Eliane Brum

Eliane Brum: Quando o vírus nos trancou em casa, as telas nos deixaram sem casa

A cultura do ‘home office’ e das ‘lives’ e dos ‘meetings’ pedalou a nossa porta

Encerro 2020, o ano que anuncia que o tempo das pandemias chegou, com estranhos sintomas. A ideia de fazer mais uma live, mais um meeting pelo Jitsi, Zoom ou Google, ou mesmo pelo WhatsApp, me deixa fisicamente enjoada. Escrever, como faço agora, enquanto as notícias e as mensagens pipocam num canto da tela, me deixa tonta e exausta. Amigos me pedem encontros de Natal, happy hours de Ano-Novo. Quero. Mas não consigo. Que o excesso de telas cansa e pode causar transtornos e até doenças, sabemos. A experiência atual, porém, vai muito além disso. O home office, as lives e os meetings mudaram oconceito de casa. Ou talvez tenham provocado algo ainda mais radical, ao nos despejar não apenas da casa, mas também da possibilidade de fazer da casa uma casa.

A maioria dos que tiveram a chance de ficar entre paredes durante a maior parte do ano para se proteger do vírus vive, como eu, uma experiência inédita na trajetória humana: a de estar 24 horas dentro de casa e, ao mesmo tempo, não ter nenhuma casa. A pandemia nos levou ao paradoxo de nos descobrirmos sem teto debaixo de um teto. Mais do que sem teto, nos descobrimos sem porta. Sem porta, não há chave para nenhum entendimento.

Sim, aqueles que têm a chance de trabalhar no sistema de home office, o que significa trabalhar a partir da sua casa, são privilegiados num planeta encurralado pelo vírus. Pensar sobre a desigualdade no tempo das pandemias é pensar sobre quem pode desempenhar suas funções profissionais “remotamente” e quem não pode. A maioria dos que não podem trabalhar remotamente é composta pelos mesmos que têm mais chances de figurar em todas as piores estatísticas: os mais pobres, os negros, as mulheres.

Afirmar que a pandemia expõe e agrava a desigualdade social, de raça e de gênero é uma obviedade que várias pesquisas comprovaram ao longo de 2020. A iniquidade abissal do Brasil —e, em menor escala, da maioria dos países do planeta— impõe como privilégio aquilo que é um direito básico, o de ser capaz de se proteger de uma ameaça. Assim, é como privilegiada que discuto aqui a experiência de nos descobrir sem casa, uma experiência que não é apenas subjetiva. Apesar das paredes de concreto que nos cercam, nos sentir sem casa é uma experiência bem concreta.

O que é uma casa?

O que é uma casa? Essa pergunta entrou na minha vida de jornalista junto com a imposição de Belo Monte ao rio Xingu e aos seus povos. Para os ribeirinhos expulsos de ilhas e da beira do rio para a construção da hidrelétrica, casa era uma ideia concretizada a partir de uma experiência de viver e de ser floresta. Para os funcionários da Norte Energia SA, a empresa concessionária da usina e outras terceirizadas a seu serviço, assim como para os advogados que consumavam a “negociação” em que nunca se negociou nada, porque tudo foi imposto, casa era algo referenciado na experiência de viver em cidades do centro-sul do Brasil.

Como quem detinha —e detém— o poder era a empresa, o valor da indenização e de outras compensações foi determinado à revelia da experiência cultural e também objetiva de quem vivia um conceito expandido do que é uma casa, um conceito arquitetônico diverso do que é uma casa, um outro tipo de material para criar uma casa. Enfim, para quem vivia uma experiência inteiramente diversa de fazer casa que foi esmagada pelos tecnocratas. Não apenas por ignorância, mas porque, ao ter o poder de determinar que o que era casa não era casa, ou que o que era casa não era uma boa casa, o valor monetário da indenização e também as compensações seriam muito mais baixos ou, em alguns casos, inexistente.

Testemunhar essa violência implantou a questão do que é casa definitivamente na minha cabeça, e eu a expandi para outros territórios objetivos e, principalmente, subjetivos. Em minha experiência como jornalista, já escrevi reportagens sobre um homem que fez uma casa dentro de uma grande árvore, em plena zona urbana de Porto Alegre. Já contei de uma família que fez casa embaixo de um viaduto, convertendo o cotidiano numa experiência onde cabia preparar o café da manhã, arrumar e levar os filhos para a escola todos os dias para garantir que tivessem educação formal. Já testemunhei o que se tornou uma das reportagens mais impactantes da minha vida, na qual um grupo de crianças de rua fez casa nos esgotos da cidade. Chamavam a si mesmos de Tartatugas Ninja, como no filme que então estreava nos cinemas.

Conheci também experiências diversas de casa com diferentes povos indígenas. Algumas coletivas, como a dos Yanomami, outras unidades familiares, sendo que também aí há diferentes entendimentos sobre qual é a teia de relações que constitui o que cada etnia chama de família. As humanidades são variadas e experimentam diferentes formas de tecer relação com a natureza. Ou, no caso da minoria branca e dominante —essa que chama sua experiência de civilização e equivocadamente a considera universal ou até mesmo superior—, romper com a natureza.

Andando pelos tantos Brasis em busca de histórias para contar, vi as pessoas inventarem todo o tipo de casa, até as invisíveis, quando é necessário fantasiar paredes nas esquinas movimentadas de cidades gigantes como São Paulo, para fazer limite simbólico entre a família e o mundo sempre ameaçador para os que pouco têm além do próprio corpo. E, claro, já entrei em mansões e também em palácios. Parte do encanto de ser jornalista é a possibilidade de ter acesso a lugares aos quais jamais teríamos em outras profissões.

Apesar da diversidade de experiências, há algo comum a essas tantas construções do que é uma casa, algo para além das diferenças de tamanho, de material, de arquitetura, de contexto e de geografia. É a ideia da casa como o lugar onde cada um faz seu espaço próprio, o lugar que cada um reserva para si ou para a família ou para o grupo. É a ideia da casa como refúgio. É a ideia da casa como proteção contra chuva e contra sol excessivo, contra animais que podem querer nos converter em jantar, contra aqueles que não conhecemos e por isso não sabemos se querem ou não nos fazer mal. É a ideia da casa como espaço de abrigo e de descanso, como um mundo dentro do mundo onde fazemos aquilo que é mais importante, como nos alimentar, nos reproduzir e amar.

Se há ‘office’, não há ‘home’

Quando a casa deixa de representar esse conjunto de significados, não importa a forma que ela tenha, há um distúrbio. Pode ser porque o abusador mora nela —seja ele o pai, um padrasto ou um tio que molesta, seja um marido ou companheiro violento. E então a casa já não garante mais segurança, proteção e abrigo. Seja porque a casa foi invadida e saqueada, seja porque algo violentamente disruptivo aconteceu desde dentro e a casa passa a guardar uma memória com a qual temos dificuldade de lidar. A casa então já não pode mais ser refúgio. A casa então se descasa, porque sozinhos ou acompanhados somos, de qualquer modo, casados, no sentido de que fizemos casa. E fazer casa é preciso.

Se tornar descasado, no sentido de sem casa, é o que está acontecendo hoje com aqueles que, desde março, fazem home office, expressão em inglês para apontar que a casa, no sentido de lar (home), se tornou também o escritório (office), no sentido de local de trabalho. A expressão home office, porém, é ardilosa. A experiência cotidiana mostra que, se há office, não há home.

Quando o trabalho invade a casa no modo 24(horas)X7(dias) por semana, perdemos a casa. E com ela o descanso, o refúgio, o remanso. E também o espaço de intimidade que só será alcançado pelos de fora se quisermos abrir a porta. Perdemos principalmente a porta. E uma casa sem porta não é uma casa. Mesmo que essa porta seja invisível, caso dos moradores de rua, essa barreira concretizada pela imaginação cumpre o papel simbólico de fazer borda, dar limite. No modo pandêmico, ao contrário. Mesmo que materialmente exista uma porta de madeira ou mesmo de ferro, grossa e cheia de fechaduras complicadas, seguidamente precedida da porta do prédio e ainda da porta externa do edifício, como hoje vive parte da classe média urbana, ainda assim não há porta nenhuma porque já não há limite para o que invade a casa pelas telas —todas as telas— desde dentro.

Essas muitas portas e fechaduras que se multiplicaram para supostamente nos manter seguros só são capazes de botar algum limite nos assaltantes clássicos. Hoje, porém, há outro tipo de assaltante, que pode nos roubar algo muito mais importante, até mesmo insubstituível e seguidamente irrecuperável do que bens materiais. A invasão contemporânea é aquela que nos rouba o tempo e sequestra o espaço da vivência dos afetos, da intimidade, dos prazeres e das subjetividades. Tempo no sentido definido pelo grande pensador Antônio Cândido (1918-2017), tempo como o tecido das nossas vidas, como tudo o que temos, como algo não monetizável. Esse assalto, a médio e longo prazo, pode provocar muito mais estragos no corpo-mente de cada um do que o que convencionamos chamar de assalto.

A tecnologia, e de forma totalmente transtornante e veloz, a Internet, já haviam nos tirado de casa quando em casa. Talvez o primeiro ataque tenha sido o telefone, mas lembro que não era educado telefonar para a casa das pessoas depois de certa hora da noite, em geral cedo, e antes de certa hora da manhã, tampouco na hora das refeições, que costumavam ser feitas na mesma hora em todas as casas. E jamais um chefe ligaria para a casa de um subordinado no fim de semana ou feriado se não fosse literalmente um caso de vida e morte. Mesmo no jornalismo, só éramos perturbados na nossa folga se literalmente caísse um avião ou houvesse um massacre em algum lugar que exigisse uma viagem imediata. E, ainda assim, com um pedido de desculpas por perturbar nossa privacidade e interromper nosso descanso logo na introdução.

A Internet mudou as convenções sociais muito rapidamente, antes que a maioria sequer pudesse compreender a Internet e antes que mesmo seus criadores fossem capazes de entender seu impacto. A Internet, como quase tudo, se fez e se faz na própria experiência. Assim como as pessoas acham que podem escrever nas redes sociais o que lhes vêm a cabeça, sem filtros ou freios, apenas porque o outro supostamente estaria à sua disposição ou, com frequência, seria seu saco de pancada, também se tornou corriqueiro mandar mensagens de WhatsApp a qualquer hora ou por qualquer motivo ou mesmo sem motivo algum. Ninguém enviaria 10 cartas para alguém no mesmo dia, mas quase todos acreditam ser perfeitamente “normal” enviar mensagens e memes e vídeos e links numa só manhã, confundindo poder com dever.

Essa é justamente uma época em que, dos cidadãos aos governantes, todos acreditam que, porque podem, devem. Ou, mais provável, o questionamento sobre dever ou não fazer ou dizer algo foi deletado e, assim, o único verbo a ser exercitado é o “poder”. O tempo da Internet, que é o tempo da velocidade, eliminou para muitos a etapa obrigatória da reflexão. Estamos todos pagando um preço altíssimo por essa mudança brusca e ainda subdimensionada que encolheu ou mesmo eliminou o tempo dedicado à ponderação antes da ação ou reação. Seu impacto é a corrosão de todas as relações, a começar pelos governantes, que passaram a se comunicar pelas redes sociais, conectados diretamente com seus eleitores, em alguns casos com seus fiéis, mas desconectados do ato de responsabilidade que é governar.

Tudo se complica infinitamente mais quando o mundo do trabalho invade a casa. Com a comunicação facilitada e imediata permitida pela tecnologia, os limites que antes eram determinados pela carga horária da jornada passaram a ser ultrapassados ou mesmo ignorados. A precarização das condições de trabalho, o apagamento das fronteiras entre vida privada e profissional, o devoramento do tempo, e com ele, a corrosão da vida, já tinham se tornado uma questão crucial da nossa época.

Com o home office, as condições de trabalho se precarizaram ainda mais. A vida foi transtornada com maior rapidez do que no acontecimento da Internet. Ainda que veloz, a internet foi ao menos progressivamente veloz. Já o home office se impôs literalmente da noite para o dia, determinado pelas necessidades de quarentena ou lockdown. E, para muitos, com o home office do companheiro ou companheira e também com as crianças sem escola.

As crianças, por sua vez, foram convocadas a compreender o incompreensível: que a casa deixou de ser casa para se tornar o lugar de trabalho onde os pais se tornam ainda menos acessíveis e, por todas as razões, com menos paciência e disponibilidade. Os pais estão totalmente presentes e, ao mesmo tempo, quase que totalmente ausentes. Quase que inteiramente em outro lugar, mesmo que inteiramente dentro de casa. Os impactos dessa experiência sobre as crianças de todas as idades estão sendo muito mal dimensionados. É muito difícil para as famílias cuidarem de algo que os pais nem sequer entendem e com o qual também sofrem muito. Também os pais sentem que lhes faltam ferramentas para lidar com a casa transtornada pela pandemia.

Sintomas de “descasamento”

Acompanhando minha própria experiência, assim como a de amigos e conhecidos, percebi que, no início, ficar em casa foi bem interessante. O álibi perfeito para quem já não suportava mais viajar e correr de um lado para o outro, de um mundo pro outro. Para quem vive em cidades grandes, o deslocamento para o trabalho costuma ser estressante, custoso e demorado. Assim, as pessoas acreditaram que, de imediato, ganhariam no mínimo uma hora a mais de tempo para si. Muitos se iludiram que leriam todos os livros empilhados na cabeceira e finalmente ficariam atualizados com os filmes e séries. Trabalhar de pijama ou moletom também soou confortável. A casa oferecia ainda o bônus de manter longe colegas de trabalho chatos e chefes abusivos.

Muita gente já dizia que não voltaria mais ao escritório ou ao consultório ou para o que fosse porque estava provado que era possível e melhor trabalhar de casa. Principalmente, várias empresas começaram a fazer as contas de quanto poderiam economizar quando cada funcionário virasse uma ilha em caráter definitivo. Muitas dessas empresas, inclusive, pouco dispostas a pagar os custos dessa ilha que é, afinal, a casa da pessoa. Defendem, portanto, que deveria ser problema de cada indivíduo pagar as contas de luz, internet etc., mesmo que os custos tenham aumentado pelas necessidades profissionais de uso.

E então começou o império do Big Brother, e a rotina passou a ser determinada pelo agoniante, às vezes enlouquecedor, ruído das mensagens entrando pelo Whatasapp ou dos e-mails se enfileirando na tela. Claro, se pode “emudecer” o som das mensagens, mas quem vai emudecer o chefe, o fornecedor, o fulano que ficou de dar notícias sobre prazos, o sicrano que vai enviar informações importantes, o beltrano que precisa de documentos? As horas foram invadidas além de qualquer precedente. Como emudecer ou mesmo desligar os celulares na hora de dormir se pessoas queridas estão sozinhas no meio de uma pandemia e podem precisar de ajuda a qualquer momento?

Se antes era impossível marcar um número muito grande de reuniões por dia, porque havia o tempo do deslocamento, agora as pessoas estão em casa. Tornou-se possível triplicar o número de encontros (ou desencontros), às vezes sem hora para acabar. As lives e os meetings, que permitiram que o mundo se conectasse para traçar estratégias para enfrentar a pandemia, fazer vaquinhas de solidariedade ou apenas conversar, se tornaram fáceis demais e por isso mesmo excessivos demais. Todos querem fazer meetings e lives por qualquer motivo. Tudo vira imediatamente performance. As horas que se acreditava liberar ao eliminar o tempo de deslocamento entre o trabalho e a casa foram engolidas... pelo trabalho. E outras que não estavam lá foram adicionadas. A desculpa social de “não vou estar em casa” ou “dei uma saidinha” desapareceu. Todos agora sabem onde cada um está. Em casa.

Essa foi a sequência alucinante de acontecimentos que pedalaram a porta da casa. Sem porta, logo a casa deixou de ter paredes e, sem paredes já não fazia mais sentido nenhuma estrutura. Nos tornamos sem porta e com janelas demais, mas um tipo de janelas pelo avesso, na qual somos observados desde dentro, em vez de contemplar o exterior. Reproduzimos a experiência excruciante dos animais confinados em zoológicos, criados em cativeiro.

A tecnologia que nos uniu, essencial para enfrentar essa pandemia, também nos escravizou. Não importa onde estivermos, as telas nos acompanham. No bolso, na bolsa, na mão, no pulso. Os mais sensíveis sentiram primeiro e sofreram mais. Uma amiga passou a não enxergar o que estava na tela. Ou melhor, enxergava, mas um borrão. Nenhuma doença foi constatada. Os relatos em geral apontavam sintomas que impossibilitavam seguir diante da tela. Há pessoas com enxaquecas que nunca antes haviam tido enxaquecas. Gente que se orgulhava de dormir como um cadáver que passou a ter insônia ou sono interrompido. Eu mesma passei a sentir enjoo diante da tela, mas enjoo seletivo. Reuniões de trabalho e meetings com muita gente me provocam náuseas, mesmo quando adoro todos que estão na tela.

Me sinto um corpo que não suporta mais tanta exposição. Minha capacidade subjetiva ainda não encontrou caminhos para criar paredes e portas na minha mente, fazer um refúgio onde não há nenhum, fazer de mim a casa que perdi. Tudo e todos entram casa adentro, na hora que bem entendem, pela tela do computador, pela tela do celular, pela tela do tablet. Informações que não pedi, vídeos que não me preparei para ver, comentários que preferia não ouvir. Gente desconhecida de repente está na minha sala ou mesmo na minha cama. E já não é mais tão fácil desligar todas essas telas porque o trabalho depende delas, as informações que eu realmente preciso dependem delas, a certeza do bem-estar de pessoas que amo e que fazem quarentena sozinhas dependem delas, a vida social depende delas. Nunca socializei tanto quanto nessa pandemia e não sou exatamente alguém que gosta de conversar o tempo todo. Sinto falta de estar realmente sozinha, de estar realmente em silêncio, de estar realmente no meu tempo e no meu ritmo.

Uma porta para importar o que importa

Esses sentimentos e sintomas, porém, são apenas a barbatana que desponta acima da superfície. Abaixo dela, há um tubarão inteiro. Obcecados por planejar a volta de algo que andam chamando de “normal”, esquecemos de olhar para a profundidade da transformação que nossa vida está sofrendo. Somos resultado, como espécie, de um longo processo de evolução e de adaptação, pelo menos dois milhões de anos desde o Homo erectus. Mas, como humanos contemporâneos, nossa existência sofreu uma brutal transformação com a internet e, em 2020, com a primeira pandemia na época das telas.

Nosso corpo não processa uma mudança tão monumental em tão pouco tempo. Desde que o novo coronavírus apareceu, a principal preocupação dos vários setores da sociedade é com os custos financeiros da pandemia. É urgente falar muito mais dos custos psicológicos, das crianças que só conhecem paredes e têm medo de outras crianças porque aprenderam que são ameaças, dos velhos confinados em solidão, dos adultos submetidos a uma pressão inédita e a um nível de convivência também inédito. Esse custo é alto e suas sequelas poderão durar uma vida.

Tratamos a pandemia como uma anomalia, mas a real anomalia é o mundo que criamos dentro do mundo. Ou melhor: o mundo que a minoria dominante dos humanos criou dentro do mundo, submetendo todos os outros, subjugando a maioria. O custo desse mundo ameaça nossa existência no planeta, isso que chamamos crise climática. A pandemia é consequência da corrosão da vida causada pelo capitalismo neoliberal, ao destruir o habitat de outras espécies, e pelo modo de produção em que as mercadorias circulam ampla e velozmente pelo globo, assim como muitos de nós a bordo de aviões altamente poluentes.

A segunda onda de covid-19 mostrou que anomalia produz anomalia. Nosso modo de vida é insustentável, o que fizemos com as outras espécies agora pode nos matar. É uma fantasia perigosa acreditar que é possível voltar à anomalia que chamamos de normal e seguir tocando a vida como se cada ato não tivesse consequências em cadeia.

Em 2020, perdemos definitivamente a casa. Que, além de perder a porta, se tornou também uma prisão, a pior espécie de prisão, aquela que foi criada pelos nossos atos. E o que é uma prisão senão um lugar em que estamos confinados mas não temos privacidade, em que somos acessados a qualquer hora, em que cada gesto é controlado e monitorado, onde as visitas são reguladas e não pode haver toque? O que é uma prisão senão um lugar em que não temos escolha sobre o que pode ou não entrar? Um lugar em que estamos a mercê de todas as outras forças?

Do lado de fora, nas ruas, há três tipos de experiências. A daqueles a quem foi arrancado o direito fundamental de se proteger, porque seu trabalho não pode ser feito em casa e os empregadores e o Estado não os bancam. A daqueles que fazem serviços essenciais, como os profissionais de saúde. E a da maioria de pessoas, que poderia fazer quarentena mas não faz, porque não se importa com a vida de todos os outros, e assim contribui de forma decisiva para a ampliação da contaminação e pelo maior número de vítimas. Esse grupo numeroso de boçais é cínico a ponto de empunhar a bandeira da liberdade, conceito que corrompem ao convertê-lo em liberdade de matar.

Para enfrentar a pandemia é preciso enfrentar a emergência climática e estancar a extinção das espécies. Para enfrentar a emergência climática e estancar a extinção das espécies teremos que criar muito rapidamente uma vida realmente sustentável. Para criar uma vida realmente sustentável temos que nos tornar outro tipo de gente.

Diante da magnitude do desafio, podemos começar organizando a casa. Para organizar a casa é preciso recuperar a casa, essa que é refúgio. E então parar de destruir a casa comum que é o planeta. Não é coincidência que no momento em que enfrentamos as consequências da destruição de nossa casa comum também enfrentamos a experiência subjetiva de perder a possibilidade de fazer casa da casa. É o mesmo nó. Para sair dele, precisamos recuperar a porta, e com ela a possibilidade de voltar a importar —colocar para dentro, deixar entrar— apenas o que realmente importa. A porta da casa é a única saída.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de ‘Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro’ (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Eliane Brum: Como pode uma empresa controlar a vida e a morte?

Com cinco anos de operação, a hidrelétrica de Belo Monte tornou-se um laboratório de como o capitalismo produz colapso ecológico na Amazônia

Imagine. E mantenha o fôlego.

Imagine que sua vida não é controlada por você, mas pelas grandes corporações. A serviço delas estão grande parte dos Governos e grande parte dos parlamentares. Pelo seu poder financeiro, essas corporações fazem pressão para aprovar leis favoráveis a seus interesses, financiam campanhas políticas, publicitárias e de marketing, financiam cientistas em universidades prestigiadas e financiam também outra indústria que entra em suas telas 24 horas por sete dias da semana, a de entretenimento. Você é estimulado a comer produtos ultraprocessados (bolachas de pacote, congelados, refrigerantes...), que, apesar de serem chamados de alimentos, são na verdade produtores de epidemias de obesidade em várias partes do globo, provocando doenças relacionadas que vão demandar os produtos de outra indústria, a farmacêutica. Agrotóxicos produzidos por corporações transnacionais são liberados pelas agências de Governos e contaminam os rios, que contaminam os peixes e também o lençol freático e assim a água que você bebe. Esses agrotóxicos envenenam ainda a comida que você bota na mesa para os seus filhos e estão relacionados a várias doenças de trabalhadores e também a suicídios.

soja que substituiu as florestas e as savanas serve para alimentar os animais que, depois de uma vida escravizada, serão enfileirados em pedaços despersonalizados nas prateleiras dos supermercados. Parte desses bois foram colocados sobre as ruínas da floresta apenas para garantir a posse da terra que era pública, o que faz com que a carne no seu prato seja o final de um processo que começou com a destruição da natureza. Esses bois são também uma das principais causas do superaquecimento global pelo metano que emitem ao arrotar. Em alguns países, como o Brasil, a população bovina é maior do que a humana, o que torna sua digestão uma catástrofe global. A roupa que você veste tem, na ponta visível, uma vitrine iluminada de loja, ou um site supereficiente que entrega produtos na sua porta.

Na outra ponta da cadeia, com frequência, tem trabalho escravo e também infantil em algum país pobre no outro lado do mundo, em fábricas ou porões insalubres, que às vezes explodem ou queimam, ou então na parte pobre e insalubre de um país rico. Essa ampla circulação de mercadorias e de pessoas (e agora também de vírus) demanda uma enorme quantidade de combustíveis fósseis (derivados de petróleo, carvão mineral e gás natural), principal causa do colapso climático. Quase tudo que rodeia você veio de alguma cadeia de mineração, que destrói o meio ambiente em grande escala e também contamina os rios, os peixes, diferentes espécies de animais e também humanos com mercúrio e outras substâncias tóxicas. Mais recentemente, as corporações estão fazendo mineração também no fundo dos oceanos, onde ainda há menor regulamentação ou nenhuma. Se nada for feito, os lindos documentários do fundo do mar que você assiste em canais de “natureza” serão em breve memorial de um passado que já não existe no presente.

Dizem que você é livre, porque é consumidor e seus filhos já nascem como consumidores e clientes. Tem, portanto, a fantástica escolha de consumir a marca e o produto que quiser com o dinheiro, invariavelmente menos do que você precisa, que ganhou vendendo o seu corpo e o seu tempo, que é tudo o que você tem. Caso você considere essa condição desumana e se revolte, se junte com outros para denunciar a violência dessas cadeias e desse sistema, as corporações têm o poder financeiro de pagar os melhores advogados e até mesmo pesquisas com cientistas de instituições respeitáveis, capazes de romper todas as amarras éticas para afirmar as conclusões que as corporações precisam para seguir comendo o planeta. Com a Internet, as corporações passaram também a financiar centrais de ódio, onde geram robôs e conteúdos falsos para acabar com a sua reputação —ou a da organização não governamental ou do movimento do qual você participa— com ataques e mentiras nas redes sociais. Toda voz dissidente deve ser combatida e, se possível, destruída. Destruir uma reputação é um tipo de assassinato.

Por trás de toda essa engrenagem que determina, regula e controla vidas há pessoas feitas da mesma matéria que você. Vale a pena lembrar que o planeta inteiro tem 2.153 bilionários, um número de pessoas que cabe num teatro grande. Juntas, elas têm mais riqueza do que 60% da população mundial. Na América Latina e Caribe, esses bilionários somam 73 pessoas. Um estudo da Oxfam mostrou que, entre março e junho de 2020, nos meses iniciais de pandemia, esses 73 aumentaram sua fortuna em 48,2 bilhões de dólares, o equivalente a um terço do total de recursos previstos em pacotes de estímulos econômicos adotados por todos os países da região. No Brasil, há 42 bilionários. Entre março e julho deste ano, período de intensa crise humanitária causada pela pandemia, eles aumentaram suas fortunas em 34 bilhões de dólares. Quando, com organização e luta, a sociedade da qual você faz parte ou o grupo que o representa conquista algum direito, uma entidade que chamam “mercado”, mas que você nunca viu, afirma que “vai quebrar a economia”. O mercado são essas pessoas e os executivos que trabalham para elas nas mais variadas áreas, destacando-se nesse amplo espectro os economistas. Quando os jornais dizem que o “mercado está nervoso”, é essa “meia dúzia”, comparada à população mundial, que sentiu uma comichão de estresse.

Parece um pesadelo? Essa distopia é a vida hoje no sistema capitalista neoliberal. Nesse sistema, o mercado é a base da organização da sociedade, com desregulamentação da economia, privatização das empresas estatais e enxugamento dos gastos sociais. Faz parte também uma ampla circulação de mercadorias, fluxo de capitais e de informações num mundo cada vez mais globalizado, fazendo com que se torne muito difícil, quando não impossível, fiscalizar e controlar as grandes corporações transnacionais. A sensação que você partilha com os bilhões que habitam esse planeta e não fazem parte dessa minoria dominante é a de que não controla a sua vida. Não é uma sensação.

O capitalismo neoliberal é o ápice do processo pelo qual a espécie humana provocou o colapso climático que hoje ameaça nosso futuro no planeta e provocou também a sexta extinção em massa de espécies, em curso nesse momento. Essa distopia é nossa vida atual e sua última realização foi nos trazer ao tempo das pandemias, que já matou quase 180.000 pessoas no Brasil e mais de 1,5 milhão no planeta.

O que isso tem a ver com Belo Monte, a usina hidrelétrica construída no Médio Xingu, uma das mais ricas e biodiversas regiões da Amazônia?

Tudo.

Um laboratório de catástrofe

A região atingida por Belo Monte é um microcosmo onde o modo de existência capitalista neoliberal foi imposto a outros modos de existência, como o dos povos indígenas e ribeirinhos, num curto espaço de tempo. Em apenas uma década, esse modo de operação provocou destruição em cadeia. Os piores efeitos estão só começando. Nesse momento, o grande embate é pela água, um embate que ecoa uma das maiores guerras do planeta, hoje e muito mais no futuro próximo, o que torna a observação dos acontecimentos do Xingu ainda mais importante.

A empresa concessionária de Belo Monte, a Norte Energia SA, controla a água do rio para a geração de energia e, portanto, controla a quantidade de água que alcança a região povoada por populações da floresta, mais especificamente indígenas e ribeirinhos. A região cuja água está sob controle da Norte Energia é povoada também por milhares de diferentes espécies de animais e vegetais, algumas delas endêmicas, o que significa que em todo o planeta só existem naquele lugar. No leilão da usina, em 2010, a Norte Energia era composta por pequenas empreiteiras. Hoje é composta em quase 50% pelo Grupo Eletrobras, 20% por fundos de pensão (Petros e Funcef) e o restante dividido em participações menores.

Quando a Norte Energia controla a água, a empresa transfigura um pequeno grande mundo na floresta amazônica, hoje cada vez mais perto do ponto de não retorno. O que é o ponto de não retorno? É o momento em que a floresta deixa de ser floresta, e assim deixa de fazer o seu papel essencial de floresta, que é o de regular o clima, para se tornar uma savana. Obviamente é um acontecimento progressivo, que hoje está em ritmo acelerado devido ao enfraquecimento dos órgãos de proteção, ao aumento do desmatamento e dos incêndios no Governo Bolsonaro. Sem a maior floresta tropical do mundo, vale lembrar, se torna muito difícil controlar o superaquecimento global.

Dentro desse pequeno grande mundo atingido por Belo Monte, há um microuniverso que é ainda mais brutalmente atingido, conhecido como Volta Grande do Xingu. Com extensão de 130 quilômetros de uma beleza acachapante, a Volta Grande é morada de dois povos indígenas, os Yudjá e os Arara, e de vários grupos ribeirinhos, considerados população tradicional da floresta, além de camponeses agroecológicos e pescadores. Também é fortemente atingido o rio Bacajá, afluente do Xingu, do qual depende a vida do povo Xikrin. Em uma década, o universo dessas milhares de pessoas entrou em colapso provocado por Belo Monte.

Há sempre títulos complicados e em geral falsos nesses empreendimentos predatórios. Faz parte da estratégia converter a população atingida, grande parte dela formalmente analfabeta da escrita, também em analfabeta dos ouvidos. Chamaram de “Hidrograma de Consenso” a administração da quantidade de água liberada pela usina para a Volta Grande do Xingu. A inclusão da palavra “consenso” é um mistério, já que jamais houve consenso algum. Portanto, mais do que um mistério, é um truque de marketing para confundir o entendimento e dificultar o enfrentamento. A luta pela água, que para os povos do Xingu é uma luta pela vida, sempre foi produzida no conflito, já que suas vozes foram ilegalmente ignoradas desde a decisão de implantar a usina.

Fatos, pesquisas científicas e experiência cotidiana mostram que a administração da água para a operação de Belo Monte está provocando a destruição da Volta Grande do Xingu e, portanto, a destruição da vida dos humanos e não humanos que vivem lá. André Oliveira Sawakuchi, professor do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo, afirma que o efeito do controle da água pela Norte Energia equivale a antecipar o colapso climático na Volta Grande do Xingu. “Possivelmente, o desmatamento no Alto Xingu e as barragens de Belo Monte têm um efeito muito mais severo (e em curso) na vazão da Volta Grande que a crise climática global”, afirma o geólogo, que estuda o Xingu e Belo Monte há anos. “Alguns estudos projetam redução de 30% na vazão do Xingu devido à emergência climática. Porém, o desvio de água para alimentar o reservatório intermediário já reduz a vazão em 35-40%, nos meses de setembro e outubro, no período da seca, e em 60-85% em março e abril, no período da cheia. Isso significa que a crise climática já chegou para a Volta Grande —e de forma mais severa.”

