites acredita que vai controlar descontrolados. Parecem nem desconfiar de que, em algum momento, eles vão trabalhar apenas para si mesmos e fazer os ex-chefes também de reféns.

Bolsonaro compreende essa lógica muito bem. Ele é um deles. Foi eleito defendendo explicitamente a violência policial durante os 30 anos como político profissional. Ele nunca escondeu o que defendia e sempre soube a quem agradecer pelos votos. Sergio Moro, o ministro que interditou a possibilidade de justiça, fez um projeto que permitia que os policiais fossem absolvidos em caso de assassinarem “sob violenta emoção”. Na prática é o que acontece, mas seria oficializado, e oficializar faz diferença. Essa parte do projeto foi vetada pelo Congresso, mas os policiais seguem pressionando com cada vez mais força. Neste momento, Bolsonaro acena com uma antiga reivindicação dos policiais: a unificação nacional da PM. Isso também interessa – e muito – a Bolsonaro.

Se uma parcela das polícias já não obedece aos governadores, a quem ela obedecerá? Se já não obedece a Constituição, a qual lei seguirá obedecendo? Bolsonaro é o seu líder moral. O que as polícias militares têm feito nos últimos anos, ao se amotinarem e tocarem o terror na população é o que Bolsonaro tentou fazer quando capitão do Exército e foi descoberto antes: tocar o terror, colocando bombas nos quartéis, para pressionar por melhores salários. É ele o precursor, o homem da vanguarda.

O que aconteceu com Bolsonaro então? Virou um pária? Uma pessoa em que ninguém poderia confiar porque totalmente fora de controle? Um homem visto como perigoso porque é capaz de qualquer loucura em nome de interesses corporativos? Não. Ao contrário. Foi eleito e reeleito deputado por quase três décadas. E, em 2018, virou presidente da República. Este é o exemplo. E aqui estamos nós. Vale a pergunta: se os policiais amotinados são apoiados pelo presidente da República e por seus filhos no Congresso, continua sendo motim?

Não se vira refém de uma hora para outra. É um processo. Não dá para enfrentar o horror do presente sem enfrentar o horror do passado porque o que o Brasil vive hoje não aconteceu de repente e não aconteceu sem silenciamentos de diferentes parcelas da sociedade e dos partidos políticos que ocuparam o poder. Para seguir em frente é preciso carregar os pecados junto e ser capaz de fazer melhor. Quando a classe média se calou diante do cotidiano de horror nas favelas e periferias é porque pensou que estaria a salvo. Quando políticos de esquerda tergiversaram, recuaram e não enfrentaram as milícias é porque pensaram que seria possível contornar. E aqui estamos nós. Ninguém está a salvo quando se aposta na violência e no caos. Ninguém controla os violentos.

Há ainda o capítulo especial da degradação moral das cúpulas fardadas. Os estrelados das Forças Armadas absolveram Bolsonaro lá atrás e hoje fazem ainda pior: compõem sua entourage no Governo. Até o general Ernesto Geisel, um dos presidentes militares da ditadura, dizia que não dava para confiar em Bolsonaro. Mas aí está ele, cercado por peitos medalhados. Os generais descobriram uma forma de voltar ao Planalto e parecem não se importar com o custo. Exatamente porque quem vai pagar são os outros.

As polícias são a base eleitoral mais fiel de Bolsonaro. Quando essas polícias se tornam autônomas, o que acontece? Convém jamais esquecer que Eduardo Bolsonaro disse antes da eleição que “basta um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal Federal”. Um senador é atingido por balas disparadas a partir de um grupo de policiais amotinados e o mesmo filho zerotrês, um deputado federal, um homem público, vai às redes sociais defender os policiais. Não adianta gritar que é um absurdo, é totalmente lógico. Os Bolsonaros têm projeto de poder e sabem o que estão fazendo. Para quem vive da insegurança e do medo promovidos pelo caos, o que pode gerar mais caos e medo do que policiais amotinados?

É possível fazer muitas críticas justas a Cid Gomes. É possível enxergar a dose de cálculo em qualquer ação num ano eleitoral. Mas é preciso reconhecer que ele compreendeu o que está em curso e foi para a rua enfrentar com o peito aberto um grupo de funcionários públicos que usavam a estrutura do Estado para aterrorizar a população, multiplicando o número de mortes diárias no Ceará.

A ação que envergonha, ao contrário, é a do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), que, num estado em dificuldades, se submete à chantagem dos policiais e dá um aumento de quase 42% à categoria, enquanto outras estão em situação pior. É inaceitável que um homem público, responsável por tantos milhões de vidas de cidadãos, acredite que a chantagem vai parar depois que se aceita a primeira. Quem já foi ameaçado por policiais sabe que não há maior terror do que este, porque além de terem o Estado na mão, não há para quem pedir socorro.

Quando Bolsonaro tenta responsabilizar o governador Rui Costa (PT), da Bahia, pela morte do miliciano Adriano da Nóbrega, ele sabe muito bem a quem a polícia baiana obedece. Possivelmente não ao governador. A pergunta a se fazer é sempre quem são os maiores beneficiados pelo silenciamento do chefe do Escritório do Crime, um grupo de matadores profissionais a quem o filho do presidente, senador Flavio Bolsonaro, homenageou duas vezes e teria ido visitar na cadeia outras duas. Além, claro, de ter empregado parte da sua família no gabinete parlamentar.

Não sei se pegar uma retroescavadeira como fez o senador Cid Gomes é o melhor método, mas era necessário que alguém acordasse as pessoas lúcidas deste país para enfrentar o que está acontecendo antes que seja demasiado tarde. Longe de mim ser uma fã de Ciro Gomes, mas ele falou bem ao dizer: “Se você não tem a coragem de lutar, ao menos tenha a decência de respeitar quem luta”.

A hora de lutar está passando. O homem que planejava colocar bombas em quartéis para pressionar por melhores salários é hoje o presidente do Brasil, está cercado de generais, alguns deles da ativa, e é o ídolo dos policiais que se amotinam para impor seus interesses pela força. Estes policiais estão acostumados a matar em nome do Estado, mesmo na democracia, e a raramente responder pelos seus crimes. Eles estão por toda a parte, são armados e há muito já não obedecem ninguém.

Bolsonaro têm sua imagem estampada nos vídeos que conclamam a população a protestar contra o Congresso em 15 de março e que ele mesmo passou a divulgar por WhatsApp. Se você não acha que pegar uma retroescavadeira é a solução, melhor pensar logo em outra estratégia, porque já está acontecendo. E, não se iluda, nem você estará a salvo.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de RuínasColuna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, meus desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum


Eliane Brum: Precisamos saber quem está no poder

O silenciamento da pessoa-chave para elucidar crimes, que podem estar ligados ao clã Bolsonaro, aprofunda a pergunta mais perigosa da República

Na semana em que completou 700 dias que Marielle Franco foi assassinada, a notícia não é a elucidação do crime – e, sim, o assassinato da pessoa-chave para elucidar o crime. A execução de Marielle, uma vereadora do Rio de Janeiro e uma ativista dos direitos humanos, assinalou o momento em que um limite foi superado no Brasil. O não esclarecimento até hoje, quase dois anos depois, de quem foi o mandante e por que ela foi morta aponta a crescente e cada vez mais perigosa incapacidade das instituições de proteger a democracia no país. O silenciamento de Adriano da Nóbrega, premeditado ou não, no domingo, 9/2, mostra que o Brasil é um país em que os limites entre lei e crime foram borrados num nível sem precedentes. Não sabemos quem está no Governo. E precisamos saber.

A maioria já conhece os fatos. Mas é preciso reafirmá-los. Adriano da Nóbrega poderia esclarecer o esquema de “rachadinha”, desvio dos salários de servidores, no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, hoje senador e filho do presidente Jair Bolsonaro. Poderia esclarecer qual é a profundidade das relações da família Bolsonaro com as milícias do Rio de Janeiro. Poderia ajudar a esclarecer o assassinato de Marielle Franco.

Poderia, mas não pode mais. Foi morto numa suposta troca de tiros durante uma operação conjunta da Polícia Militar da Bahia e da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Dezenas de policiais treinados foram supostamente incapazes de prender, numa casa isolada, uma pessoa considerada essencial para a elucidação de crimes que assombram a República. Foram capazes apenas de matá-lo. Segundo o advogado do morto, Paulo Emílio Catta Preta, Adriano teria afirmado dias antes que, caso fosse encontrado pela polícia, seria eliminado como “queima de arquivo”. Quando foi assassinado, estava escondido na casa de um vereador do PSL, num sítio no município de Esplanada, na Bahia. O PSL até há pouco era o partido do presidente e também de seu primogênito.

Quem era Adriano da Nóbrega?

Ex-capitão do BOPE, elite da polícia militar carioca, Adriano estava foragido havia um ano, suspeito de chefiar a milícia de Rio das Pedras, a mais antiga do Rio, e também o Escritório do Crime, um grupo de matadores de aluguel. Formado por policiais e ex-policiais civis e militares, o Escritório do Crime está relacionado pelas investigações à execução de Marielle Franco. Adriano já havia sido preso três vezes, por homicídio e tentativas de homicídio, e liberado. Sua mulher e sua mãe trabalharam no gabinete de Flávio Bolsonaro até novembro de 2018.

Adriano era próximo de Fabrício Queiroz, suspeito de comandar o esquema da rachadinha para Flávio Bolsonaro e de envolvimento com a milícia de Rio das Pedras. Queiroz, por sua vez, era não só funcionário, mas amigo pessoal de Jair Bolsonaro desde os anos 1980. Também era policial militar aposentado. Um cheque de Queiroz, no valor de 24 mil reais, foi depositado na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro.

O homem que foi morto era publicamente respaldado pela família Bolsonaro no exercício de seus mandatos como parlamentares. Como deputado, Flávio deu ao então policial a Medalha de Tiradentes, a mais alta honraria da Assembleia Legislativa do Rio. Naquele momento, 2005, Adriano cumpria prisão pelo assassinato de um guardador de carros que havia denunciado policiais. Era a segunda vez que o filho mais velho do presidente homenageava o PM. Também em 2005, Jair Bolsonaro, então deputado federal, fez um discurso na Câmara dos Deputados, defendendo Adriano e protestando contra a sua condenação por homicídio. Segundo o Ministério Público do Rio, as contas de Adriano foram usadas por Queiroz para transferir o dinheiro do esquema de “rachadinha” no gabinete de Flávio Bolsonaro.

Os dois acusados pelo assassinato de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes são o policial reformado Ronnie Lessa, que teria dado os tiros, e o ex-PM Élcio Vieira de Queiroz, que teria dirigido o carro. Ambos são suspeitos de pertencer ao Escritório do Crime, que seria chefiado por Adriano da Nóbrega. Ronnie Lessa, por sua vez, vivia no mesmo condomínio de Jair Bolsonaro, na Barra da Tijuca.

Neste mapa de coincidências e suspeições, Adriano da Nóbrega era a pessoa capaz de juntar os pontos e preencher as lacunas. Mas está morto.

O que não é possível

Todas as coincidências podem ser apenas coincidências. É possível que a família Bolsonaro seja apenas ingênua ao escolher amigos e colaboradores. É possível que Flávio Bolsonaro estivesse apenas distraído demais para notar o que, suspeita-se, estava acontecendo no seu gabinete sob o comando de seu amigo Queiroz. É possível que Bolsonaro não tivesse tido relações com este vizinho chamado Ronnie Lessa. É possível que o grupo de policiais da Bahia e do Rio que foram prender Adriano sejam apenas incompetentes. É possível que essa quantidade de policiais militares e ex-policiais suspeitos de crimes seja apenas ocasional e não revele nada sobre o que a instituição Polícia Militar se tornou.

O que não é possível é continuarmos sem saber se há ou não envolvimento de Bolsonaro e seu clã com criminosos. Se há ou não envolvimento de Bolsonaro e seu clã com as milícias. Se houve ou não o esquema de rachadinha no gabinete de Flávio Bolsonaro. O que não é possível é 700 dias depois do assassinato de Marielle Franco o Brasil – e o mundo – não saber quem mandou matá-la. E por quê.

Nada é normal no Brasil de hoje

Há um esforço para tratar o que hoje vive o Brasil como normalidade. Como se houvesse apenas anomalias que pudessem ser corrigidas no curso do processo eleitoral e sob a vigilância de instituições robustas. Como se o que está em curso fosse do jogo da democracia. Não há, porém, nada de normal no que acontece hoje no Brasil.

Há forte desconfiança de que Adriano da Nóbrega foi executado para não poder contar o que sabia. Ainda que tenha sido incompetência da polícia, como achar que é normal uma parte significativa da população brasileira ter certeza de que as PMs trabalham para si mesmas ou para interesses que não são os da população nem da justiça? Como achar normal que esta rede de suspeitos sejam policiais ou ex-policiais? Como achar normal conviver com o poder das milícias, que são formadas por integrantes das forças de segurança formais dos estados? E como achar normal o DNA de milicianos marcarem atos e fatos do presidente da República, de um senador da República que é filho do presidente e de outros familiares do clã? Este Brasil não nasceu agora, mas só hoje temos um presidente e uma família presidencial envolvida em tantas coincidências criminosas, que produzem cada vez mais sangue e parecem estar cada vez mais longe de serem esclarecidas.

Bolsonaro e as instituições

A trajetória de Jair Bolsonaro pode ser contada pela ação e também pela inação das instituições brasileiras. Se o então capitão tivesse sido condenado pelo Superior Tribunal Militar, em vez de absolvido, por planejar colocar bombas em unidades militares para protestar contra os baixos salários, o país seria diferente hoje? Se o então deputado federal Jair Bolsonaro tivesse sido julgado e condenado por cada declaração racista e de incitação à violência que pronunciou durante seus quase 30 anos de Congresso, o Brasil seria diferente hoje? Se o então parlamentar Jair Bolsonaro tivesse respondido na Justiça e sido cassado pelos seus pares por homenagear um torturador durante o impeachment de Dilma Rousseff, o Brasil seria diferente hoje?

O exercício do “e se” vale apenas como isso mesmo, um exercício para iluminar melhor o que aconteceu de fato. Ou não aconteceu de fato. O que está diante de nós, hoje, é o que fazer diante desta realidade agora. Não que país seria o Brasil, mas sim que país será o Brasil caso não descobrirmos por que não podemos descobrir quem mandou matar Marielle Franco.

A pergunta mais perigosa

A aparente impossibilidade de elucidar a morte de Marielle, que já provocou alarmantes declarações de autoridades públicas no passado recente, nos lança em perguntas cada vez mais perigosas. As perguntas perigosas costumam ser as mais importantes.

Sabemos há muito que há um poder paralelo no Brasil. Um poder do crime que, em diferentes momentos, teve e tem ramificações na estrutura do Estado. As milícias cariocas, herdeiras dos esquadrões da morte formados por policiais, são o exemplo mais bem acabado desta distopia que virou realidade. E também de sua evolução ainda mais perversa, ao confundirem-se nas últimas décadas com o próprio Estado, na medida em que são agentes do Estado usando a estrutura do Estado para controlar as comunidades, lucrar com esse domínio e executar quem se opõe ao seu poder. Começaram a atuar com a desculpa de proteger as favelas e periferias do tráfico de drogas. E se tornaram ainda piores do que o tráfico. Em alguns casos são sócias dos traficantes, na maioria dos casos mais poderosas.

Como o cidadão pode se contrapor a um poder que controla ao mesmo tempo o crime e as forças de repressão ao crime, a usurpação dos serviços públicos e os próprios serviços públicos, um poder que comercializa até mesmo lotes de votos numa eleição, como fazem algumas milícias? As muitas comunidades que hoje são reféns das milícias no Rio podem contar como é viver sob o jugo da lei que corrompe a lei, da polícia que é bandida.

O que Adriano da Nóbrega poderia esclarecer é se este poder já deixou de ser paralelo. Se chegamos a um ponto em que um e outro são o mesmo também no Planalto. Poderia, mas não pode mais. E nós, que (ainda) estamos vivos, o que podemos? E, mais importante, o que faremos?

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de RuínasColuna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, meus desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum


Eliane Brum: Do centro do mundo ao fim do mundo

O que significa partir da maior floresta tropical do planeta rumo à Antártida? É o que Eliane Brum conta em um diário a bordo de um navio do Greenpeace que zarpou neste sábado

O que significa partir da maior floresta tropical do planeta para àquela que foi considerada a última fronteira? Da Amazônia à Antártida, esta é a viagem que conto neste diário a bordo do navio Arctic Sunrise, do Greenpeace. Organizada para pesquisar o impacto do colapso climático sobre o continente gelado, em especial sobre as colônias de pinguins, a expedição reúne nove cientistas, alguns com 25 anos de experiência na Antártida. No início do século 20, a corrida para o polo sul marcava o olhar do conquistador que precisava fincar sua bandeira sobre a terra que desbravava. Hoje, no século 21, nosso desafio é dimensionar o impacto da ação humana que alterou o clima do planeta e buscar caminhos para reduzi-lo. Deixo uma floresta em convulsão, cada vez mais perto do ponto de não retorno, para me embrenhar num universo que literalmente derrete.

Dia zero | Há aliens embaixo da sola dos meus sapatos?

Em algumas horas estarei a bordo do Arctic Sunrise, um navio mítico da organização ambiental Greenpeace, usado para pesquisas científicas e ações de denúncia pelo mundo. Numa delas, na Rússia, em 2013, os 28 ativistas e dois jornalistas que os acompanhavam foram abordados, detidos e levados à prisão onde permaneceram por dois meses. Eles faziam um protesto pacífico contra a exploração de petróleo no Ártico. A abordagem policial foi cinematográfica, o vídeo na Internet viralizou. Nesta sexta-feira, 17 de janeiro, descobriu-se que a polícia britânica incluiu o Greenpeace na lista de “alerta antiextremismo”, um guia de 24 páginas da unidade de contraterrorismo para “identificar possíveis autores de atos terroristas e prevenir situações limite”. Será que o Governo de Boris Johnson nos consideraria “piratas”? Nos tornaríamos “suspeitos de terrorismo” por investigar o que está acontecendo com pinguins e baleias devido à crise climática?

É num planeta governado por criaturas como Johnson, Vladimir Putin, Donald Trump e, claro, Jair Bolsonaro que nossa espécie enfrenta o maior desafio de sua trajetória na Terra: o superaquecimento global provocado por ação humana. Dito de outro modo, os humanos se tornaram uma força de destruição capaz de alterar o clima do planeta. Felizmente, e essa é parte da minha profunda emoção por acompanhar essa expedição do Arctic Sunrise, a Antártida não tem dono. Diversos países mantêm bases de pesquisa científica naquele que é chamado de “continente gelado”, mas nenhum deles têm direito de propriedade. É fascinante estar num lugar do planeta em que nenhum dos déspotas eleitos que hoje circulam livremente por aí possam reivindicar a posse da natureza.

Quando começa uma viagem? Possivelmente na hora em que decidimos realizá-la. Eu estava na minha casa, em Altamira, uma cidade que é epicentro da destruição da Amazônia. Era ainda dezembro e meu primeiro reflexo foi negar: por mais fascinante que a viagem pudesse ser, seria impossível deixar a Amazônia naquele momento. Desde que Bolsonaro anunciou a medida provisória que permite que grileiros (ladrões de terras públicas) possam legalizar pedaços da floresta roubados até dezembro de 2018, as ameaças contra agricultores familiares que disputam a área para reforma agrária e contra os povos da floresta que nela vivem se multiplicaram. Alguns foram mortos. Neste Natal e Ano Novo, várias lideranças tiveram que abandonar suas famílias e se esconder. “Envenenaram minhas galinhas, quebraram as pernas dos meus bezerros, esfaquearam meus cachorros”, avisou uma delas, na forma de pedido de socorro, quando voltou para casa dias atrás. É assim que se vive na Amazônia desde que Bolsonaro assumiu o poder.

Me mudei de São Paulo, a maior cidade do Brasil, para Altamira, a cidade mais violenta da Amazônia, em agosto de 2017, por compreender que a Amazônia deve ser a grande causa de nossa época, para além das nacionalidades e também das identidades. Sem a maior floresta tropical do mundo, não há como controlar o superaquecimento do planeta. E, desde lá, participo do movimento global Amazônia Centro do Mundo, que reivindica a urgência de reconhecer a centralidade da floresta se quisermos ter um futuro possível. Caso a população mundial não perceba que precisa colocar seu corpo na batalha decisiva deste momento histórico, possivelmente a floresta chegará ao ponto de não retorno nos próximos anos. E o futuro de nossos filhos e netos será um planeta hostil.

Cheia de dúvidas, escrevi para Antonio Nobre. Cientista da Terra, ele lançou em 2014 o relatório Futuro Climático da Amazônia, disponível em português, inglês e espanhol, que apontava a urgência de transformar a Amazônia numa causa de todos. Esse relatório mudou a minha vida. Foi com ele que aprendi sobre os rios voadores lançados pela floresta todos os dias: a floresta sua, transpira, e coloca cerca de 20 trilhões de litros de água na atmosfera a cada 24 horas. Esse volume de água é mais do que o Amazonas, um dos maiores rios do mundo, leva ao Oceano Atlântico. Como já escrevi inúmeras vezes, essa apoteose da natureza, hoje ameaçada, é mais extraordinária do que um poema de Fernando Pessoa, uma pintura de Picasso ou um concerto de Villa-Lobos.