O Ministério Público Federal, que já moveu 24 ações pelas violações cometidas na implantação de Belo Monte, chama os acontecimentos ocorridos na Volta Grande de “ecocídio”. O conceito contempla o extermínio de um ecossistema ou bioma com todas as espécies que o constituem e busca a responsabilização dos agentes de destruição —pessoas, empresas, corporações, Governos. Os cientistas mais renomados do país, que pesquisam a região há décadas, já somaram suas vozes aos povos da floresta, ao afirmar que a administração da água proposta pela empresa está causando e irá causar um desastre ecológico que poderá levar espécies endêmicas à extinção e colapsar por completo a vida de indígenas e de ribeirinhos. Em maio deste ano, até mesmo o sistema financeiro internacional começou a se mover: o fundo soberano da Noruega, que administra mais de 1 trilhão de dólares, excluiu de sua carteira de investimentos a Eletrobras, por decisão de seu conselho de ética. A empresa, principal acionista da Norte Energia SA, foi deletada por “inaceitável risco de que contribua para sérias ou sistemáticas violações de direitos humanos”, devido à usina hidrelétrica de Belo Monte.

O roubo da água

No final de novembro, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) conseguiu obter uma decisão favorável na Justiça federal, que obriga a Norte Energia a manter um hidrograma “provisório”, até que os estudos possam ser concluídos, para garantir a sobrevivência da Volta Grande. Isso significa que a empresa precisa liberar mais água para o ecossistema do que ela demanda no maliciosamente chamado Hidrograma de Consenso. A decisão foi tomada pelo juiz federal Roberto Carlos de Oliveira com base no “princípio da precaução, da prevenção e da inversão do ônus da prova”, “impondo ao empreendedor o dever de provar que a sua atividade questionada não causa ou não está causando danos ao meio ambiente”.

Quando a usina recebeu a licença de operação, em 24 de novembro de 2015, apesar de todas as denúncias de violações e todo o passivo ecológico, a Volta Grande já tinha começado a se transfigurar. No ano seguinte, os Yudjá, povo indígena que considera ter canoas em vez de pés, porque são parte do rio, chamaram o ano de 2016 de “o ano do fim do mundo” (leia aqui). Em 2020, porém, a seca foi ainda maior. Por consequência, a situação da Volta Grande ficou ainda pior. Em toda a região atingida por Belo Monte, houve uma morte massiva de peixes. Ribeirinhos avisaram pelo WhatsApp que o Xingu estava se transformando num cemitério. “Os filhos do Xingu já não reconhecem mais o vai e vem da água”, disse Raimunda Gomes da Silva, liderança ribeirinha que teve sua casa e sua ilha incendiadas pela Norte Energia.

De 9 a 12 de novembro, o núcleo de “Guardiões”, formado por indígenas dos povos Xipaya, Kuruaya e Yudjá, ribeirinhos, pescadores e agricultores familiares, interditou a Transamazônica no quilômetro 27 para denunciar que os peixes não conseguiam fazer a piracema. Ou seja, a reprodução tinha sido interrompida. “Estamos unidos para defender as águas do Xingu e as nossas vidas. Belo Monte quer nos matar aos poucos, assim como faz com os peixes do Xingu, mas nós lutaremos”, escreveram em uma carta manuscrita. “Estamos aqui para mostrar a situação que temos vivido desde a chegada de Belo Monte e o roubo da água do Xingu. Faz cinco anos que estamos sofrendo os impactos da barragem [...] A nossa vida não pode ser ignorada. Nossas vidas importam!”, afirmaram em documento às autoridades.

Costuma-se mencionar peixes com a linguagem da mercadoria. Em gramas, quilos e toneladas. Nesse caso, Belo Monte matou toneladas de peixes. Mas peixes não são mercadorias, peixes são criaturas vivas, diversas e fascinantes. Em maio de 2019, o britânico The Guardian, um dos jornais mais ativos na cobertura do colapso climático, anunciou a atualização de seu manual de redação e defendeu em editorial a mudança da linguagem, para que a imprensa seja capaz de conferir exatidão à cobertura ao se referir a esse momento limite vivido pela humanidade. Não mais “mudança climática”, mas “crise, colapso ou emergência” climática/o. Não mais “aquecimento global”, mas “superaquecimento global” (global heating, difícil de traduzir para o português). Não mais toneladas, estoques e outros termos relativos a mercadorias para seres vivos —e sim populações e outros termos adequados àqueles que vivem. Foi um marco, infelizmente ainda não seguido pela totalidade dos grandes jornais do mundo.

Quando milhões de peixes são assassinados ou impedidos de se reproduzir, toda uma cadeia de acontecimentos entra em colapso. As cidades romperam sua conexão com a natureza, fazendo com que as pessoas que nelas vivem se esqueçam de que são também natureza, mas na floresta, mesmo uma floresta duramente afetada e atacada, como a amazônica, é possível constatar que nenhum acontecimento, por menor que seja, é isolado. Tudo se conecta e se afeta mutuamente. São relações sociais, são também relações de vida. A morte dos peixes é uma tragédia para os peixes, mas é também uma tragédia para todos os humanos e não humanos que lá vivem. E se é uma tragédia para todos eles, será uma tragédia que vai ecoando em cadeia pelo planeta.

“Eu estava indo colher uma castanha pra fazer um peixe no leite de castanha e ouvi um barulhinho de folha. Quando fui investigar, era um carrapato andando”, contou Juma Xipaia, uma das principais lideranças de seu povo, em uma entrevista pública que fiz com ela para o Wow Festival Mulheres do Mundo. “Levei um susto imenso. Se eu pude ouvir um carrapatinho andando no meio da floresta amazônica é porque está muito, mas muito seco.” Estudante de medicina da Universidade Federal do Pará, Juma tinha se recolhido à aldeia para se proteger da covid-19. “Na minha opinião, o animal que mais está em risco de extinção é o próprio humano, por não entender que cada ser, por menor que seja, tem sua importância”, diz a indígena. “Os humanos vão comendo o mundo como se fossem uma grande traça.”

As cenas de indígenas e ribeirinhos tentando salvar peixes é de uma tragicidade imensa. E a partir dela se desencadearam vários pequenos acontecimentos. Bel Yudjá, liderança da aldeia de Mïratu, na Volta Grande do Xingu, conta que seu povo testemunhou a chegada de uma horda de urubus. Já não é aconselhável deixar roupas nos varais, porque são arrancadas por esses animais fascinantes. Urubus também começaram a aparecer nas pias onde lavam a louça. Os urubus migraram para se alimentar dos peixes mortos. Só esse pequeno, muito pequeno acontecimento, muda o lugar para onde os urubus migraram e muda também o lugar que deixaram.

A natureza é muito mais delicada e complexa do que qualquer invenção humana. “Espero que a Justiça e o Ibama consigam garantir uma quantidade de água que nos permita viver na Volta Grande”, diz Bel Yudjá. “Já estamos nos transformando num cemitério de peixes, acredito que seremos um cemitério de árvores mortas. Estamos aqui, lutando, e esperamos que as pessoas se somem a nós nessa luta para que a Volta Grande possa continuar viva e a nossa vida deixe de estar ameaçada.”

A pergunta mais inconveniente

Desde que a água virou “insumo”, um objeto sujeito à administração para obedecer à necessidade de lucros de uma empresa e não às necessidades da vida de um pedaço da floresta tropical mais importante do mundo, a grande pergunta no Médio Xingu, é: como uma empresa é capaz de controlar a água de um rio e de um ecossistema inteiro e, portanto, a vida de humanos e não humanos? Como uma empresa pode ser dona da água?

Essa é uma pergunta que só pode ser formulada por quem ainda é capaz de se espantar com a forma como o capitalismo converte tudo em mercadoria. Quem vive nas cidades já tem dificuldades de se espantar e fazer perguntas como essa porque o sistema que destrói a natureza se tornou “natural”. Essa é uma inversão só possível pela mística do capitalismo, na qual o “selvagem”, o não sujeitado ao sistema, é apresentado como anomalia. Essa mistificação encobre a anomalia real, que é o sistema que nos últimos séculos destruiu o próprio planeta, nos trazendo ao momento atual, no qual a própria espécie se encontra ameaçada.

proliferação de negacionistas é a resposta de um sistema que já não consegue encobrir com os métodos tradicionais os sinais evidentes, que qualquer um já pode sentir em seu cotidiano, de que a vida humana no planeta está em risco. É o caso de Donald Trump, nos Estados Unidos, ocupando o cargo de maior poder da principal potência mundial, e de Jair Bolsonaro no Brasil, ao ocupar a presidência de um país estratégico para o controle do superaquecimento global, por ter 60% da floresta amazônica em seu território. Não basta usar os métodos tradicionais quando a realidade se impõe de forma tão contundente. É preciso provocar o caos instalando mentirosos no topo da cadeia.

Ainda assim, como a maioria vive em grandes cidades, as engrenagens são mais difíceis de enxergar porque já foram assimiladas, a maioria já nasceu dentro do sistema que a tritura e que lhe é apresentado como normalidade. Para os indígenas e ribeirinhos afetados por Belo Monte, não. Eles se abismam com aqueles que o pensador Yanomami Davi Kopenawa chama de “povo da mercadoria” ou “comedores de floresta”.

“Quanto vale a vida?”, perguntou Graça Yudjá, matriarca da aldeia Mïratu, a representantes da Norte Energia. “Essa é uma pergunta de levante da vida contra sua transformação em rendimento de energia elétrica”, diz a antropóloga Thais Mantovanelli em seu capítulo no livro Insurgências, ecologias dissidentes e antropologia modal (Imprensa Universitária). “A questão dos impactos da hidrelétrica tornou-se uma guerra para os povos afetados. Uma guerra de corpos índios, ribeirinhos, cromáticos, contra o monocromatismo dos uniformes azul-claros do corpo técnico burocrático de Belo Monte, que impõe o fim do fluxo das águas e o fim da circulação da vida.”

A implantação de Belo Monte e os impactos em cadeia gerados pela usina produziram, em uma década, uma catástrofe ecológica. E por isso Graça Yudjá se assombra. Catástrofes ecológicas só acontecem quando a vida é usurpada ao ganhar preço. É óbvio que o fato de o preço sempre ser baixo alarga o abismo, mas o crime fundador é a monetarização da vida para que seu valor possa ser comparado àquele gerado pelos lucros —e invariavelmente perder.

Na catástrofe ecológica produzida pelas forças que geraram Belo Monte, todos os elementos estão presentes. Um leilão suspeito de fraudes, seguido pela formação de um consórcio-construtor composto pelas maiores empreiteiras do país, que mais tarde seriam objeto de denúncias da Operação Lava Jato; a imposição sobre os povos originários e tradicionais, violando a legislação brasileira e também internacional; a repressão e criminalização dos protestos contra a usina promovidas por participantes de movimentos sociais, indígenas e ribeirinhos, usando a Força Nacional contra o povo; o uso do instrumento jurídico autoritário da Suspensão de Segurança para impedir que as obras fossem paralisadas e assegurar que a usina se tornasse fato consumado antes que as ações fossem julgadas; a utilização da Abin para espionar movimentos sociais em pelo menos um caso comprovado; analfabetos assinando papéis que não eram capazes de ler em que perdiam todos os direitos ou aceitavam indenizações irrisórias para deixar suas casas, terras e ilhas; o comportamento omisso (ou favorável à empresa) de órgãos federais e autoridades públicas que deveriam proteger o meio ambiente e os povos originários, mas não o fizeram ou o fizeram debilmente; a contratação de empresas de assessoria de imprensa que atuavam na desqualificação de jornalistas que denunciavam as violações de direitos na construção da usina, ao mesmo tempo em que faziam lobby junto à direção de jornais para enaltecer a “grande obra de engenharia”; mais recentemente, a contratação de advogados especializados em direito ambiental para processar jornalistas que denunciam os abusos da Norte Energia. Todo o funcionamento do sistema, que no caso de Belo Monte foi operado por um conluio entre Governo federal e empresas privadas, pode ser visto, identificado e analisado no caso Belo Monte.

Belo Monte é ao mesmo tempo paradigma, ao mesmo tempo laboratório. Apresentada como a maior hidrelétrica 100% brasileira, já que Itaipu é binacional, custou pelo menos o dobro do anunciado e hoje está orçada em torno de 40 bilhões de reais, grande parte desse montante financiado pelo setor público, no caso o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Divulgada como a quarta maior do mundo pela sua capacidade instalada de 11.000 megawatts, a verdade é que esse valor é apenas potencial. Como o rio Xingu vive metade do ano na seca, a real produção de energia, que no jargão técnico se chama “energia firme”, é, na média, menos da metade disso.

Essa é uma das principais razões pelas quais cientistas e técnicos apontavam —e apontam— a inviabilidade da hidrelétrica. Desde antes do início da construção, especialistas no setor elétrico já comprovavam que Belo Monte era inviável também para a produção de energia, devido à característica sazonal (estação de chuvas e estação de seca) do Xingu. Em dezembro de 2019, o repórter André Borges, do jornal O Estado de S. Paulo, denunciou que a Norte Energia havia solicitado à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) autorização para construir usinas térmicas para compensar os meses de seca do Xingu. Além de caras, as térmicas são altamente poluentes. Semanas antes, o EL PAÍS e o The Guardian revelaram que, em carta à diretora-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Christianne Dias Ferreira, o diretor-presidente da Norte Energia, Paulo Roberto Ribeiro Pinto, afirmava que precisava alterar a vazão do reservatório intermediário da hidrelétrica de Belo Monte devido à seca severa do Xingu, para evitar danos estruturais na barragem principal.

Consenso em vez de polarização

Belo Monte mostra também como a ideologia para a Amazônia construída pela ditadura civil-militar (1964-1985) é persistente, ao manter-se viva e ativa na visão de desenvolvimento tanto da centro-esquerda como da extrema direita. Nesse olhar tipicamente de século 20, mas que no espectro partidário brasileiro ainda orienta os programas da maioria dos partidos, a floresta amazônica é tratada como objeto de exploração e seus povos são invisibilizados. Apesar de toda a polarização do país nos últimos anos, Belo Monte revelou-se o único consenso: a primeira turbina foi inaugurada por Dilma Rousseff (PT) e a última por Jair Bolsonaro (sem partido).

Durante a construção da usina, povos indígenas da região atingida, mesmo de recente contato, foram durante mais de um ano abastecidos com produtos industrializados, parte deles ultraprocessados. Para quem testemunhou o processo, foi como observar um experimento de laboratório em que povos originários foram usados como cobaias. O nome da pesquisa poderia ter sido: “como indígenas de recente contato da floresta amazônica se comportam ao ter sua alimentação repentinamente substituída por produtos industrializados”. O resultado foram doenças como obesidade, hipertensão e diabetes. O próprio Ministério da Saúde comprovou um aumento de 127% na desnutrição infantil entre 2010 e 2012 nas aldeias da região.

Desde o início da segunda década, o fluxo de indígenas na cidade de Altamira se intensificou, roças deixaram de ser feitas porque a comida chegava em latinhas e embalagens, o modo de vida foi profundamente alterado, a ponto de o Ministério Público Federal denunciar a Norte Energia SA por etnocídio indígena. Essa violenta transfiguração do território e da vida no território fez com que a covid-19 encontrasse as aldeias da região muito mais dependentes da cidade e dos produtos da cidade, o que expôs ainda mais a população originária aos riscos da pandemia. Belo Monte é também paradigma na produção de pobres, ao converter população tradicional da floresta em miseráveis nas periferias urbanas.

A corrupção do território também foi decisiva para converter Altamira na cidade mais violenta da Amazônia e uma das mais violentas do Brasil, com as periferias tomadas por facções criminosas. Em 29 de julho de 2019, essa violência foi decisiva para a irrupção do segundo maior massacre carcerário da história de país, ocorrido no presídio de Altamira, com 62 mortos no total. Nas periferias da cidade, há hoje uma geração de crianças sendo criadas pelas avós porque os pais foram assassinados nos últimos anos. Desde o início de 2020, Altamira testemunha uma série de suicídios de adolescentes, a maioria deles enforcados, fenômeno relacionado pelos especialistas à repentina e violenta transformação do território e do modo de vida da população produzidos por Belo Monte.

Um laboratório de resistência

O que os indígenas e ribeirinhos chamam de “roubo da água” é o mais recente capítulo. Certamente não será o último. Mas talvez seja o mais decisivo. Se não for impedido, como já foi amplamente denunciado por indígenas, ribeirinhos, cientistas, defensores públicos e procuradores da República, pode resultar no extermínio da Volta Grande do Xingu. Jansen Zuanon, pesquisador sênior do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e um dos mais respeitados especialistas em peixes do país, explica que essa transfiguração da Volta Grande pode causar a extinção de espécies que só existem naquele ecossistema, como o famoso acari-zebra, personagem de adoração de visitantes que vêm de várias partes do mundo apenas para observá-lo em seu habitat. Jansen também explica que o que acontece com os peixes também acontece com as outras espécies e até mesmo com os humanos que vivem como natureza:

“A população humana e não humana que habita a Volta Grande está acostumada aos ritmos do rio e conhece os sinais. Essas populações organizaram as suas vidas em torno da previsibilidades desses ritmos. Quando uma empresa passa a regular a quantidade de água a partir da necessidade de energia demandada pelo operador nacional do sistema, uma entidade alheia ao Xingu e a todos os seus ciclos naturais, perde-se todo o sincronismo, desestruturando completamente os ciclos biológicos das espécies. Ao regular a água nas torneiras da usina, a empresa acaba afetando direta ou indiretamente todos os ciclos que acontecem na Volta Grande do Xingu. Nem os peixes, nem os tracajás (quelônios), nem mesmo os humanos conseguem reconhecer os sinais, que passaram a ser contraditórios. A única forma de impedir o desastre total é manter uma quantidade suficiente de água para todas essas espécies e manter também o ritmo natural. É necessário que seja previsível. Sem isso, a desestruturação do ecossistema será completo. Se Belo Sun conseguir se instalar, sobrepondo o seu impacto ao de Belo Monte, aí estaremos no fio da navalha.”

Enquanto Belo Monte seca a Volta Grande do Xingu e provoca um desastre ecológico e uma crise humanitária, com famílias ribeirinhas enfrentando a fome pela primeira vez, outra empresa, essa transnacional, avança sobre a Volta do Xingu. A mineradora de origem canadense Belo Sun pressiona há anos para a instalação do que é vendido como “a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil”. Para conseguir se instalar, produz um lobby intenso junto ao governo do Estado do Pará e junto aos parlamentares, em Belém, e também junto às comunidades locais da Volta Grande do Xingu, cada vez mais desamparadas e testemunhando seu mundo entrar em colapso. Se Belo Sun conseguir avançar, vai sobrepor o seu enorme impacto sobre o já enorme impacto de Belo Monte e deixará como legado uma montanha de rejeitos tóxicos cujos efeitos permanecerão por gerações.

Essa é a situação. No microcosmo chamado Volta Grande do Xingu é possível assistir, em tempo real, o movimento do capitalismo mais predatório em sua ação para subjugar a natureza e os povos que são natureza. É quase uma vitrine, um museu do presente ou, como é chamado pelo ambientalista Marcelo Salazar, “um museu de ruínas”.

A guerra da humanidade em transe climático está se passando lá, agora, em miniatura. Entre os que são natureza —e os que esvaziam a natureza e a convertem em mercadoria. Entre os que chamam o que é vivo de “recurso”— e os que chamam o que é vivo de “vivo”. Esse é o mesmo embate que, travado em larga escala no planeta, tem numa ponta os povos originários, a juventude climática liderada por Greta Thunberg e 99% dos cientistas do mundo, e, na outra, grandes corporações, governantes, políticos, executivos, advogados, publicitários e lobistas a seu serviço.

É por isso que os olhos do mundo se voltam cada vez mais para a Volta Grande do Xingu e Altamira, considerada epicentro da destruição da Amazônia. É importante sublinhar ainda que, se a região se tornou um laboratório da destruição, também tem se mostrado um laboratório de resistência. Contra forças imensamente mais poderosas e um poder econômico totalmente desigual, sofrendo no corpo os impactos da transfiguração de seu mundo, ribeirinhos, indígenas, pescadores, agricultores familiares e ativistas resistem. Nem por um dia sequer deram trégua à Norte Energia e mais recentemente também à Belo Sun.

Não podem, porém, seguir lutando sozinhos uma luta que é pelo planeta de todos.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com | Email: elianebrum.coluna@gmail.com | Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Eliane Brum: Precisamos falar sobre o PSDB

Como o partido abandonou a social-democracia, migrou para a direita e deixou amplas digitais na destruição do processo democrático

Um dos principais riscos da polarização é justamente embaralhar o que é continuidade e o que é ruptura. Neste momento, em que o PSDB, hoje um partido de direita, tenta se vender como o “centro” que um dia foi, é fundamental recuperar a perspectiva do processo histórico. A falta de responsabilização do PSDB como um dos principais agentes de destruição da democracia é um dos enigmas da atual paisagem política brasileira. Ao embarcar no discurso do antipetismo, o PSDB colaborou fortemente para colocar na conta exclusiva do PT todo o desencanto com a política e os políticos, ao mesmo tempo em que se aproximou de tudo o que Jair Bolsonaro representa e defende. O partido deixou amplamente suas digitais na corrosão da democracia cujas consequências são Jair Bolsonaro. O PSDB não é apenas mais um que tem seu DNA na mais recente escalada autoritária do Brasil. O PSDB está em sua gênese.

Ao longo de suas primeiras fases, o Partido da Social Democracia Brasileira construiu uma fama de ficar em cima do muro, manter-se nem lá nem cá, nem à esquerda, nem à direita. Durante muitos anos foi o mais próximo de um partido de centro, ainda que mais para a esquerda do que para a direita, já que alguns de seus fundadores e principais expoentes, como Fernando Henrique Cardoso e José Serra, tinham sido exilados pela ditadura civil-militar (1964-1985). Com o tempo, ser “tucano”, como eram chamados os pessedebistas, por conta do pássaro que simboliza o partido, passou a significar não tomar posição clara. A expressão valia para a política, mas ampliou-se e passou a valer, como gíria, também para qualquer pessoa que ficava no sim, só que não.

Os tucanos, majoritariamente homens brancos, eram vistos como gente culta, com diploma universitário e pós-graduação, de gestos educados e boas maneiras, mais afinados com os salões europeus e sua arrogância blasé do que com o exibicionismo explícito e movido por fortunas familiares dos Estados Unidos. Também se vendiam como modernos, urbanos e de mente arejada, o que os mantinha longe do coronelismo truculento da política brasileira, marcas de clãs como Sarney, Magalhães e Barbalho, que preferiam liderar partidos assumidamente de direita ou fincar seus bigodes no amplo guarda-chuva do PMDB, hoje MDB.

O quanto de verdade continha essa imagem de senso comum é algo a se discutir, mas o mais importante é perceber que hoje essa imagem não tem nenhuma correspondência na realidade. Dela ainda resiste, como a rainha da Inglaterra num rodeio de Barretos, a figura de Fernando Henrique Cardoso, às vezes chamado a dar um lustro na imagem externa do partido, mas que já pouca influência tem na vida cotidiana do PSDB.

O próprio Fernando Henrique Cardoso, duas vezes presidente do Brasil (1995 a 2002), ainda lida com a persistente suspeita de que, em 1997, o partido comprou os votos para aprovar no Congresso a emenda constitucional que permitiria —como permitiu— a sua reeleição. Os indícios de que houve compra de votos eram —e seguem sendo— fortíssimos, mas diferentes esferas do judiciário e do legislativo impediram o prosseguimento das investigações e engavetaram as denúncias. Geraldo Brindeiro, procurador-geral da República, passou para a história como “engavetador-geral da República”. A mancha sobre a figura de FHC permanece até hoje e o assunto, como aqueles fantasmas com pendências a resolver no mundo dos vivos, volta de tempos em tempos, como agora. Os fatos são como os corpos sepultados em covas clandestinas: teimam em emergir por mais camadas de terra e silêncio que se empilhe sobre eles.

Fernando Henrique Cardoso fez uma transmissão bonita da faixa presidencial a Lula, em 2003. Ele estava visivelmente emocionado ao passar o bastão para o primeiro presidente de classe operária eleito na história do Brasil, como um seguimento natural e desejável ao seu próprio Governo. Lula foi um tanto ingrato neste sentido, incapaz de reconhecer o que havia de positivo no Governo do antecessor. E isso mesmo tendo continuado a política econômica de FHC tal e qual, o que causou estupor na ala mais à esquerda do partido.

No Governo durante mais de 13 anos, o PT se tornou mais parecido com um partido de centro. Em alguns campos, porém, como na política de imposição de grandes hidrelétricas na Amazônia e na aproximação crescente com o agronegócio, que chegou instalar a ruralista Kátia Abreu no Ministério da Agricultura no segundo mandato de Dilma Rousseff e um ex-diretor de manicômio ligado a torturas de pacientes na coordenação da saúde mental, foi francamente conservador. Parte da esquerda do PT deixaria o partido nos anos que se seguiram à primeira posse de Lula para fundar o PSOL, em 2004 —ou para fundar seu próprio partido, como fez Marina Silva ao deixar o Governo e depois o PT, durante o segundo mandato de Lula, por não compactuar com a política ambiental e para a Amazônia, cada vez mais influenciada pelo desenvolvimentismo predatório de Dilma Rousseff.

Não estou aqui a resgatar os fatos para fazer textão, mas porque é importante revisitar o processo e onde cada personagem nele se situa para compreender o que hoje está em jogo. Neste momento, o PSDB de Bruno Covas, assustado com a possibilidade de perder a Prefeitura de São Paulo, essencial para os planos de João Doria para disputar a eleição presidencial de 2022, tenta carimbar Guilherme Boulos, do PSOL como “radical”, o mesmo truque que era usado contra Lula quando o então sindicalista despontou na política partidária nos anos 1980. Naquele momento, o Brasil iniciava a redemocratização do país, depois de 21 anos de ditadura civil-militar (1964-1985), período em que 8.000 indígenas e centenas de opositores foram mortos por agentes de Estado que nunca foram responsabilizados e período também em que os atuais generais no entorno de Bolsonaro fizeram sua formação.

Resgato aqui um trecho do meu último livro —Brasil construtor de ruínas, um olhar sobre o paísde Lula a Bolsonaro (Arquipélago), para que não me acusem de plagiar a mim mesma. O nome do capítulo é sugestivo: “O tucano arrasta as penas na sarjeta”. Busco mostrar o papel que José Serra pode ter desempenhado nos acontecimentos que começaram a desenhar o abismo do Brasil. Um dos fundadores do PSDB, Serra foi ministro do Planejamento e depois da Saúde de Fernando Henrique Cardoso, foi também prefeito e governador de São Paulo e ainda ministro de Relações Exteriores de Michel Temer. Hoje é mais um senador da República às voltas com denúncias de corrupção movidas pela Operação Lava Jato.

1) O PSDB, José Serra e o aborto como moeda eleitoral: o momento em que o vale-tudo faz sua entrada triunfal nas campanhas políticas

Há uma data marcando o momento em que um limite que jamais poderia ter sido ultrapassado foi rompido na política brasileira. O ato foi precursor das quebras que viriam depois. Aconteceu na campanha de 2010. Na ocasião, os caminhos de Eduardo Cunha se cruzaram com os de Dilma Rousseff e de seu adversário José Serra. O PSDB começava o declínio que o levaria a alcançar os dias atuais com o rosto de João Doria.

Nas primeiras campanhas eleitorais após a ditadura civil-militar, a maioria dos candidatos costumava evitar abordar o tema do aborto. Nem enfrentar a questão, para evitar perder eleitores, nem usá-la como moeda eleitoral para ganhar apoio entre os mais conservadores. Se não havia coragem para enfrentar o tema a partir de um debate responsável, também existia pudor para não baixar o nível, fazendo proselitismo com uma das causas de morte de mulheres jovens no Brasil, a maioria delas negras e pobres. Fernando Collor de Mello ensaiou romper essa fronteira, ao usar a filha de Lula com Miriam Cordeiro para atacar seu principal adversário, em 1989. Mas uma espécie de acordo tácito foi mantido nas eleições que se seguiram.

Em 2010, ao constatar o potencial eleitoral dos evangélicos, em especial dos neopentecostais, que seguem crescendo e podem superar o número de fiéis católicos nas próximas décadas, políticos e marqueteiros perceberam que jogar o aborto na mídia e no palanque poderia ser conveniente. Tanto para conquistar o voto religioso quanto para derrubar opositores com escrúpulos de se tornarem crentes de última hora. Ninguém fez isso com maior afinco do que José Serra, na campanha eleitoral em que disputou a presidência com Dilma Rousseff.

No final do primeiro turno, a Internet e as ruas foram tomadas por uma campanha anônima, na qual se afirmava que Dilma Rousseff era “abortista” e “assassina de fetos”. Dilma começou a perder votos entre os evangélicos, e também parte dos bispos e dos padres católicos exortou os fiéis a desistirem de votar nela. Circularam suspeitas de que o ataque teria partido da campanha de Serra, mas a autoria não chegou a ser provada. O que se pode afirmar é que Serra se empenhou em tirar proveito do ataque vindo das catacumbas, determinando o rumo da campanha dali em diante.

Dilma Rousseff, por sua vez, correu a buscar o apoio de religiosos, acabando por escrever uma carta declarando-se “pessoalmente contra o aborto”. Nesta carta, Dilma comprometeu-se, caso vencesse a eleição, a não propor nenhuma medida para alterar a legislação sobre o tema. Logo, tanto Serra quanto Dilma despontaram no espetáculo eleitoreiro como devotos tomados por um fervor religioso até então desconhecido de quem acompanhava suas trajetórias. Serra apregoou que tinha “Deus no peito”. Dilma agradeceu “a Deus pela dupla graça” e, usando o mote dos grupos extremistas do catolicismo, afirmou que fazia “uma campanha, antes de tudo, em defesa da vida”.

A campanha de 2010 marcou o momento mais baixo desde a redemocratização do país. Isso significa que foi o momento mais baixo em 21 anos de eleições presidenciais. E inaugurou o primeiro de uma série de momentos cada vez mais baixos que se seguiriam a ele, culminando com o discurso de ataque aos negros e aos indígenas, às mulheres e aos homossexuais e transexuais de Jair Bolsonaro em 2018.

O que se passou em 2010 escancarou as portas para todas as leviandades e recuos que vieram depois, nos temas relativos à saúde da mulher e ao respeito à diversidade sexual. Basta lembrar, entre outros, do cancelamento do kit anti-homofobia, que seria usado nas escolas públicas para trabalhar o respeito às diferenças e prevenir a violência contra homossexuais.

O kit Escola Sem Homofobia foi batizado pejorativamente de “kit gay” por pastores e políticos homofóbicos —ou apenas oportunistas— e lembrado em todas as campanhas eleitorais que se seguiram, inclusive a que deu a vitória ao declaradamente homofóbico Jair Bolsonaro, em 2018. Também vale a pena lembrar da retirada do ar do vídeo de uma campanha de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis, na qual uma prostituta dizia ser “feliz”. O fato de uma mulher ser feliz e ser prostituta parece ter ferido mais a sensibilidade dos hipócritas do que pessoas adoecerem ou mesmo perderem a vida por doenças evitáveis.

A campanha de 2010 mostrou que rebaixar o tema do aborto à moeda eleitoral atingia dois propósitos: 1) fazer com que o adversário, liberal nos costumes, o que caracteriza a esquerda, de modo geral, e a direita genuinamente adepta do liberalismo, perdesse uma grande quantidade de votos entre as pessoas religiosas, em especial evangélicos neopentecostais e católicos carismáticos; 2) pressionar candidatos que, caso eleitos, poderiam levar adiante o debate do aborto como o problema de saúde pública que efetivamente é, assim como outras pautas relativas à sexualidade e à diversidade, de forma a se comprometerem a deixar tudo como está ou mesmo a retroceder.