Antonio Nobre me respondeu que seria importante estabelecer as conexões entre a Amazônia e a Antártida ―ou como o desmatamento da floresta poderia impactar o continente gelado. E esse foi também meu primeiro aprendizado ao chegar ao Chile. Desde Santiago, onde participei de um evento anual chamado Congresso do Futuro, que reúne pessoas de todas as áreas e de diversos países, pude comprovar, mais uma vez, o quanto cada gesto impacta todo o planeta. Sobre a cordilheira andina que escolta a cidade, um observador atento poderia avistar um contorno mais escuro. Era a fumaça dos incêndios da Austrália que chegava até ali.

Ao desembarcar em Punta Arenas, na Patagônia, a notícia é de que a fumaça da Austrália comprovadamente já alcançou a Antártida. “A Antártida sempre foi chamada de ‘o continente isolado”, nos contava ontem Marcelo Leppe, diretor do Instituto Antártico Chileno. “É um mito. A Antártida não está isolada. Tudo está conectado.” Ficará fácil para os cientistas saber qual é a marca da neve de 2020: uma linha preta. Marcelo Leppe segue: “há microplásticos por toda a Antártida”.

Da Amazônia à Antártida, da Antártida à Austrália, da Austrália à Sibéria, da Sibéria à Califórnia, sabemos que 2020 não começa bem. Este será um ano decisivo. O meu começou com as ameaças a lideranças em toda a região amazônica por parte de grileiros e segue agora nesta expedição Antártida em que acompanharemos uma equipe de nove cientistas em sua investigação sobre o impacto da crise climática sobre as colônias de pinguins. Também baleias, esses animais fabulosos que fertilizam os oceanos, estão no horizonte antártico de nossa expedição.

Antes de embarcar, porém, minha preocupação é com criaturas vivas infinitamente menores. A Antártida tem sido alterada por humanos que carregam nas roupas, na sola dos sapatos e nos objetos seres alienígenas como sementes, esporos e vírus que podem corromper um ecossistema tão delicado. Preciso escovar a sola de todos os sapatos, usar roupas que não soltam fibras. Sei que quanto menos gente na Antártida, melhor. A pesquisa mais responsável hoje é, sempre que possível, que os estudos sejam feitos com amostras retiradas da Antártida, mas fora dela. Pergunto a Leppe se devemos entrar neste majestoso mundo branco, hoje cada vez mais verde por conta do superaquecimento global. Ele diz que é importante que possamos contar ao mundo o que está acontecendo. Mas que a delicadeza de pisar na Antártida nos dá uma enorme responsabilidade de fazer ainda melhor o nosso trabalho.

Todos os meus sentidos estão entregues à tarefa de contar a vocês o que tenho o privilégio de testemunhar nesta expedição que se inicia em algumas horas. Mas o meu contar só se completa na leitura de cada um. E no gesto que cada um possa fazer a partir da leitura deste diário de bordo.

Volto o mais breve que conseguir – e que o quase certo enjoo provocado por ondas com vários metros de altura permitir.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de Ruínas, Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, meus desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum


Eliane Brum: Os cúmplices

Em 2020, cada um saberá quem é diante de uma realidade que exige coragem para enfrentar e coragem para perder

Nenhum autoritarismo se instala ou se mantém sem a cumplicidade da maioria. É o que a história nos ensina. Não haveria nazismo sem a conivência da maioria dos alemães, os ditos “cidadãos comuns”, nem a ditadura militar no Brasil teria durado tanto sem a conivência da maioria dos brasileiros, os ditos “cidadãos de bem”. O mesmo vale para cada grande tragédia em diferentes realidades. Os déspotas não são alimentados apenas pelo silêncio estrondoso de muitos, mas também pela pequena colaboração dos tantos que encontram maneiras de tirar vantagem da situação. Em tempos de autoritarismo, nenhum silêncio é inocente —e toda omissão é ação. Esta é a escolha posta para os brasileiros em 2020. Diante do avanço autoritário liderado pelo antidemocrata de ultradireita Jair Bolsonaro, que está corroendo a justiça, destruindo a Amazônia, estimulando o assassinato de ativistas e roubando o futuro das novas gerações, cada um terá que se haver consigo mesmo e escolher seu caminho. 2020 é o ano em que saberemos quem somos —e quem é cada um.

Há várias ações em curso. E várias mistificações. Quem viveu a ditadura militar (1964-1985) conhece bem, guardadas as diferenças, como o roteiro vai se desenhando. No final de 2019, parte da imprensa, da academia e do que se chama de mercado começou a exaltar os sinais de “melhora econômica”. A alta da bolsa, a “queda gradual” do desemprego, a indicação de aumento do PIB em 2020 são elencados entre os sinais. Ainda que se esperasse mais, afirmam, “os inegáveis avanços do ponto de vista econômico”, entre eles a reforma da Previdência, “a inflação comportada” e os juros fechando 2019 “em patamar inimaginável” permitem —e aí vem uma das expressões favoritas deste seleto grupo de players— um “otimismo moderado”. Até a pesquisa de uma associação de lojistas divulgou uma incrível alta de 9,5% nas vendas de Natal, imediatamente contestada por outra associação de lojistas. É como se a “economia” fosse uma entidade separada da carne do país, é como se houvesse uma parte que pudesse ser isolada e sobre a qual se pudesse discorrer usando palavras enfiadas em luvas de cirurgião. É como se bastasse enluvar jargões técnicos para salvar os donos das mãos de todo o sangue.

Enquanto esse diálogo empolado e bem-educado do pessoal da sala de jantar, dos que sempre estão na sala de jantar, independentemente do governo, é estabelecido, bombas explodiram no prédio da produtora do programa de humor Porta dos Fundos, policiais matam como nunca nas periferias de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, ampliando o genocídio da juventude negra, o antipresidente legaliza o roubo de terras públicas na Amazônia, ambientalistas são acusados de crimes que não cometeram, ONGs são invadidas sem nenhuma justificativa remotamente legítima, adolescentes pobres morrem pisoteados porque decidiram se divertir num baile funk numa noite de sábado, indígenas guardiões da floresta e agricultores familiares são executados, as polícias vão se convertendo em milícias como se isso fosse parte da normalidade, e são também os policiais e “agentes de segurança” condenados por crimes os únicos que são libertados no indulto de Natal. Os sinais estão por toda parte, mas membros respeitados de instituições da República que deveriam ser os primeiros a percebê-los —e combatê-los— seguem inflando a boca para assegurar que “a democracia no Brasil não está ameaçada”.

A qual Brasil se referem estes senhores bem-educados? De qual país estes luminares do presente falam? Certamente não do meu nem do de muitos, não o das favelas onde as pessoas se trancam sabendo que não há porta capaz de barrar a violência da polícia, não este em que os policiais já exterminam os pretos sem responderem por isso há muito, mas esperam mais já que o extermínio vai sendo legalizado pelas beiradas. Não este em que os templos de religiões afro-brasileiras são invadidos e destruídos apesar de o Estado ser formalmente laico. Não este em que as lideranças da floresta enxergam o Natal e o Ano-Novo como os piores momentos do ano porque é o tempo de deixar a família e fugir, pelo menos até que as capengas instituições voltem do recesso.

Neste país, pessoas da sala de jantar, há muita gente escondida neste exato momento para poder virar o ano vivo. Não esperam brindar, desejam apenas não ter o corpo atravessado por uma bala —ou por quatro na cabeça, como ocorreu com Marielle Franco, num crime não decifrado quase dois anos depois. Democracia onde? Os escondidos, os ameaçados, os parentes dos mortos querem saber. Todos nós queremos muito viver neste país em que vocês enxergaram “inegáveis avanços na economia em 2019” e “instituições que funcionam”. Não fiquem com o endereço só para vocês.

As pessoas da sala de jantar, porém, só podem seguir na sala de jantar ditando o que é a realidade porque a maioria assim permite, omitindo-se ou aproveitando-se das sobras. São as pessoas, no dizer da historiadora franco-alemã Géraldine Schwarz, “que seguem a corrente”. A questão é se você, que lê este texto, vai engrossar o rebanho dos que seguem a corrente.

Não o rebanho de ovelhas. Esta imagem evoca passividade, engano, uma obediência absolvida pela inocência. Não. Este rebanho, o dos que agem se omitindo, ou o dos que agem tirando pequenos proveitos, “porque afinal é assim mesmo e quem sou eu para mudar a realidade”, é um rebanho de lobos. Porque o ativismo de sua omissão é cúmplice do sangue das vítimas, estas que tombam, estas que vivem uma vida de terror. É cúmplice também das ruínas de um país. No caso da Amazônia, é cúmplice das ruínas da vida da nossa e de muitas espécies no único planeta disponível.

Géraldine Schwarz escreveu um premiado livro chamado Os amnésicos (Flammarion), infelizmente sem tradução no Brasil. A historiadora, cuja família foi uma dessas que obteve vantagens no nazismo, mas se considerava inocente do Holocausto, deu uma excelente entrevista ao jornalista Fernando Eichenberg, em O Globo. Ela aponta como a adesão aos déspotas do século 21 mantém a estrutura da adesão aos totalitarismos do século 20:

“No imaginário coletivo, temos tendência a dividir a sociedade em três categorias históricas no século 20: heróis, vítimas e carrascos. Na verdade, a maioria da população não se reconhece em nenhuma delas. É a via mais fácil não se incluir em nenhuma das três categorias, mas apenas seguir a corrente. Há o magnífico filme baseado no romance de Alberto Moravia [O conformista, de Bernardo Bertolucci], que mostra muito bem como o conformista acaba aceitando o que antes era inaceitável. No ensino da história, muitas vezes por meio da ficção ou de comemorações, temos uma visão um pouco distorcida do passado. Se tem a impressão de que a população não teve nenhum papel nessa história. E teve, muitas vezes, um papel de pilar e consolidador de ditaduras. É nisso que a democracia tem um papel importante, pois o povo tem os meios de impedir um golpe e a instalação de um regime criminoso. Eleger Bolsonaro, por exemplo, para mim, é brincar com o fogo, pois parece alguém capaz de tudo.”

A historiadora defende a memória como um dos principais instrumentos de defesa da democracia. “O importante é tomar consciência de nossa falibilidade e reconhecer que podemos nos transformar também em um bárbaro”, afirma. "A história não se repete, mas os métodos de manipulação, sim, porque a psicologia humana não muda. Em um contexto de crise, em meio a um grupo, o homem terá reações similares. Um dos métodos é difundir o medo, muitas vezes exagerado em relação à realidade. [...] Trata-se de confundir a fronteira entre o verdadeiro e o falso, desorientando totalmente as pessoas. Perde-se as referências, não se sabe mais no que acreditar. E, como dizia [a filósofa alemã] Hannah Arendt, quem não acredita em mais nada é manipulável à vontade. Ao ponto de inverter seus valores: o que era bom ontem já não o é mais hoje. É o que se observa em várias sociedades do mundo. As pessoas que, hoje, apoiam Jair Bolsonaro, há dez anos provavelmente defendiam os direitos humanos. Por isso que o ensino do Terceiro Reich é capital. Na história há muito poucos exemplos de uma sociedade tão civilizada, moderna, intelectual, que derivou rapidamente para a barbárie. É um ensinamento universal, que serve de alarme a todo mundo.”

O problema é que países como o Brasil não produziram a memória da ditadura justamente para absolver os assassinos, sequestradores e torturadores de Estado. A condição da retomada da democracia foi o perdão ao imperdoável. Essa política de amnésia resultou, em 2018, na eleição de um presidente que tem como herói um torturador e assassino de civis. Diante de uma população desmemoriada, ao final do primeiro ano do governo do déspota eleito vimos um roteiro semelhante se repetir, com as necessárias adaptações a uma época impactada pela Internet. Ainda que a memória no Brasil seja frágil, porém, ela existe. Não há desculpa para omissão. Nem há qualquer inocência no suposto conformismo.

O problema, no Brasil e em outros países que vivem processos políticos semelhantes, é também de memória recente. Esta que está sendo construída agora, não só nas mentiras disseminadas nas redes sociais por Bolsonaro e sua familícia, mas também nas narrativas que isolam a economia da carne que sangra. Como se a evocação do AI-5 por Paulo Guedes não tivesse nada a ver com suas escolhas econômicas, como se o Posto Ipiranga fosse radicalmente diferente do dono do posto. Está em produção uma memória falsa, o que é pior do que desmemória. Pior do que não lembrar é lembrar de um acontecido que nunca aconteceu.

Entre as tantas perversões da ditadura, uma se mostrava particularmente enlouquecedora para aqueles que escolheram lutar contra o regime de opressão. Enquanto homens e mulheres eram vigiados e perseguidos dia e noite, afastados de seus postos, demitidos de seus empregos, transformados em párias e criminalizados, enquanto livros, jornais, filmes e peças de teatro eram censurados, enquanto brasileiros precisavam deixar o país para salvar a vida ameaçada pelo Estado, enquanto os que ficavam eram sequestrados, torturados e mortos por agentes do Estado, uma maioria fingia que nada estava acontecendo. Fingia tanto que acabava acreditando que não eram gritos de dor e de terror o que ouvia. Era o cidadão de bem que apenas seguia a corrente, protegendo os próprios interesses e avaliando o que poderia ganhar com o estado das coisas.

Começamos a testemunhar hoje o mesmo mecanismo perverso. Com todas as desculpas possíveis, auxiliadas pela polarização que desloca o perigo para uma falsa oposição. Com todos os erros e os crimes do PT no poder, o antipetismo não é justificativa aceitável para alguém seguir a corrente. Não tem mais clima para se fingir de iludido. Basta ter vergonha na cara para perceber que não se trata mais do PT. Se trata da corrosão do que ainda resta de democracia no Brasil. Se trata da autorização para roubar enormes pedaços de floresta, desmatá-los e botá-los no nome dos autores do crime. Se trata da conversão das forças de segurança em milícias com autorização para matar. Se trata da criminalização de quem defende os mais frágeis, usando para isso o aparato do Estado. Se trata de genocídio de negros —e também de indígenas.

Há muita gente se fingindo de ovelha para lavar as mãos diante do que vive o Brasil. Mas há também gente angustiada perguntando o que fazer diante do que já não consegue deixar de ver. A estes, respondo que ninguém vai dar a resposta. Esta resposta terá que ser criada, coletivamente, por iniciativa dos que fazem a pergunta. Em cada profissão há o que fazer. Este é um momento em que precisamos fazer melhor o que sabemos fazer, mas também precisamos fazer bem o que não sabemos. Apenas o que sabemos já não é suficiente. O que somos já não é suficiente. Temos que ser melhores do que somos para enfrentar este tempo em que já não há tempo. E temos que ser juntos, fazendo laços e tecendo redes entre nós.

Este é o desafio de 2020. O ano novo não está dado. 2020 só será novo se nossa resistência resgatar o presente das mãos dos déspotas. Esta é a única resolução possível diante do que vivemos e do que testemunhamos. Cada um de nós precisa se responsabilizar pelo horror do nosso tempo.

 

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, construtor de ruínasColuna Prestes - O avesso da lendaA vida que ninguém vêO olho da ruaA menina quebrada e Meus desacontecimentos, e do romance Uma duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum


Eliane Brum: Protejam Erasmo. Ele pode ser assassinado a qualquer momento

Por que a violência na Amazônia aumentou no final de 2019 e por que a sociedade precisa se organizar para barrar as mortes

Quando vi Erasmo Alves Teófilo pela primeira vez, o que me chamou a atenção foi aquele homem se movimentando muito rápido numa velha cadeira de plástico branca. Vítima de paralisia infantil, porque não havia vacina onde ele vivia, Erasmo não pode caminhar. Mas lidera. Este homem que só conta com uma cadeira de plástico branca luta pela vida de cerca de 300 famílias de agricultores familiares e pescadores na Volta Grande do Xingu, em Anapu, na Amazônia paraense, uma das regiões mais sangrentas da Amazônia. Este homem sem movimento nas pernas movimenta-se mais do que a maioria dos brasileiros para manter a floresta em pé. Hoje, ele também conta com pouco mais do que sua cadeira de plástico para escapar da morte.

Erasmo, este brasileiro que todos deveriam proteger porque sua luta protege a Amazônia para todos nós, está ameaçado por grileiros (grandes ladrões de terras públicas) que agem na região de Altamira e Anapu com a desenvoltura que a impunidade sempre conferiu a este tipo de personagem na história do Brasil. Hoje, com o antidemocrata Jair Bolsonaro no poder, a grilagem tem se comportado como se tivesse autorização para ameaçar, para bater e também para matar. Para dizer, como mais de uma pessoa ouviu de um deles: “Nenhum juiz tem poder sobre mim”.

Entre 4 e 9 de dezembro, dois homens já foram assassinados em Anapu. Erasmo poderá ser a terceira vítima, caso a sociedade brasileira não seja capaz de se organizar para proteger a ele e a todos os outros agricultores familiares, indígenas, ribeirinhos e quilombolas que estão ameaçados na floresta. Ninguém deve jamais se cansar de pressionar as instituições a fazer seu papel no Brasil. Isso é essencial para o país não perder o pouco de democracia que ainda resta. Mas é hora de compreender que o Brasil chegou a um ponto em que, se a sociedade não se organizar para defender aqueles que estão lutando na linha de frente, estas pessoas vão morrer. Como já estão morrendo.

1) Os defensores da floresta temem não ver o Ano Novo

Enquanto a população de classe média das cidades do centro-sul do Brasil se prepara para as festas de final de ano, com recessos, férias coletivas, folgas prolongadas, este é um tempo de medo na Amazônia. Mais medo. As poucas instituições que se fazem presentes, a maioria apenas nas cidades maiores dos estados amazônicos, entram em recesso. Supostamente há plantão nas capitais. Mas, se o número de funcionários já é reduzido quando há expediente normal, como será possível contar com estas instituições? Também a maior parte das Organizações Não Governamentais (ONGs), que cumprem um papel decisivo na proteção da Amazônia, entram em férias coletivas. A população em risco se torna muito mais desamparada.

Essas pessoas não estão desamparadas porque frágeis. Só existe floresta ainda porque seus povos são muito resistentes e colocam seus corpos na linha de frente, fazendo uma barreira humana contra o avanço da grilagem. A questão é que agricultores familiares, ribeirinhos, quilombolas e indígenas lutam quase sozinhos para manter a floresta viva e como um bem público e coletivo. E lutam quase sozinhos contra forças muito mais poderosas, em geral armadas, que querem derrubar a floresta e especular com a terra para o lucro privado de poucos, hoje com o apoio explícito do Governo antidemocrático de Bolsonaro.

Em pouco mais de 40 dias, entre novembro e dezembro, quatro indígenas do povo Guajajara, na Amazônia maranhense, foram assassinados. Em Anapu, não são indígenas que morrem, mas agricultores que tentam fazer assentamentos sustentáveis em áreas públicas destinadas à reforma agrária, mas cobiçadas ou já exploradas pelos grandes grileiros da região. Também tombam pessoas que apoiam os trabalhadores rurais. Os grileiros se apresentam como fazendeiros, mas sua folha-corrida mostra que são ladrões de terras da União. Os reais fazendeiros deveriam desejar se diferenciar deles, em vez de apoiá-los ou tolerá-los, mas não é isso que tem acontecido.

2) Por que Anapu se tornou um campo de cadáveres

Pergunto a Erasmo, cada vez mais perto da morte matada, vivendo numa casa que até o sopro do Lobo Mau das histórias infantis pode colocar em risco, se ele acredita na lei. E ele responde: “Eu acredito. Especialmente na lei federal. Se não acreditasse, eu não estaria aqui”. Erasmo vive numa terra em que o mais forte é a lei. Erasmo é o mais fraco na terra da lei do mais forte. E Erasmo acredita na lei, esta representada pela Constituição, esta supostamente acima dos indivíduos, em defesa da coletividade. Sinto vontade de repetir esta frase dezenas de vezes e escrevê-la de trás para frente e de cima para baixo, para ver se sob algum ângulo o mistério se revela. Sentado na cadeira de plástico branco que lhe servem de pernas, sacaneado mil vezes e mais outras mil vezes, Erasmo é um brasileiro que acredita na lei.

Anapu entrou no mapa mental do Brasil e do mundo depois que a missionária americana Dorothy Stang foi perfurada por seis tiros em 2005, provocando uma comoção internacional. Mas Anapu deve ser olhada com redobrada atenção por muito mais do que isso. O município desenha o problema da terra, do desmatamento e da violência na Amazônia brasileira. Compreendendo o que acontece lá é possível entender bastante da tragédia que hoje compromete o futuro não só das novas gerações de brasileiros, mas do planeta.