A campanha de 2010 provou, principalmente, que o aborto e outros dos chamados “temas morais” são um eficaz instrumento de barganha política, quando não de chantagem. Desde então, parlamentares se agarraram a essa pauta, deram declarações públicas e lançaram projetos de lei marcados por um retrocesso que não parecia mais possível. Muitos desses oportunistas fizeram nome e ganharam importância na guerra moral assinalada pela imoralidade das práticas e pela desonestidade dos argumentos dos religiosos de ocasião.

O rebaixamento do nível da campanha de 2010 rompeu uma barreira ética no debate público do Brasil —e esse rombo nunca mais parou de ser escancarado. É necessário jamais esquecer que essa fronteira não foi derrubada nem pela parcela mais fisiológica do PMDB, hoje MDB, nem pelos líderes evangélicos mais inescrupulosos. Ela foi ultrapassada por José Serra, um representante do PSDB histórico, de raiz.

Este não é um detalhe. E sim um fato crucial para compreender o papel que o PSDB desempenhou para os rumos do Brasil. O modo de operação do MDB é muito mais pesquisado, esmiuçado e conhecido, tanto por intelectuais que se dedicaram a ele, caso da tese do “pemedebismo”, do filósofo Marcos Nobre, quanto pelo público que acompanha a política de Brasília. No campo da Justiça, a Operação Lava Jato mostrou muito mais claramente como o MDB e o PT atuavam do que o PSDB.

O PSDB desempenhou um papel determinante para a ampla e múltipla crise vivida hoje pelo Brasil —e esse papel precisa ser iluminado. Não foi por acaso, nem sem a responsabilidade dos tucanos mais emplumados, que o rosto do PSDB deixou de ser o de FHC para se tornar o de Doria, com uma transição pela face de Geraldo Alckmin.

É também em 2010 que Eduardo Cunha enxerga uma brecha para ampliar seu poder de influência. Com o aval de Lula, esse personagem nebuloso vai peregrinar por templos evangélicos para afirmar que Dilma Rousseff é contra o aborto. É este novo “aliado” que lidera o contra-ataque e pede votos para Dilma nos redutos do evangelismo neopentecostal. Por pragmatismo eleitoral, ao se ver atacada, Dilma capitulou diante de seus princípios. Naquele momento, nem ela nem ninguém poderia saber, mas se iniciava ali, mesmo antes de Dilma se eleger para o primeiro mandato, sua triste marcha rumo ao impeachment.

Nos anos seguintes, Eduardo Cunha se tornaria o rei do “centrão” —grupo de parlamentares ligados menos à direita ou a qualquer ideologia e bem mais a seus interesses pessoais e privados, que tem como característica o apoio a qualquer Governo, em troca de cargos e favores. Em resumo: se elegem para se colocarem à venda. Eduardo Cunha uniria também as bancadas conservadoras da Câmara dos Deputados para barrar, na prática, o aborto legal. A partir de 2015, já como presidente da Câmara, tornou-se o principal ator do impeachment de Dilma Rousseff, depois de concluir que o PT não impediria a investigação de seus atos de corrupção. O impeachment foi movido por muitas razões e também paixões, entre elas a vingança do vilão.

2) O PSDB, Aécio Neves e o pré-bolsonarismo ou pré-trumpismo: a estratégia nojenta de duvidar do processo eleitoral

A cena produzida em 2010 marca a derrocada ética do PSDB, assim como assinala o ponto aparentemente sem retorno em que o partido se desliga do que existia de progressista em sua história. O momento em que o corpo das mulheres virou moeda eleitoral no Brasil tem seu impacto na história recente minimizado, até porque a maioria dos analistas é composta por homens.

Tucanos-pena-longa se omitiram ao testemunhar José Serra arrastar as asas —as suas e as do partido —nos esgotos, em 2010. E se omitiram mais uma vez quando outro membro do PSDB histórico, Aécio Neves, desferiu o ataque mais grave à democracia desde o fim da ditadura civil-militar. Aqueles brasileiros que hoje torcem a boca de indignação, ao acompanhar o estrago que Donald Trump tem feito na até então aparentemente sólida democracia dos Estados Unidos, deve olhar com mais atenção para o seu próprio quintal.

Aécio Neves, neto do ícone Tancredo Neves, teve a irresponsabilidade criminosa de duvidar do resultado eleitoral, sem uma única prova, abrindo espaço para toda a corrosão da democracia que veio depois. Quando Aécio Neves perdeu a eleição de 2014 para Dilma Rousseff, ele e seu partido cometeram o ato, ao mesmo tempo oportunista e irresponsável, de questionar o processo eleitoral sem nada que justificasse a suspeição do pleito. O Brasil, com as urnas eletrônicas, tem um dos mais confiáveis e eficientes sistemas de votação do mundo. Aceitar a derrota faz parte das regras fundamentais da democracia. E negá-la, como hoje faz Donald Trump, para assombro do mundo, e fez Aécio Neves, em 2014, é um ataque inaceitável ao voto de todos os eleitores.

Aécio iniciava ali uma nova crise, e isso já num cenário grave para o país, marcado por dificuldades econômicas crescentes e pela perda acelerada do apoio à presidenta reeleita. Naquele ato, abriu um precedente mais do que perigoso. Mais tarde, uma gravação revelaria Aécio afirmando que pediu a auditoria dos resultados eleitorais só “para encher o saco”. Aécio deve entrar para a história não só pelos seus crimes de corrupção, mas por esse gesto contra o país. Aécio Neves e José Serra devem ser lembrados como políticos que praticaram gestos determinantes para a destruição da democracia brasileira.

Quatro anos depois, em 2018, mais uma eleição. Durante a campanha, de dentro do hospital, onde se recuperava de um atentado a faca, Jair Bolsonaro gravou um vídeo questionando as urnas eletrônicas e sinalizando que poderia não aceitar o resultado do pleito, em caso de derrota. Seu vice, o general Hamilton Mourão, já havia dado uma entrevista à Globo News afirmando a possibilidade de um autogolpe do presidente eleito, com o apoio das Forças Armadas. Bolsonaro e os generais anunciavam ali que não aceitariam a derrota. A democracia, pelo visto, só valia se o resultado fosse positivo. O que planejavam não foi usado, já que Bolsonaro venceu a eleição de 2018 pelo voto. E, como venceu, suas suspeitas sobre as urnas eletrônicas desapareceram de imediato.

Nas recentes eleições municipais de 15 de novembro, perfis bolsonaristas nas redes sociais atuaram fortemente para lançar suspeita sobre o processo de apuração eleitoral, já sinalizando o que planejam para 2022. Bolsonaro, porém, não inventou esse truque absolutamente repugnante. No Brasil, o responsável atende pelo nome de Aécio Neves —e, ainda assim, o playboy de Minas conseguiu se eleger deputado federal em 2018, apesar de toda a ficha corrida, da qual faz parte a literalidade de uma mala cheia de dinheiro da corrupção.

3) O PSDB acelera rumo ao botox: tardia autocrítica de Tasso Jereissati, nenhum efeito concreto sobre o partido engolido por João Doria

O PSDB desempenhou um papel importante no impeachment de Dilma Rousseff e participou do Governo de Michel Temer (MDB). Quando aderiram aos movimentos das ruas a favor do impeachment e contra o PT, vestidos com a camiseta da seleção brasileira, políticos tucanos também se iludiram que a rua era deles. Não era nada disso, como logo descobririam.

Em setembro de 2018, um dos tucanos de plumagem grossa, Tasso Jereissati, afirmou, em entrevista ao jornalista Pedro Venceslau, no jornal O Estado de S. Paulo: “O partido cometeu um conjunto de erros memoráveis. O primeiro foi questionar o resultado eleitoral. Começou no dia seguinte [à eleição]. Não é da nossa história e do nosso perfil. Não questionamos as instituições, respeitamos a democracia. O segundo erro foi votar contra princípios básicos nossos, sobretudo na economia, só para ser contra o PT. Mas o grande erro, e boa parte do PSDB se opôs a isso, foi entrar no Governo Temer. Foi a gota-d’água, junto com os problemas do Aécio. Fomos engolidos pela tentação do poder”.

Autocrítica importante, ainda que tardia. E além de tardia, sem efeito, porque o PSDB apenas acentuou sua guinada às piores práticas com João Doria. Quem acha que controla as ruas não estudou nem a história nem a psicologia humana. Com telhado de vidro fino, tanto Serra quanto Aécio e o PSDB são hoje muito menores do que no passado, em todos os sentidos.

Pior do que não ter ressonância, porém, é perder o respeito. O PSDB que surgiu com a volta da democracia não existe mais. O que existe agora é outra coisa. Que coisa é essa, o presente já está mostrando. O PSDB atual tem o rosto, o estilo e a estética de Doria, um milionário exibicionista, esteticamente muito mais parecido com Trump do que com Bolsonaro, mas sem nenhum ponto de contato com Joe Biden, o moderado recém-eleito para a presidência dos Estados Unidos, por exemplo. É fácil imaginar como a face, o estilo e a estética devem horrorizar os tucanos ainda “finos” que sobrevivem como decoração nas prateleiras empoeiradas da história do partido. Mas se calaram demais diante de tantas atrocidades ao longo dos anos e hoje só lhes resta engolir sem cuspir.

Não se pode esquecer de Geraldo Alckmin, o padrinho traído de Doria no partido, que ao governar São Paulo mostrou que era tudo menos picolé de chuchu. É difícil trabalhar com a hipótese de “e se”, mas também faz sentido imaginar o que teriam sido os protestos de 2013, que mudaram o Brasil, não fosse Alckmin ter despachado sua Polícia Militar para bater em manifestantes e jornalistas, expulsá-los das ruas com gás lacrimogênio e spray de pimenta, num nível de violência que revoltou até mesmo a classe média, sempre tão conservadora.

Alckmin e uma das mais assassinas polícias do mundo —que também morre muito, é preciso dizer— foram protagonistas às avessas dos protestos. Mesmo assim, Alckmin não aprendeu. Em 2015 colocou a mesma truculenta PM para bater em crianças e adolescentes que protestavam contra uma reforma imposta à comunidade escolar sem suficiente consulta e debate, alunos de escolas públicas apanhando como se o país vivesse numa ditadura e como se manifestações não estivessem contempladas na Constituição. João Doria, o afilhado de Alckmin, se elegeu prefeito em 2016 fazendo discurso contra a política e os políticos e autoproclamando-se “gestor”, em mais um ataque à democracia.

Em 2018, Doria deixou sem pena a Prefeitura de São Paulo, depois de uma coleção de maldades como demolir um prédio do que chamam “Cracolândia”, ferindo pelo menos três moradores. João Doria elegeu-se governador literalmente colado a Jair Bolsonaro, no slogan “BolsoDoria”. Agora, de olho na disputa pela eleição presidencial de 2022, o governador de São Paulo descolou-se do atual presidente e desde então busca se apresentar, e também o partido, como o último reduto da moderação. Algo como “Doria, o pacificador”.

O governador de São Paulo, João Doria, acompanha Bruno Covas no primeiro turno da eleição, em 15 de novembro.
O governador de São Paulo, João Doria, acompanha Bruno Covas no primeiro turno da eleição, em 15 de novembro.DIVULGAÇÃO/GOVERNO DE SP

4) Bruno Covas e o vice-problemão: a prefeitura foi deixada para os vices nos últimos dois mandatos do PSDB

Para distanciar-se de Bolsonaro e da extrema direita, o PSDB precisa mostrar que ainda guarda na alma uma lembrança carinhosa do tempo em que era centro político. Neste sentido, apostar na eleição de Bruno Covas para a prefeitura de São Paulo foi uma jogada esperta. Covas tem o sobrenome certo, na medida em que é neto de Mário Covas, ex-governador de São Paulo e fundador do PSDB, portanto herdeiro de uma espécie de aristocracia do partido, hoje tomado por novos ricos com a cara cheia de botox. Se há várias críticas a se fazer a Bruno Covas no comando de São Paulo, é preciso reconhecer que ele está ainda longe de poder ser equiparado ao trio Doria-Aécio-Serra.

Espertamente, Bruno Covas tentou se afastar de Doria e de Bolsonaro para chegar ao segundo turno, mas a realidade acaba sempre se impondo. Além de outros partidos e figuras de direita, Covas tem hoje o apoio formal de Celso Russomanno (Republicanos), candidato derrotado no primeiro turno, declaradamente apoiado por Bolsonaro. O maior complicador, porém, atende pelo nome de Ricardo Nunes (MDB), seu candidato a vice. Ricardo Nunes foi imposto a Bruno Covas por João Doria, em sua articulação para que o MDB apoie o seu nome para a eleição presidencial de 2022. Nunes é um sapo de um tamanho difícil de passar na garganta para alguém que se anuncia como “centro” e como “moderado” e como “responsável”. Covas o defende e até afirma que Ricardo Nunes foi escolhido por ele mesmo, mas o sapo só aumenta de tamanho.

Em 2011, o vice da chapa de Covas foi acusado pela mulher de violência doméstica e um mês mais tarde ele mesmo acusou-a de lesão corporal. Hoje eles vivem juntos. Vereador influente na zona sul de São Paulo, Ricardo Nunes é alvo de um inquérito policial que investiga corrupção nas relações de políticos com entidades gestoras de creches conveniadas, caso conhecido como a “máfia das creches”. Na Câmara de vereadores de São Paulo atua contra os direitos das mulheres e dos homossexuais e transgêneros e apoia o ultraconservador projeto Escola Sem Partido, que busca criminalizar professores, dinamitar a educação sexual e reescrever a história do país.

Seria possível alegar que um vice influi pouco nos rumos do Governo, mas, no Brasil, apenas dois presidentes não foram substituídos pelo vice desde a redemocratização do país. Em São Paulo, dois vices viraram prefeitos porque o titular, do PSDB, resolveu concorrer a um cargo de mais poder. O próprio Bruno Covas era vice de João Doria, que deixou a prefeitura para concorrer ao cargo de governador, o que até hoje é pouco perdoado por seus eleitores. Antes dele, em 2006, foi a vez de José Serra deixar a prefeitura para concorrer ao Governo do Estado, e então assumiu um quase desconhecido Gilberto Kassab. Hoje, Kassab é um dos principais líderes dessa praga política que atende pelo nome de “centrão”, mas que é muito mais à direita do que próxima a qualquer ideia de centro ideológico.

Vale a pena observar que tanto Serra quanto Doria assinaram compromissos de que jamais fariam o que efetivamente fizeram. Serra assinou um documento afirmando que cumpriria o mandato até o fim. Mais tarde, ao ser cobrado por trair a própria assinatura, disse que era só um “papelzinho”. E Doria, durante a campanha, também assinou um documento a pedido do portal Catraca Livre: “Eu, João Doria, comprometo-me a cumprir integralmente meu mandato nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 caso seja eleito prefeito de São Paulo em 2016”. Bem, o que aconteceu todos sabem.

Diante do histórico do PSDB na prefeitura de São Paulo, faz bastante sentido o eleitor paulistano se preocupar que o prefeito acabe se tornando Ricardo Nunes. Com a biografia embrulhada e sob investigação, Nunes foi orientado —ou talvez proibido— de participar de debates com a vice da chapa opositora, Luiza Erundina. Uma das mais experientes políticas brasileiras, ex-prefeita de São Paulo, atual deputada federal, Erundina tem uma biografia de absoluta coerência, uma história pessoal fascinante e, para aumentar os pesadelos do PSDB, é uma debatedora afiada. A campanha para o segundo turno já começou com uma intensa campanha nas redes, com o título de “Exigimos o debate dos vices”, mas Ricardo Nunes e o PSDB deram uma de Jair Bolsonaro e fugiram da raia pelos fundos, o que também diz bastante a um eleitor minimamente atento.

Desde que Guilherme Boulos e Luiza Erundina chegaram ao segundo turno, o PSDB joga sujo, apostando no discurso sacana da suposta “radicalidade” de Guilherme Boulos. Considerar “radical” a luta por moradia, no sentido pejorativo, e buscar criminalizar movimentos sociais são gestos muito mais ligados à extrema direita truculenta de Bolsonaro do que a qualquer aceno de “moderação”. O antipetismo quase patológico apresenta o PT como o principal responsável pela crise múltipla vivida pelo Brasil nos últimos anos. Sem tirar a responsabilidade do PT, que é grande, o que hoje vive o Brasil está longe de ter um único responsável e muito menos exime a direita que se rearranja durante toda a história republicana para seguir no poder e não perder privilégios de raça e de classe. As ruínas construídas pelo Brasil ao longo dos séculos são um bem-sucedido trabalho de longo prazo das elites conservadoras.

5) Uma eleição municipal que é nacional: o que está em jogo no voto de São Paulo diz respeito ao futuro de todo o Brasil

O antipetismo dos últimos anos permitiu que o PSDB fosse menos cobrado pelos seus ataques à democracia. Por isso é urgente refletir sobre o papel do PSDB no momento em que está em curso mais um rearranjo da direita que apoiou Bolsonaro e hoje se descola quase vergonhosamente dele para disputar 2022 se vendendo como “pacificadora” e “moderada”. Doria é o expoente deste movimento. Era BolsoDoria há menos de dois anos, hoje é anti-Bolsonaro desde bebezinho. João Doria, como Geraldo Alckmin aprendeu duramente ao ser traído pelo afilhado, é como Jair Bolsonaro: só tem um partido, que é ele mesmo.

A surpreendente chegada de Guilherme Boulos e do PSOL ao segundo turno da maior, mais rica e mais influente cidade do país foi um susto para o projeto de poder de João Doria e de seus mais novos sócios. Nos últimos meses, o atual governador de São Paulo, o ex-ministro da Justiça de Bolsonaro Sergio Moro e o apresentador da TV Globo Luciano Huck tentam costurar uma candidatura com o mote da “moderação” e da “união do país”. Uma candidatura proposta como sendo de centro.

Doria e seus amigos da direita travestida de centro estão muito preocupados com o que dirão as urnas no próximo domingo, 29 de novembro. Eles davam a esquerda por enterrada, com boas razões, já que até esse momento os partidos de esquerda e de centro-esquerda não conseguiam se entender para fazer oposição real a Bolsonaro. A consolidação de um novo líder, fora do guarda-chuva do PT, aponta que a esquerda pode chegar a 2022 com uma frente ampla e chances reais de disputar a sucessão de Bolsonaro —ou de pelo menos atrapalhar bastante os acertos da direita consigo mesma. O apoio de expoentes como Lula (PT), Ciro Gomes (PDT), Marina Silva (Rede) e Flávio Dino (PCdoB), mostram que uma frente ampla à esquerda se tornou realidade no segundo turno da eleição de São Paulo e já está no campo das possibilidades também para a sucessão de Bolsonaro.

Mesmo que o PSOL perca, o cenário político mudou no Brasil. Se Guilherme Boulos e Luiza Erundina vencerem, São Paulo é uma força poderosa. No próximo domingo, os eleitores paulistanos vão determinar muito mais do que o futuro da cidade de mais de 12 milhões de habitantes. É o futuro do Brasil e de mais de 210 milhões de pessoas que já está sendo tecido no presente.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Eliane Brum: “Me beija e me chama de centro”, diz direita brasileira

No Brasil, o “moderado” que se apresenta para “unir o país” é o novo velho malandro da crônica política

Mais importante que o mau desempenho nas urnas dos candidatos que Bolsonaro apoiou formalmente são os dois grandes marcos desta eleição: um novo líder se consolida no campo da esquerda no Brasil; e a disputa do legislativo aconteceu com um número inédito de candidatos negros, de indígenas e de pessoas transexuais, algumas delas as mais votadas de seus municípios. Também o número de mulheres cresceu. É pouco, diante do domínio de alguns dos partidos mais viciados e fisiológicos, mas é bastante em um dos países que mais mata negros e faz vítimas por transfobia do mundo, além de ostentar um número assombroso de estupros e feminicídios.

A ampliação da diversidade na política institucional acontece exatamente no momento em que o país é governado por um presidente declaradamente racista, misógino e homofóbico. O avanço dessas forças e o risco de Bolsonaro fracassar em seguir representando os interesses das elites econômicas faz a direita iniciar um curioso processo de mudança de identidade. “Me abraça, me beija e me chama de centro” poderia ser o título do mais recente capítulo da crônica política brasileira.

A eleição de domingo mostrou que toda a violência e o autoritarismo de Bolsonaro não foram capazes de interromper o crescente protagonismo dos grupos periféricos da sociedade― negros, indígenas, mulheres e LGBTQIA+― que reivindicam o centro político. Mostrou também que, depois de passar os últimos anos dando voltas em torno do próprio rabo, devido ao controverso legado de Luiz Inácio Lula da Silva e do Partido dos Trabalhadores, o campo da esquerda começa a se mover. Guilherme Boulos, do PSol de Marielle Franco, é líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, uma das principais organizações populares de luta por moradia do país. O fato de disputar o segundo turno para a prefeitura de São Paulo, maior e mais rica cidade brasileira, é a maior notícia desta eleição. Que o PSDB de Bruno Covas saia na frente, com toda a máquina de governo e o tempo de propaganda eleitoral a seu favor, é o óbvio. Boulos é o corte.

O que acontece em São Paulo sinaliza rumos para o Brasil. Não justifica nenhum maremoto de otimismo, mas aponta que existem brechas e que aqueles que aprenderam a resistir seguem avançando por elas. Se é verdade que o antipresidente fracassou como cabo eleitoral, é também muito cedo para dar Bolsonaro e, principalmente, o bolsonarismo, por derrotado. Em pequenas e médias cidades, abrigados nos mais variados partidos, há muitos prefeitos bolsonaristas de alma e também de coldre, e a violência nos interiores do Brasil, tanto quanto nas periferias urbanas, é da ordem do massacre. Como, por exemplo, em municípios do Arco do Desmatamento, na Amazônia.

Os sinais de que Bolsonaro pode se enfraquecer para disputar a reeleição em 2022, porém, já levou a direita a buscar um rearranjo estratégico nas últimas semanas. Figuras que até pouco tempo atrás dançavam de rosto colado com o antipresidente, como o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e o ex-ministro da Justiça Sergio Moro, começaram a costurar uma aliança para 2022 junto com Luciano Huck, popular apresentador da TV Globo, que já fez efusivas carícias públicas em Bolsonaro. Doria quis tanto se grudar em Bolsonaro em 2018 que literalmente colou o nome dos dois na propaganda eleitoral: “BolsoDoria”. No caso do herói decaído da Operação Lava Jato, até sua mulher, Rosângela Moro, insuspeita, portanto, já afirmou que via o juiz justiceiro e o Governo Bolsonaro “como uma coisa só”. Huck, na eleição de 2018, chegou a declarar que Bolsonaro tinha “uma chance de ouro de ressignificar a política”.

Antecipando-se ao risco de que a esquerda possa se unir para disputar a sucessão de Bolsonaro, como acontecerá no segundo turno de São Paulo, a direita tira do bolso truques manjados, mas que ainda podem funcionar. Como fizeram com Lula quando o então líder sindical se iniciou na política, as urnas nem tinham terminado de ser apuradas no domingo e já começaram a estampar em Boulos o carimbo de “radical”, na tentativa de amedrontar o eleitor num momento de intenso desamparo por conta do desemprego e da pandemia. Ao colocar “radical” como palavrão, a direita revela seu profundo preconceito contra os movimentos sociais. Tratar como radical a luta por moradia num país em que há mais casas sem gente do que gente sem casa revela mais da direita que se finge de centro do que da esquerda que Boulos representa.

O fato é que a esquerda finalmente começa a dar sinais de que há vida depois do lulismo ―e o legislativo vai ficando mais preto e mais trans. Dez prefeitos indígenas e mais de 50 vereadores quilombolas também foram eleitos, desbranqueando prefeituras e câmaras, embora ainda não suficientemente. Nas ruínas do Brasil, é necessário olhar para onde está a resistência que teima em criar vida mesmo nos escombros.

Assustada, a velha direita tenta vestir a máscara de moderação de Joe Biden. O problema é que Joe Biden foi eleito porque teve o apoio da esquerda progressista do Partido Democrata, na qual a maior parte dos expoentes nasceu justamente de lutas contra o racismo e o preconceito. A direita que agora se finge de centro e pretende nunca ter apoiado um defensor de tortura, quer justamente fazer o contrário: esmagar toda a potência emergente que primeiro Michel Temer (MDB) e depois Bolsonaro golpearam, mas fracassaram em parar. Não há máscara grande o suficiente para conter o topete laranja que salta bem no meio da testa destes malandros.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Eliane Brum: Vote em Marielle

Mais viva do que nunca, a vereadora executada há quase mil dias é a principal antagonista de Bolsonaro e de seu projeto de poder

As eleições municipais de 15 de novembro são, para o Brasil, o que a eleição presidencial dos Estados Unidos foi para o mundo. Vão mostrar para onde está indo o país, desde que o governo foi ocupado e pervertido por um mentiroso com intenções genocidas. É claro que 2022 será o momento decisivo, pela possibilidade de tirar não apenas Jair Bolsonaro do centro do poder, mas também tudo o que ele representa. A resistência, porém, se expressa no miúdo dos dias e é exercida no chão das cidades ―em cada comunidade, em cada favela, em cada rio. A política, para muito além dos partidos, é tecida no cotidiano. As eleições do próximo domingo vão mostrar qual é a temperatura do movimento de brasileiros anônimos na soma destas pequenas ações e reações. Vão expor o quanto uma parcela da população é capaz de enfrentar o autoritarismo de Bolsonaro também no campo da política institucional e manter a luta mesmo no luto. Vão apontar, principalmente, o quanto o legado de Marielle Franco vive e resiste e avança.

Bolsonaro e o bolsonarismo, a criatura mais importante e possivelmente mais longeva do que o criador que lhe empresta o nome, são fenômenos complexos. Além de tudo o que representam e revelam do Brasil, são também a resposta violenta de uma parcela assustada da população por um lado, de uma elite com medo de perder seus privilégios de classe e de raça, por outro. Em comum, os eleitores de Bolsonaro parecem temer tudo o que a figura de Marielle Franco representa em seu gesto de ocupar o centro político: a pressão de mulheres, negros e pessoas LGBTQIA+ por participação no poder e pelo reconhecimento de sua centralidade. É também esse embate que se fará presente nas eleições em que a participação de candidatos negros é a maior já registrada: 49,9% negros, superando os 48,1% que se autodeclaram brancos.

A eleição acontecerá num momento de forte simbolismo: a proximidade dos mil dias da execução da vereadora do PSol no Rio de Janeiro sem que o Brasil conheça o mandante ―ou os mandantes― e sua motivação. Enquanto quem ordenou a morte, seus motivos e suas conexões não forem apontados, cada dia a mais sem solução é uma denúncia do momento limite vivido pelo Brasil. E uma acusação do enorme déficit de justiça do país. A cada dia a mais sem solução faz também aumentar a densidade das sombras sobre Bolsonaro e sua família, às voltas com indícios de sua ligação com as milícias acusadas de envolvimento com a morte de Marielle.

O assassinato de Marielle Franco e de Anderson Gomes, o motorista que morreu mas não era alvo, não é mais um crime em um país atravessado pela violência. A investigação que se estende além do mais flexível conceito de razoável já expõe a crescente infiltração das milícias no Estado brasileiro. Expõe também o cotidiano de um país em que tanto a democracia quanto o ordenamento jurídico são uma pele cada vez mais fina envolvendo estranhas cada vez mais podres, cujos vermes já não se contentam em se manter no lado de dentro. Quando os criminosos começam a gostar dos holofotes é porque acreditam não mais precisar se esconder. O que aqueles que vivem na Amazônia de grileiros e pistoleiros testemunham há muito tempo, e que também na região da floresta se torna cada vez mais explícito, se alastra por todo o Brasil desde que Bolsonaro assumiu e perverteu o poder.

A execução da vereadora do PSol precisa ser solucionada por todas as razões e também para que a população brasileira possa saber se Bolsonaro e seus filhos têm apenas amigos chefiando as milícias que aterrorizam o Rio de Janeiro, alguns deles matadores profissionais, ou se também têm envolvimento com a morte de Marielle. Até este momento, as provas de intimidade e de relações suspeitas do clã Bolsonaro com milicianos matadores são vastas, mas não apareceu nenhuma prova de envolvimento concreto da família presidencial com o crime. Pelo menos, nenhuma foi divulgada até hoje.

Ao denunciar o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos), filho mais velho do presidente, pelo esquema criminoso das “rachadinhas” na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, o Ministério Público mostrou que o filho zeroum teria recebido pelo menos 400.000 reais do ex-PM Adriano da Nóbrega. Acusado de chefiar um grupo de extermínio, Adriano foi morto em fevereiro em controversa operação policial na Bahia. A mãe e a mulher de Adriano eram funcionárias do gabinete de Flávio Bolsonaro quando deputado e só foram desligadas pouco antes de estourarem as primeiras denúncias. Segundo a investigação do MP do Rio, Adriano repassava o dinheiro a Fabrício Queiroz, então braço direito de Flávio e operador do esquema criminoso.

Bolsonaro e sua família deveriam ser os brasileiros mais interessados em solucionar a execução de Marielle Franco. Não são. Até este momento, estão presos apenas os acusados de executar o crime, o policial militar reformado Ronnie Lessa, vizinho de Bolsonaro no condomínio Vivendas da Barra, no Rio de Janeiro, e o ex-PM Élcio Queiroz. Ainda não há notícias dos mandantes.

A necessidade de fazer perguntas difíceis envolvendo aquele que ocupa o cargo máximo do país é uma evidência do momento perigosíssimo que vive o Brasil. O “novo normal” de que tanto falam ―e que está muito mais para novo anormal― é assimilar como uma possibilidade de normalidade as relações íntimas do presidente com milicianos e matadores. Também neste sentido o dia da eleição provoca expectativa.

A corrosão da democracia brasileira é cada vez mais trágica, mas ainda há um pequeno espaço para a retomada do que foi velozmente destruído. A escolha dos vereadores e prefeitos que vão tocar a política dos municípios, em geral a que mais interessa aos cidadãos no seu cotidiano, vai mostrar se cresce a parcela da população brasileira que tem consciência do abismo que, como cantava Cartola, escava com seus pés. As eleições de 15 de novembro não contêm a possibilidade de redenção, mas podem sinalizar se o avanço das periferias que reivindicam seu legítimo lugar de centro persiste mesmo com todos os ataques e, principalmente, se têm conseguido aumentar sua ressonância junto ao conjunto da população nestes anos de autoritarismo de ódio produzido pelo bolsonarismo.

O primeiro ministério de Michel Temer (MDB) ―inteiramente branco e masculino, patriarcal e heterossexual em todos os seus signos― depois de quatro anos ainda é o melhor retrato de como a manobra das forças de direita refletia um profundo incômodo com o avanço daqueles tratados como subalternos, manobra que em 2018 resultou na eleição de um homem como Jair Bolsonaro. O fato de que Temer foi o vice que traiu Dilma Rousseff (PT), a primeira mulher a se tornar presidente na história do Brasil, ao minar seu poder desde dentro e apoiar seu impeachment, não é um detalhe. Tampouco é um detalhe o fato de que, das duas únicas ministras mulheres de Bolsonaro, uma é declaradamente antifeminista, Damares Alves, e a outra, Tereza Cristina, se dedica a liberar agrotóxicos e “destravar” a agenda do agronegócio que destrói a Amazônia, o Cerrado e outros biomas, envenenando a comida e a terra e condenando as novas gerações.

A execução de Marielle Franco, em 14 de março de 2018 ―negra, bissexual, publicamente casada com outra mulher, nascida e criada nas favelas da Maré, que ocupa o centro ao se tornar vereadora no legislativo do Rio de Janeiro e levar para dentro da política institucional a luta contra a violência policial na favelas, contra a grilagem de terras nas periferias, parte delas controlada pelas milícias, e pelos direitos das pessoas LGBTQIA+― simboliza a radicalidade do gesto de barrar esse movimento à bala porque ele começa a ameaçar interesses e hegemonias. Para além da solução concreta do crime, seu simbolismo é assim e acertadamente interpretado pela parcela progressista da sociedade, que mantém presente e persistente tanto a memória de Marielle quanto a pressão pela solução de seu assassinato.

Marielle Franco é, iconicamente, mais viva do que nunca e a maior antagonista do atual presidente. E por essa razão, a memória de Marielle resiste e produz Marielles. Nesta eleição, em número inédito: em São Paulo, as candidatas negras são quase o dobro da disputa anterior. Segundo levantamento da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), há pelo menos 300 quilombolas disputando uma vaga no legislativo em todo o país. Entre eles, a ativista Socorro de Burajuba, líder da luta contra a destruição socioambiental produzida pela mineradora norueguesa Hydro Alunorte, poluidora dos rios da região de Barcarena, na Amazônia paraense. Nunca se discutiu tanto a participação política de negros como hoje, mas mais do que negros, o que se fortalece em 2020 é a potência crescente das mulheres pretas.

Historicamente mais subjugadas entre os subjugados, elas foram mantidas por décadas periféricas também no feminismo dominado por mulheres brancas e nos partidos de esquerda, majoritariamente liderados por homens e por brancos que sempre deram ênfase à luta de classes em seu diagnóstico e em suas propostas, em detrimento do racismo estrutural como recorte central de análise. Como afirma a socióloga negra Vilma Reis, “são as mulheres negras que empurram a esquerda para a esquerda”.

Mesmo dentro do PSol ―o partido com mais ressonância na esquerda, pelo menos para quem, como eu, considera o PT um partido de centro― Marielle também enfrentava a hegemonia da branquitude e um ranço machista cuidadosamente disfarçado. Depois que Marielle se tornou o maior ícone das mulheres negras (e também de uma parcela das brancas), alguns tentam reduzi-la a uma “cria” do deputado federal Marcelo Freixo (PSol). É justo reconhecer a influência do principal nome do PSol do Rio de Janeiro na trajetória política de Marielle Franco, mas Marielle é muito maior do que isso e foi fortemente marcada pelas mulheres negras que também encontrou no seu caminho.

A força crescente representada por ela, esta que o bolsonarismo não conseguiu parar apesar de toda a violência contra os corpos das mulheres, dos negros e dos LGBTQIA+, pode ser decisiva em 2022. É evidente que o Brasil tem enormes diferenças com relação aos Estados Unidos, assim como também é evidente que Jair Bolsonaro é ainda pior do que Donald Trump. Mas as afinidades também existem e são grandes ―e ambos fazem parte do mesmo fenômeno global. Tanto Trump quanto Bolsonaro souberam encarnar o medo de uma parcela significativa de brancos assustados, perdendo poder aquisitivo pelos efeitos da crise global do capitalismo de 2008 e sentindo-se perdidos pela ameaça ao lugar identitário em que ainda se sentiam superiores: o de raça, o de gênero e o de orientação sexual.

Talvez a melhor forma de explicar esse mecanismo, no caso dos brancos pobres e dos brancos de classe média que perderam renda nos últimos anos, seja com a formulação do intelectual afroamericano W.E.B. Du Bois (1868-1963), cujo pensamento só fui conhecer ao assistir a uma entrevista do intelectual afrobrasileiro Silvio Almeida. Du Bois criou o conceito que apresenta a branquitude como um “salário público e psicológico”. Sugiro ler diretamente na fonte, para alcançar a profundidade da proposição, mas, resumindo em uma linha, seria mais ou menos isso: o branco ferrado se consola com o salário psicológico de saber que há um outro, o negro ferrado, que é mais ferrado do que ele. Para manter esse privilégio psicológico, de um ferrado mais ferrado do que ele, o que o faz superior pelo menos a alguém, ele vota até em perversos como Bolsonaro que o ferram muito mais todo dia. No meu ponto de vista, esse salário psicológico ajuda a explicar também a resistência feroz ao protagonismo das mulheres, o único ponto de privilégio de uma parcela dos homens, sejam eles brancos ou pretos.

Como se sabe, Bolsonaro “liberou” esses machos brancos assustados ao expressar publicamente todo o seu racismo, homofobia e misoginia (ódio às mulheres), sem ser responsabilizado pelo sistema judiciário, e enalteceu em seu discurso de posse a “libertação” do politicamente correto. Representou também a angústia de uma classe média que se via perdendo privilégios que considerava direitos ao mesmo tempo em que, pela primeira vez na história, era obrigada a lidar com empregadas domésticas, majoritariamente pretas, que haviam conquistado a (quase) equiparação aos direitos dos demais trabalhadores.

A escandalosamente atrasada conquista de direitos trabalhistas básicos pelas empregadas domésticas, como já escrevi várias vezes, é essencial na análise da última década. No Brasil, a emancipação feminina se deu não por políticas públicas como ensino integral e creche para as crianças, nem tampouco pela divisão real de trabalho dentro de casa. Ao contrário. As mulheres brancas só conquistaram sua emancipação e conseguiram construir carreiras profissionais ao seguirem subjugando mulheres negras, em sua maioria, e também brancas pobres. Essas mulheres deixavam suas próprias casas e filhos para realizar o trabalho doméstico e o cuidado dos filhos das brancas por salários irrisórios, jornadas extenuantes, condições de trabalho precárias e direitos escassos. A chamada “PEC das Domésticas” (quase) equiparou os direitos das domésticas aos demais trabalhadores, numa conquista histórica, balançando a herança mais persistente da escravidão e ampliando o medo de uma classe média perdendo renda e privilégios.

As mulheres pretas que hoje avançam sobre os espaços formais da política institucional são, muitas delas, filhas dessas mulheres que chefiam suas famílias e seguram o tranco dos dias há décadas. Muitas delas puderam chegar à universidade graças às medidas de ampliação do acesso ao ensino superior para os mais pobres e graças às cotas raciais, política de inclusão atrasada em mais de um século que provocou violenta reação dos brancos durante os governos petistas. Ainda que as candidatas pretas não se elejam, só o fato de disputarem a eleição aponta que, apesar de toda a violência, o bolsonarismo não conseguiu parar essa força. As quatro balas que arrebentaram a cabeça de Marielle Franco arrancaram-na da sua vida, de suas lutas, de seus afetos e de seus amores, mas tornaram-na imortal no cotidiano de milhões de mulheres pretas que encontram nela a inspiração para seguir adiante sem recuar.

Formalmente, o Instituto Marielle Franco criou nesta eleição a Agenda Marielle Franco, uma iniciativa suprapartidária que reuniu 745 candidatos, espalhados por 270 cidades brasileiras, comprometidos a levar adiante o legado da vereadora executada: justiça racial e defesa da vida; gênero e sexualidade; direito à favela; justiça econômica; saúde pública, gratuita e de qualidade; educação pública gratuita e transformadora; cultura, lazer e esporte. O esforço busca garantir significado a essas candidaturas, na medida em que a ampliação da presença negra no poder legislativo é um grande passo, mas só pode assegurar avanço na luta por igualdade racial se os eleitos defenderem projetos comprometidos com essa pauta e forem representativos de suas comunidades e não apenas de si mesmos.

O acordo é também o de honrar as práticas de Marielle: diversificar, não uniformizar; ampliar, não limitar; honrar, não apagar; coletivizar, não individualizar; puxar, não soltar; escancarar, não se encastelar; cuidar, não abandonar. Guilherme Boulos (PSol), candidato a prefeito de São Paulo com chances de alcançar o segundo turno, é um dos candidatos na lista dos comprometidos em honrar e multiplicar o legado de Marielle Franco.

Em 2005, ao executarem com seis tiros a missionária Dorothy Stang, os grileiros da região de Anapu aprenderam uma lição: algumas pessoas vivem mais intensamente depois de mortas. Nos dez anos seguintes, a atenção internacional provocada pelo crime e a presença de instituições que antes não davam as caras por ali atrapalharam muito os negócios dos destruidores da Amazônia. Dorothy Stang também se tornou uma mártir que tem inspirado movimentos de camponeses, em especial os ligados à Pastoral da Terra, da Igreja Católica. O assassinato de Marielle Franco, independentemente da intenção explícita do mandante ou mandantes do crime, produziu uma força de resistência infinitamente maior e mais significativa para o Brasil. Que os avanços se deem pela destruição dos corpos dos mais pobres e daqueles que resistem à opressão é resultado da democracia seletiva e deformada, jamais completada, do Brasil pós-ditadura civil-militar.

Tanto Trump quanto Bolsonaro se elegeram vendendo passados que nunca existiram, passados tão falsos quanto tudo o que sai de suas bocas. Pregam a volta a uma época em que aqueles historicamente tratados como subalternos ―mulheres, negros, indígenas― aceitavam passiva e pacificamente o seu lugar. Como se sabe, esse passado nunca existiu. O que existiu e persiste é o silenciamento dos que se rebelam, seguidamente calados pelo extermínio. Como Trump e Bolsonaro não têm futuro a oferecer, disseminam mentiras e tentam reescrever a história com elas. Não são apenas negacionistas, mas sim mentirosos com método e intenção.

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Inspiradas pelo exemplo da eleição estadunidense, a centro-direita e a direita brasileiras que já não querem mais dividir o palanque com Bolsonaro ―o homem que, como seu próprio chanceler definiu, transformou o Brasil num “pária” internacional― já começaram a fazer suas articulações para 2022. A questão é que, mais importante do que a vitória de Joe Biden, um homem branco do sistema, é como e por que Biden venceu Trump. As mulheres e os negros foram determinantes para tirar o déspota de topete laranja do poder. Como símbolo deste movimento desponta uma ativista negra chamada Stacey Abrams, cuja atuação está diretamente ligada aos 800.000 novos votantes da Geórgia, metade deles afroamericanos entre 30 e 45 anos. Estado sulista de raízes escravocratas, um democrata não vencia na Geórgia desde Bill Clinton. É fundamental não esquecer: Biden venceu também porque tinha ao seu lado Kamala Harris. Primeira mulher a assumir a vice-presidência dos Estados Unidos, ela é negra de ascendência indiana. Biden é mainstream, mas quem venceu Trump não foi o mainstream.

O que é chamado de periferia, tanto em países como Estados Unidos quanto no Brasil, têm sido os centros de criação de pensamento, de cultura e de inovação. Diante de fenômenos de ultradireita como Trump e Bolsonaro, são também produtores de resistência que avançam para o centro da política institucional. No Brasil, movimentos majoritariamente brancos e de classe média publicaram em 2020 manifestos em defesa da democracia nos principais jornais do país. Não citavam o racismo estrutural em seus textos. De imediato, a Coalizão Negra por Direitos, que reúne mais de cem organizações e coletivos, publicou nos mesmos espaços o manifesto Enquanto houver racismo, não haverá democracia. Sinalizava ali que, desta vez, nenhum rearranjo das forças políticas, da direita à esquerda, teria legitimidade se não enfrentasse o racismo estrutural do país. O manifesto antirracista pode ter sido o ato político mais importante dos últimos anos.

O necessário deslocamento do que é centro e do que é periferia é fundamental para determinar o destino do Brasil. Aqueles que são tratados como periféricos, como a floresta e a favela, têm no horizonte uma aliança a tecer, fundamental para a criação de futuros capazes de dar respostas de possibilidade ao momento limite da emergência climática. Neste sentido, nos Estados Unidos, a esquerda do Partido Democrata, onde essas novas forças estão estrategicamente alojadas, está mais à frente ao perceber e sublinhar publicamente que, hoje, enfrentar o racismo é enfrentar a emergência climática. Já não existe a possibilidade de uma luta sem a outra luta.

O apartheid tenebroso que já se anuncia e se aprofunda em ritmo acelerado é o que a própria ONU chama de “apartheid climático”. E, mais uma vez, atinge principalmente as mulheres, os negros e os indígenas. No Brasil, a aliança entre os ativistas das favelas e os ativistas da floresta precisa avançar com mais rapidez, dada a emergência do momento. Os ativistas da floresta são principalmente indígenas, mas também quilombolas e beiradeiros ou ribeirinhos. E são também as mulheres negras das periferias de cidades amazônicas. Em Altamira, epicentro da destruição da floresta, jovens ativistas como Daniela Silva têm levantado a voz para lembrar que as mulheres negras das periferias urbanas também fazem parte da Amazônia.

A luta está só começando. Homens como Trump e Bolsonaro, o brasileiro ainda com chances de se reeleger em 2022, são apenas um capítulo e não necessariamente o mais difícil. Como afirma a estrela da nova esquerda do Partido Democrata, a estadunidense de origem latina Alexandria Ocasio-Cortez, ao comentar a derrota de Trump: “Não estamos mais em queda livre para o inferno. Mas, se vamos nos levantar ou não, é uma questão. Fizemos uma pausa nessa descida precipitada. A questão é se e como iremos nos reconstruir”.

Apesar do atoleiro vivido pelo Brasil sob o Governo de ódio de Bolsonaro, o país tem, talvez como nenhum outro, um grande trunfo para voltar a criar futuro no presente: a enorme força de vida dos negros e dos indígenas que têm resistido contra todas as formas de morte por quatro séculos, caso dos descendentes dos africanos escravizados, por cinco séculos, caso dos indígenas. Grande parte das forças progressistas do planeta já compreenderam que a batalha pela Amazônia é a grande batalha deste momento ―e não apenas no sentido dos limites geográficos da floresta que regula o clima, mas no sentido de amazonizar o pensamento para a criação de uma sociedade humana capaz de viver sem destruir nem a casa onde vive nem as espécies com quem divide a casa.

A crise climática e a sexta extinção em massa de espécies, ambas comprovadamente provocadas por ação da minoria dominante dos humanos, tornaram este momento o mais desafiador de nossa trajetória no planeta. Trump e Bolsonaro são apenas sintomas. Com todos os limites evidentes de uma eleição numa democracia que nunca chegou para todos, assim como os limites da própria democracia como sistema, o voto deste 15 de novembro é muito mais importante do que parece à primeira vista. Países vizinhos como a Bolívia e o Chile já deram o exemplo e mostraram que é possível enfrentar o autoritarismo da direita e da extrema direita e avançar. O Chile decidiu pela primeira Constituição construída de forma igualitária entre homens e mulheres e, na Bolívia, as mulheres conquistaram 20 das 36 cadeiras do Senado (56%) e 62 das 130 da Câmara Baixa (48%) nas eleições de outubro, com forte presença dos povos originários. O Brasil, que costuma ver a si mesmo como vanguarda política e criativa, já está atrás no mapa da América Latina na luta contra o autoritarismo de direita.

A polarização política tem sido vendida como um problema e uma distorção nos últimos anos. Não é assim que eu vejo. Não é possível e nem desejável superar a polarização num país estruturado sobre o racismo e com uma desigualdade abissal. O problema é a distorção da polarização, situada propositalmente nos polos falsos. O discurso contra a polarização, aliás, será cada vez mais usado pela centro-direita e pela direita que hoje se anunciam como não bolsonarista para se apresentar como uma alternativa de “pacificação do país” em 2022. Michel Temer já usou esse discurso antes e agora ele se insinua nas negociações entre o governador de São Paulo, João Doria Jr (PSDB), o ex-ministro de Bolsonaro Sergio Moro e o apresentador da Globo Luciano Huck para a próxima eleição presidencial. A paz da centro direita e da direita aponta para um rearranjo cosmético, com algumas concessões aqui e ali, de modo que a desigualdade racial e social do Brasil se mantenha inalterada na essência. Prefiro ficar com a frase antológica da atriz e escritora negra Roberta Estrela D’Alva: “se a paz não for para todos, ela não será para ninguém”.

A eleição de 15 de novembro não é uma prévia para 2022. É muito mais do que isso. É a recolocação dos polos que foram deslocados. É uma sinalização de que a polarização já não se dá entre Bolsonaro e Lula, mas entre Bolsonaro e Marielle Franco. Esta sempre foi a polarização real dos Brasis, em alguns momentos representada pelo PT do passado, há muitos anos não mais. Quase mil dias depois da sua execução, o grito se fortalece e avança: Marielle, Presente.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).

Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Eliane Brum: Os humanos que o vírus descobriu no Brasil

Só poderá haver luto dos mortos pela covid-19 se houver luta – por investigação, responsabilização e justiça

Tenho peregrinado pelos memoriais e por páginas desconhecidas de redes sociais em busca dos fragmentos da vida dos mortos, em busca dos testemunhos dos enlutados, para que também eu possa acreditar com eles que houve uma morte. E então empresto o meu corpo e escrevo a partir destes fragmentos. Essa crônica que faço a partir do real me ajuda a ficar em pé. É o meu jeito de estar junto num velório que não velou, num enterro que sepultou também os vivos, porque sem despedida, num sepultamento em que os familiares foram compelidos a mentir a causa da morte para não serem estigmatizados pela vizinhança. Sim, porque também isso está acontecendo no Brasil. Morrer de covid-19 tornou-se uma vergonha a ser ocultada, assim como subnotificados são os números oficiais.

Perambulo pela história dos outros para costurar fiapos de vida. Não reportagens ou depoimentos, como costumo fazer, mas pequenas crônicas como estas a seguir.

Era o pijama azul, aquele que tinha a mancha de vinho no peito. Ele sempre derramava coisas na roupa quando comia ou bebia. Queria enterrá-lo com ele, pra que possuísse algo seu que pudesse reconhecer na travessia, para que não fosse para a escuridão sem algo familiar, para que as minhas tentativas sempre fracassadas de tirar a mancha fossem uma lembrança de que tinha sido tão amado. Mas você me foi arrancado, eu não pude acariciar sequer o seu rosto. Eu não perdi apenas a sua vida, eu perdi também a sua morte.

Quando ria, ela tentava esconder um dente amarelado, uma escultura estragada por um dentista barato, que não prestou atenção no seu sorriso. E agora, quando ela é arrancada de mim, é este dente torto, abalroado pela vida, que me falta mais. Como se só ele pudesse me devolver alguma sanidade na insanidade de não poder dizer a você que eu nunca me esforcei para lhe ajudar a pagar o dentista porque não queria perder nem um pedacinho de você, nem mesmo aquele dente que a constrangia, mas que eu amava mais porque era a prova de que você era deste mundo e não escaparia. Sim, eu sempre achei que você era perfeição que eu não merecia, mas queria. E então, sequestraram você de mim. E eu, que contava tudo a você, só a você, não tenho a quem contar que até seu dente ruim me faz falta.

Eles disseram que as crianças tinham muito muito muito menos chance de pegar o vírus. Eu me agarrei a isso. Você, minha filha, tinha bochechas grandes demais, rosadas demais, para caber um vírus. E quando corria, você tinha uma confiança absoluta em seus passos incertos. E quando caía, você apenas ria, anunciando que não temeria as quedas que viriam. Eu, sim. Eu temia todas as suas quedas. E agora que você é só uma foto num porta-retratos, agora que nem me permitiram embalar o seu corpo, agora que você passou naquele pequeno caixão fechado onde eu não poderia reconhecer você, a minha menina, eu queria só ter a chance de ver você cair e ajudá-la a levantar. Preciso te dizer que não acredito. Como vou saber que não era outra naquele caixão? Como vou saber que você não está viva caindo de bunda em outro chão e rindo como se tudo isso fosse apenas mais uma graça do mundo que você apenas começava a descobrir? À noite eu sonho, minha filha, que caminho até o cemitério e a arranco de lá. Abro aquele caixão como se fosse um porta-joias e resgato da escuridão e assim também eu saio do escuro onde estou desde que você passou numa caixa. E nunca mais, nunca, você sairá de novo do meu útero.

Disseram que você poderia morrer, afinal você era velho. Ouvi aquele animal falar coisas assim. Morrer os que têm que morrer. Deixaram você morrer, como deixaram tantos morrer. Não sabiam nada das suas pequenas delicadezas, nem das maldades, às vezes você gostava de ser mau, como quando ria ao me ver andando encurvada. Mas os que assim falavam não sabiam que você também me cobria, passava a noite me cobrindo, porque depois de velha meu sono se tornou errático e agitado, e eu jogava tudo longe como se tivesse raiva do cobertor. E você acordava para que meu pé não gelasse, e às vezes, nunca te contei, eu apenas fingia para ser cuidada por ti. E eu não pude. Não pude cuidar de você. Você teve febre, desapareceu dentro da boca do hospital e de lá foi vomitado num caixão lacrado. Eu não consigo explicar por que tenho medo de seguir o teu caminho, e o presidente do meu país diz que os velhos estão autorizados morrer. Não sei o que se passou comigo, eu queria te contar e talvez você soubesse, mas murchando entre dobras de pele enrugada (você lembra como a minha pele era lisa? Já não há ninguém para lembrar que a minha pele foi lisa), chorando dia após dia umas lágrimas secas que me esfolam os olhos ruins, eu ainda quero viver. E não sei para quê. Você saberia, você sempre sabia dos meus porquês.

Desde que ela desapareceu, porque para mim haverá de ser sempre um sequestro, já que não a vi, não a preparei, não a abracei, não pude dizer nada perto dos ouvidos dela. Desde que ela desapareceu só consigo pensar naquela penugem que ela tinha na nuca. Como se uma parte dela nunca tivesse desistido de ser bebê apesar de já ser uma mulher adulta. Quando ela era dura, no trabalho, eu ria para dentro de mim, porque só eu sabia da penugem que ela escondia. Só eu conhecia aquela verdade mais absoluta que qualquer outra que ela vendia ao mundo. E era isso que fazia com que me sentisse especial. Mesmo que ela fosse dura também comigo mais vezes do que seria necessário, ela me deixou chegar onde ninguém mais tinha alcançado, como um pico do Everest só meu, e me deixou ver. E agora, também a penugem está no silêncio dos mortos que não conseguem descansar porque não foram velados.

Eu cresci lendo histórias sobre a pandemia, em especial na Idade Média. As grandes pestes que devastavam um continente inteiro. Eu tentei convencer os Médicos Sem Fronteiras a me deixar acompanhá-los numa epidemia de ebola em Uganda anos atrás. Eu testemunhei como a doença de Chagas tinha se tornado uma maldição que atravessava ― e matava e marcava ― gerações de camponeses bolivianos porque poucos se interessavam em barrar aquelas mortes e assim aquilo que é evitável vai se tornando imutável. Eu já era repórter quando a Aids matou alguns dos meus ídolos. Ser jornalista é também aceitar que terá sua vida assinalada por mortes de quem nunca conheceu.

Quando a pandemia de covid-19 chegou, ela não me surpreendeu. Quem escreve sobre a destruição da natureza, sobre a emergência climática, sabia que o tempo das pandemias chegaria. Gritamos há anos, e os indígenas, que sabem mais, há décadas. Quando as primeiras notícias chegaram eu estava num navio do Greenpeace, na Antártida, e ouvia as explosões dos icebergs. O que pode ser mais aterrador do que o continente gelado sem gelo? E então os jornalistas chineses que nos substituiriam na próxima etapa não puderam vir. E quando chegamos ao aeroporto, no Chile, havia pessoas de máscaras por todo canto.

Há muito eu tento me preparar para o abismo que a minoria dominante do planeta, as grandes corporações, os bilionários que arrancaram suas fortunas da natureza, os governantes e os executivos que os servem, cavaram para todos nós. Mas eu nunca me preparei para o que está acontecendo no Brasil agora. E é com isso que não consigo lidar. Eu não consigo lidar com a indiferença.

Há dois acontecimentos simultâneos e conectados no Brasil, o que o torna diferente de outros países do mundo nesta pandemia. Um é a covid-19, que aqui atingiu proporções de catástrofe, tornando o Brasil um dos países mais afetados do mundo. O outro é a ação deliberada de Jair Bolsonaro e de pessoas, militares e civis, que ocupam cargos no seu Governo para, por um lado, deixar a covid-19 avançar e matar, por outro ampliar as condições para que ela mate mais.

Já escrevi bastante sobre os atos governamentais, sobre a campanha oficial de desinformação, sobre as declarações públicas de Bolsonaro. Não há como analisar o impacto da covid-19 no Brasil sem relacioná-lo com a ação intencional do Governo Federal de deixar morrer: a população em geral, e por consequência os mais pobres, o que significa os negros (pretos e pardos), que representam tanto a maioria da população quanto a maioria dos mais pobres. E sem relacionar com a ação deliberada de ampliar as condições para que a doença mate mais, caso explícito dos povos indígenas, bem fundamentada nos pedidos de investigação de Bolsonaro por genocídio e outros crimes contra a humanidade que já chegaram ao Tribunal Penal Internacional. Nesta semana, o TPI arquivou “temporariamente” as denúncias com relação à pandemia, até que “novos fatos ou evidências” apareçam. Nada foi fechado, mas será preciso descobrir o que mais Bolsonaro precisa fazer — ou quantos mais precisam morrer — para que os juízes da Corte internacional sigam adiante. Com relação aos indígenas e à Amazônia, as denúncias seguem em aberto.

A covid-19 e a suspeita de crimes contra a humanidade praticados por Bolsonaro e por seu Governo estão intimamente relacionadas no Brasil e não há como dissociá-las em qualquer análise sem promover o apagamento de fatos documentados. O que eu não imaginava é que, diante das evidências de um genocídio, a maior parte da sociedade silenciaria. O que eu não imaginava era ouvir: “Você está banalizando a palavra genocídio”. Não seria você que estaria banalizando a morte?, eu respondo. A dos outros, claro. São sempre os outros os que podem ser sacrificados.

Um negro, uma negra, talvez dissesse à branca que eu sou. Como você acha que nos sentimos todos esses anos, enquanto nossos filhos morriam à bala e as pessoas se limitavam a “tocar a vida”? Um indígena, uma indígena talvez lembrasse à branca que eu sou. Como você acha que nos sentimos em todos esses cinco séculos, enquanto sua sociedade ora nos exterminava, ora tentava nos assimilar, ora ambos, até hoje?

Sim. Essas perguntas, que apontam para a normalização do genocídio pela minoria dominante da sociedade, respondem. Efetivamente respondem. Mas, ainda assim. Ainda assim há um limite que foi ultrapassado no Brasil da covid-19. Se a pandemia acabasse hoje, e está longe de acabar, o que temos diante de nós é uma população de mais de 130.000 cadáveres de mulheres e de homens, a maioria deles adultos, mas também crianças e bebês recém-nascidos, uma população maior do que a da maioria das cidades brasileiras feita de corpos mortos. De vidas interrompidas. E cada uma destas vidas interrompidas deixou, segundo as projeções estatísticas, cerca de 1 milhão de enlutados, o equivalente a população inteira de algumas capitais do Brasil e do mundo que perderam pai, mãe, irmão, irmã, tio, tia, filhos, amigos íntimos.

E sabemos ― é inaceitável que alguém possa ainda mentir que não sabe ― que parte destas pessoas poderiam ainda estar vivas se Bolsonaro e seu Governo tivessem: 1) combatido a covid-19 seguindo as normas da Organização Mundial da Saúde; 2) liberado aos estados os recursos existentes no momento necessário, em vez de retê-los para alimentar disputas políticas; 3) mantido no ministério da Saúde um ministro que conhece o assunto e uma equipe gabaritada de sanitaristas e epidemiologias que já estavam lá; 4) agido emergencialmente em vez de negar a gravidade da doença; 5) orientado corretamente a população em campanhas responsáveis e bem fundamentadas; 6) feito todos os esforços para barrar a chegada da pandemia às terras indígenas, em vez de vetar água potável, leitos emergenciais e campanha de informação, entre outros barbarismos; 7) agido como chefe de Estado e dado o melhor exemplo.

O Brasil tem hoje uma nova geografia humana. E ela não é acidental. Temos essa cratera de mais de 130.000 pessoas a menos, como luzes que se apagam num curto espaço de tempo, deixando aqueles que as amavam no escuro de um luto que sequer é reconhecido. Uma cratera que segue se ampliando na velocidade de centenas de mortos por dia. Isso já é algo para além do possível.

Mas há mais. Há muito mais.

Em minha última coluna, eu perguntava: Como poderá barrar seu próprio genocídio um povo que se acostumou a morrer? Que naturalizou todas as formas de morte a ponto de tornar a covid-19 mais uma delas? Que normalizou que são os mesmos de sempre os que mais morrem e então tipo tudo bem? Que naturalizou o inominável que nos governa? Era uma pergunta difícil, a pergunta de quem vive num país em que o futuro foi negado à maioria, consumida pela mera reprodução das forças num presente contínuo.

Agora, minha pergunta é mais delicada. O que será dos que restarem quando a pandemia acabar? O que será dos que vivem esse luto que ninguém mais na história dessa humanidade viveu?

Em todos os países do mundo há pessoas lidando, nas mais diversas línguas e culturas, não apenas com a perda de quem amavam, mas com a despedida que não houve, com o cuidado que foi vetado pelo risco de contaminação, lidando com caixões lacrados e túmulos que não escolheram, quando não com a indignidade das valas comuns. Lidando com os abraços que não puderam acontecer. Essa tragédia ― ainda que com a evidência de que houve uma série de abusos e de descuidos evitáveis nos processos e nos sistemas de saúde ― é intrínseca a uma pandemia que só pode ser barrada impedindo a replicação do vírus em outros corpos, só pode ser barrada com isolamento físico (não social) e protegendo-se fisicamente (não socialmente) do outro.

A questão, no caso do Brasil, é que há mais.

Os enlutados enfrentam uma dor extra, que é a da invisibilidade pela negação da gravidade da pandemia. Famílias inteiras se dilaceram enquanto tantos festejam nos bares, buzinam nas ruas, desrespeitam o distanciamento, aglomeram-se. Se aqueles que escolheram ignorar a pandemia soubessem da dor dos que foram atingidos pela morte, será que mudariam, será que cuidariam, será que fariam o gesto?

“É atroz”, diz uma mulher que perdeu o marido, assistir a esse espetáculo das ruas cheias. Faz com que pareça que a morte do meu marido não existiu. Onde está ele então, ele que eu deixei no hospital e nunca mais vi? O que então é real? As ruas cheias onde a pandemia é uma ‘gripezinha’ ou meus filhos e eu, perdidos numa casa onde ele não está? Como as pessoas podem estar nas ruas festejando enquanto uma parte da população está morrendo?".

Liguei para Bruna Tabak, para que ela me ajudasse a compreender o que vivemos. Psicóloga especializada em cuidados paliativos, ela e outras duas profissionais atuam com grupos de familiares na Rede Apoio Covid-19 – acolhimento, escuta e memórias da pandemia, formada inteiramente por voluntários. “A palavra que se repete em muitas falas é arrancada”, conta Bruna. “Os familiares sentem que tiveram aqueles que amam arrancados. Com o arrancamento, é um rombo que se abre.”

Como fechar esse buraco numa sociedade que normalizou tanto a morte quanto a dor de quem perde, fazendo com o mais real de uma vida, que é a morte, seja encoberto por uma aura de irrealidade pela negação compartilhada da crise sanitária mais grave em um século? Bruna teve a generosidade de compartilhar algumas frases surgidas nos grupos de vivência do luto. Outras, encontrei em depoimentos na internet.

“Foi a pior coisa que nos aconteceu. Me senti devastada, sem rumo e sem chão. E como estamos vivendo dias anormais, ainda penso que não foi real.”

“Entreguei meu marido no hospital e recebi de volta três papeizinhos.”

“Eu não deveria ter levado o meu marido ao hospital. Nunca mais o vi.”

No hospital aquele que amamos é colocado fora do alcance, nem uma prisão de segurança máxima seria tão efetiva. A ligação prometida para aquele mesmo dia, com notícias, acontece três dias depois.

“O vírus não passa pelo telefone. Por que não ligaram pra gente?”

E nestes três dias tudo aconteceu, e ele estava sozinho.

Outra queria pelo menos ter a Bíblia de volta, ele era pastor. Aquela Bíblia, não outra, mas sim aquela, que o acompanhou por toda uma vida. Informaram à família que o livro estava contaminado, que fora “descartado”, a palavra terrível. Ele também teria sido “descartado”?

Vocês têm cinco minutos para se despedir. Pelo tablet. A pessoa que era tudo morria. O que você diz em cinco minutos? Como se vive com essa última imagem em um tablet? E o que você diz para a pessoa que te chama de “privilegiado” porque você pôde pelo menos ter uma imagem, enquanto ela atravessa as noites sem certeza do que havia naquele caixão que não pôde abrir? Quem te abraça diante do horror se agora você é também um risco, um possível vetor? Quem dá o contorno do seu corpo que se perdeu?

“Será que ninguém vê que eu sangro, aqui, bem aqui, onde ele me foi arrancado?”

“Como alguém que perdeu um familiar por covid-19 faz para sobreviver.” Ela preenche o espaço de busca do Google com esse pedido de socorro. E espera por uma resposta.

Eu sou um milagre”, ela se espanta. “Como estou sobrevivendo só com metade do coração?”

“Não poder me despedir me causa uma dor que vou carregar para o resto da minha vida.”

No momento do sepultamento, “sem despedida, sem poder olhar ele pela última vez, sem poder tocar as mãos e agradecer por tudo”.

“Na última vez que falei com a minha mãe ela me pediu, pelo celular, que a buscasse, que a tirasse do hospital. Nunca mais a vi, nem pela tela.”

“Não, não me diga para ter pensamento positivo. Não me diga para ser forte. Ser frágil é a prova de que sou humana. Me permita ser humana.”

Receber a notícia daquela maneira, “me matou viva”.

Ela sequer encontrou o caminho de volta para casa, nem sabe para onde levará os filhos, quando é atingida pela cidadã de bem: “Você tem certeza de que seu marido tomou cloroquina? Porque se tivesse tomado ele estaria vivo”.

Bruna Tabak fala de “uma dor que não descansa”. A voz da paliativista, a voz daquela que escuta, dói. Não é verdade que o verbo doer só tem a terceira pessoa. Eu doo, tu dóis, ele/ela dói, nós doemos, vós doeis, eles/elas doem. Gente dói. O que são então todos esses outros que fingem não nos ver?

A tragédia do Brasil é que os mortos são tratados com a mesma indiferença reservada aos vivos. Quem estuda o morrer sabe que a forma como a morte é tratada reflete o valor reservado à vida. O vírus revelou-nos. De uma vez, como um esparadrapo arrancado com apenas um gesto.

Essa é a diferença no Brasil. O luto pela morte dos que amamos é parte inescapável da experiência de viver. Este luto é elaborado de forma singular, própria, por cada pessoa que perde. Mas, no Brasil da covid-19, o direito ao luto é violado por uma dupla perversão. A doença que matou seu pai, sua mãe, seu irmão ou irmã, avô ou avó, filho ou filha tem sua gravidade negada pela autoridade máxima do país. Para piorar, essa autoridade não está sozinha. A aberração de negar a gravidade de uma pandemia é compartilhada por milhões de pessoas, os milhões que lotam os espaços públicos sem necessidade, fazendo com que o real da morte se torne algo irreal. O delírio, quando coletivo, corrompe a realidade.

Torna-se muito mais difícil fazer luto quando esse luto não é reconhecido ― e não é reconhecido em frases de Jair Bolsonaro como “E daí?”, ou “Vamos tocar a vida”, ou “Está morrendo gente? Tá. Lamento. Mas vai morrer muito mais se a economia continuar sendo destroçada” ou “A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”. No luto da covid-19, os brasileiros que perderam não tem o reconhecimento da magnitude da sua perda porque a morte pela doença foi normalizada. Sua dor, então, torna-se uma carta que não chega ao seu destino, uma carta que não é aberta pelo outro. É esse buraco que os memoriais tentam preencher, sabendo que podem apenas tecer uma rede em volta dele.

Essa negação da dor que silencia os enlutados e os condena ao ostracismo, mesmo entre seus vizinhos, é da ordem do traumático. Mas o que acontece hoje, no Brasil, é ainda pior do que o pior. Sobram indícios de que as mortes por covid-19 podem estar conectadas aos crimes de genocídio ou de extermínio, como já foi amplamente mencionado neste texto. Esses indícios também são negados por uma significativa parcela da população. E mesmo por alguns estudiosos do tema, que preferem, por razões que a razão não desconhece, afirmar que é “apenas incompetência” de Bolsonaro.

Se há fortes indícios de que a pessoa que você perdeu poderia estar viva não fosse o processo genocida em curso, o que isso faz com o seu luto? Se os responsáveis por investigar as ações do presidente e dos ministros e funcionários de seu Governo não investigam e o Judiciário não julga, o que isso faz com o seu luto? Se o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), não vê nas suspeitas que envolvem o tratamento da covid-19 pelo Governo nenhuma razão para levantar o traseiro da pilha de pedidos de impeachment de Bolsonaro, o que isso faz com o seu luto? Como você faz para que seu cérebro “esqueça” que sua mãe ou seu filho podem ter sido vítimas de um crime contra a humanidade e, caso “apague” essa informação, o que isso fará com a sua sanidade? Sem justiça, o luto está sendo convertido em violência. Só haverá luto para aqueles que perderam os que amavam na pandemia se houver luta por responsabilização.

As instituições já se mostraram incapazes ― ou sem vontade ― de investigar e julgar Bolsonaro mais de uma vez, tanto no plano do Judiciário quanto no do Legislativo. A negação de justiça, que é o que hoje vivemos no Brasil, violenta o luto dos familiares de mortos por covid-19. Sem possibilidade de encontrar justiça no Brasil, organizações da sociedade civil moveram petições no Tribunal Penal Internacional, mas este processo é lento e, como se viu na decisão recente de “arquivamento temporário”, não imune às pressões políticas. A dor, porém, demanda urgência.

Não sei como lidaremos com o fato de testemunhar um genocídio e, com exceção de alguns núcleos de resistência, não realizar como sociedade o esforço mínimo para barrá-lo. Ao deixar de fazê-lo, abandona-se vizinhos, familiares, parentes. Mas abandona-se, individualmente, algo constituinte do que é ser uma pessoa humana. E, coletivamente, quando abdicamos de barrar os horrores que são feitos em nosso nome, abdicamos do coletivo. Já não somos mais nada então, para além de um amontoado de quase 212 milhões de pessoas circunscritas por uma convenção político-geográfica. O Brasil, que já vinha se destroçando, terá de se haver então com algo ainda não nomeável no âmbito do horror. Não se pode passar por cima de algo desse tamanho sem se perder por completo.

Temo, porém, o rearranjo caso não seja feita justiça e não exista reconhecimento dos mortos nem do luto dos que perderam. Será que a sociedade vai imitar os militares da ditadura e falsificar o passado para se absolver dos horrores feitos em seu nome? Será que apagarão a história, deixarão os mortos desaparecerem nas valas comuns, silenciarão as viúvas, esperarão que os órfãos se suicidem? É assim que finalmente se fará o desacerto de contas deste país com sua desmemória?

Bolsonaro, assim como todos os apagamentos que ele representa, terá então vencido, porque conseguiu fazer de cada brasileiro um cúmplice, um igual a ele. E agora a maioria já não poderá falar sem denunciar a si mesma. Onde você estava? O que você fez? A sociedade brasileira vai recusar essas perguntas, cada indivíduo vai recusar essas perguntas. E tratará de destruir quem insistir em seguir perguntando.

Há bem pouco do que se orgulhar na história do Brasil, esse país construído sobre corpos humanos e costurado com o fio interminável da violência. Mas isso, isso que estamos deixando acontecer, isso é terrível demais até para nós.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).

Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Eliane Brum: 7 de Setembro: Morte

Brasil chega ao Dia da Independência com um genocida no poder e negacionistas do genocídio em todas as partes

Se este 7 de Setembro transcorrer como se o Brasil vivesse algum tipo de normalidade, enterremos nossos corações, porque já estarão mortos. Devemos então parar de fingir que estamos vivos e assumir nossa condição de zumbis. Não o dos filmes, que tentaram escapar dessa condição. Mas os que escolhem ser contaminados pela normalidade criminosamente anormal. A covardia é uma forma de existência a qual se escolhe. Este país está cheio de oportunistas, sim. Mas também está cheio de covardes incapazes de defender qualquer território para além da sua família, porque também o sentimento de comunidade foi persistentemente destruído. Em 7 de Setembro de 1822, quando se aliviava de uma diarreia insistente no riacho Ipiranga, em São Paulo, o príncipe português Dom Pedro I teria gritado: Independência ou Morte! Depois de 198 anos, já entendemos que o Brasil sempre escolheu a morte. Mas jamais, em nenhum outro momento de sua história, o país havia alcançado esse nível de perversão sob o título formal de democracia. Negros e indígenas vivem uma longa história de extermínio, mas esta é a primeira vez em que um Governo construiu uma máquina de morte. Temos um genocida no poder, e ele está matando tanto quanto deixando morrer. Tem intenção, tem plano e tem ação sistemática.

Os quatro pedidos de investigação de Jair Bolsonaro por genocídio e outros crimes contra a humanidade que já chegaram ao Tribunal Penal Internacional não são um jogo político de retórica. São a denúncia de que o judiciário brasileiro não consegue ou não quer barrar os crimes de Bolsonaro e de outras pessoas com cargos de poder no Governo, sejam generais ou civis. Se conseguisse ou quisesse, como os fatos já mostraram, Bolsonaro nem poderia ter sido candidato. Ele é o resultado, como já escrevi, de uma longa série de impunidades iniciada ainda quando era militar. Foi absolvido no Tribunal Superior Militar, em um julgamento povoado de indícios de fraudes, de planejar um ato terrorista com um motivo corporativo: botar bombas em quartéis para pressionar por melhores salários. Só se tornou presidente pela vocação característica do sistema judiciário brasileiro: a de punir severamente os pretos e pobres e despachá-los para um sistema carcerário incompatível com qualquer ideia de civilização, mas perdoar ou deixar de julgar os ricos e brancos. Especialmente se estes forem militares e tiverem o privilégio de uma justiça paralela que escolhe inocentes e culpados com base não nos fatos, mas nos interesses corporativos de uma instituição que se considera acima da Constituição.

Bolsonaro é brasileiríssimo. A criatura que está matando os Brasis que considera obstáculos ao seu projeto de poder, assim como as populações que despreza (indígenas e negros), é a versão mais bem acabada – e por isso tão terrivelmente mal acabada – de todas as deformações. As que os governos anteriores não quiseram corrigir, pelas mais variadas razões, as que as diferentes elites estimularam, para manter seus privilégios, as que o povo se acostumou a conviver.

O Brasil chega a este 7 de Setembro com os símbolos nacionais sequestrados pelo bolsonarismo. A bandeira foi sequestrada, o hino foi sequestrado, as cores foram sequestradas. Porque o bolsonarismo não se coloca como uma parte do Brasil, mas como o todo. Os outros Brasis e brasileiros que se opõem a ele são considerados e tratados como não brasileiros, como aqueles que precisam ser expulsos ou eliminados porque não deveriam estar aqui. O seu discurso no telão da Paulista, pouco antes do segundo turno das eleições de 2018, quando a vitória já era certa, é explícito: “Vamos varrer do mapa os bandidos vermelhos do Brasil (...) Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia”. Percebam. Não a lei do Brasil, que é a Constituição, mas “a lei de todos nós”. E esclareceu quem são “nós”: “O Brasil de verdade”.

O bolsonarismo é, em sua gênese e na sua estrutura, incompatível com a democracia. Na minha opinião, também incompatível com a civilização. O fato de Bolsonaro ter sido eleito não altera sua vocação totalitária nem sua lógica de eliminação dos opositores como “falsos brasileiros”. Ao contrário. Ao ser candidato, apesar de todos os crimes que já tinha cometido, a começar pelo de apologia à tortura, Bolsonaro desmoraliza e destrói uma combalida democracia que jamais foi capaz de julgar os crimes da ditadura e por isso jamais foi capaz de se proteger de criminosos como Bolsonaro.

Bolsonaro não apenas leva os generais de volta ao Governo e militariza toda a máquina pública, o que pareceria impossível apenas alguns anos atrás, para um país que viveu uma ditadura militar de 21 anos. Ele também carrega para o Planalto a lógica de guerra dos regimes totalitários. Na ditadura iniciada com o golpe de 1964, os “inimigos da pátria” eram os opositores políticos, especialmente os estudantes que a ela resistiram também com luta armada. No regime criado pelo bolsonarismo, que já não podemos chamar de democracia, os inimigos da Pátria são ampliados para todos aqueles que se opõem democraticamente a ele e a todos aqueles que são obstáculos ao projeto econômico de grupos no poder. Os opositores, como ele disse, devem ser levados à “Ponta da Praia”, referindo-se a um local de tortura e desova de cadáveres na ditadura, no Rio de Janeiro. Já os indígenas, principal obstáculo ao projeto de exploração da Amazônia, são tratados como uma espécie inferior: “cada vez mais humanos iguais a nós”. Aos quilombolas, outro obstáculo, ele se refere com termos usados para animais: “nem para procriadores servem”.

De certo modo, Bolsonaro vai além da ditadura militar na qual se inspira ao tornar “brasileiros de verdade” apenas os fiéis de seu culto político ― e falsos todos os outros. Porque ele não é apenas um “mau militar”, como definiu o ditador e general Ernesto Geisel. Bolsonaro está também aliado aos pastores de mercado e ao ruralismo mais predatório. Bolsonaro emprestou à lógica da guerra dos generais uma versão bíblica do bem contra o mal, explicitada pelos brasileiros de verdade e pelos brasileiros de mentira. Estes devem ser expulsos ou eliminados não apenas como inimigos, mas como infiéis da pátria. Para consolidar sua vitória colocou em campo uma máquina de propaganda, o chamado “gabinete do ódio”, que poderia ser elogiada por Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler. O bolsonarismo converteu todos aqueles que se opõem a ele em inimigos da pátria, do mesmo modo que o nazismo fez com os judeus num primeiro momento. Com os indígenas e com os negros, ele já entra numa segunda etapa, ao considerá-los apenas quase humanos como “nós”.

Bolsonaro e o bolsonarismo, que vai muito além dele, faz uma colagem dos totalitarismos do século 20 com a versão bíblica do evangelismo de mercado que se consolidou na política partidária neste século e alcançou o poder central com a eleição de 2018. Se fossem contemporâneos, Adolf dificilmente teria prazer em se sentar à mesa com Jair, porque a vulgaridade do presidente brasileiro o escandalizaria. Hitler queria criar sua própria arte e estética. Bolsonaro, pelo menos por enquanto, só quer destruir qualquer forma de arte. É o supremacista que prega (também) a supremacia da estupidez como a vingança dos ressentidos.

Bolsonaro não precisou criar seus campos de morte. Deixou a covid-19 avançar e agiu para reter recursos públicos destinados ao enfrentamento da doença, para afastar os quadros técnicos com experiência em saúde pública e epidemias, para vetar medidas decisivas de prevenção e para tumultuar o combate ao vírus. Também incentivou a invasão das terras indígenas e das áreas protegidas por grileiros e garimpeiros. Se a pandemia acabasse hoje, este já é um Brasil sem muitas das grandes lideranças que lideraram seus povos na luta pelo direito a viver em suas terras ancestrais e para manter a floresta amazônica e outros biomas em pé. Parte dos opositores de Bolsonaro, na Amazônia que mais uma vez volta a queimar, morreram nos últimos meses. E a pandemia ainda está longe de acabar.

A mais recente liderança indígena morta por covid-19, em 31 de agosto, foi Beptok Xikrin, 78 anos, conhecido como Cacique Onça. Voltou à sua aldeia, no Médio Xingu, em um caixão fechado, enfiado em uma lona, amarrado a uma caminhonete como se coisa fosse, na mais abjeta indignidade. Não basta matar ou deixar morrer, é preciso humilhar, quebrar a espinha dos povos indígenas também pelo insulto e pela desonra.

Mesmo para quem tem baixa expectativa com relação à decência das várias elites brasileiras, é custoso compreender como ainda chamam o que hoje há no Brasil de democracia. O que aí está não é bom nem mesmo para o “mercado”, essa entidade pronunciada com reverência. Que tipo de crença leva alguns setores, mesmo da imprensa, a considerar, depois de um ano e meio de governo, que há alguma composição possível com o bolsonarismo? A ação das elites não foi diferente nos processos totalitários do século 20, mas ainda assim é espantoso.

Muitos dos que votaram em Bolsonaro usaram o discurso anticorrupção como desculpa para votar num homem que se anunciava publicamente como defensor da ditadura e da tortura e que festejava como herói Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel, assassino e o único torturador reconhecido pelo judiciário brasileiro. E agora, quando não há mais desculpa? Quando Bolsonaro se abraça ao Centrão para se proteger de um impeachment? Quando Bolsonaro se abraça a Michel Temer para se aproximar do MDB? Quando o procurador-geral da República, escolhido fora da lista tríplice, se tornou office-boy de Bolsonaro, cobrindo de vergonha a instituição chamada Ministério Público Federal? Quando o herói da Lava Jato foi expelido do Governo? Quando Adriano da Nóbrega, miliciano chefe do grupo de assassinos de aluguel Escritório do Crime, foi morto e enterrado com tudo o que sabia sobre as ligações perigosas da família Bolsonaro? Quando Fabrício Queiroz, depois de meses escondido em uma das casas do advogado de Bolsonaro, e sua mulher, Márcia Aguiar, foragida, conseguem uma surpreendente prisão domiciliar? Quando um desembargador, sozinho, é capaz de afastar um governador do Estado inimigo de Bolsonaro e com poder para decidir os cargos de quem vai tocar (ou não) os processos sobre a família presidencial? Quando as denúncias de corrupção batem no peito de Bolsonaro, na forma da pergunta que faz Bolsonaro querer “encher a boca” do repórter “de porrada”? Esta pergunta aqui:

“Presidente Bolsonaro, por que a sua esposa, Michelle, recebeu 89 mil de Fabrício Queiroz?”

Agora, quando há duas enormes perguntas assombrando a família Bolsonaro. Esta e a outra, que se repete há mais de 900 dias sem nenhuma resposta:

“Quem mandou matou Marielle Franco? E por quê?

A pauta anticorrupção como justificativa para votar em um homem com o passado e o presente de Bolsonaro sempre foi fingimento. Desconfio que alguns fingiram tanto que até acreditaram. E assim chegamos ao 7 de Setembro com uma oposição partidária fraca, a esquerda ocupada brigando entre si e a direita buscando se consolidar como uma espécie de poder moderador da extrema direita no poder. Dilma Rousseff (PT) foi arrancada da presidência supostamente por ter praticado “pedaladas fiscais”. A folha corrida de crimes de responsabilidade muito mais graves de Bolsonaro está dando volta no quarteirão. E, mesmo assim, Rodrigo Maia (DEM) acomodou seu traseiro sobre uma pilha de dezenas de pedidos de impeachment, um deles da Coalizão Negra por Direitos, com base no agravamento do genocídio dos negros.

Gostaria de dizer que há momentos em que um povo decide se é um povo ou um amontoado de gente “tocando a vida”, como mandou o déspota eleito que nos carrega para a morte. Gostaria de dizer, mas não digo. Porque não acredito que temos um povo, no sentido de uma massa de pessoas com a mesma nacionalidade que luta por valores comuns. Talvez não tenhamos um povo. Mas temos povos. Nas periferias e favelas urbanas deste país há gente se organizando e lutando e criando possibilidades de viver apesar de todas as formas de morte. Se ainda existe a Amazônia é porque camponeses e povos da floresta lutam, mesmo sendo abatidos a tiros ― e agora também pela covid-19. Nas cidades, os movimentos de sem-teto se organizam pelo direito da ocupação da cidade para a vida e não para a especulação imobiliária. No campo, os agricultores familiares insistem em alimentar o país sem agrotóxicos enquanto Bolsonaro libera mais de um veneno por dia. Há homens e mulheres barrando a destruição da natureza com seus corpos em cada dobra do país. Há rebeliões por todos os Brasis, avançando nas fissuras, pelas bordas.

Não são os mais frágeis que se mantêm em pé. São os fortes. Há 500 anos há um Brasil tentando matar todos os indígenas ― pela assimilação, pela contaminação ou por bala. E, ainda assim, a população indígena cresceu nas últimas décadas. Desde a abolição formal da escravidão, os negros foram deixados para morrer, e ainda assim os negros se tornaram a maioria ― 56% ― da população brasileira. Viver ― contra todas as formas de extermínio ― tem sido o ato mais radical de resistência das populações invisibilizadas, oprimidas e tratadas como subalternas.

Neste momento, as gerações que hoje vivem enfrentam seu maior desafio. Bolsonaro converteu o Estado numa máquina de morte. Tão perversa que viu na covid-19 uma maneira de eliminar aqueles que barravam com seus corpos seu projeto de poder. Suas ações deliberadas são encobertas com aparições midiáticas, discursos golpistas, o jogo de cena da cloroquina e a falácia da defesa da economia. O bolsonarismo controla quase que totalmente o noticiário enquanto o genocídio é a política persistente que avança na camada atrás dos holofotes dos factoides, sem encontrar oposição capaz de pará-la.

Hoje, Bolsonaro alcançou mais do que o seu sonho. Ele queria que a ditadura militar, que formou os generais que o apoiam, “tivesse matado pelo menos mais uns 30 mil”. Sua negligência intencional na resposta à covid-19, sua campanha oficial de desinformação, seu exemplo pessoal de irresponsabilidade são a principal causa da ampla disseminação da doença no Brasil. Também neste momento, a Amazônia queima mais uma vez e se aproxima velozmente do ponto de não retorno. O Parlamento Europeu já estuda considerar a destruição da maior floresta tropical do mundo, praticada deliberada e sistematicamente por Bolsonaro, um crime contra a humanidade.

Neste 7 de Setembro, chegamos ao ponto no Brasil em que afirmar que o presidente é “apenas” incompetente significa ajudá-lo a se safar de ser responsabilizado por crimes contra a humanidade. Incompetência é terrível e traz graves consequências, mas não é crime. Os fatos mostram que Bolsonaro foi deliberadamente incompetente, intencionalmente negligente, sistematicamente irresponsável. Bolsonaro e seu Governo planejaram e agiram, como mostra o Diário Oficial da União, suas manifestações nas redes e os vídeos com suas declarações públicas.

A data mais simbólica do Brasil não pode passar como se fosse normal ter um genocida no poder. Se deixarmos o genocídio se normalizar, não haverá vida neste país nem mesmo para aqueles que, por sua posição na cadeia alimentar da desigualdade brasileira, acreditam sempre estar a salvo. Neste 7 de Setembro, há movimentos de resistência dos Brasis insurgentes se levantando contra a máquina de morte do bolsonarismo. Há gente com coragem de nomear o que está acontecendo no Brasil. Não sei se seremos muitos ou poucos. Provavelmente poucos, mas, como os mortos da covid-19, inumeráveis. Há momentos em que tudo o que podemos fazer é lutar, mesmo sabendo que vamos perder porque a maioria vai estar tocando a vida ― e seguirá tocando a vida enquanto considerar que é só a vida do outro que está em risco. Talvez a pergunta mais importante deste 7 de Setembro seja: como pode barrar seu próprio genocídio um povo que se acostumou a morrer?

Resistindo. Declarando sua independência, porque morte já há demais. No momento, quase 125 mil corpos. Rebelando-se. Não porque agora seja possível ganhar. Mas para não ser obrigado a baixar os olhos quando as crianças perguntarem no futuro próximo de que lado você estava e o que você fez para impedir Bolsonaro de seguir matando.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Eliane Brum: O “gado humano” que Bolsonaro leva ao matadouro

No país em que a maioria da população é reduzida à sobrevivência, quem são os burros e os mal-informados?

O Brasil superou as 100.000 mortes por covid-19 e, na velocidade atual em torno de 1.000 mortos por dia, poderá chegar aos 200.000 ainda em outubro. E então a Folha de S.Paulo estampa na manchete de 15 de agosto a conclusão da pesquisa do Datafolha: “para 47% dos brasileiros, Bolsonaro não tem culpa pelas 100 mil mortes por covid-19”. Nenhuma culpa. O Brasil tem 21 novos casos/dia por 100.000 habitantes, quando a média global é 3. Mesmo vilões como os Estados Unidos de Donald Trump têm 17 novos casos/dia por 100.000 e a Índia de Narendra Modi, 5. Mesmo com as evidências de negligência intencional e deliberada na relação com a pandemia, que já motivou três petições de crimes contra a humanidade no Tribunal Penal Internacional, a mesma pesquisa já tinha mostrado que Bolsonaro alcançou sua melhor aprovação desde o início do mandato: 37% de ótimo ou bom. A melhora é puxada especialmente pelos mais pobres e pelo Nordeste do Brasil, região onde ele teve menos votos em 2018. A rejeição caiu enquanto o número de mortos explodiu. Por que quase metade dos brasileiros se comportaria como “gado humano, como tem sido chamada, e aceitaria Bolsonaro conduzi-la alegremente para o matadouro?

A conclusão mais fácil, amplamente difundida nas redes sociais, é a de que as pessoas são burras. E também mal-informadas. O auxílio emergencial de 600 reais por mês para os mais pobres devido à pandemia teria feito com que Bolsonaro fosse visto momentaneamente como o capitão dos pobres. A desinformação seria por conta de que o Governo federal foi obrigado pelo Congresso a pagar 600 reais. Bolsonaro não queria passar dos 200. O campo da esquerda, que quase dois anos depois da eleição ainda não foi capaz de fazer oposição efetiva a Bolsonaro, apavora-se porque o Governo emite sinais de que o Bolsa Família do lulismo pode virar o Renda Brasil do bolsonarismo. E, se isso acontecer, Bolsonaro tem mais chances de se reeleger em 2022.

O que é ser burro e o que é ser inteligente, porém, não é uma definição fácil, muito menos simples. Grande parte da população brasileira vive apenas o dia de hoje. Para a maioria, o mês seguinte já é longe demais. A ideia de futuro é considerada um privilégio dos mais ricos, e este é um dado muito importante, porque emancipação política só é possível com pessoas que têm acesso à ideia de futuro. Quando o futuro se torna um privilégio dos mais ricos, e não um direito assegurado a todos, a maioria é condenada ao presente. E o presente é movido por comer ou não comer, ter um lugar para dormir ou ser despejado, manter-se respirando.

A realidade é que os 600 reais do auxílio emergencial garantiram uma renda inédita a pelo menos 65 milhões de brasileiros e suas famílias. E, quando o benefício acabar, o que pode acontecer em seguida, voltarão a ter que se virar com muito menos, num país com um número ainda maior de desempregados e com a recessão se ampliando. Segundo artigo de Mauro Paulino e Alessandro Janoni, diretor-geral e diretor de Pesquisas do Datafolha, “dos cinco pontos de crescimento da taxa de avaliação positiva [de Bolsonaro], pelo menos três vêm dos trabalhadores informais ou desempregados que têm renda familiar de até três salários mínimos, grupo alvo do auxílio emergencial pago pelo governo”.

Vale a pena ressaltar que o que se chama de classe média no Brasil, assim como aqueles que se entendem como classe média, nada têm de média. Em São Paulo, por exemplo, segundo a calculadora preparada pelo Nexo, se você ganha 12.000 reais por mês já faz parte do seletíssimo clube do 1% mais rico do Brasil. A tabela tem suas limitações, mas cada um pode calcular sua renda em comparação com o restante da população e ter uma ideia muito aproximada da situação.

O Brasil tem a segunda pior concentração de renda do mundo, conforme o Relatório de Desenvolvimento da ONU: o 1% mais rico concentra 28,3% da renda total do país. Só perde por muito pouco para o Catar, onde a concentração de renda chega a 29%. Este é o tamanho do abismo da desigualdade brasileira. Vale a pena lembrar ainda que os bilionários não são 1%, como se costuma dizer no senso comum —e sim 0,00003% da população global. Mais especificamente 2.153 pessoas como eu e você, que concentram 60% mais riqueza material que quase 7,8 bilhões de pessoas da mesma espécie.

O mundo tem uma pessoa bilionária para cada 3,7 milhões de outras. No Brasil, segundo o último ranking da Forbes, há 45 pessoas bilionárias. Quarenta e cinco. Enquanto isso, a metade mais pobre da população brasileira, cerca de 104 milhões de pessoas, vivia em 2018 com 413 reais de renda mensal. Não há futuro para a maioria com essa desigualdade monstruosa. Só um presente vergonhosamente precário. E o presente vergonhosamente precário é, neste momento, ainda absurdamente precário, mas menos precário com o auxílio emergencial de 600 reais —composto por recursos públicos, mas interpretado como uma benemerência de Bolsonaro.

A redução da miséria e da pobreza, conquistada nos anos dos Governos do PT (e, antes dele, em níveis consideravelmente menores, nos governos do PSDB de FHC), foi imensamente importante, mas suficiente apenas para reduzir a fome e garantir melhorias pontuais, como acesso a bens básicos como geladeira e fogão. Isso, é necessário assinalar, não é pouca coisa. A questão, que já era apontada na primeira década deste século, é que jamais foi suficiente para criar cidadãos, no sentido daquilo que é definido como sujeitos de direitos. Para criar cidadãos é necessário reduzir a desigualdade, o que nunca foi feito de forma significativa no Brasil.

Para diminuir a desigualdade é preciso fazer mudanças estruturais capazes de reduzir os privilégios da minoria mais rica e taxar pesadamente as grandes fortunas. Só assim se garante uma redistribuição mais igualitária da riqueza existente. O Governo mais próximo de um ideário social de esquerda no Brasil, o de Lula, era um governo de conciliação. Lula e principalmente Dilma Rousseff sacrificaram a Amazônia e o Cerrado, assim como bandeiras históricas como a da reforma agrária, para garantir a massiva exportação de matérias-primas durante um momento de crescimento da economia global, especialmente da China. Era a fórmula —limitada, como se viu— para os pobres ficarem menos pobres e, ao mesmo tempo, os ricos mais ricos.

Há muitas definições de cidadania. Eu gosto daquela que define o cidadão como aquele que pode ter a certeza do básico —alimentação, transporte, saúde e educação— e então pode ser capaz de imaginar e criar futuros onde quer viver porque o seu tempo não é devorado pela estrita manutenção do corpo, mas para desenvolver seu potencial para a ampliação do bem comum. Se o mundo é hoje extremamente desigual, o Brasil, com seu tamanho continental e 210 milhões de habitantes, é o exemplo mais eloquente da violência representada pelo sequestro do futuro da maioria da população, reduzida ao esgotamento cotidiano dos corpos para manter-se respirando.

Diante das condições de vida absolutamente precárias da maioria dos brasileiros e do súbito aumento da renda com o auxílio emergencial, o surpreendente não é que a aprovação de Bolsonaro suba durante a pandemia. O surpreendente é que isso seja uma surpresa. Se a reação previsível e lógica dos mais pobres é uma surpresa para parte da população, especialmente no campo da esquerda, quem então são os burros e os mal-informados sobre o que se passa no país?

O boicote intencional de Bolsonaro ao enfrentamento da covid-19 pode ser comprovado por atos documentados no Diário Oficial da União, além de uma comunicação feita deliberadamente para desinformar a população. As pesquisas também provam que são os mais pobres, e a maioria dos mais pobres no Brasil é negra, que morrem mais de covid-19. No Campo Limpo, um dos bairros com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais baixos de São Paulo, a letalidade da covid-19 por 100.000 habitantes é altíssima —52%. Já nos bairros mais ricos, com IDH mais alto, como Pinheiros, a taxa é de 5%. Na maior cidade do Brasil, há 10 vezes mais letalidade por covid-19 nos bairros mais pobres quando comparados aos mais ricos.

Como então é possível que a melhoria nos índices de aprovação do antipresidente seja justamente puxada pelos mais pobres? A resposta também pode ser buscada na precarização da vida. O que chamamos de povo brasileiro é composto, em sua maioria, por pessoas que só vivem porque teimam. A história do Brasil é uma trajetória de espoliação de matérias-primas extraídas da natureza e, no caso da maioria da população, de corpos escravizados e depois brutalmente explorados. O que se transmite de pai e mãe para filhos e filhas é que a sobrevivência não é garantida, ela é arrancada. A morte é normalizada.

A história das famílias mais pobres é uma história em que os filhos mortos são contados junto com os vivos. As mulheres sabem que parte da sua prole pode morrer pelas condições precárias da vida, pela falta de acesso à saúde, à água, a saneamento básico e também a alimentos. Também sabem que morrer por violência é uma probabilidade, especialmente se seu filho for negro, seja pelas balas da polícia, da milícia ou por assalto. Há periferias do Brasil em que você pode bater aleatoriamente em uma fileira de portas e todos terão uma morte ou mais para contar, por violência e/ou por falta de condições de saúde.

A tragédia crônica do Brasil é ter um povo para quem a morte por doenças evitáveis e por violência é normalizada porque foram colocados na condição de matáveis e de morríveis desde a formação do país. Não é um povo, é uma massa de desesperados extremamente criativos que vem resistindo há séculos contra todas as formas de extermínio.

O que quero explicitar é que os brasileiros mais pobres vivem sujeitados a aceitar a perda dos que amam. Esta é uma das faces mais horrendas da desigualdade, mas o horror desta face nunca a impediu de ser aceita como normal, em especial pelos mais ricos, inclusive os que se consideram classe média. Neste sentido, a covid-19 é mais uma forma de morte. Se as outras mortes não são evitadas, por que esperar que um governante evitasse esta?

Para suportar o horror de estar na condição dos que podem morrer por aquilo que não mata os brancos e os mais ricos —ou pelo menos que mata muito menos os brancos e os mais ricos—, uma parcela significativa dos brasileiros atribui seu destino à vontade divina. Pelo menos, neste caso, podem rezar, pagar o dízimo para o pastor, tentar reverter o destino ou, pelo menos, encontrar um sentido para suas tantas perdas numa vontade superior. Numa realidade que parece imutável, o que não se pode entender, como a vontade de um deus, pode ser mais suportável do que a explicação de que a sua vida pouco importa para quem tem seu destino terreno nas mãos.

Assim, a covid-19, tanto quanto as outras doenças, também é considerada culpa de ninguém. Nem mesmo de Bolsonaro, apesar dos seus vômitos públicos de irresponsabilidade. O “E daí?” de Bolsonaro é apenas um degrau a mais, por ter sido dito em voz alta, para o grande “e daí?” histórico, permanente e persistente vivido pelos mais pobres ao longo de gerações e de Governos. Para alguns fiéis de determinadas igrejas neopentecostais, pragas do gênero já estão inclusive previstas na Bíblia. As doenças são em geral uma alegoria com muita ressonância numa população cada vez mais evangélica. A pergunta do Datafolha pode nem fazer muito sentido para uma parcela da população: como assim um presidente vai ter culpa por uma doença? Doença acontece, é fatalidade, quando não enviada por Deus para castigar a imoralidade reinante.

Isso é ignorância? Pode ser. Mas é principalmente sobrevivência, inclusive psicológica. Se você aceitou que a perda e a morte fazem parte do seu lugar no mundo, como fizeram parte antes do destino de seus pais e avós, o que importa é garantir a comida, o gás, o puxadinho para quem sobrar. Garantir os 600 reais. E quando os 600 reais acabarem? O amanhã é longe. Não há futuro para quem foi reduzido ao hoje. Se a maior parte da população está na condição de matável e de morrível —e isso nunca mudou, nem nos melhores anos do governo Lula—, qual é a surpresa no fato de que os 100.000 mortos não impactem negativamente na aprovação de Bolsonaro e que os 600 reais impactem positivamente? De novo, quem são os burros e os mal-informados?

Neste momento, há um debate sobre as variáveis. Bolsonaro cada vez mais se descola da agenda neoliberal de Paulo Guedes, com a qual de fato nunca se importou, era apenas seu passaporte para ter o apoio dos representantes do que chamam de “mercado” na eleição. Rifou meses antes Sergio Moro e a classe média que ele representava, isso quando o próprio Moro já tinha rifado antes sua reputação e levado para o esgoto um pedaço da Operação Lava Jato. A Bolsonaro interessa o poder e a proteção da sua família. E se o poder é o único princípio, nenhum problema em se unir ao Centrão no momento em que se vê acuado pela aproximação cada vez maior das investigações envolvendo Fabrício Queiroz, as rachadinhas no gabinete do filho zeroum e o envolvimento com as milícias do Rio. Há chances consideráveis de que em algum momento próximo Bolsonaro possa mesmo rifar Guedes e se tornar o novo pai dos pobres, fazendo a migração do auxílio emergencial para o Renda Brasil, mirando seus dedos de arminha na reeleição de 2022.

E a oposição? Bem, é preciso entender que quem fez a oposição mais efetiva à extrema direita de Bolsonaro foi a direita. O presidente do Câmara, Rodrigo Maia (DEM), assim como governadores até ontem aliados, como João Doria (PSDB), em São Paulo, e Wilson Witzel (PSC), no Rio de Janeiro. Hoje, com Bolsonaro fazendo os giros necessários para agradar a uma parcela dessa direita, Rodrigo Maia está confortavelmente sentado sobre a pilha de quase 60 pedidos de impeachment e chegou a dizer em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, que não vê Bolsonaro praticando crime nenhum que justifique a abertura de processo de impedimento no Congresso.

No Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, o ministro mais ligado à política partidária de direita e de centro-direita, passou meses batendo duramente no governo. Recentemente, alertou os generais de Bolsonaro sobre o risco de serem atingidos por denúncias de genocídio relacionadas à atuação deliberadamente catastrófica do Governo na covid-19. Dias atrás, porém, assinou uma decisão liminar considerando que Fabrício Queiroz, ex-PM e assessor do senador Flávio Bolsonaro, e sua mulher, Márcia Aguiar, têm o direito de cumprir prisão em casa em vez de na cadeia. Decisão bastante incomum dada a trajetória do casal, ele escondido por meses e ela foragida. Por coincidência —ou não—, a decisão vem num momento em que as investigações por corrupção e envolvimento com milícias chegam mais perto de Bolsonaro, mas ele faz acenos a partidos como o MDB de Michel Temer, seu mais recente conselheiro, que chegou a ser enviado em missão oficial ao Líbano pelo novo amigo.

E a esquerda partidária? Esta não conseguiu fazer oposição efetiva até hoje. Enquanto parte da direita dá sinais de estar se acertando com a extrema direita bolsonarista, o PT não consegue se acertar com a esquerda nem para disputar a Prefeitura de São Paulo nas próximas eleições municipais. Com a ameaça de o Renda Brasil substituir o Bolsa Família na memória da população, os petistas se moveram para estimular a memória do povo. A realidade mostra, porém, que memória curta é questão de sobrevivência para grande parte da população. Num país em que uma renda de 600 reais por mês é a maior alcançada por dezenas de milhões de pessoas numa vida inteira, o que se pode esperar? Vivem como se não houvesse amanhã porque há mesmo grandes chances de não haver.

Se a direita se acertar com a extrema direita, ainda que momentaneamente, o Brasil vai viver uma situação inédita: no pior Governo da história da República, com quatro petições por crimes contra a humanidade perpetrados por Bolsonaro no TPI e mais de 110.000 mortos de covid-19 não haverá nenhuma oposição partidária. Sim, porque a esquerda está ocupada brigando entre si e fazendo oposição a si mesma.

Quando uma parte significativa da população aprova Bolsonaro e diz que ele não tem culpa nenhuma pela covid-19, essa parcela está fazendo a única política que conhece. Graças a essa adesão, Bolsonaro vislumbrou um caminho para ser reeleito e, pela primeira vez, cogita garantir sua popularidade distribuindo renda para os mais pobres. Justo ele, que foi o único presidente da redemocratização que não citou a redução da pobreza num discurso de posse, está revendo sua posição. Quem conseguiu esse feito? Não foi a oposição nem foi a esquerda. De novo e pela última vez: quem são os burros e os mal-informados?

É claro que se trata de Bolsonaro. Se ele vislumbrar outro caminho para garantir a reeleição, salvar sua família —e a si mesmo— das investigações ou para consumar o golpe de forma mais clássica, o Renda Brasil pode desaparecer do horizonte das possibilidades em um segundo. Da mesma forma, se ele mudar de conveniência, os novos amigos podem virar inimigos de novo em menos de 24 horas. No momento, porém, sem combinar entre si, mas combinados pela experiência dos séculos, os que só têm o dia de hoje para viver elogiam o coronel da ocasião, neste caso um capitão reformado que gosta de armas e de bombas, e o absolvem de todos os pecados. Esse cenário de adesão também pode mudar da noite para o dia, caso não exista algum tipo de continuidade do auxílio emergencial.

O mais surpreendente na pesquisa do Datafolha é justamente o outro lado: que, neste Brasil precarizado e povoado por desesperados, 52% da população ache que Bolsonaro tem alguma culpa pelos 100.000 mortos —a maioria— ou toda a culpa —uma minoria. Sinal de que as forças emergentes dos Brasis que seguem avançando pelas fissuras e pelas bordas têm se movido —e muito— por um país em que futuro não seja coisa de rico. Sinal também de que há muitos entre os mais pobres que, contra todas as estatísticas, se recusam a seguir reduzidos à exaustão dos corpos e vêm lutando ferozmente pelo exercício da solidariedade, pela responsabilidade coletiva e pelo direito ao futuro. E esta é uma notícia incrível, que aponta para a resistência.

Ainda um acréscimo: para quem chama os bolsonaristas e também os brasileiros pobres, que neste momento aprovam Bolsonaro, de “gado humano”, um aviso. A boiada, quando é brutalmente empurrada para o matadouro, sofre horrores, esperneia, os olhos parecem saltar das órbitas, se mija de pavor. Tenta desesperadamente escapar.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de ‘Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro’ (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Eliane Brum: A marcha dos mortos

Mais de 100.000 vítimas do Governo Bolsonaro e somos covardes ao ponto de normalizar um crime contra a humanidade que é feito em nosso nome

Queria começar dizendo do meu horror por estar escrevendo esse texto sobre os 100.000 mortos enquanto algumas centenas deles estão vivos e lutando pela vida. Todos nós já sabemos que chegaremos aos 100.000 mortos. E este é o horror. E ultrapassaremos os 100.000 mortos, e este é o horror. E não sabemos em quantos milhares de mortos chegaremos, porque não há nenhum controle no Brasil sobre a disseminação da covid-19. Eu ainda sentiria horror se estivesse lidando apenas com a fatalidade de um vírus. Mas tenho convicção de que não é disso que se trata. Uma convicção baseada em fatos, como deve ter uma jornalista que emite sua opinião. Uma convicção fundada em acompanhamento do Diário Oficial da União e da comunicação do Governo. Meu horror é infinitamente maior justamente porque testemunhamos um genocídio praticado por Jair Bolsonaro e todos os funcionários ― fardados ou não, peito estrelado ou não ― que têm poder de decisão. Meu horror é por escrever sabendo que chegaremos aos 100.000 mortos e perceber que não encontramos força para barrar o genocídio e ainda não encontramos gente suficiente ― no Brasil e no mundo ― para se somar à luta para barrar um crime contra a humanidade.

Eu peço perdão aos mortos por nossa fraqueza como povo. Eu peço perdão em nome dos juristas e dos intelectuais que preferem não, porque, afinal, Bolsonaro seria só incompetente ― e não um matador deliberado e sistemático. Alguns ainda fazem bochecho com a palavra “banalização”, denunciando que se estaria vulgarizando o termo, sem perceber que são eles que banalizam mais de 1.000 mortes por dia. Eu peço perdão em nome da parcela dos jornalistas que prefere ser “imparcial” diante de um massacre, como se a suposta imparcialidade fosse justificativa para sua omissão como ser humano. Eu peço perdão em nome daqueles que aprovam Bolsonaro porque recebem 600 reais por mês do Governo, porque conheço muitas pessoas em situação de pobreza que exigem seus direitos de serem assistidas pelo Estado numa situação de emergência, mas não compactuam com a morte do outro. Eu peço perdão em nome daqueles que acreditam ser suficiente colocar seu nome em abaixo-assinado enquanto os mortos se enfileiram. Eu peço perdão por essa porção das elites intelectuais voluntariamente pueril em política e destituída de coragem pessoal para assumir seu papel histórico de barrar o extermínio. Eu peço perdão por por essa parcela pusilânime da população que, com as mais variadas desculpas, delega ao outro a tarefa de enfrentar o mais difícil. Eu peço perdão em meu próprio nome por não ser capaz de fazer o mínimo suficiente.

Todos os dias eu acordo e durmo pensando qual é o papel de uma jornalista, de uma cidadã, de uma pessoa humana quando testemunha um genocídio e me horrorizo porque já não sei o que fazer, porque há pelo menos quatro petições no Tribunal Penal Internacional mas, diante da magnitude da destruição, ainda é pequeno o movimento de mobilização em torno das denúncias. Ainda são muito poucos usando seu espaço para dar nome ao horror. E então, mais uma vez, eu peço perdão para o que não tem perdão.

Eu peço perdão a você, grande Aritana, cacique do Xingu, por sua voz de tantas línguas ter sido silenciada porque Bolsonaro deixou a floresta aberta aos agentes do vírus, muitos deles atendendo pelo nome de grileiros e garimpeiros ― e fez isso com o apoio dos generais de sua corte, herdeiros de uma ditadura que matou mais de 8 mil indígenas ― impunemente. Eu peço perdão porque tantos brancos acham que negar medidas emergenciais e até mesmo água potável aos indígenas na pandemia, como o Governo fez, é “incompetência” ou “fracasso da política de enfrentamento à covid-19”. Eu peço perdão a você, seu Bié, Manoel da Cruz Coelho da Silva, quilombola de Frechal, no Maranhão, porque gente demais acha que morrer mais pretos que brancos é “normal”. Eu peço perdão a você, Tia Uia, Clarivaldina Oliveira da Costa, quilombola da Rasa, no Rio de Janeiro, porque depois de tantos séculos de luta para existir num país fundado sobre os corpos dos escravos, você morreu por racismo. Eu peço perdão a você, Carlilo Floriano Rodrigues, que criou sete filhos com tanto carinho, e caminhou com coragem mesmo sem uma perna. Eu peço perdão a você, Alayde Antônia Rossignolli Abate, que não se desgrudava de seu cachorro de nome Paçoca. Eu peço perdão a você, Roosevelt Guimarães Soares, que enquanto viveu acordava as três horas da madrugada para vender melancia na feira. Eu peço perdão a você, Delcides Maria Oliveira, que na infância enganou a fome com colheradas de café mas não conseguiu vencer a indiferença do Governo diante dos mortos pela covid-19. Eu peço perdão a você, adolescente Yanomami morto aos 15 anos e enterrado em terra estranha como se coisa fosse.

Eu peço perdão a todos os 100.000, cada um com seu nome, sua história, seus desejos, suas fraquezas, seus sonhos e seus amores. Seus gestos que o crime imobilizou. Peço perdão aos Inumeráveis que foram convertidos em estatística e aos Vagalumes que tiveram sua luz apagada pela indiferença de Bolsonaro diante de suas vidas. “E daí?”, disse o genocida, quando eram 5 mil mortos pela “gripezinha”.

Eu peço perdão pela vida interrompida pela fome de morte daquele que disse, na última quinta-feira, diante da proximidade dos 100.000 brasileiros mortos: “Vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”. Eu peço perdão porque Bolsonaro só pode ser presidente porque há milhões iguais a ele, com a mesma indiferença pela vida do outro, andando sem máscara para que você morra sem ar.

Eu peço perdão por aqueles que foram enterrados em covas sem nome. Eu peço perdão por aqueles que foram enterrados em caixas de papel porque faltou caixão. Eu peço perdão por aqueles que sofreram a indignidade de começarem a se decompor em casa porque não havia serviço público para buscar seus corpos, submetendo suas pessoas queridas à tortura de sentir aversão pelo cheiro de quem amavam. Eu peço perdão a você, bebê Yanomami, que foi sepultado longe da sua terra e do seu mundo, sem o lamento de seus pais, sem as homenagens de seu povo, e portanto, não terá paz nem deixará os vivos em paz.

Eu peço perdão a todos aqueles que não foram chorados na sepultura, aos enterrados por um coveiro que os desconhecia, submetendo seus vivos ao flagelo de não se despedir e portanto não fazer luto. Eu peço perdão aos coveiros submetidos à brutalidade do Estado. Eu peço perdão aos profissionais da saúde que arriscam sua vida dia após dia e são agredidos nas ruas por incitação do presidente da República. Eu peço perdão ao bebê Xavante que, ao morrer, contaminou parte do seu povo que não recebeu nenhuma orientação para se proteger de mais um vírus. Eu peço perdão aos indígenas que, por viverem na cidade, tiveram suas identidades arrancadas pelo mesmo Estado que os expulsou de suas terras. Como suas mortes não são computadas como aquilo que são ― indígenas ― são mortos uma segunda vez. Eu peço perdão por permitirmos que gente seja tratada como coisa e por nos coisificar ao normalizar o extermínio.

Eu peço perdão não porque tenho “culpa cristã”, como já fui “acusada” em outros momentos. Eu peço perdão porque tenho “responsabilidade coletiva”, porque sou responsável pelo que fizeram e pelo que fazem no meu e no seu nome. Bolsonaro está perpetrando um genocídio em nosso nome quando substitui profissionais da saúde experientes em epidemias por militares inexperientes em saúde, está perpetrando um genocídio em nosso nome quando distribui cloroquina e hidroxicloroquina até mesmo para povos indígenas, medicamentos cuja ineficácia para combater a covid-19 já foi cientificamente comprovada, assim como seus riscos. Está perpetrando um genocídio em nosso nome quando retém os recursos destinados ao enfrentamento da pandemia enquanto faltam até mesmo sedativos nos hospitais para aplacar a dor das vítimas. Está perpetrando um genocídio em nosso nome quando veta medidas de segurança e estimula que as pessoas vão às ruas sem máscaras. É possível seguir empilhando atos de Bolsonaro que comprovam sua intenção de matar. E também de deixar morrer, o que é uma outra forma de matar, já que um governante tem a responsabilidade constitucional de proteger a população do país que governa.

Eu peço perdão. E digo também que, ainda que sejamos poucos, resistiremos. Os povos que estão sendo massacrados, como os indígenas, estão produzindo suas próprias estatísticas e seus memoriais. É a maneira de reconhecer a vida dos que morreram e lhes dar a dignidade da verdade na morte. Diante de crimes contra a humanidade, os obituários ganharam o significado da resistência. Contar a história e as histórias tornou-se insurgência – para que os mortos possam viver como memória e seus assassinos não escapem da justiça. Resistimos contando os mortos em mais de um sentido ― como estatística confiável, como identidade reconhecida, como história contada. Nos insurgimos fazendo viviários dos que foram mortos, porque diante das ações e das omissões de Bolsonaro e de seu Governo, morrer de covid-19 não é morte morrida, é morte matada.

Nós, os que Bolsonaro e seu Governo ainda não conseguiram matar, lembraremos e faremos lembrar. E, quando morrermos, nossos filhos lembrarão. E quando nossos filhos morrerem, nossos netos lembrarão.

Caro Jair Bolsonaro, caros generais, caros civis envolvidos nos crimes contra a humanidade relacionados à covid-19: eu espero que vocês sejam assombrados pelos 100.000 mortos. Eu espero que um dia alguém faça um filme da marcha dos mortos à Brasília, marcando a volta do realismo fantástico em nosso continente, já que a realidade que vocês impuseram nos roubou até mesmo a possibilidade da fantasia. Então, liderados pelo grande Aritana, que carregará em seus braços os corpos mortos dos bebês Yanomami insepultos, 100.000 dedos apontarão para seus rostos. Vocês poderão, talvez, escapar dos tribunais. Não escaparão da memória.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Eliane Brum: 'Há indícios para que autoridades brasileiras sejam investigadas por genocídio'

A jurista Deisy Ventura, especialista na relação entre pandemias e direito internacional, afirma que há todos os elementos necessários à tipificação de crimes contra a humanidade na resposta do Governo brasileiro à covid-19: intenção, plano e ataque sistemático

Desde que Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), relacionou a palavra “genocídio” à atuação do Governo de Jair Bolsonaro diante da covid-19, o debate entrou na pauta pelo andar de cima. Não só no Brasil, mas no mundo. As denúncias de genocídio, tanto dos povos indígenas quanto da população negra, pelo atual Governo, não são novas. Em geral, são tratadas como evocações subalternas, da mesma forma subalterna que essas populações são tratadas historicamente pelas elites brasileiras. Ao desembarcar da boca togada de um ministro do STF, a palavra ganhou outra densidade. E, principalmente, se instalou. Já não é mais uma palavra fantasma, que ao ser dita nada move. Genocídio, pela boca de Gilmar Mendes, deixou de ser uma carta deliberadamente extraviada e chegou ao seu destino.

Em 11 de julho, o ministro afirmou em um debate online: “Não podemos mais tolerar essa situação que se passa no Ministério da Saúde. Não é aceitável que se tenha esse vazio. Pode até se dizer: a estratégia é tirar o protagonismo do Governo federal, é atribuir a responsabilidade a Estados e municípios. Se for essa a intenção é preciso se fazer alguma coisa. Isso é péssimo para a imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a isso”.

Generais como o vice-presidente Hamilton Mourão e o ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva, que não só pertencem e representam o Governo Bolsonaro, mas também o sustentam e o legitimam, se alvoroçaram porque sentiram o risco real de, em algum momento do futuro próximo, responderem por crimes contra a humanidade. Mesmo entre os que não apoiam Bolsonaro, termos como “hipérbole”, “exagero” e “banalização” foram usados para reduzir a potência da declaração do ministro. A palavra, porém, finalmente encarnada, permanece ativa.

Exatamente porque o genocídio, assim como os demais crimes contra a humanidade, são da maior gravidade é que se torna preciso debater o tema com a máxima seriedade, impedindo que ele seja capturado pela polarização ou pelas conveniências políticas de ocasião. Exatamente porque se trata da morte de pessoas que, num país que já ultrapassa as 80.000 vítimas por covid-19, mesmo com a reconhecida subnotificação, é urgente debater com responsabilidade: há ou não evidências de que o presidente da República e outras autoridades brasileiras possam ter cometido genocídio na resposta à covid-19?

Para responder a essa pergunta crucial, entrevistei a jurista Deisy Ventura, coordenadora do doutorado em saúde global e sustentabilidade da Universidade de São Paulo (USP). Autora do livro Direito e saúde global – o caso da pandemia de gripe A - H1N1 (Editora Outras Expressões), Ventura é uma das mais respeitadas autoridades no estudo da relação entre pandemias e direito internacional. É também mestre em direito europeu, doutora em direito internacional pela Universidade Paris 1 e foi professora convidada do Instituto de Estudos Políticos de Paris, o prestigiado Sciences-Po.

Desde que iniciou a pandemia, é uma das articuladores do Projeto Direitos na Pandemia, realizado pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direitos Sanitários da USP e a organização Conectas Direitos Humanos. Todos os atos e a legislação brasileiras sobre a covid-19 são coletados e classificados em seu impacto sobre os direitos humanos. Isso impõe à jurista um acompanhamento cotidiano e permanente do Diário Oficial da União, onde muito se passa sem que a maioria dos brasileiros perceba.

Já não estamos no século 20, quando o conceito de genocídio foi criado a partir da necessidade de nomear o crime perpetrado pelo nazismo contra os judeus. O século 21 não é apenas uma convenção temporal, ele trouxe desafios novos, como o enfrentamento das pandemias e da emergência climática. Apenas há alguns anos, Ventura, então professora de direito internacional no Instituto de Relações Internacionais da USP, precisava constantemente explicar por que havia escolhido estudar uma pandemia no contexto do direito internacional. Hoje, já não é mais preciso explicar. O entendimento é imediato.

Nesta entrevista, feita por telefone ao longo de duas horas na última segunda-feira (20/7), Deisy Ventura explica por que há elementos suficientes para investigar o presidente Jair Bolsonaro, assim como outras autoridades do Governo, por crimes contra a humanidade, tanto no Tribunal Penal Internacional como na Justiça brasileira. Ela explica também por que é essencial para o futuro do Brasil que esse debate aconteça.

A jurista Deisy Ventura é uma das mais renomadas especialistas no estudo de pandemias e direito internacional
A jurista Deisy Ventura é uma das mais renomadas especialistas no estudo de pandemias e direito internacionalDIVULGAÇÃO/ARQUIVO PESSOAL

Pergunta. A declaração do ministro do STF Gilmar Mendes, alertando que os militares poderiam estar se associando a um genocídio, referindo-se à forma como a pandemia de covid-19 estava sendo tratada pelo Governo brasileiro, produziu várias reações. Alguns juristas e intelectuais foram rápidos em classificar a declaração como uma “banalização” do conceito de genocídio. Houve banalização?

Resposta. Existe uma banalização da palavra genocídio, mas não é o caso agora. O ministro Gilmar Mendes disse que o Exército estava se associando a um genocídio, referindo-se à resposta brasileira à pandemia. Naquele momento, o número de mortes já estava em 70.000 pessoas. É muito importante que um membro do Supremo Tribunal Federal, que é conhecido como alguém politicamente conservador, utilize essa palavra, porque ele certamente não usou essa palavra por acaso. É alguém que conhece o conceito de genocídio, conhece o direito e não é novato nem no mundo jurídico nem no mundo político. É importante não só por ser ministro, mas também pela percepção internacional dessa fala. A diplomacia brasileira teria recebido desde o ano passado uma orientação clara para frear o uso deste termo. Existe um alerta para não deixar que se difunda no Exterior a ideia de que está ocorrendo um genocídio no Brasil. Assim, cada vez que a palavra é pronunciada em relação ao Brasil, a diplomacia reage. Infelizmente, em geral desqualificando quem fez a declaração e caracterizando-a como banalização. Até então o genocídio era associado à população indígena e não relacionado à pandemia. Agora, com a fala do ministro, chegamos a outro patamar e precisamos discutir com muita serenidade essa questão. Não podemos falar sobre genocídio de uma forma polarizada e vulgar. É chegado o momento de falar do genocídio fora da clivagem da banalização. Não é apenas um grito dos mais fracos para chamar a atenção. Estamos agora diante de indícios muito significativos de que existe um genocídio em curso no Brasil.

P. E quais são esses indícios?

R. Primeiro, preciso dizer que, no que se refere à população em geral, acredito que há o crime de extermínio, artigo sétimo, letra b, do Estatuto de Roma. É também um crime contra a humanidade. E, no caso específico dos povos indígenas, minha opinião é de que pode ser tipificado como genocídio, o mais grave entre os crimes contra a humanidade. O crime de extermínio é a sujeição intencional a condições de vida que podem causar a destruição de uma parte da população. O que chama a atenção, neste caso, é que o exemplo usado no texto do Estatuto de Roma é justamente o da privação ao acesso a alimentos e ao acesso a medicamentos. Desde o início da pandemia, o Governo federal assumiu o comportamento que tem até hoje: de um lado o negacionismo em relação à doença e, de outro, uma ação objetiva contra os governos locais que tentam dar uma resposta efetiva à doença, contra aqueles que tentam controlar a propagação e o avanço da covid-19. E desde o início tenho dito que se trata de uma política de extermínio. Por quê? Porque os estudos têm nos mostrado que as populações mais atingidas são as populações negras, são as populações mais pobres, são os mais vulneráveis, entre eles também os idosos e os que têm comorbidades. E, infelizmente, o que prevíamos aconteceu. Apesar da subnotificação, que é consensual, já que todos estão de acordo que há mais casos no Brasil do que são reconhecidos, ainda assim há um volume impressionante e existe um perfil claríssimo das pessoas que são mais atingidos pela doença. Tanto no genocídio da população indígena quanto no que, na minha opinião, é uma política de extermínio com relação à resposta geral da pandemia, eu vejo claramente uma intencionalidade.

P. A intencionalidade é fundamental para tipificar a autoria tanto do genocídio quanto do extermínio. Mas há juristas experientes defendendo que seria difícil provar a intencionalidade no caso da resposta do Governo brasileiro à pandemia...

R. Existem pessoas por quem tenho o maior respeito e que conhecem o sistema penal internacional e que pensam que não é o caso de um crime de genocídio ou outro crime contra a humanidade porque se trataria de uma política fracassada do Estado brasileiro. Nesta interpretação, o que estaria acontecendo no Brasil é que o Governo fracassou na resposta à pandemia. Seria apenas uma resposta ineficiente. E os tribunais internacionais não julgam políticas, julgam pessoas que cometem crimes. Assim, só poderíamos reclamar junto ao sistema interamericano de direitos humanos ou outras instâncias de controle do respeito aos tratados de direitos humanos. Eu não penso assim. Vejo uma intenção clara.

P. Como essa intenção se expressa, em sua opinião?

R. Faz parte da definição dos crimes contra a humanidade a existência de um ataque generalizado ou sistemático contra a população civil. Estes dois elementos são muito importantes. Algumas pessoas dizem também que o Tribunal Penal Internacional seria para conflitos armados. Isso também não é verdade. O estatuto é claríssimo. Não é preciso haver uma guerra ou conflito armado para que se pratique um crime contra a humanidade. E, mais do que isso, até a tentativa de genocídio é punível pelo estatuto. Sequer é necessário que ele tenha sido consumado. Da mesma forma, se pune também a incitação ao genocídio. A incitação é punida, a tentativa é punida. Precisamos analisar com muita serenidade o que tem acontecido no Brasil. Afirmo que nem de longe se trata de uma política fracassada de resposta à covid-19. Nem de longe. O Governo age de uma maneira claríssima em combate à saúde pública. Ele não só dissemina falsas informações sobre a doença e, portanto, age no plano da comunicação para disseminar o negacionismo, como ele também construiu um conjunto de ações, inclusive por via legislativa, para obstaculizar as medidas de combate e prevenção à covid-19 de iniciativa de outros poderes. Vejo aqui todos os elementos configurados: ataques sistemáticos e a intenção de sujeitar uma parte importante da população brasileira a condições de vida que podem implicar a sua destruição.

R. Por que, então, juristas respeitáveis estão sendo, digamos, tão cautelosos?

P. É evidente que o Tribunal Penal Internacional nunca foi confrontado a uma situação como a que estamos vivendo no Brasil. Então é natural que alguns juristas, por maior que seja a sua experiência e o seu valor, digam que nunca cuidaram de uma questão como esta. Nunca vivemos uma pandemia com esse alcance na contemporaneidade, com a existência de um sistema de saúde pública universal, na qual temos os meios para uma resposta eficiente, e o Governo federal optou por não oferecer essa resposta. Muitas pessoas são grandes estudiosas do direito penal internacional, mas talvez não tenham estudado de forma mais detida o que o Governo brasileiro tem feito com relação à covid-19. Uma coisa é acompanhar as falsas polêmicas, e também as verdadeiras, nesta forma de fazer política do Brasil atual, onde o falso se mistura com o verdadeiro. O presidente da República é um agitador de extrema direita e o movimento que o levou ao poder busca de forma ostensiva aparelhar o Estado brasileiro. Órgãos do Estado, como a própria Secretaria de Comunicação, segundo o Poder Judiciário, tentaram veicular campanhas que insuflam a população contra as autoridades. O presidente da República chegou a sugerir a invasão de hospitais para que seus seguidores os fotografassem, para assim “comprovar” a tese complotista de que a covid-19 não seria tão grave nem teria se propagado nessa dimensão. Nós temos configurada aqui muito mais do que uma omissão. Nós temos uma ação intencional clara e também um caráter sistemático. Mas uma coisa é acompanhar as declarações do Governo por lives e pela imprensa, acompanhar essas ofensas, assim como o descaso com a dor das famílias que perderam pessoas queridas por covid-19. Além desse circo de mentiras e distorções, precisamos também ir lá olhar o Diário Oficial, para entender o que acontece atrás da cortina de fumaça. Quando a gente vai lá ver, vai somando evidências claríssimas dessa intencionalidade. Não são apenas as falas do presidente, mas uma sucessão de atos que demonstram uma intenção clara e uma ataque sistemático às tentativas de controle da propagação da doença. Por isso, em minha opinião, existe uma política de extermínio em curso.

P. Para provar que há genocídio e outros crimes contra a humanidade é necessário também mostrar que há um plano. É possível estabelecer a existência de um plano, no caso da resposta do Governo brasileiro à covid-19?

R. Sim. E também o plano é muito claro para quem acompanha e pesquisa diariamente o que está acontecendo com a covid-19. Aquilo que o presidente da República chamou de “guerra” e de “jogar pesado” contra os governadores constitui claramente um plano para obstruir uma resposta eficiente dos Estados à pandemia, com etapas como o pedido a empresários para que deixassem de financiar campanhas eleitorais de governadores não alinhados, ameaças constantes em declarações públicas e incitação à desobediência civil, entre muitas outras medidas legislativas ou administrativas. O presidente chegou a demitir dois ministros da Saúde que não concordavam com seus planos para a pandemia.