Como é sabido, a ditadura militar (1964-1985) estabeleceu um imaginário sobre a Amazônia ― e converteu esse imaginário em propaganda que até hoje perdura. Os personagens que hoje se movimentam neste cenário, para matar e para morrer, são herdeiros do projeto da ditadura para a floresta também naquilo que ele tem de mais simbólico: “a terra sem homens para homens sem terra” ou o “deserto verde” ou ainda o “integrar para não entregar”. Todos estes slogans de meio século atrás estão vivos e atuando. Os conflitos de Anapu são produtos da Transamazônica, aberta literalmente a ferro e fogo sobre corpos de indígenas e de árvores.

Nos anos 1970, a ditadura dividiu a região em dois polos, chamados “Transa Oeste” e “Transa Leste”. A primeira porção vai de Altamira até Placas e recebeu maioria de assentados da região sul do Brasil. Esta é a área da rodovia que foi destinada à colonização oficial, para produção agrícola. Já na Transa Leste, entre Altamira e Marabá, autores apontam que predominou uma colonização espontânea, daqueles que são sempre esquecidos nos programas públicos oficiais, com migrantes vindos principalmente do nordeste brasileiro. Estes não tiveram apoio governamental para ocupar terras que eram consideradas menos produtivas. Sem esquecer que todas as terras, à leste e à oeste, tinham sido por séculos ocupadas pelos povos indígenas.

Essa história, portanto, começa com um genocídio, o perpetrado pela ditadura militar na construção da Transamazônica. Esta é uma parte. A outra é o prosseguimento de uma política de branqueamento do país que se iniciou ainda no período imperial. Vale a pena lembrar que o sul do Brasil foi colonizado, mais uma vez sobre o corpo dos indígenas, por imigrantes trazidos da Europa, em especial de países como Alemanha e Itália, no final do século 19 e início do século 20. Não só os indígenas foram espoliados de suas terras e boa parte deles mortos como, na hora de escolher qual era a população que deveria ser colocada no lugar, foram escolhidos imigrantes brancos. Naquele momento, era possível ter executado uma política pública para incluir os negros que deixavam a escravidão. Mas não. Importou-se brancos.

Na construção da Transamazônica, os novos colonizadores foram chamados no sul do Brasil, a maioria deles descendentes destes imigrantes que, por sua vez, colonizaram o sul do país vindos da Europa. Nem foi fácil para os imigrantes europeus que chegaram ao sul do Brasil no final do século 19 nem foi fácil para seus descendentes que chegaram à Transamazônica nos anos 1970. Foi uma saga. Mas foi muito mais difícil para os nordestinos que foram sem convite e sem apoio do governo, em busca do sonho da terra própria para se livrar do aluguel do corpo para os coronéis.

Nesta mesma região, a ditadura implantou também uma política de concentração da terra, pelos chamados Contratos de Alienação de Terras Públicas (CATPs). Estes contratos eram títulos provisórios para lotes de 3.000 hectares. Eles foram oferecidos preferencialmente para pessoas de fora da região amazônica. Com frequência, os contratos eram acompanhados de financiamentos da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), uma sigla que ficou famosa pelos escândalos de corrupção que produziria também na região de Altamira e Anapu.

Para que pudessem ganhar o título da terra, os candidatos a proprietários tinham que comprovar, em cinco anos, a instalação de empresa agropecuária. Muitas destas terras foram repassadas a terceiros antes mesmo de ter título definitivo, e, em boa parte dos casos, o cancelamento dos títulos pelo governo nunca foi feito, embora não houvesse criação de empresa agropecuária. Terras públicas e financiamento público produziram e alimentaram um mercado de especulação de terras na Amazônia e um ciclo de grilagem e de pistolagem que perdura até hoje, grande responsável tanto pela destruição da floresta quanto de vidas humanas. O que testemunhamos hoje no oeste do Pará e também em outras regiões da Amazônia é resultado direto do projeto de exploração da floresta forjado na ditadura militar e nunca suficientemente reformado na democracia que se instalou após 1985.

3) A janela histórica perdida

Para estancar a espiral de violência na disputa de terras que ainda hoje pertencem à União, ou seja, são nossas, seria necessário fazer a reforma agrária que nunca foi feita. A melhor chance histórica de estancar o sangue depois da retomada da democracia ocorreu nos governos do Partido dos Trabalhadores, de 2003 a 2016. A reforma agrária constava no programa, e agricultores familiares e trabalhadores sem terra eram uma força importante na composição da base do partido. Embora algumas ações e políticas tenham sido implementadas, porém, a reforma agrária não foi realizada. E a oportunidade foi perdida.

Os Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) foram criados em lotes que o Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra) declarou serem improdutivos no final dos anos 1990. Os PDS foram desenhados em assembleias de agricultores para combinar agricultura familiar com atividades extrativistas, de coleta, como faz a população ribeirinha da Amazônia. Eram projetos de reforma agrária, que garantiam a terra para quem dela vive, combinados com o conceito de preservação ambiental.

Em 2003, no primeiro ano do governo Lula (PT), foram criados quatro PDS nas glebas Belo Monte e Bacajá, para o assentamento de 600 famílias. Aqueles que haviam se apossado destas terras públicas e também de gordos financiamentos públicos da Sudam reagiram com violência, na base da pistolagem, de incêndios criminosos e de derrubada da floresta. A missionária Dorothy Stang documentava e denunciava cada um dos ataques, exigindo providências das autoridades. A freira deixava claro que, para a preservação da floresta, seria necessário fazer antes a regularização fundiária. Foi executada.

Em 2005, a execução de uma freira de 73 anos com cidadania americana trouxe consequências indesejáveis para os grileiros da região. Demorou um pouco, mas o Estado se fez presente, instituições federais que não tinham escritórios na região abriram as portas. Ao longo dos mais de 13 anos no poder, os governos do PT foram se aproximando cada vez mais dos grandes latifundiários, a ponto de Katia Abreu ter se tornado ministra da Agricultura de Dilma Rousseff. Mas, no primeiro mandato de Lula, o compromisso com os pequenos agricultores ainda era forte também na prática. Não tão forte para uma reforma agrária efetiva, mas forte o suficiente para colocar o Estado em Anapu.

A morte de Dorothy Stang atrapalhou bastante os negócios de especulação da terra na região. Eles não cessaram, longe disso, mas ficou mais difícil. Fortes indícios apontavam naquele momento para a existência do que era chamado “consórcio da morte”, um pool de grileiros que determinavam a execução de quem estava atrapalhando as investidas sobre a floresta. A existência do consórcio nunca chegou a ser provada, mas na região poucos têm dúvida de que existe. Consorciados ou não, até 2014 os grileiros mantiveram uma atuação persistente, mas discreta.

4) O sangue dos Resplandes encharca a terra

Desde 2015, a violência em Anapu refletiu o aumento do poder dos ruralistas não só no Congresso, mas também no Executivo. Tudo acontece em cadeia na Amazônia, como em qualquer lugar. Entre 2015 e 2019, houve 15 assassinatos ligados à terra em Anapu, segundo a Comissão Pastoral da Terra ― e 19 segundo a contagem dos movimentos locais. Essas mortes mostraram que os grileiros aprenderam com o assassinato de Dorothy Stang. Nos últimos anos, os pistoleiros têm matado na cidade, em vez de na zona rural, para dificultar a associação do crime com os conflitos agrários. Como parte da polícia parece não ter muito interesse em investigar, a maioria dos crimes segue impunes. Quem precisa estabelecer a relação com as disputas de terra, para estabelecer as conexões de causa e efeito, são entidades da sociedade civil como a Comissão Pastoral da Terra.

Já em 2018, uma lista de marcados para morrer circulava na cidade como se fosse uma lista de compras de material escolar. Pouco antes de ser assassinado, em 3 de junho daquele ano, Leoci Resplandes de Sousa foi checar se estava na lista da morte. Um dos chefes da pistolagem local garantiu que não. E afirmou, inclusive, que caso estivesse, ele tiraria. Era assim. E segue assim. Não se sabe se este homem mentiu, porque não só Leoci foi assassinado, como também este chefe da pistolagem algum tempo depois. A lista ― ou as listas ― seguem ativas.

O que aconteceu com a família Resplandes é uma vergonha para o Brasil e para os brasileiros. Trabalhadores rurais em busca de terra, três Resplandes já foram mortos: Hércules, de 17 anos, Valdemir e Leoci, de 29. Todos em 2018. Quando Leoci foi assassinado dentro de casa, depois de voltar da roça, a família fugiu. Vivem assim, fugindo, sem nenhum apoio. E são achados. Em novembro, outro Resplandes foi baleado, mas sobreviveu. Não há certeza de que a tentativa de homicídio esteja conectada com os conflitos por terra de Anapu, mas tudo indica ser bastante possível.

Iracy Resplandes dos Santos, 53 anos, vive acuada. Claramente está com depressão, mas conta não ter confiança de buscar tratamento. Disseram a ela que a dor pode ser aplacada com tricô. Mas ela começa a tricotar e não consegue continuar. Vive o luto do filho mais velho, do irmão e do sobrinho. Em novembro, atravessou dias e noites no hospital cuidando do filho baleado, temendo a sua morte. Iracy tem dor e tem medo. Tem desespero. Tudo o que sonhou era um pedaço de terra para plantar. Acabou tendo que semear cadáveres. E nada indica que esta semeadura de corpos humanos irá parar.

5) O crime contra o Padre Amaro

Em 2018, ficou claro que a grilagem intensificava a violência e usava métodos mais ousados. Em 27 de março daquele ano, Padre Amaro Lopes, pároco em Anapu e um dos sucessores da missionária Dorothy Stang, foi preso numa operação cinematográfica para os padrões locais: 15 policiais, várias viaturas, armamento pesado. Parecia que o padre era Al Capone, isso numa cidade em que a maioria conhece os grileiros e pistoleiros pelo nome e cruzam com eles nas ruas sem que isso pareça perturbar a polícia.

Padre Amaro foi preso com um ramalhete de acusações. E jogado na mesma prisão em que Regivaldo Galvão, conhecido como “Taradão”, um dos mandantes da morte de Dorothy Stang, paga sua pena. Depois de três meses na cadeia, o religioso católico passou a responder às acusações em liberdade, mas até hoje sujeito a várias restrições e sem poder retomar o seu trabalho, o que claramente era o objetivo da operação.

Duas semanas antes de ser preso, Padre Amaro deu uma entrevista ao jornal The Guardian. Nela, afirmou que sua “batata estava assando”, referindo-se ao fato de que sabia que algo aconteceria com ele. “Como matar a Dorothy deu muita repercussão e problemas para os grileiros, eles vão forjar algum acidente ou inventar alguma coisa para me criminalizar”, disse na ocasião. Uma das acusações, a de assédio sexual, caiu em seguida, mas já tinha cumprido o objetivo de desqualificar o padre diante de parte da população de Anapu e da região.

A prisão de Padre Amaro foi precursora do método usado recentemente em Alter do Chão, na região de Santarém. No final de novembro, quatro brigadistas voluntários, que trabalhavam em conjunto com os bombeiros locais para apagar os incêndios na floresta, foram presos sob a falsa acusação de, justamente, atear fogo na mata. Na mesma data, a ONG Saúde e Alegria, uma das mais premiadas e respeitadas organizações brasileiras, foi invadida pela polícia e teve computadores e documentos apreendidos. É a nova etapa de criminalização justamente daqueles que ou denunciam os verdadeiros criminosos ou trabalham para combater seus crimes ou, ainda, para fortalecer a população local. Pesquisadores da área de segurança apontam que há um crescente aparelhamento das polícias para atuar na defesa de interesses privados.

6) Dezembro de sangue

Em Anapu, desde que Bolsonaro foi eleito, a atmosfera se tornou ainda mais pesada. É muito difícil encontrar alguém que aceite ser entrevistado, mesmo sem dar o nome. “O povo está morrendo”, dizem aos cochichos. Desde que acompanho a situação na região, nunca vi as pessoas tão aterrorizadas. Elas têm toda a razão, já que não contam com nenhuma proteção. Ao contrário, parte dos representantes do Estado parece atuar contra as verdadeiras vítimas.

Se a tensão e a violência aumentaram desde a eleição de Bolsonaro, em novembro houve um agravamento de cenário em diversas regiões da Amazônia. Em dezembro, tornou-se ainda mais alarmante. Todos os sinais mostram que a situação ruma para o total descontrole. É neste contexto que Márcio Rodrigues dos Reis, 33 anos, pai de quatro filhas, foi assassinado em 4 de dezembro, em Anapu. O assassino fingiu ser um cliente do seu mototáxi e o matou com um golpe de faca no pescoço. A garganta cortada, segundo repetem na cidade, assinala quem teria “morrido por falar demais”.

Márcio era uma das principais testemunhas de defesa de padre Amaro Lopes. Era também alguém que sabia bastante sobre o que acontecia na região. Cinco dias depois, em 9 de dezembro, o ex-vereador do PT e conselheiro tutelar Paulo Anacleto foi executado diante do filho pequeno na praça central da cidade. Segundo testemunhas, ele estava no carro com a criança quando foi alvejado por dois homens numa moto. Paulo Anacleto era amigo pessoal de Márcio e, segundo informações, estava revoltado o suficiente para comentar pela cidade que sabia muito bem quem havia sido o mandante da morte. Quem acompanha os conflitos agrários em Anapu não tem dúvida de que os assassinatos estão ligados.

Apesar de tentar por três dias seguidos, o EL PAÍS não conseguiu informações da polícia do Pará em nenhum nível ― local, regional e estadual. O delegado Lucas Luz, responsável pela Delegacia de Conflitos Agrários (DECA), especializada sediada em Altamira, a maior cidade da região, afirmou que não poderia falar sobre os casos porque estariam “sob segredo de Justiça”. A reportagem enviou um email para a Polícia Civil do Estado do Pará. A assessoria da corporação informou que o pedido estava “em análise” ― e não respondeu até a publicação do artigo. Em Anapu, os dois telefones divulgados da delegacia local aparentemente não funcionam ou não são atendidos.

O Ministério Público Federal, no Pará, instaurou procedimento para acompanhar as investigações e solicitar providências às autoridades de segurança pública do Pará sobre o que chamou de “a nova escalada de violência no município de Anapu”. “O cenário atual no município evidencia a ocorrência de reiteradas ameaças dirigidas a defensores de direitos humanos no campo. Em menos de uma semana, entre os dias 4 e 9 de dezembro, ocorreram dois assassinatos que podem estar ligados aos conflitos agrários históricos na região”, afirmou o órgão em nota pública. O MPF também solicitou informações sobre “as providências que estão sendo tomadas para prevenir e coibir a violência contra os moradores e lideranças dos lotes 96 e 97 da gleba Bacajá, devido à “pressão para expulsão de trabalhadores rurais”. Estes lotes são uma das áreas abarcadas pela liderança de Erasmo, hoje ameaçado de morte.

A principal causa dos conflitos nos anos recentes, além da impunidade que gera mais impunidade, é a omissão do Estado em fazer as ações de reforma agrária previstas em lei, abandonando o lado mais frágil, o dos agricultores familiares, a uma luta desigual com os grandes grileiros e suas milícias armadas. Como a luta é desigual, o resultado é o massacre de trabalhadores rurais e das pessoas que os apoiam. “Ao não adotar as medidas necessárias e previstas em lei para solucionar os conflitos agrários, há uma omissão do Estado que é ação”, afirma Sadi Machado, procurador da República em Altamira. “Há uma má vontade ativa por parte do governo federal de deixar de implementar a reforma agrária, que é uma política pública do Estado. Isso provoca conflitos, produz vítimas e destrói o meio ambiente. Claramente há um confronto entre a área técnica [de carreira] do Incra, órgão que foi bastante esvaziado na região, e a condução política do órgão. Esta situação se agravou neste ano.”

Ainda hoje, parte da sociedade e mesmo dos ambientalistas não entende que lutar pela reforma agrária é lutar pela floresta em pé. Sem justiça social na Amazônia não haverá justiça climática.

7) Por que agora?

As mortes recentes de indígenas e de camponeses ligados a conflitos agrários, assim como as prisões abusivas e a crescente criminalização das ONGs, deixam claro uma ofensiva da grilagem e de seus apoiadores, dentro e fora do Estado, em toda a região. Os sinais de que a violência só vai aumentar estão por toda a parte. Por que agora?

O cientista social Maurício Torres, professor da Universidade Federal do Pará, em Belém, e um dos maiores especialistas em conflitos agrários na Amazônia, apontou alguns caminhos de reflexão para esta coluna, que reproduzo aqui:

“A grilagem acontece em dois planos. Um no chão, onde se toma a área materialmente. Pistoleiros ‘limpam’ a terra de seus ocupantes legítimos (indígenas e camponeses), e a floresta é derrubada para consolidar a apropriação. Outro plano é no papel: quando, por meio da química mágica dos cartórios ou dos órgãos fundiários, acontece o destacamento da terra do erário público e sua transferência para o patrimônio privado do grileiro. A violência (e incluo aqui o desmatamento como sua variante) é o principal instrumento de controle de terras griladas. Quando esse mercado sujo de terras agita-se, a violência, como mecanismo da grilagem, é mais acionada. As assustadoras facilidades criadas para a consumação no papel do saque de terras públicas, que transformam o grileiro em ‘proprietário’ das terras das quais se apropriou ilegalmente, incendiou esse mercado. Falo, em especial, da MP 910 ― não só da sua promulgação, mas, mesmo antes, do efeito gerado pela especulação em torno dela”.

A Medida Provisória 910 é a MP da Grilagem produzida por Bolsonaro em 10 de dezembro. Antes dela, houve a MP da Grilagem de Lula, em 2009, e a MP da Grilagem de Michel Temer, em 2017. É importante recuperar o processo, porque do contrário não é possível compreender o presente.

O programa Terra Legal, de 2009, ainda no Governo Lula, é citado por Torres e outros pesquisadores como um marco no processo de legalização da grilagem na Amazônia. Ele foi instituído pela Medida Provisória 458, sancionada na forma da lei 11.952. Entre outras ações, regularizava todos os imóveis em terras públicas na Amazônia Legal, com até 1.500 hectares, desde que ocupados até dezembro de 2004. No discurso, o programa serviria para regularizar a situação dos pequenos posseiros, aqueles que viviam na terra e viviam da terra. Na prática, o programa serviu para regularizar a grilagem praticada pelos grandes. Na época, foi apelidado de “MP da Grilagem” e, depois, de “Lei da Grilagem”.

Os números ajudam a clarear os objetivos: os pequenos eram quase 90%, mas ocupavam menos de 19% do território; já os grandes eram menos de 6%, mas ocupavam 63% do território. Para os pequenos, a lei já existente era capaz de solucionar a situação e corrigir injustiças. Não era necessário criar nada novo. Assim, afirma Torres, o programa Terra Legal foi pensado para legalizar a grilagem.

O novo e controverso Código Florestal, de 2012, aprimorou ainda mais produção de legalidade onde antes havia crime. Mais tarde, com Michel Temer e um Congresso explicitamente corrupto, dominado pelos ruralistas, o processo se aprimorou e acelerou. A lei 13.465/17, nascida da Medida Provisória 759, foi sancionada em julho de 2017 por Temer. Também é conhecida como “Lei da Grilagem”.

Com a desculpa de “regularizar” a situação de pessoas que muitos anos atrás ocuparam áreas públicas “de boa fé”, para viver nela, a lei permitiu que grileiros que ocuparam terras públicas sabendo que eram públicas até 2011 pudessem “regularizar” seus “grilos” até 2.500 hectares, uma área equivalente a 57 Vaticanos. Basta expandir a produção de “laranjas” e os grilos são legalizados de 2.500 em 2.500 hectares. Neste ato “legal”, Temer e o Congresso anistiaram grileiros. Não só os anistiaram, como converteram criminosos em “cidadãos de bem”, totalmente dentro da lei, ladrões de terra pública em fazendeiros, quadrilhas criminosas em empresas.

Ao final do primeiro ano de governo, Bolsonaro criou a sua MP da Grilagem. Não há precedentes de algo tão escandaloso, pelo menos não no que formalmente tem se chamado de democracia. A MP da Grilagem de Bolsonaro é uma “masterpiece” da legalização da bandidagem. Com a mesma desculpa usada por Lula e depois por Temer, a da “regularização fundiária”, agora é possível legalizar terras roubadas da União até dezembro de 2018. Em resumo: você rouba do patrimônio público, destrói a floresta amazônica e, um ano depois, vira latifundiário legalizado e vai gozar a vida como “cidadão de bem”.

A mesma medida provisória também aumentou para até 15 módulos o tamanho da área que dispensa vistoria do Incra. Em alguns locais da Amazônia, isso significa mais de 1.500 hectares, O processo é praticamente autodeclaratório. O criminoso rouba um pedaço da floresta, diz ao governo que a área é dele e vira fazendeiro. Nenhum funcionário vai sequer checar. Como alguém acredita que vai sobrar floresta amazônica com este estímulo oficial para saqueá-la?

Maurício Torres analisa o impacto: “Há dois efeitos. O primeiro é o óbvio: a busca por terras públicas não destinadas aumentou, pois agora é só declarar que é o dono para se tornar dono. Essa situação aumenta também o conflito de grileiro comendo grileiro e, também, de grileiro expulsando camponês e indígena. Mas há um outro efeito, este mais sutil. A promulgação de algo dessa dimensão em benefício do grileiro, como é o caso da MP 910, passa uma mensagem de empoderamento, fazendo essa gente se sentir autorizada a tudo”.