P. Qual é a importância de um debate como este, num momento tão grave como o que o Brasil está vivendo?

R. Quando a gente atribui um crime a alguém é preciso uma investigação, é preciso um processo e é preciso um julgamento. Eu vejo todas estas etapas como extremamente importantes para que possamos entender o que acontece no Brasil em um outro patamar. Seria muito ruim se, ao final desse acontecimento terrível, a versão sobre o que aconteceu fosse a de que esse Governo foi simplesmente incompetente. E seria muito ruim porque isso não é verdade. A discussão sobre a tipificação dos crimes contra a humanidade me parece fundamental, mas ela precisa ser feita de uma forma muito tranquila, porque não se trata de agitação, nem se trata de insuflar pessoas. Se trata, sim, de uma tese muito séria, que tem condições de prosperar na esfera internacional. E não só isso. Tem condições de prosperar também na esfera interna, porque genocídio é um crime tipificado na legislação brasileira. Temos toda uma base também no direito brasileiro para discutir se o que está acontecendo aqui é um genocídio ou não ―e também temos a discussão internacional. Nada disso me parece uma questão sobre políticas públicas, mas sim uma questão sobre responsabilização individual. Precisamos responsabilizar criminalmente as pessoas que estão promovendo genocídio ou outros crimes contra a humanidade, como o de extermínio.

P. O que você está dizendo é que, no que se refere à resposta do Governo brasileiro à covid-19, não se trata de incompetência, como alguns querem fazer crer. Você está afirmando que há dolo, há intenção. Além das declarações bem conhecidas do presidente Jair Bolsonaro, quais são os atos, publicados no Diário Oficial, que provam isso?

R. Mesmo naquela famosa declaração de 24 de março, em que o presidente usa a expressão “gripezinha” para se referir à covid-19, há muito mais do ponto de vista jurídico. No mesmo pronunciamento o presidente critica, por exemplo, o fechamento das escolas. Existe o que aparece mais, o mais comentado, mas também existem outros elementos que configuram que não se trata apenas de uma expressão infeliz. Imagine, numa corte internacional, um juiz que se defronta com uma fala de um presidente da República que, em plena pandemia, se pronuncia contra o fechamento das escolas...

P. E quanto aos atos, você poderia citar alguns?

R. Há muitos. Existe um enorme exemplo com relação à população em geral que é a lei 14.019, de 2 de julho, que trata do uso das máscaras. O presidente vetou a obrigação dos estabelecimentos comerciais de informar em cartazes a forma correta de usar as máscaras e vetou a obrigação dos estabelecimentos comerciais de afixar o número máximo de pessoas que deveriam estar lá dentro. Se construiu uma lei sobre o uso de máscaras para conter o avanço da pandemia, e perceba que esta lei é de 2 de julho, quando já estamos com dezenas de milhares de mortos e com a interiorização da doença. O presidente então veta essas obrigações. Entre outros vetos, veta a obrigação do uso da máscara no sistema carcerário, veta nos estabelecimentos de ensino e veta nos templos. Isso sim é banalização do veto. E são vetos contra a saúde pública. Outro exemplo é o atraso na sanção da norma que liberava recursos financeiros para os Estados. Este é um debate que chega a me causar arrepios. Muitos Estados estavam já sem recursos para comprar insumos, como respiradores e até sedativos. Os Estados então pedem essa ajuda, o Congresso aprova a ajuda e o presidente retarda ao máximo a sanção à lei que provê socorro financeiro aos Estados que estão na linha de frente da resposta. O que é isso senão obstaculizar a contenção da propagação da doença? Outra questão evidente. Quando o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), depois de pedir muitas vezes ajuda ao Governo Federal e de tentar muito conseguir insumos, especialmente respiradores, organiza uma compra, é ameaçado e a Receita Federal declara que haveria processo contra ele e todas as pessoas envolvidas. Mais. As ameaças de operações policiais contra os governadores, na tentativa de caracterizar a resposta à pandemia, a compra de insumos, como corrupção, como se gastos com hospitais de campanha e respiradores fossem necessariamente uma forma de enriquecimento ilícito. Há a substituição de quadros experientes do Ministério da Saúde, com grande conhecimento sobre a resposta a doenças infectocontagiosas, por pessoas sem nenhuma experiência. Segue. A tentativa de manipulação de dados da covid-19... Há ainda o uso de cloroquina, inclusive em comunidades indígenas. No começo a própria Organização Mundial da Saúde estava investigando a eficácia ou não. Mas, hoje, não há a menor dúvida. Além de tudo o que significa o uso da cloroquina, ainda se configura a intenção de iludir as pessoas de que existe uma forma de tratar a doença. Você quer mais exemplos? Posso continuar por algumas horas.

P. Acho que está claro.

R. É necessário entender que existem duas grandes vertentes para dizer da pertinência dos crimes contra a humanidade, inclusive o de genocídio. Uma é a vertente da comunicação e a outra é o ataque contra os Governos dos Estados. A comunicação é absolutamente criminosa, porque incita as pessoas a pensarem que a doença não é tão grave, incita a não se protegerem, e existe a obstrução constante por atos, constrangimentos e ameaças aos Governos locais que conduzem a resposta à pandemia.

P. E quanto aos povos indígenas, especificamente?

R. Com relação aos indígenas, duas questões são especialmente relevantes entre muitas. Sem hesitar, eu daria dois exemplos. O primeiro é o debate sobre o contato com os povos isolados. Uma portaria da Fundação Nacional do Índio, a portaria 419, se apresenta como uma portaria que vai coibir o contato com as comunidades isoladas. Só que, no meio, olhando com lupa, essa portaria abre uma exceção: a de que poderia haver o contato com as populações isoladas com autorização da Funai. O Governo tenta, sempre. A intenção é clara. Há então uma resposta muito forte da sociedade civil. Há uma recomendação do Ministério Público Federal, ainda em março, e então essa portaria é modificada. Mas a tentativa está lá. Em fevereiro deste ano, a Victoria Tauli-Corpuz, relatora da ONU para os povos indígenas, ao saber que um líder evangélico poderia chefiar a coordenação de povos isolados da Funai, já tinha apontado o potencial de produzir um genocídio. O genocídio está muito longe, portanto, da banalização. Estamos falando de uma relatora das Nações Unidas para os direitos dos povos indígenas. O segundo ponto ―e é até difícil falar tranquilamente sobre isso― é a lei do plano emergencial de enfrentamento da covid-19 nos territórios indígenas. Para começar a conversa: o plano emergencial é uma lei de 7 de julho ―7 de julho! Ou seja. Em julho nós vamos aprovar o plano emergencial para enfrentar uma emergência que foi declarada pela Organização Mundial da Saúde em 30 de janeiro e, pelo Brasil, em 3 de fevereiro. Aqui mesmo, no Brasil, já se reconhecia a emergência nacional desde fevereiro! E só em julho vão fazer o plano para combater a pandemia nos territórios indígenas. Bem, neste plano, a União precisa garantir um conjunto de medidas para enfrentar o vírus...

P. E Bolsonaro vetou a garantia de acesso à água potável aos povos indígenas...

R. Muita gente ficou chocada com o fato de o presidente da República vetar a garantia de acesso à água potável. Mas, se nós formos ler o conjunto dos vetos, vamos ver que vai muito além de uma suposta crueldade com relação à água. Foi vetada a obrigação de organizar o atendimento de média e alta complexidade nos centros urbanos, foi vetado o acompanhamento diferenciado dos casos que envolvam os indígenas, inclusive foi vetada a oferta emergencial de leitos hospitalares e de UTI. Foi vetada a obrigação de aquisição ou disponibilização de ventiladores de máquinas de oxigenação sanguínea, foi vetada a inclusão dos povos indígenas nos planos emergenciais de atendimento dos pacientes graves das secretarias municipais e estaduais, que inclusive obrigava o SUS a fazer o registro e a notificação da declaração de raça e de cor. Com este veto, se tenta dificultar a identificação dos indígenas atendidos no SUS. Veja como a comunicação é importante... Foi vetada a parte da obrigação de elaboração de materiais informativos sobre os sintomas da covid-19 em formatos diversos e por meios de rádios comunitárias e de redes sociais com tradução e linguagem acessível. Isso foi vetado. Foi vetada a obrigação de explicar para os indígenas a gravidade da doença! Foi vetada a obrigação de oferecer pontos de internet nas aldeia para não ser preciso se deslocar aos centros urbanos. Foi vetada a distribuição de cestas básicas, de sementes e ferramentas agrícolas a famílias indígenas. Por isso, eu afirmo: a questão vai muito além das frases de efeito, vai muito além de tudo aquilo que é promovido pelo Governo Federal para insuflar a sua base de apoio a odiar as instituições, a odiar os partidos de oposição, a odiar a população que é considerada por eles inferior e subalterna, como indígenas e negros, aqueles que atrapalham seus interesses e são considerados por eles um obstáculo do ponto de vista da racionalidade econômica que eles defendem.

P. Que racionalidade econômica é esta?

R. A racionalidade econômica que eles defendem é a do lucro imediato, a dos privilégios para os amigos do rei. E esta é uma racionalidade que sequer é uma preocupação com a economia do país. Não é. É uma preocupação com interesses de determinadas pessoas. A questão econômica é da maior importância na resposta à pandemia. Eu gosto muito do trabalho da (economista) Laura Carvalho, não só pela sua linguagem acessível, mas porque ela diz claramente que o problema da pandemia não são as medidas de contenção, é a pandemia em si. Morrer é muito ruim também para a economia de uma família. Sofrer por uma doença evitável é muito ruim também para a economia. Uma resposta séria para efetivamente conter a propagação da doença seria mais efetiva para a economia do que o negacionismo. O prefeito de Itabuna, na Bahia, falou muito claramente sobre o significado dessa posição, ao anunciar no início de julho que reabriria o comércio. Ele disse: “Morra quem morrer”. E se sabe exatamente quem vai morrer mais. Na elite brasileira vai haver algo que eles provavelmente vão chamar de dano colateral. Mas a regra, quando se observa o que tem acontecido no Brasil desde fevereiro, é que as pessoas que têm acesso principalmente à terapia intensiva têm muito mais chance de sobreviver, mesmo sendo idosas e mesmo tendo comorbidades. Não é possível dizer que os brasileiros, em geral, não têm acesso, porque nós temos o SUS, e em alguns locais o SUS conseguiu oferecer um tratamento de excelência, apesar das dificuldades. Mas o SUS não consegue atuar de forma igual em todos os lugares. Então, se sabe exatamente quem vai morrer mais.

P. No que se refere aos povos indígenas, que outros elementos mostram que pode ter acontecido o crime de genocídio contra eles?

R. A diferença essencial, que facilita a identificação do genocídio nas populações indígenas, é o interesse claro que existe em utilizar as terras, as riquezas naturais, em eliminar o “obstáculo” que estas figuras representam, na medida em que são os grandes guardiões da floresta, do meio ambiente, do patrimônio natural brasileiro. Eliminar esses guardiões facilitaria muito a apropriação de suas terras, basta ver o ritmo de desmatamento e de ocupação ilegal de terras protegidas que está ocorrendo no Brasil. O motivo do crime é evidente. A velha pergunta dos filmes de mistério ―quem ganha com o crime?― tem aqui uma resposta muito evidente.

P. Qual é a história do conceito de genocídio, para podermos entender melhor o que está em disputa nesse debate?

R. Começa com (Winston) Churchill, em outubro de 1943, quando vêm a público as atrocidades cometidas pelos nazistas. Ele diz: “Nós estamos diante de um crime sem nome”. E então um jurista polonês, Raphael Lemkin, publica um artigo, em novembro de 1943, afirmando: “Por genocídio nós entendemos a destruição de uma nação ou grupo étnico”. É ele que usa pela primeira vez essa palavra, combinando “genos”, do grego, que é raça ou tribo, com a palavra latina “cídio”, que significa matar. Nunca deixou de ser um conceito polêmico, em função do negacionismo e, principalmente, por causa do dilema de alguns países, que queriam punir o genocídio praticado por Hitler contra os judeus, mas que estavam fazendo seus genocídios alhures, como os próprios ingleses, os americanos, os franceses, que tinham o genocídio nas suas histórias, algumas até bem recentes. Então, como constituir o conceito de um crime que não fosse depois se voltar contra eles? O debate, portanto, sempre existiu. E o Lemkin já dizia neste artigo: “o genocídio não significa necessariamente a destruição imediata de uma nação, ele significa muito mais um plano coordenado de diferentes ações que visam à destruição dos fundamentos essenciais à vida de grupos, com objetivo de, mais adiante, exterminá-los”.

P. O fato de a palavra se originar com o holocausto judeu perpetrado por Hitler e pelos nazistas, na Segunda Guerra, não é também o que dificulta hoje, mesmo para juristas experientes, entenderem que estamos num outro momento da história? Assim como para alguns é difícil compreender que os golpes hoje nem sempre são com tanques na rua, como foram no séculos 20, não estaria sendo difícil compreender que, no tempo das pandemias e da emergência climática, a interpretação também precisa se atualizar porque os desafios e as ameaças são também outros?

R. Genocídio não é só colocar pessoas num paredão (ou numa câmara de gás) e fuzilar as pessoas. O genocídio se dá também ao suprimir as condições necessárias à vida e às condições à saúde. Eu trabalho há mais de 10 anos no estudo e pesquisa de pandemias e da Organização Mundial da Saúde. As pessoas achavam curioso que alguém do direito internacional se interessasse por esses assuntos. Agora já não precisa mais explicar por que fiz minha livre docência sobre a gripe H1N1. Há algo novo que os sistemas internacionais vão ter que levar em conta. O fato de não haver um precedente significa apenas que, na contemporaneidade, a humanidade não tinha chegado a essa fase da história. Com toda a tecnologia e ciência, é a primeira vez que nos confrontamos com um fenômeno dessa magnitude. A grande maioria dos Estados fez o máximo possível com as condições que tinha para enfrentar essa situação. Não foi esta a decisão do Estado brasileiro.

P. Algumas pessoas confundem o negacionismo como algo equivocado, porém honesto, no sentido de que os negacionistas realmente acreditariam na não existência de algo. Claramente, porém, o negacionismo é uma manipulação e uma estratégia...

R. O negacionismo surge, historicamente, justamente com relação ao holocausto. Essa palavra vai surgir nos ambientes universitários dos anos 70, dos anos 80, para se referir a algumas teses acadêmicas e discursos políticos que diziam que o holocausto judeu ou não foi tão grave assim ou não ocorreu. É muito interessante isso. As extremas direitas europeias, e principalmente a francesa, não tinham condições de se apresentar politicamente com suas ideias diante da monstruosidade do que aconteceu com o povo judeu. Então, como estava claro que essas ideias fascistas necessariamente levam ao extermínio e ao genocídio, para que se tornassem palatáveis de novo era preciso negar o que aconteceu. Do contrário, não haveria como se apresentar de novo no espaço público. Universidades francesas importantes acabaram envolvidas nesse escândalo por permitirem a existência de teses que afirmavam que ou não foi tão grande assim ―a banalização― ou não aconteceu. A coerência não é algo importante para a extrema direita, nunca foi. É aí que surge essa expressão ―negacionismo. Os judeus são obrigados a, periodicamente, provar que o holocausto aconteceu porque os negacionistas jogam com o que se chama ônus da prova. Eles não provam que não aconteceu, mas te obrigam a cada momento a provar que aconteceu.

P. Como acontece, especialmente nesse Governo, com a memória da ditadura militar (1964-1985) no Brasil....

R. Sim. E aí eu quero dizer, muito enfaticamente, que isso vai acontecer conosco com relação à pandemia de covid-19 no Brasil. Periodicamente, nós vamos ter que provar essas dezenas de milhares de mortes. Periodicamente, nós vamos ter que voltar a explicar como aconteceu. Tenho certeza absoluta que essa disputa vai acontecer. Será preciso fazer um memorial para esses mortos. A história terá que ser contada de forma incessante. Da mesma forma que acontece com as vítimas da ditadura militar, haverá desmentidos. Entendo a preocupação de preservar o termo genocídio, mas o fulcro do que estou dizendo desde que começamos a conversar é que não há exagero em falar de crimes contra a humanidade com relação ao que está acontecendo hoje no Brasil referente à covid-19. Por tudo o que já falei e porque essas mortes eram evitáveis.

P. Como fica claro que essas mortes seriam evitáveis?

R. O Brasil não é um país miserável, que não tem sistema de saúde e estava fadado a ter uma evolução trágica da doença. O Brasil é referência internacional de cobertura universal de saúde. Nos países em desenvolvimento, não há nada como o nosso Sistema Único de Saúde. O Brasil tem profissionais de saúde de altíssimo nível, sanitaristas de altíssimo nível, todos ejetados do Ministério da Saúde. O Brasil tinha todos os quesitos para ter uma das melhores respostas do mundo à covid-19. Muitos brasileiros pensavam que o Brasil não tinha dinheiro. E nós descobrimos que o Brasil tem muito dinheiro, que uma parte muito significativa do PIB foi destinada à resposta à covid-19, mas ela não tem chegado onde precisa chegar, por uma série de razões, entre elas as que eu já mencionei. Então, como é possível? Poderíamos ter tido uma realidade em que todas as autoridades alertassem para a doença, pedissem para a população ficar em casa apoiando as medidas e, por alguma razão, o sistema tivesse uma disfunção. Mas não é nem de longe o que estamos vivendo no Brasil. Nós não temos um governo federal que aja no sentido de conter a pandemia mas não tem êxito. Ao contrário. Existe uma obstrução reiterada, com a justificativa de proteger a economia brasileira, uma justificativa pífia, que quem entende de economia diz que não é sequer a melhor forma de proteger a economia. E quero chamar muito enfaticamente a atenção para a comunicação. A comunicação de risco durante a emergência é um dos principais pilares do enfrentamento em todos os manuais. O primeiro ponto é a confiança nas autoridades sanitárias, o segundo ponto é a comunicação clara, inclusive de incertezas científicas sobre o que está ocorrendo. Em nenhum momento podemos subestimar a comunicação como elemento de resposta. Na comunicação, assim como em tantos pontos, a intencionalidade de não deixar a população se proteger como deveria é claríssima.

P. O que diz exatamente a legislação?

R. O conceito de genocídio, na legislação brasileira (Lei 2.889, de 1º de Outubro de 1956), é límpido. Começa referindo-se à intenção de destruir no todo ou em parte um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Refere-se a matar membros do grupo, causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo, submeter o grupo ou membros do grupo a condições de existência capaz de ocasionar a destruição física total ou parcial, assim como adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo e efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo. Também menciona a incitação direta ou indireta e diz ainda que a pena será agravada em um terço quando o crime for cometido por governante ou funcionário público.

P. Em quais destes casos o Governo brasileiro se enquadraria, no que diz respeito à resposta à covid-19?

R. Causar lesão grave física ou mental a membros do grupo, isso me parece evidente nos argumentos que já mencionei. Submeter o grupo a condições de existência capazes de ocasionar a destruição física parcial ou total, está mais do que claro. Imagina, o Governo vetou até mesmo a obrigação de realizar uma campanha para os indígenas traduzida nos seus idiomas, explicando a gravidade da doença. No Tribunal Penal Internacional, o conceito é semelhante. Me parece que, em relação aos indígenas, existe uma circunscrição geográfica que facilita a configuração da prova da prática desse crime num eventual processo. Essa tipificação do crime entre os indígenas me parece ter um amplo leque de evidências. Ninguém pode, porém, ser condenado previamente. O que estamos dizendo é que é possível que esse crime esteja acontecendo e que isso precisa ser investigado nessa clivagem, como crime de genocídio. O que é muito importante é que não exista mais lugar para o argumento da banalização da palavra genocídio. Que deixe de ser considerado algo distante, denuncista ou absurdo e passe a ser investigado.

P. E quanto aos negros que, segundo pesquisas, são a maioria dos que morrem por covid-19?

R. Na população negra, eu vejo muito mais do que matar ou deixar morrer, o que também é um crime contra humanidade. Quando o Governo faz essa série de ações que obstaculizam a prevenção e o combate à covid-19, ele joga com a evolução natural da doença: se deixar a evolução natural da doença rolar sem intervenções mais efetivas, a tendência é que ela atinja mais as populações vulneráveis e extermine esses atores, cujas vidas consideraria que não importam. Na população em geral, os caminhos do crime contra a humanidade são mais velados do que os crimes contra as populações indígenas.

P. Já ouvi pessoas dizendo que até agora morreram “poucos” indígenas, para se considerar genocídio (cerca de 500, segundo organizações indígenas). É uma afirmação bastante terrível, para dizer o mínimo, mas é importante perguntar, para que todos possam compreender um debate que diz respeito não só aos brasileiros, mas à população global: para ser considerado genocídio ou extermínio é necessário um número elevado de mortes?

R. Do ponto de vista da tipificação do crime, do ponto de vista técnico, é irrelevante o número de pessoas que morreram. Nem na lei brasileira nem na lei internacional existe um número mínimo de pessoas para configurar genocídio. Para a tipificação do crime, a essência é a intenção de destruir total ou parcialmente um grupo. Uma intenção que não necessariamente vai resultar em mortes. É claro que, do ponto de vista ético, o número de mortes é totalmente relevante. Mas, como disse antes, mesmo a tentativa de genocídio é punível.

P. Uma outra pergunta bem óbvia, mas importante. No caso de uma ação de genocídio no Tribunal Penal Internacional, quem é responsabilizado é a pessoa, não o governo, certo? Poderia, por exemplo, no caso brasileiro, serem responsabilizados o presidente Jair Bolsonaro e os generais, assim como outros funcionários com poder de decisão?

R. Sim. O TPI é uma grande conquista da humanidade também porque ele permite responsabilizar pessoas por crime contra a humanidade. Alguém chega ao poder em determinado Estado, mas há limites do que pode fazer ao exercer seu poder contra o próprio povo. Existem gestos que agora têm nome e são tipificados, e o mais grave deles é o genocídio. Há possibilidade de processar chefes de Estado, generais, grandes empresários, grileiros, funcionários públicos com cargos de responsabilidade, pessoas que participaram do crime.

P. Você defende que esse debate precisa ser feito e que precisa ser feito com serenidade, porque é importante para o Brasil. Por que é importante?

R. Só o fato de debater já é importante. Pode levar anos para o TPI decidir se abre a investigação ou não. Mas a construção de denúncias bem fundamentadas tecnicamente é um processo no qual todos ganham. O Brasil ganha, e as instituições brasileiras ganham.

P. Por quê?

R. Processos que são movidos em busca da justiça, para responsabilizar pessoas que atentam contra a vida de populações vulneráveis ou contra grupos específicos, como os indígenas, são processos que fazem emergir a verdade. O processo vai dando voz às vítimas, oportunizando que sejam escutadas nas mais diversas instâncias. A construção, organização e sistematização dessas provas vão despertando a consciência das pessoas. No Brasil, o mais importante é mostrar que o que está acontecendo vai muito além de um debate vulgar sobre questões da maior gravidade, vai muito além da suposta incompetência do Governo federal na resposta à covid-19. Um processo faz com que a verdade apareça na voz das vítimas ou de seus familiares. Vai mostrando que não é só uma forma infeliz de se manifestar, não é só ignorância, não é só incompetência. Existe uma intencionalidade. No caso de uma ação por genocídio ou por outro crime contra a humanidade, como o extermínio, o caminho é mais importante do que o destino.

P. Por que então uma reação tão forte à declaração do ministro Gilmar Mendes, mesmo entre pessoas que se opõem ao Governo Bolsonaro?

R. Acredito que a reação à fala de Gilmar Mendes tem duas causas. Uma delas é de que o presidente estaria supostamente mais calmo. Em função da prisão do (Fabricio) Queiroz, ele modificou suas estratégias de ataque às instituições. Neste momento, em que a tensão supostamente está diminuindo, um ministro do STF usa uma expressão referente ao pior tipo de crime que pode existir. E utiliza uma expressão que tem transcendência internacional imediata, porque o mundo inteiro sabe o que é um genocídio. Fica parecendo então que é um gesto que gera tensão num momento em que supostamente as tensões estariam sendo aliviadas. E eu digo supostamente porque, neste momento de pandemia, temos acompanhado o Diário Oficial todos os dias. Quando a gente vê atos como os vetos ao plano emergencial para os indígenas, a gente vê que a tensão não está baixando de forma alguma. O segundo elemento é a dificuldade de identificar essa sistematicidade no ataque às tentativas de controle da pandemia. No dia a dia, esses elementos vão sendo interpretados como vulgaridade, leviandade, incompetência. Mas esse fio do tempo, com ações concretas, este que demonstra o ataque sistemático à saúde pública, fica menos visível. Acredito que muitas pessoas, com a melhor das intenções, dizem que não vai levar a nada discutir a tipificação como crimes contra a humanidade porque é uma questão política, porque seria um caso para o sistema de controle dos direitos humanos, onde o Estado pode ser responsabilizado. Eu não concordo com isso. Acredito que existem pessoas agindo de uma forma sistemática contra a saúde pública e a vida dos brasileiros. Eu teria muita dificuldade de dizer que relacionar a morte de mais de 80.000 pessoas como crime contra a humanidade seja banalizar a palavra genocídio. E não apenas pelo número de pessoas, mas principalmente, é importante repetir, porque essas mortes seriam evitáveis.

P. Você afirmaria que o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, é um genocida?

R. Eu afirmo que é preciso investigar a acusação de genocídio com relação ao presidente do Brasil. Se queremos dar densidade técnica a esse debate, não podemos condenar antes do julgamento. Devemos denunciar e esperar a decisão. Tanto que, no jornalismo, quando alguém é acusado de um crime, vocês se referem a ele como suspeito. Acho que esse é um valor a se preservar. Acredito que o presidente do Brasil é suspeito de crimes contra a humanidade, entre eles o genocídio. E o caminho pelo qual formulamos essa acusação é um caminho importante para a sociedade brasileira, porque é mais um indicativo da gravidade do que está acontecendo e que algumas pessoas estão encarando de uma forma bastante irresponsável. Permitir que esses comportamentos existam e se repitam é muito grave. Nós precisamos discutir com a tranquilidade e com a seriedade que assuntos desse tipo exigem. E faz parte disso não prejulgar. Não se referir a alguém que ainda não foi condenado como se já o tivesse sido. Mas não tenho nenhum problema em dizer que diversas autoridades brasileiras, entre elas o presidente da República, me parecem suspeitas de crimes contra a humanidade e precisam ser investigadas.


Eliane Brum: #liberteofuturo

Por que nos juntamos num movimento global de resgate do presente

No manifesto #liberteofuturo, lançado neste domingo, 5 de julho, escrevemos: “Lançamos esse movimento porque não queremos ser abatidos como gado. Seja no campo ou na cidade, queremos viver como floresta ―em pé― e lutar”. Sim, queremos lutar pelo futuro do presente ―no presente. Nós, que temos nos mostrado tão competentes em imaginar o fim do mundo ―do apocalipse bíblico aos filmes de zumbi, dos vírus (que agora tivemos uma amostra) a um ataque alienígena, do domínio da inteligência artificial ao holocausto nuclear―, temos que nos tornar capazes de imaginar o fim do capitalismo. Temos que nos tornar capazes, principalmente, de imaginar um futuro onde possamos e queiramos viver. Imaginar é ação política. Imaginar é instrumento de resistência. Imaginar o futuro já é começar a criar o presente.

Como esse movimento começou? Pelo susto e pelo desejo, como em geral quase tudo se inicia. A pandemia se desenhava no mundo, a Itália vivia cenas de peste e o Brasil apenas anunciava seu primeiro caso. Mas havia quem já falasse da volta à normalidade. Este era o nosso susto. Como pessoas conscientes da crise climática, da destruição acelerada da biodiversidade e da abissal desigualdade, nós já esperávamos o tempo das pandemias. Existe, porém, uma larga diferença entre prever o que vai acontecer diante da destruição persistente da natureza, a partir do conhecimento dos povos indígenas e das pesquisas dos cientistas, e viver o que está acontecendo. O susto era o de viver a pandemia, mas também era pelo que se desenhava como “volta à normalidade” pós-pandemia. Normalidade para quem?, era nossa primeira pergunta.

Sabíamos que, com a recessão que se anunciava, as corporações que dominam o mundo, assim como os governantes e políticos, economistas e executivos financiados por elas, estalariam o chicote no lombo do gado humano em que fomos convertidos pelo capitalismo neoliberal. O discurso da retomada e da aceleração da produção viria com todas as suas fantasmagorias. E o anormal que já vivemos poderia ―e pode― se tornar um anormal ainda mais mortífero, brutalizando ainda mais os corpos humanos e não humanos.

Naquele momento, março de 2020, todos os nossos esforços estavam concentrados em criar ações e campanhas para proteger os que seriam mais atingidos pela pandemia. Nos movíamos para atenuar o sofrimento do presente imediato, promovendo vaquinhas na internet para comprar cestas básicas sem agrotóxicos, com produtos produzidos por produtores locais de comunidades vulneráveis, assim como pressionar pelo fortalecimento do SUS. Percebemos, porém, que precisaríamos fazer mais. Precisaríamos disputar o futuro no presente.

Esse movimento começou com duas pessoas conversando por whatsapp, outras se juntaram numa primeira reunião por zoom em abril e hoje, três meses depois, somos muitas e muitos. Cada um fazendo o que sabe fazer melhor e todas e todos aprendendo a fazer o que não sabem, porque assim são os tempos, como já escrevo há anos nestes espaço: não basta fazer o que sabemos, temos que fazer também o que não sabemos. Esse é o desafio desse momento.

Nosso movimento não tem dono. Nem permitiremos capturas. Somos Eu+1+. Esta é a equação da rebelião, criada por Élio Alves da Silva, poeta e pescador do Médio Xingu, na Amazônia. “Eu sozinho não posso nada, eu sozinho só conto como um. Mas, se eu chamar mais um, já começamos a poder. E se esse um chamar mais um e mais um e mais... Aí nós podemos”. Como apontaram alguns pensadores, não é apenas o vírus que pode se espalhar numa velocidade alucinante, as ideias também. Boca a boca. Assim, convidamos todas e todos a se juntar com a gente no movimento pela libertação do futuro.

Antes de explicar como participar, quero falar sobre por que entendemos que o futuro, hoje, está sequestrado.

Nós, os que hoje estamos vivos, nunca enfrentamos uma ameaça como o novo coronavírus. Se tantos repetem que o mundo nunca mais será o mesmo, e não será, qual é então o mundo que queremos?

Lutar pela vida ameaçada pelo vírus é o imperativo da emergência. É preciso, porém, fazer algo ainda mais difícil: lutar pelo futuro pós-vírus. O rompimento da normalidade para poucos, da anormalidade para a maioria, que o vírus provocou, pode ser a oportunidade para desenhar uma sociedade baseada em outros princípios, capaz de barrar a catástrofe climática e promover justiça racial e entre espécies. O pior que pode nos acontecer depois da pandemia será justamente voltar à anormalidade que nos esmaga. Aquilo que muitos chamam de novo normal ―e nós entendemos que é um “novo anormal”.

Até baluartes da imprensa liberal, como The Economist Financial Times, ambos nascidos no berço do capitalismo, anunciaram no início da pandemia que seria preciso dar um passo atrás. Maior intervenção do Estado e políticas como renda mínima e taxação de fortunas, antes consideradas “exóticas” por esses segmentos, têm sido elencadas na abordagem do novo contrato social no mundo pós-pandemia. Conceder um pouco para garantir que nada mude no essencial é um truque antigo. Já podemos perceber, porém, que as velha forças já se rearranjam para tentar manter tudo não só como estava, mas com ainda maior exploração dos mesmos de sempre ―nós.