As áreas que hoje estão em litígio judicial, ocupadas por agricultores familiares, mas disputadas por grileiros, vão ser tomadas à bala. É o que está acontecendo neste momento na Amazônia e particularmente em Anapu, que têm muitas áreas em litígio. Por isso mais lideranças estão ameaçadas de morte e grileiros têm dito nas ruas que não estão nem aí pra juiz. Por que estariam? Se o Congresso não barrar essa MP, a Amazônia se tornará uma floresta de cadáveres. Não só de árvores, mas de gente.

“Desde a construção das grandes rodovias na Amazônia, talvez nada tenha tanto efeito sobre o aumento da violência e do desmatamento do que essa MP pode gerar”, afirma Maurício Torres. “A medida irá privatizar dezenas de milhões de hectares, ninguém sabe ao certo, mas creio que algo entre 40 e 60 milhões de hectares. Isso significa a emissão de autorizações legais para a derrubada de 20% da floresta nas terras tituladas, algo em torno de 10 milhões de hectares. E isso só contando o que pode ser legalmente autorizado. Mesmo que uma parte disso já esteja desmatada ― e está mesmo ― o impacto será trágico.”

8) Como proteger Erasmo?

Em 2005, um dos principais grileiros da região deu carona a Dorothy Stang. Queria dar a ela um aviso. A missionária depois relataria as palavras deste homem: “Se alguém ‘invadir’ as ‘minhas’ terras, vai ter sangue até a canela”. Este homem, assim como meia dúzia de outros, todos eles bem conhecidos de quem vive na região, tem feito provocações em Altamira e região. É um sinalizador.

Parte do crescimento da violência e da crescente desenvoltura destes personagens miram nas próximas eleições municipais. Eles sentem que já estão no governo, em nível federal. Mas querem ocupar também o poder local para consolidar ― e facilitar ― a conversão do público no privado. Se nada foi feito para barrar a violência, as eleições municipais de 2020 poderão se tornar uma carnificina nas regiões amazônicas de conflito.

Neste cenário em que a lei é usada para proteger o crime contra o patrimônio público, é possível imaginar como estão vivendo ― e morrendo ― os mais frágeis. Como Erasmo, liderança que luta por 300 famílias de agricultores familiares em terras disputadas por grileiros. Na noite de 12 de dezembro, coincidência ou não, dois dias depois da assinatura da MP da Grilagem por Bolsonaro, um homem que trabalha para um dos grileiros das áreas em disputa foi até a casa onde Erasmo vive com os pais, já velhos, e a companheira. Antes de chegar lá, já tinha batido numa mulher e disparado três tiros. Uma das balas passou rente a uma vizinha que voltava da igreja. Diante da casa de Erasmo, o capanga do grileiro gritou e xingou. Queria que Erasmo saísse para falar com ele. A família se trancou dentro de casa.

Quando Erasmo conta o que aconteceu, seu corpo treme sobre a cadeira de plástico branca.

Esta é a vida de muitos que protegem a floresta para todos nós. Esta é a vida de Erasmo, enquanto não for morte.

Está avisado.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de Ruínas, Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, meus desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum


Eliane Brum: Belo Monte, a obra que une os polos políticos

Duas vezes inaugurada, a primeira por Dilma Rousseff (PT), a segunda por Jair Bolsonaro (PSL), a polêmica usina denuncia o drama da democracia brasileira

A polarização entre o bolsonarismo e o petismo é uma realidade. Há outras realidades, porém. E é urgente que elas sejam vistas. Perceber o que quebra a polarização é tão importante —ou até mais— quanto perceber o que a mantém, se quisermos respeitar a memória para, com ela, criar uma história que respeite a Amazônia e os seus povos. Hoje não mais uma opção, mas uma emergência, já que sem a floresta em pé não há possibilidade de futuro. Belo Monte é a obra que demanda o enfrentamento das contradições. É isso o que mostra, mais uma vez, a inauguração —pela segunda vez— da usina erguida no rio Xingu, no Pará. Quem inaugurou a primeira turbina, em 5 de maio de 2016, foi Dilma Rousseff (PT), antes da conclusão do processo de impeachment. Quem inaugurou a décima-oitava e última turbina foi Jair Bolsonaro (PSL), em 27 de novembro. Ambos estavam orgulhosos. Sem enfrentarmos os porquês deste orgulho pela realização de Belo Monte, capaz de superar a atual polarização política do Brasil, seguiremos barrados como país.

A cerimônia de inauguração, transmitida ao vivo pela TV Brasil, é bastante esclarecedora. Jair Bolsonaro, que se fez acompanhar da mulher, Michelle, manteve-se calado. Coube a ele o ato simbólico de acionar a última turbina. O governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), discursou. É bastante justo que o tenha feito. Não por ser governador do Pará, mas porque pertence ao partido que, junto com o PT, fez de Belo Monte uma obra possível. A arquitetura financeira da usina é alvo de investigação da Operação Lava Jato, já que há suspeitas de negociação de propinas pelo PT e PMDB com empreiteiras que formaram o Consórcio Construtor de Belo Monte. Márcio Lobão, filho de Edison Lobão (MDB), ministro de Minas e Energia durante parte do segundo mandato de Lula e durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff, chegou a ser preso em setembro deste ano por conta das investigações do propinoduto na construção de Belo Monte.

Vale sempre lembrar que, em 2010, ano do leilão da usina, a obra era orçada em 19 bilhões de reais. Hoje, é calculada em mais de 40 bilhões de reais, a maior parte dele financiado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Belo Monte é apresentada como a quarta maior hidrelétrica do mundo. É importante esclarecer, porém, que capacidade instalada —mais de 11 mil megawatts— é diferente do que efetivamente a usina vai produzir, aquilo que no jargão técnico se chama de “energia firme”. Como o rio Xingu vive metade do ano na seca, a média de produção de energia é menos da metade disso, uma das razões pelas quais cientistas e técnicos apontavam —e apontam— a inviabilidade da hidrelétrica.

É justo que Helder Barbalho, o herdeiro do clã Barbalho, que tanta história construiu e constrói no Pará e no Brasil, algumas ainda por serem devidamente contadas, faça as honras da casa. Não se deve esquecer a participação do PMDB, hoje MDB, no que veio antes e em tudo o que ainda acontecerá devido à construção de Belo Monte. O DNA de José Sarney esteve na retomada do projeto de Belo Monte no início do primeiro mandato de Lula, quando Dilma Rousseff era ministra de Minas e Energia, como esteve por décadas em tudo o que aconteceu no setor elétrico brasileiro. Agora, outra oligarquia da política nacional e do MDB fez questão de deixar suas digitais na obra mais controversa deste século.

O PT não estava sozinho na construção do “Belo Golpe”

O PT não estava sozinho na construção do que a população atingida chama de “Belo Monstro” ou “Belo Golpe”. Ao discursar, Barbalho preferiu definir a usina como “a maior obra de produção energética 100% brasileira”. Esta tecla, a do “100% brasileira”, tem sido muito batida, com o objetivo de exacerbar o nem tão novo tipo de nacionalismo que acomete parte dos brasileiros, o subserviente. Também serve para adicionar superlativos à Belo Monte, já que, sem isso, a maior hidrelétrica é Itaipu, dividida entre o Brasil e o Paraguai.

É interessante perceber como, apesar de seus detratores cíclicos, Freud segue atual. Sempre há algum ato falho, uma verdade que escapa, mesmo nos discursos mais estudados. Foi assim com Barbalho. A certa altura, ele agradeceu “a cada cidadã e cidadão que, ao longo dos últimos oito anos, dispensou a sua vida para esse empreendimento extraordinário que hora temos a oportunidade de entregar”. Extraordinário. É fato que milhares de pessoas tiveram seu modo de vida inteiramente destruído ao serem expulsas de suas casas, ilhas e terras e jogadas nas periferias urbanas de Altamira e de outras cidades da região. Algumas adoeceram e morreram. Outras foram assassinados no curso da violência que tornou Altamira a cidade mais violenta da Amazônia após a construção da usina. E há os que hoje vivem uma crise humanitária na Volta Grande do Xingu porque o rio está secando.

“Dispensou”, o verbo usado pelo governador do Pará, é um verbo justo. Apenas que estes homens e mulheres, adultos e crianças não “dispensaram” nem “dispensam” a sua vida porque assim decidiram, como uma espécie de sacrifício no altar do que alguns chamam de progresso. Ao contrário. Tiveram sua vida dispensada pela Norte Energia S.A., a empresa concessionária da hidrelétrica, pelos governos de Dilma Rousseff (presidente) e de Michel Temer (vice-presidente), e pelo judiciário que barrou o julgamento de parte das 25 ações produzidas contra Belo Monte pelo Ministério Público Federal. Tiveram sua vida dispensada também por todos aqueles que costumavam lutar pelos direitos humanos e, por conveniência política, deixaram de fazê-lo. Nesta dispensa de vidas há os que agiram —e há os que se omitiram. Ainda hoje é assim.

Ministro militar lembra que Belo Monte simboliza a continuidade do projeto da ditadura

Depois do discurso de Helder Barbalho, foi a vez de Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia do Governo Bolsonaro. Ele disse pelo menos uma verdade, importante para estabelecer as conexões históricas: “A conclusão desta obra, concebida na década de 70, no século passado, é marco histórico para nosso país. [...] Com sentimento de satisfação e alegria, vejo que somos testemunhas de mais um capítulo de prosperidade que contou, presidente, com uma visão estratégica: a concepção de uma política energética de Estado, criada há mais de 40 anos, com o uso da cultura da nossa academia, engenharia, indústria e da capacidade de empreendimentos nacionais”.

O militar Bento Albuquerque, almirante de Esquadra da Marinha que iniciou sua carreira em 1973, durante a ditadura militar (1964-1985), fez questão de sublinhar a continuidade —sem rupturas efetivas— da política energética e da política para a Amazônia instituída pelo regime de exceção e mantida durante a retomada da democracia. Belo Monte simboliza essa continuidade e desfaz, pelo menos neste campo, a polarização entre lulismo e bolsonarismo. Obra concebida na ditadura e barrada por décadas pelos povos indígenas e movimentos sociais do Xingu, a usina foi realizada pelos governos do PT, de Lula e de Dilma Rousseff. Como as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira, em Rondônia, Belo Monte é produto de uma visão de desenvolvimento para a Amazônia estruturada durante a ditadura militar que nunca deixou de estar presente nos governos da democracia.