Sabemos que, numa crise, as pessoas se agarram àquilo que conhecem. Mesmo que aquilo que conhecem seja muito ruim, elas encontram conforto em conhecer a própria desvalia do que se arriscar ao desconhecido, que pode trazer uma miséria com a qual não se tem intimidade. O sentimento de desamparo é muito difícil de sustentar. Assim, é bastante provável que todas as “boas” intenções ―pessoais, corporativas, governamentais (para quem tem um governo minimamente decente, não é o caso do Brasil)― desapareçam com a ameaça do vírus, caso a vacina seja encontrada, e as pessoas reassumam seus postos nas jaulas de cada dia. Até a próxima pandemia ou o próximo desafio da emergência climática em curso. Ou até pior: as pessoas podem aceitar mais perda de direitos e dar mais poderes a quem nos oprime na tentativa de se salvar do próximo vírus ou da próxima catástrofe. E elas virão se não houver uma mudança radical na forma de viver.

O vírus, porém revelou um segredo, como apontou o filósofo francês Bruno Latour, num artigo que “viralizou”. Com o vírus, descobrimos que aqueles que afirmavam ser impossível parar de produzir, reduzir o número de voos, aumentar os investimentos dos governos e mudar radicalmente os hábitos apenas mentiam. O mundo mudou em semanas em nome da vida. É também em nome da vida que precisamos manter as boas práticas que surgiram deste período e pressionar como nunca antes por outro tipo de sociedade, tecida com outros fios.

É no sistema capitalista que o planeta, supostamente à disposição dos consumidores, foi consumido; que espécies inteiras foram destruídas e outras subjugadas para terem seus corpos consumidos em produção industrial. É assim que você nasce para, consumindo seu corpo e seu tempo, ser consumido e se consumir. E é assim que os humanos se tornaram, a partir da revolução industrial, que iniciou um processo cada vez mais veloz de emissão de CO2 pela queima de combustíveis fósseis (carvão, petróleo etc), uma força de destruição do planeta. Atenção, porém: não todos os humanos, mas a minoria dominante.

Pressionadas pelo colapso da natureza que provocaram e pela evidência de que haverá mais pandemias, as grandes corporações que controlam o mundo e aqueles que se beneficiam delas tentam agora reinventar o sistema de destruição, como já fizeram no passado, para continuar no controle ―e lucrando. E têm muitas chances de conseguir.

Nós queremos impedir que rearranjem o anormal. E queremos fazer isso pelo caminho mais radical, o da imaginação. Pelo resgate da possibilidade de voltar a imaginar outros mundos possíveis. Isolamento físico, sim. Isolamento social, jamais.

E por que “libertar” o futuro? Porque entendemos que o futuro ―assim como nós― foi sequestrado pelos déspotas eleitos que hoje governam parte do mundo.

Como Jair Bolsonaro, o maníaco que está tentando matar quase todos, exceto sua família e seus amigos, se elegeu? Da mesma forma que Donald Trump e outros: vendendo um passado que nunca existiu. Déspotas eleitos como Bolsonaro, Trump e toda a corja de perversos e mentirosos vendem a volta ao que nunca houve. Um passado em que havia paz e que cada um aceitava passivamente o seu lugar – o que significa que os negros aceitavam passivamente o seu lugar subalterno, os indígenas aceitavam passivamente o seu lugar subalterno, as mulheres aceitavam passivamente o seu lugar subalterno, todos aceitavam passivamente que o gênero era binário ou então era desvio. Um passado em que cada coisa estava em seu lugar e cada um sabia o lugar de cada coisa e estava tudo pacificamente resolvido.

Ora, nós sabemos que não havia paz neste passado. Que ele era costurado com conflitos, com sujeições, com apagamentos e com extermínios. Déspotas eleitos como Trump e Bolsonaro limpam esse passado de seus conflitos e de suas mortes e o embalam para oferecer a uma população assustada com um mundo movediço, uma população assustada com as insurreições daqueles que sempre foram considerados sub-humanidades, como diz o pensador indígena Ailton Krenak, aqueles que sempre estiveram nas periferias da vida pública e da privada e passaram a disputar o centro.

Mas por que os déspotas eleitos oferecem um passado que nunca existiu? Aí está um outro segredo, que queremos revelar para o mundo. A resposta é que eles não têm futuro para oferecer. O futuro é a crise climática, que eles se esforçam para negar, mas está acontecendo. O futuro é hostil. Para conquistar o poder e para manter o poder eles precisam vender um passado que nunca existiu e negar veementemente o futuro. É muito importante compreender que eles só conquistam e só mantêm o poder negando o futuro.

Eles não são negacionistas da crise climática porque acreditam que ela não existe. Eles são negacionistas porque não podem oferecer futuro exatamente porque estão a serviços das corporações transnacionais e dos grupos locais que produzem a crise climática. Este é o ponto frágil dessa extrema direita assassina, em alguns casos fascista, que hoje governa o Brasil e outros países do mundo: quando eles negam a crise climática, porque só podem negá-la, precisam também negar o futuro.

E aí está a fissura que a pandemia abriu. De repente, o mundo parou. Quando os povos indígenas, os cientistas e os adolescentes gritavam que era preciso reduzir a produção para salvar a nossa vida no planeta, que era preciso mudar o jeito de viver, governantes e grandes corporações diziam que era impossível. O que a pandemia mostrou? Que é possível, sim. E que dá para fazer isso rapidamente. Em poucas semanas, o impossível aconteceu.

É também por isso que Paulo Guedes, o braço perverso de Bolsonaro numa economia (que se vende como todo mas é reduzida ao financeiro), assim como essa meia dúzia de pessoas que representam (essa mistificação) chamada mercado, tentam recolocar rapidamente o discurso neoliberal, o da volta à normalidade, o discurso da produção e do crescimento, para mostrar que dá para mudar tudo ―mas só por um curto espaço de tempo. Depois, é preciso correr e recuperar a produção e os lucros perdidos. À custa, como cada um sabe bem, dos corpos dos outros ―os nossos corpos. O “sacrifício” é da maioria para a minoria manter seus privilégios. Ou alguém estava feliz e próspero antes da pandemia, alegremente apaziguado com seu tempo sequestrado pela prisão do modelo 24 (horas) por dia X 7 (dias) por semana?

Hoje, apenas 2.153 pessoas – às vezes a gente esquece que os bilionários são pessoas, têm nome e sobrenome ―concentram mais riqueza material do que 60% dos outros 7.790.000.000 de seres humanos que habitam o planeta. Veja a diferença no número de casas decimais. Eles representam uma fração tão insignificante no conjunto da população global que os números falham em torná-los visíveis como porcentagem. A desigualdade racial, social, de gênero e de espécie que provocam, porém, é brutalmente visível.

Nós, do movimento de libertação do futuro, queremos que o mundo não seja apenas para 0,00003% ―ou 1 bilionário para cada 3,7 milhões de pessoas.

Não podemos nos render à volta da normalidade que corrompe a natureza e condena bilhões à pobreza. Não devemos permitir que a Amazônia, cada vez mais perto do ponto de não retorno, siga sendo destruída. As ideias precisam circular. Imaginar o futuro já é mudar o presente.

Entendemos ainda que, libertando o futuro nós também deixamos de ser reféns. Enquanto o futuro estiver sequestrado, nós também estaremos subjugados, encarcerados num presente contínuo, em eterno looping, vivendo aos espasmos. Nosso instrumento é a imaginação. Não é por acaso que a arte é tão atacada por Bolsonaro, seu clã e seus fanáticos. É a arte que promove a imaginação e é sempre a primeira a ser atacada por governos e governantes autoritários, que precisam controlar corações e mentes para impor seu projeto de poder. Foi assim no nazismo, é assim no bolsonarismo. A imaginação é a arte do pensamento. E é com ela que vamos começar a resgatar o futuro. Imaginar não é ato passivo, ao contrário. Imaginar é agir ―imagin/ação.

Não podemos esquecer do segredo revelado pela pandemia: o de que é possível parar ―e, principalmente, o de que é possível mudar. E lembremos, como um mantra, todos os dias, das palavras de Ailton Krenak: “O futuro é agora, pode não haver amanhã”.

Lançamos algumas bases para a sociedade que queremos criar, a partir de princípios que são inegociáveis: 1) com racismo não há democracia, como apontou o manifesto antirracista da Coalizão Negra por Direitos; 2) com especismo (que é o racismo com outras espécies) não há democracia; 3) é imperativo eliminar a desigualdade racial, social, de gênero e entre espécies; 4) resgatar o futuro é responsabilidade coletiva de todas e de todos que estão vivos nesta época; 5) nos compreendemos como natureza e queremos um mundo para todos os humanos e não humanos que habitam o planeta; 6) a Amazônia, como conceito amplo, é o centro do mundo.

Lutaremos.

A partir de cinco propostas para adiar o fim do mundo, sugerimos que cada uma e cada um façam perguntas e respostas em vídeos ―cinco vídeos de no máximo um minuto cada um. Estes são os pontos de partida: 1) Antídotos contra o fim do mundo: imagine como quer viver; 2) Democracia: proponha políticas públicas, assim como mudanças nas leis e nas normas, para reduzir as desigualdades de raça, gênero e classe e para que a democracia seja mais do que votar a cada eleição; 3) Consumo: indique alternativas para eliminar as práticas de consumo que escravizam a nossa e as outras espécies; 4) Emergência climática: sugira ações para impedir a destruição da natureza, garantindo a continuidade de todas as formas de vida no planeta; 5) Insurreição: defina a melhor ação de desobediência civil para criar o futuro onde você quer viver. Você pode fazer um vídeo para cada tema ou escolher apenas aqueles pontos com os quais você se identifica mais. Ou, ainda, pode responder apenas uma pergunta:

Que futuro você quer libertar?

Os vídeos devem ser postados com as hashtag #liberteofuturo e #freethefuture. E enviados para o número de celular e email indicados na nossa plataforma.

Cada uma, cada um está convidada/o a se juntar a nós, imaginando o futuro e promovendo ações a partir da imaginação. Entre na nossa plataforma, torne-a sua, sendo +1, e chame +1. Junte sua turma de amigos, sua família, seu coletivo, sua organização, sua empresa, seu time de futebol, sua confraria do boteco, seu grupo da igreja e crie futuros. Se quiser dar um passo além, inscreva-se nos “laboratórios sociais liberte o futuro”. Aqui está nosso endereço: www.liberteofuturo.net e www.freethefuturo.net . Nos busque nas redes: instagram, facebook e twitter: @liberteofuturo. Nos encontre pela hashtag #liberteofuturo e #freethefuture. Nossa plataforma já começa a se tornar um mostruário da imaginação do futuro neste momento histórico, uma coleção de pensamentos que poderá inspirar ações e estimular pesquisas. Estamos criando um grande museu vivo sobre a imaginação.

Para quem acha difícil, é difícil mesmo. Certamente não mais difícil, porém, do que viver num presente sem futuro. Para os céticos, quero dizer o seguinte. Em março, nada disso existia. E, hoje, já somos dezenas e criamos beleza. Nossa plataforma já tem mais de 200 vídeos de gente imaginando o futuro antes mesmo do lançamento. Ousamos. Somamos o que sabíamos e ousamos fazer o que não sabíamos. Criamos algo que não existia. O futuro que começamos a imaginar três meses atrás já é presente.

Vem com a gente libertar o futuro?

Eliane Brum é colunista do El País e +1 do movimento #liberteofuturo.


Eliane Brum: Mães Yanomami imploram pelos corpos de seus bebês

A indignidade com que os indígenas são tratados na pandemia de covid-19 abriu um novo e pavoroso capítulo de violação dos direitos dos povos originários pelo Estado brasileiro

Três mulheres vivem um horror para o qual será preciso inventar um nome. Elas são Sanöma, um grupo da etnia Yanomami, e sua aldeia, Auaris, fica no que os brancos chamam de Roraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela. Elas não compreendem a ideia de fronteira, para elas a terra é uma só —e não tem cercas. Elas não falam português, elas falam a sua língua. Em maio, essas mulheres e seus bebês foram levados para Boa Vista, capital de Roraima, com suspeitas de pneumonia. Nos hospitais, as crianças teriam sido contaminadas por covid-19. E lá morreram. E então seus pequenos corpos desapareceram, possivelmente enterrados no cemitério da cidade. Duas das mães estão com covid-19, amontoadas na Casa de Saúde Indígena (CASAI), abarrotada de doentes. Lá, corroídas pelo vírus, elas imploram pelos seus bebês.

Com a ajuda de várias pessoas, uma delas conseguiu me enviar uma mensagem, gravada, em Sanöma. Ela conta o que vive. E diz: “Sofri para ter essa criança. E estou sofrendo. Meu povo está sofrendo. Preciso levar o corpo do meu filho para a aldeia. Não posso voltar sem o corpo do meu filho”. Eu escuto a mensagem antes da tradução. Não entendo as palavras. Mas compreendo o horror. A linguagem universal daquela que está sendo arrancada do mundo dos humanos.

Ser arrancada de uma aldeia no interior da floresta amazônica porque seu filho tem sintomas de uma doença, a pneumonia, transmitida pelos primeiros brancos que dizimaram parte da população Yanomami, no século passado, é uma violência. Passar deste mundo para o espaço de um hospital, e de um hospital superlotado por conta da covid-19, é outra violência. Ter seu bebê contaminado por uma segunda doença, quando estava ali para ser curado da primeira, que ainda era uma hipótese, é mais uma violência.

E então ela perde o filho. Cada uma delas perde o filho.

As mães Sanöma não entendem o português. Apesar de Roraima ser o Estado mais indígena do Brasil e quase duas centenas de Yanomami já terem sido contaminadas pelo novo coronavírus, não há tradutor para essa população. Ninguém explica nada a elas. As mulheres não entendem o que os brancos falam. E os corpos de seus filhos desaparecem. Uma das lideranças da comunidade, que entende português, explica que os três bebês podem ter sido enterrados no cemitério. Mas não há certeza. Ninguém dá certeza nem a elas nem às lideranças.

O procurador da República em Boa Vista Alisson Marugal enviou um ofício ao Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Y) para obter informações sobre o paradeiro dos corpos dos bebês. “A situação é muito complicada, especialmente com relação à população Yanomami. Tivemos quatro óbitos oficiais e, em todos eles, tivemos problemas. O primeiro foi o caso do adolescente de 15 anos. Tivemos problemas de atendimento, tivemos falta e desencontro de informações e estamos também apurando se houve falta de assistência médica”, afirma. “O caso dos bebês Sanöma só começamos a apurar agora. Não sabemos se houve o diagnóstico de covid-19 e, se houve, qual protocolo foi aplicado e qual foi o local de enterro.”

Marugal assumiu o posto em plena pandemia, conta estar trabalhando de segunda a segunda para enfrentar um cenário com grandes desafios. “Não descarto a possibilidade de, futuramente, ingressar com uma ação civil pública pedindo danos morais não só para os pais, mas para toda a etnia yanomami”, afirma.

Enterrar o corpo de um Yanomami é arrancá-lo do mundo dos humanos

A quantidade de violência contida nessa série de atos infligidos às mulheres Sanöma é enorme até mesmo para os padrões do Estado brasileiro, um histórico agente de agressões contra os povos indígenas. Mas a violência avança para muito mais, porque se, para um branco, a dor é a que tantas famílias estão vivendo, nesta pandemia, sem poderem se despedir daqueles que amam, sem poderem sepultá-los devidamente, devido ao protocolo de biossegurança, para uma mulher Yanomami, para um homem Yanomami, enterrar um dos seus é incompreensível —e inaceitável.

Os Yanomami não são enterrados. Nunca, sob nenhuma hipótese se enterra um corpo. Os corpos são cremados e há um longo ritual para que o morto possa morrer para si e para a comunidade. Os Yanomami não são indivíduos, como um branco que vive no Brasil ou na Espanha ou nos Estados Unidos é. Um Yanomami se compreende como parte de uma comunidade e se entrelaça com várias dimensões de mundos visíveis e invisíveis em relações mediadas pelos xamãs. Os rituais de morte devem ser seguidos em todos os detalhes e levam meses e até anos para se concluírem. Várias aldeias vão até a comunidade do morto para participar da cremação, num primeiro momento. As cinzas então são guardadas.

Meses depois haverá a segunda parte, quando os visitantes mais uma vez retornam para as celebrações. O morto então será lembrado em seus feitos, em suas desavenças, em todas as marcas importantes de sua trajetória. Será lembrado para então poder ser esquecido, suas marcas serem apagadas e a comunidade seguir adiante. No último ato, as cinzas dos mortos são diluídas em mingau de banana para que aquele que morreu se dissipe no corpo de todos.

O ritual faz o morto morrer também como memória, para que os vivos possam viver. Se o ritual não for realizado, o morto não poderá ser esquecido nem se deixará esquecer, o que provoca muito mal a seus parentes e a toda a comunidade. O ritual de morte dos Yanomami é de uma extrema complexidade e sabedoria em sua simbologia. O rito é coletivo e é também momento de estabelecer relações sociopolíticas e até amorosas. Ao final, há apenas um morto, o que morreu —e não vivos que seguem mortos por não terem sido capazes de fazer o luto, como acontece tantas vezes no mundo dos brancos, que já não têm tempo nem espaço para fazer a transmutação da falta em ausência de que falava Carlos Drummond de Andrade.

Enterrar o corpo de um morto é um horror absoluto para o povo Yanomami. É arrancá-lo do mundo dos humanos. “Para essas mães, saber que seus filhos estão enterrados no cemitério da cidade é equivalente a uma mulher branca ter que conviver com a ideia de que o corpo de seu filho está jogado e exposto em praça pública”, diz Sílvia Guimarães, professora de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB), que faz pesquisa junto ao povo Sanöma há muitos anos. Ela é uma das 40 pesquisadoras e apoiadores da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, formada para enfrentar a invisibilidade dada ao sofrimento dos Yanomami, durante a pandemia, a partir da divulgação de análises qualificadas.

Sem um plano emergencial, 40 % do povo Yanomami pode ser contaminado

Terra Indígena Yanomami abarca uma área de cerca de 9,6 milhões de hectares na fronteira entre o Brasil e a Venezuela, nos Estados do Amazonas e de Roraima. Mais de 26.000 indígenas se distribuem em mais de 300 aldeias. O subgrupo Sanöma é composto por 3.164 pessoas, segundo dados de 2018 do Instituto Socioambiental. Alguns grupos vivem em isolamento voluntário, o que significa que preferem não conviver com os brancos. Desde que os Yanomami tiveram os primeiros contatos, a partir de 1910, eles vêm sendo dizimados por doenças, que chamam de xawara, e também a tiros, pelos garimpeiros que invadem suas áreas em busca de ouro.

Davi Kopenawa, o grande intelectual e líder Yanomami, tem denunciado ao mundo que seu povo corre o risco de genocídio. Ele chama os brancos de " povo da mercadoria”. Seu filho, Dario Kopenawa, da Hutukara Associação Yanomami, lidera a campanha “Fora Garimpo! Fora Covid!”. Em plena pandemia, há mais de 20.000 garimpeiros na terra Yanomami, considerada a mais vulnerável ao novo coronavírus na Amazônia. Uma pesquisa realizada pela Universidade Federal de Minas Gerais, pelo Instituto Socioambiental e pela Fundação Oswaldo Cruz mostrou que, caso não exista um plano de contingência emergencial para a transmissão entre os Yanomami, 40% da população que vive em aldeias próximas ao garimpo poderão ser contaminados.

Segundo o boletim mais recente da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, de 21 de junho, há 168 contaminados e cinco mortos. A Casa de Saúde Indígena (Casai), onde ficam os Yanomami levados à cidade, tornou-se um dos principais focos de contaminação. Segundo a rede de pesquisadores, mais de 80 indígenas já foram infectados ali, 48% dos casos de covid-19 entre os Yanomami e Ye’kwana. Há casos de pacientes Yanomami que tiveram alta de outras doenças e aguardavam há mais de dois meses seu retorno à Terra Indígena. Acabaram sendo infectados por covid-19 na Casai.

Desde que o primeiro adolescente Yanomami, de 15 anos, morreu de covid-19, em 9 de abril, o desespero se multiplicou. Vítimas de massacres de todos os tipos perpetrados pelos brancos, parecia impossível que houvesse alguma forma de violência ainda desconhecida. Mas sempre há. E então os Yanomami começaram a ver os corpos desaparecerem, seguidos de explicações vagas de enterros por parte de autoridades que mal conseguem entender. “É um enorme desrespeito com a nossa cultura. Os corpos são enterrados sem que ninguém explique nada, sem que as famílias sejam consultadas, sem que peçam autorizações para as mães. Elas não sabem onde seus filhos estão enterrados, eu, que sou representante, não tenho nenhuma ideia de onde estão enterrados”, diz Dario Kopenawa. “Queremos saber onde estão e quando poderemos desenterrar os corpos para levá-los para a aldeia, onde nasceram e cresceram, onde seus pais, seus tios, seus primos estão morando, onde a alma das crianças pode ser feliz. Entendemos a necessidade dos protocolos [de biossegurança], mas precisamos ter informação e compreender o que vai acontecer. Precisamos saber quando os corpos serão devolvidos. Queremos saber quanto tempo o vírus sobrevive no corpo. Se os infectologistas nos explicam, a gente entende e pode respeitar. E podemos transmitir essa informação para a comunidade.”

O protocolo de biossegurança, segundo a Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, determinaria três anos para a exumação do corpo, mas até agora não há nem mesmo comprovação de que as crianças tinham a doença. “Por que três anos? Por que não mais? Por que não menos? Quem explica às mulheres Yanomami?”, questiona Sílvia Guimarães, em entrevista ao EL PAÍS.

Braulina Baniwa é uma das mulheres indígenas que, apesar de pertencer à outra etnia, se solidarizou com as mães Sanöma: “Essas mulheres estão sofrendo uma violência sem tamanho. É uma parte de cada uma delas que vai ficar fora do território”, diz. “Além de tudo o que estão vivendo, elas não falam português e não há sensibilidade para entendê-las.” Antropóloga, ela faz parte do Laboratório Matula, criado a partir do grupo de pesquisa do CNPq “Sociabilidades, diferenças e desigualdades”.

Em carta pública, o Matula afirmou: “No caso das mulheres Sanöma, sobressai aqui a dor da indígena mulher nesta pandemia, que deixa os corpos de seus filhos sem a possibilidade de negociar os termos das cerimônias de encerramento desta vida, o que viola seus direitos enquanto povo. Essa cena se repete em vários locais do Brasil, mas, qual é o peso desta dor para uma indígena mulher, que não domina o português, encontra-se distante de sua rede de apoio e aguarda para saber se está contaminada? Qual é a possibilidade de ter sua fala ouvida, de ter sua experiência sobre a morte compartilhada e decidida? Concordamos que as formas de contágio são múltiplas e de grandes riscos, mas há ainda algumas perguntas a serem feitas: é possível ser transparente, se abrir para o diálogo, compartilhar conhecimento e decisões? Que critérios éticos iremos viver nesta pandemia? Essa pandemia escancara a desigualdade social e o que era normalizado. A infraestrutura dos serviços públicos se omitiu para essa parcela da população, os riscos das mortes dos filhos e suas mães indígenas se agudizam. E vigora a paralisia para a ação. As mulheres Sanöma são a força dessa mulher indígena, do território, da floresta, da roça, do alimento, dos rios, que manejam para cuidar da vida e merecem respeito, cuidado e admiração por parte do Estado”.

Mulher Sanöma, na região do rio Auaris, se preparando para ir para a roça.
Mulher Sanöma, na região do rio Auaris, se preparando para ir para a roça.SÍLVIA GUIMARÃES / ARQUIVO PESSOAL

As lideranças Yanomami reivindicam um protocolo indígena para os mortos por covid-19. “Queremos que possa haver uma higienização dos corpos ou, se isso não for possível, que eles sejam cremados. Então poderemos levar as cinzas para as aldeias”, diz Dario Kopenawa. Não há crematório em Boa Vista. E parece também não haver vontade de compreender o drama dos indígenas numa sociedade em que impera o racismo contra os povos originários —896.917 pessoas, o equivalente a 0,47% da população total do Brasil, segundo o Censo do IBGE de 2010. A riqueza cultural que representam é expressada por 256 povos que falam mais de 150 línguas diferentes. Dizimados por vírus e por balas há cinco séculos, eles resistiram até hoje. E então chegou a covid-19. O Governo Bolsonaro, que tem como um dos principais projetos abrir as terras indígenas para exploração privada, nada faz de efetivo para barrar a doença que já atravessa a floresta amazônica produzindo um novo massacre.

Segundo Dario Kopenawa, os Yanomami foram contaminados de covid-19 pelos garimpeiros. Em Boa Vista, os garimpeiros não só circulam e entranham-se no setor público, por vários portas, como também viram monumento em praça pública. Essa realidade cotidiana expressa a tensão entre os povos originários e os brancos que lá chegaram levados por projetos de Estado, no início, depois pelos próprios pés. “Antes da pandemia nós já tínhamos a doença do garimpo, nossos rios estavam sendo contaminados por mercúrio, nosso povo morria de tuberculose e de pneumonia. Agora eles nos trouxeram também a covid-19”, diz ele. Com os garimpeiros, a malária também está se alastrando e fazendo vítimas entre os indígenas por todo o território. “E depois de tudo isso, eles nos enterram”, diz Dario Kopenawa. “Nunca houve um Yanomami enterrado antes. Nunca. Penso que é, sim uma violência. Mas penso que não nos consultarem nem pedirem nossa autorização é também um crime.”

Ao saber qual era o tema da reportagem, o coordenador interino do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami, Antonio Pereira, alegou ao EL PAÍS, por telefone, que não poderia responder às perguntas porque estava em reunião. Comprometeu-se a procurar a reportagem ao final de seus compromissos. Diante da insistência para marcar um horário, passou o telefone a um assessor, que afirmou que ligariam. Até a publicação desta reportagem, não foi possível restabelecer contato com o responsável pelo DSEI Yanomami.

O bebê que nasceu, morreu e desapareceu

Há ainda uma quarta mulher Yanomami, doente de coronavírus, que foi levada para ter o parto no hospital e nunca mais viu o corpo do bebê. O recém-nascido, segundo o procurador Alisson Marugal, teria morrido de complicações não conectadas com a covid-19, mas um servidor do hospital teria colocado no documento, indevidamente, uma suspeita por coronavírus. Segundo informações obtidas pelo EL PAÍS, a família pertence a um outro grupo Yanomami, que vive na região chamada Missão Catrimani, na aldeia Nara Uhi. Nascido prematuro de sete meses, o menino nasceu e morreu em 28 de abril. E também desapareceu.

O relato do pai deste bebê à Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana mostra como o vírus começou a dizimar os Yanomami —e também como o Estado se tornou um perpetuador de violência ao produzir novos sofrimentos. Este Yanomami é conhecido entre os brancos como Remo:

“Foi assim que aconteceu. Primeiro, o xamã André apresentou os sintomas de covid. Ele é mais velho, foi o primeiro a adoecer. Então, Miguel fez xamanismo para curar o pai e também adoeceu. Um dia depois que Miguel começou a se sentir mal, ele foi caminhando até o posto de saúde na Missão Catrimani. A terceira pessoa a adoecer na nossa comunidade foi minha mulher, Zita Rosinete, que estava grávida. Teve tosse, diarreia, febre, dor de cabeça, dor no peito e muita dor na barriga. Os xamãs não fizeram trabalho pra ela, porque ficaram com medo de adoecer, já que essa doença é muito forte.

No dia seguinte, depois que a Zita Rosinete teve febre, caminhamos até o posto da Missão. Eu fiquei muito triste lá. A Rosinete desmaiou três vezes. Estava muito fraca e com muita febre. No dia 27 de abril, fomos removidos de avião da Missão Catrimani para a maternidade em Boa Vista. Quando chegamos no hospital, ela desmaiou de novo e eu fiquei segurando ela... Então, talvez eu tenha Covid dentro de mim. Mas eu fiz o exame pelo nariz e pela boca, deu negativo. [Mais tarde Remo infectou-se na Casa de Saúde Indígena e teve um teste positivo para covid-19].

Minha mulher estava com muita dificuldade de respirar, estava muito fraca e quase morreu! E eu perguntei para o médico: ‘Será que ela vai morrer?’. ‘Não. Ela está um pouco forte por dentro ainda’, disse. Na maternidade, nos colocaram para dormir separados de outras pessoas.

Meu filho morreu. No dia 28 [de abril] mesmo, no dia em que nasceu, ele morreu. Nasceu de manhã e à tarde morreu. Zita Rosinete estava muito fraca, mas estava um pouquinho forte ainda, porque ela não queria morrer. Se tivesse pensado em morrer, ela morreria.

Eu não vi meu filho. A Zita Rosinete fez nascer o bebê, os médicos pegaram e disseram: ‘Levem para o hospital, para a UTI’. Então, ele morreu. Eu fiquei muito triste. Eu estou triste ainda. O médico não disse por que ele morreu. Só me perguntou: ‘Ei, você é papai?’. ‘Sim, eu sou papai’. ‘Desculpa aí, seu filho morreu. Ele estava com muita dificuldade de respirar e por isso morreu’.

Ele morreu acho que às 14h, mas não sei… Só tem no documento. Eu disse para o enfermeiro: ‘Eu quero visitar meu filho!’. Mas ele disse: ‘Espera, só depois. Os médicos estão examinando ainda’. Aí eu esperei, esperei, esperei e depois chegou informação: ‘Seu filho morreu de dia’. O corpo, acho que está lá ainda na UTI, eu não sei onde está. Na Casai [Casa de Saúde Indígena], eles também não disseram onde está o corpo do meu filho. Eles não dão informação sobre onde está o corpo. Eu tenho um papel que fala sobre o meu filho [declaração de nascido vivo] e aqui na Casai a enfermeira perguntou: ‘Onde é que está o seu filho?’. Eu disse: ‘Morreu!’. ‘Onde está o documento falando que ele morreu no hospital maternidade no dia 28?’. ‘Não sei! Os médicos não me deram!’”.

Remo e Rosinete só conseguiram voltar em 19 de junho para a sua aldeia. Sem o corpo do filho. E assim se abriu mais um rasgo de violência no povo Yanomami. O Ministério Público Federal está investigando o caso e também o de outras mortes de adultos cujo corpo é reclamado pelos Yanomami

O antropólogo francês Bruce Albert compara “o enterro secreto e compulsório (‘biosseguro’!)” das vítimas Yanomami da covid-19″ com o “‘desaparecimento” dos corpos das vítimas dos torturadores na ditadura militar (1964-1985). “Roubar os mortos alheios e negar o seu luto sempre foi o estágio supremo da barbárie, no desprezo e na negação do Outro (étnico e/ou político”, afirma em entrevista ao EL PAÍS. Albert escreveu, junto com Davi Kopenawa, um livro que é um marco na história da Antropologia: A queda do céu (em português, publicado pela Companhia das Letras).

Em 1993, o episódio conhecido como “Massacre de Haximu”, em que 16 indígenas foram assassinados por garimpeiros, mostra a importância inegociável que o povo Yanomami dá aos seus rituais funerários. “Mesmo com o terror de estarem sendo caçados pelos garimpeiros, eles não hesitaram em colocar sua vida em risco para recuperar seus mortos, chorá-los e queimá-los devidamente em seu caminho de fuga”, lembra Albert. “Para os Yanomami, mais vale a pena morrer do que deixar seus mortos sem sepultura.”

Nas guerras antigas, os Yanomami sempre davam uma trégua para que as mulheres dos seus inimigos pudessem recuperar seus mortos na floresta e chorá-los devidamente. Fazer “desaparecer” os inimigos mortos, segundo o antropólogo, era considerado “uma desonra e uma manifestação de hostilidade literalmente inumana: digna dos animais ferozes ou dos espíritos maléficos da floresta”.

Ao final da entrevista, Bruce Albert ainda diz: “Espero que seja útil para que seus leitores entendam: não há pior afronta e sofrimento para os Yanomami do que fazer ‘desaparecer’ seus mortos”.

O caso dos bebês Sanöma expressa a abertura de um novo capítulo de violência de Estado contra os povos originários. O desrespeito e a indignidade com que a morte é tratada pelas autoridades públicas são os mesmos da vida. Não basta matar pela contaminação por vírus, há ainda que torturar mulheres e também homens. Este capítulo está só começando, mas as vítimas já deram a ele um título: genocídio.