Em nenhum deles, porém, essa visão foi tão vitalizada quanto nos governos do Partido dos Trabalhadores. Na construção da obra, em si, mas também na forma como Belo Monte foi imposta às populações atingidas e ao país. Do leilão à inauguração desta última turbina, a hidrelétrica pode ser contada por uma sequência de violações de direitos humanos, animais e ambientais em conluio com os governos e com a conivência de parte do judiciário.

Belo Monte, como já demonstrei amplamente em artigos publicados desde 2011, foi construída num microcosmo de exceção. Isso está amplamente demonstrado pelos fatos expostos em reportagens, relatórios científicos e ações do MPF. Um dia, se restar algum resquício de democracia no Brasil, essas violações serão julgadas. É importante que as ações sejam desbloqueadas e se recupere o fluxo da justiça. É também neste ritual que se recupera a memória, como as vítimas da ditadura e seus familiares sabem tão bem, já que nunca foram contemplados pela justiça brasileira. A desresponsabilização e o barramento da memória são ativos importantes do atoleiro no qual nos encontramos hoje.

A visão de desenvolvimento para a Amazônia atravessou as décadas e hoje é alegremente levada adiante pelo governo de Jair Bolsonaro, povoado por militares estrelados. É interessante observar como no discurso do almirante Bento Albuquerque o século 20 é resgatado em sua grandiosa decadência. O que é enaltecido é justamente aquilo que carregou as humanidades (no plural) para o colapso climático que hoje apenas começamos a experimentar. A visão do século 20 já demonstrou toda a sua capacidade de destruição da vida no planeta, mas ainda é repetida e glorificada. Também por uma parcela significativa da população brasileira, desinformada e pouco educada – e pouco educada também nas elites, que, vivendo em guetos, são muito deficitárias.

A tragédia atual do Brasil não é que os militares voltaram ao poder com Bolsonaro, mas sim que os militares que voltaram ao poder com Bolsonaro foram justamente os militares que não conseguiram se atualizar. De várias maneiras, só enxergam na sua frente o passado, tanto para impô-lo mais uma vez como o único destino possível, caso deste imaginário sobre desenvolvimento que nunca foi suficientemente criticado no Brasil, como para reescrevê-lo apagando os crimes cometidos pela ditadura contra a população civil. Sabemos que há militares preparados e bem informados, mas não são estes que apoiaram Bolsonaro. Estes seguem na Guerra Fria – ou precisam da Guerra Fria.

Movimentos sociais do Xingu exigem “envolvimento” em vez de “des/envolvimento”

Estamos, mais uma vez, às voltas com o passado que nunca passou. Com o agravante que, no caso de Belo Monte e das grandes hidrelétricas construídas na Amazônia nas últimas duas décadas, uma parte da esquerda ligada ao PT quer também apagar essa memória ou reescrever a história, o que torna tudo muito mais difícil para as vítimas e para o debate de um novo modelo de “envolvimento” com a Amazônia. No manifesto do encontro Amazônia Centro do Mundo, realizado em Altamira em novembro, os movimentos sociais do Médio Xingu propõem o “envolvimento” em detrimento do “des-envolvimento”. Des-envolver como “não se envolver” ou “deixar de se envolver”. Eles conhecem este des-envolvimento – literalmente na pele.

Discursa o almirante, que também é ministro de Minas e Energia do bolsonarismo: “O concreto aplicado em Belo Monte é suficiente para construir 37 Maracanãs!”. É século 20 na veia. Enquanto os efeitos nocivos do concreto são denunciados por todo o planeta, nossos ministros militares acham maravilhoso ter colocado 37 Maracanãs no meio da floresta amazônica. Bento Albuquerque quis fazer como Lula e invocar o futebol, aproveitando a vitória do Flamengo na Libertadores. Como juntou Belo Monte com Maracanã, porém, acabou evocando a corrupção presentes na obra da usina e na reforma do estádio para a Copa do Mundo de 2014.

Tanto o almirante quanto o governador enalteceram todas as grandes obras e os minérios e a indústria e a engenharia etc. Esqueceram-se por completo do que é a maior riqueza da floresta. Ou seja, a própria floresta em pé, que salva o planeta todos os dias pela sua capacidade de regular o clima. Esta que ainda empresta relevância ao Brasil, país que não para de se apequenar diante da comunidade global. Poderíamos criar uma bolsa de apostas para tentar descobrir se as autoridades brasileiras vão chegar ao século 21 antes ou depois do fim do mundo.

“Usina grandiosa”, enalteceu Dilma Rousseff ; “obra magnífica”, afirmou ministro de Bolsonaro

Este mesmo espírito do século passado inspirou Dilma Rousseff em 2016, na primeira inauguração de Belo Monte. A ex-presidenta foi ainda mais grandiloquente em seu entusiasmo. Lembremos apenas de uma pequena parte: “Essa usina é do tamanho desse povo. É grandiosa. É uma usina grandiosa. A melhor forma de descrever Belo Monte é essa palavra: grandiosa”. E segue: “Acho importante destacar que, com Belo Monte, nós não levamos só energia para o resto do Brasil. Criamos aqui uma riqueza única, que é colocar à disposição das empresas que quiserem vir aqui, colocar o seu negócio aqui, participar desse estado que tem grandes reservas minerais, grande potencial agrícola. Podem vir aqui, porque não vai faltar energia”.

Em 2016, Dilma assim terminou a primeira inauguração de Belo Monte: “Para concluir, eu quero dizer a vocês que eu tenho imenso orgulho das escolhas que eu fiz. Uma delas, que eu quero destacar mais uma vez, é a construção de Belo Monte como um legado para a população brasileira dessa região, para o povo de Altamira e o povo de Xingu. Mesmo que não seja dos municípios diretamente impactados por Belo Monte, toda essa população vai ser beneficiada direta e indiretamente. Tenho orgulho das escolhas que fiz”.

Em 2019, o almirante de Bolsonaro assim terminou a segunda inauguração de Belo Monte: “Destaco e enalteço o esforço, a competência e a bravura de que todos que trabalharam para a realização desta obra magnífica por todo e qualquer aspecto que seja considerada. É mais que orgulho, é mais que satisfação. Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

Temos, portanto, uma concordância explícita entre os dois polos que têm dominado o debate cotidiano do país. O Brasil não é apenas um construtor de ruínas. O Brasil não apenas constrói ruínas em dimensões continentais. O Brasil também inaugura duas vezes as ruínas que constrói.

Bolsonaro estava feliz como um menino ao fazer o acionamento simbólico das unidades geradoras da hidrelétrica construída pelo PT. Ao fazê-lo, o barulho terrível que se associava ao progresso no passado – o ruído das máquinas, o símbolo da suposta superioridade do homem sobre a natureza – se fez ouvir. Parecia um daqueles filmes futuristas do início do século 20.

No encerramento do evento Amazônia Centro do Mundo, semanas antes, foi exibida a peça teatral “Altamira 2042”. A diretora e atriz Gabriela Carneiro da Cunha captou os ruídos reais da conversão da floresta em hidrelétrica, da vida em morte. O trabalho é impressionante. A diferença é que, ao final desta barulheira infernal que Bolsonaro, Barbalho e outros celebraram, a barragem rompia. Na ficção, este é o futuro que os criadores apontavam.

Belo Monte é “fato consumado” para quem?

Gente demais, à direita e também à esquerda, gosta de repetir: “Chega de falar de Belo Monte, é fato consumado”. Fato consumado para quem?

Ainda que Belo Monte já tenha destruído vidas e modos de vida, os impactos do barramento de um dos maiores e mais vitais rios da Amazônia estão só começando. Neste momento, a Volta Grande do Xingu seca por conta do controle da água feito pela usina, e uma crise humanitária se instala na região. Uma carta do diretor-presidente da Norte Energia S.A, Paulo Roberto Ribeiro Pinto, afirma, conforme reportagem do El País de minha autoria, também publicada pelo The Guardian em 8 de novembro: “Se não mantiver a cota mínima de 95,20 metros no reservatório do Xingu, a onda negativa que poderá se formar devido aos ventos atingirá áreas da barragem não protegidas por rocha, situação que pode resultar danos estruturais à principal barragem do Rio Xingu, que é Pimental. Assim, é absolutamente necessário manter a cota mínima de 95,20 m para garantir a segurança da barragem de Pimental”.

Na tarde de 10 de outubro, também segundo o diretor-presidente da Norte Energia, o nível do reservatório já havia atingido a cota mínima. Por isso a empresa pedia autorização à Agência Nacional de Águas (ANA) para alterar as vazões de água, evitando assim o risco de danos estruturais: “Nesse sentido, por absoluto imperativo de: (i) garantir a segurança das instalações e (ii) manter a vazão mínima para o TVR (Trecho de Vazão Reduzida) em 700 m3/s (conforme Hidrograma), a decisão operacional da NESA é fazer o imprescindível ajuste emergencial e temporário de redução da vazão afluente ao Reservatório Intermediário para 100 m3/s”. O grifo é da empresa.

Procurada pela reportagem dos dois jornais com uma série de perguntas referentes ao documento enviado à ANA, a concessionária de Belo Monte limitou-se a comentar: “A Norte Energia, empresa responsável pela Usina Hidrelétrica Belo Monte, informa que vem cumprindo rigorosamente os compromissos estabelecidos no licenciamento ambiental do empreendimento". A resposta foi publicada na íntegra no corpo da reportagem. Em 21 de novembro, o El País publicou uma longa carta da empresa, repleta de jargões técnicos inacessíveis à maioria dos leitores. Nela, a Norte Energia nega que exista qualquer risco. Resta saber em qual carta – do mesmo autor – devemos acreditar. Ambas foram publicadas pelo El País e estão à disposição dos leitores, das autoridades e da comunidade científica.

Qual é a polarização que queremos?

Respeitar os fatos e produzir memória sobre Belo Monte é fundamental por todas as razões éticas óbvias. E porque é preciso esclarecer como partidos e sociedade civil vão enfrentar os impactos que ainda não foram indenizados, os impactos que jamais poderão ser reparados e, principalmente, os impactos que ainda podem ser evitados, como a morte da Volta Grande do Xingu. É essencial saber também como a esquerda vai enfrentar a retomada da construção de grandes hidrelétricas na Amazônia anunciada por Bolsonaro, parte delas projetadas pelos governos do PT.

O que proponho aqui não é o fim da polarização. Mas uma outra polarização que me parece urgente em tempos de escalada do autoritarismo bolsonarista: a dos direitos humanos contra a violação dos direitos humanos, a dos direitos da natureza contra a violação dos direitos da natureza, a do conhecimento contra a ignorância, a da democracia contra a quebra do Estado de Direito, a da centralidade da Amazônia viva para todos contra a predação da Amazônia para poucos. A da verdade contra todas as mentiras.

O que faremos com Belo Monte nos definirá– e definirá o futuro.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de Ruínas, Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum