#Eleições2022

Nas entrelinhas: Há duas hipóteses (e não quatro) para Lula e Bolsonaro no primeiro turno

Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense

A pesquisa DataFolha divulgada ontem pôs fogo no debate entre presidenciáveis da TV Globo, como vocês verão nas páginas do Correio Braziliense e do Estado de Minas de hoje. Com 50% dos votos válidos, como no levantamento anterior, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) está com a bola na marca do pênalti para voltar ao poder, porém, pode chutá-la na trave e ter que encarar um segundo turno. O presidente Jair Bolsonaro (PL), com 36% de intenções de votos, subiu um ponto nas pesquisas. Com 6%, Ciro Gomes (PDT) caiu um ponto por causa da campanha do voto útil, e Simone Tebet (MDB), com 5%, manteve-se na mesma posição que estava. Soraya Thronicke (União Brasil) também manteve-se no 1%.

Esses resultados expurgam votos nulos, brancos e abstenções, como determina a lei eleitoral na hora de proclamar o vencedor. A pesquisa estimulada aponta Lula com 48%, um ponto a mais do que na semana passada; Bolsonaro com 34%, um a mais também. Ciro Gomes com 6%, um a menos; Simone, com os 5% da pesquisa anterior; e Soraya Thronicke (União Brasil), com 1%. Felipe d’Avila (Novo), Sofia Manzano (PCB), Vera Lúcia (PSTU), Léo Péricles, Constituinte Eymael (DC) e Padre Kelmon (PTB) não pontuaram. Votos branco/nulo/nenhum somam 3%, um a menos em relação à pesquisa anterior. Não sabe manteve 2%. Na simulação de segundo turno, Lula derrotaria Bolsonaro por 54% a 39% dos votos, sendo que o presidente da República cresceu um ponto e o ex-presidente parece que bateu no teto. A aprovação do governo caiu 1%, estando em 31%; esse ponto se deslocou para os que consideram o governo regular, que são 24%. A reprovação do governo manteve-se em 44%.

As duas hipóteses (e não, quatro) lembram a famosa teoria do humorista Barão de Itararé. Apparício Torelly era um otimista inveterado, para quem tudo acabaria bem quando a situação parecia a pior possível. O escritor Graciliano Ramos relata essa teoria em Memórias do Cárcere (Record). A tese fundamental era a seguinte: todo fato gera duas alternativas; excluía-se uma, desdobrava-se a segunda em outras duas; uma se eliminava, a outra se bipartia, e assim por diante, numa cadeia comprida. O relato do autor de Vidas Secas, que foi prefeito de Palmeira dos Índios, em Alagoas, serve como uma luva para os paranoicos que temem ser presos num golpe de Estado, caso Bolsonaro perca as eleições:

“Que nos poderia acontecer? Seríamos postos em liberdade ou continuaríamos presos. Se nos soltassem, bem: era o que desejávamos. Se ficássemos na prisão, deixar-nos-iam sem processo ou com processo. Se não nos processassem, bem: à falta de provas, cedo ou tarde nos mandariam embora. Se nos processassem, seríamos julgados, absolvidos ou condenados. Se nos absolvessem, bem: nada melhor esperávamos. Se nos condenassem, dar-nos-iam pena leve ou pena grande. Se se contentassem com a pena leve, muito bem: descansaríamos algum tempo sustentados pelo governo, depois iríamos para a rua. Se nos arrumassem pena dura, seríamos anistiados, ou não seríamos. Se fôssemos anistiados, excelente: era como se não houvesse condenação. Se não nos anistiassem, cumpriríamos a sentença ou morreríamos. Se cumpríssemos a sentença, magnífico: voltaríamos para casa. Se morrêssemos, iríamos para o céu ou para o inferno. Se fôssemos para o céu, ótimo: era a suprema aspiração de cada um. E se fôssemos para o inferno? A cadeia findaria aí. Realmente. Realmente ignorávamos o que nos sucederia se fôssemos para o inferno. Mas ainda assim não convinha alarmar-nos, pois essa desgraça poderia chegar a qualquer pessoa, na Casa de Detenção ou fora dela”.

Segundo turno

Por que as duas hipóteses e não quatro? Porque as pesquisas estão mostrando que não há possibilidade de Bolsonaro passar Lula no primeiro turno, muito menos vencer as eleições já no domingo. Neném Prancha, Antonio Franco de Oliveira, falecido em 1976, que foi roupeiro, massagista, olheiro e técnico do Botafogo, era um filósofo do futebol, segundo o jornalista Armando Nogueira, um botafoguense doente. Dizia que o futebol era um jogo muito simples: “Quem tem a bola ataca; e quem não tem, defende”. Foi o que fez o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas duas últimas semanas, ao mobilizar apoios de intelectuais, economistas, artistas, empresários e juristas, com o objetivo de levar de roldão a eleição, já no primeiro turno. Com 50% dos votos válidos, essa seria a hipótese mais provável, não houvesse o imponderável nos três dias que antecedem o pleito. Não se pode descartar a hipótese do segundo turno.

Por quê? Primeiro, porque o debate na TV Globo de ontem à noite terá impacto no cenário eleitoral, dependendo do desempenho de cada candidato. Segundo, em razão das abstenções, que podem ter causas espontâneas, como os insatisfeitos e desesperançosos com o fracasso da chamada terceira via viajarem no fim de semana, sem a preocupação de voltar a tempo de votar, ou induzidas, por medidas com o objetivo de dificultar o acesso dos eleitores aos locais de votação, reduzindo a circulação ou coibindo o acesso gratuito aos transportes coletivos. Terceiro, a resiliência eleitoral de Ciro, Tebet e Soraya. Quarto, a defasagem da base de dados do IBGE utilizada na montagem do modelo das pesquisas. E se houver segundo turno? Nesse caso, é melhor deixar acontecer para analisar.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-ha-duas-hipoteses-e-nao-quatro-para-lula-e-bolsonaro-no-primeiro-turno/

Nas entrelinhas: Lula assume narrativa do voto útil na reta de chegada

Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Eu nunca fiz eleição para ganhar no 2° turno. Eu, que tenho 46%, tenho que acreditar que é possível, nos próximos dias, conquistar a porcentagem que falta, sem desprezo a ninguém”, postou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ontem, no seu Twitter oficial, Lula 13. Iniciou, assim, uma arrancada de 20 dias, cujo objetivo é volatilizar nas próximas semanas as candidaturas de Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB). Com isso, pretende transformar uma ameaça, o risco de perder para o presidente Jair Bolsonaro (PL) no segundo turno, na oportunidade de vencer no primeiro turno. Na pesquisa Ipec/TV Globo de segunda-feira, Lula aparece com 51% de votos válidos, o que significa a chance de vitória no primeiro turno.

Na postagem, Lula foi elegante. Vencer no primeiro turno seria um feito inédito. Em 2022, a disputa contra José Serra (PSDB-SP) foi para o segundo turno; em 2006, contra o ex-tucano Geraldo Alckmin (PSB), que hoje é seu vice, também. As vitórias de Dilma Rousseff em 2010, no auge de seu prestígio como presidente, e em 2014, também foram para o segundo turno. Ou seja, não existe precedente de os candidatos do PT vencerem a eleição de roldão. Dessa vez, porém, Lula está animado. Bolsonaro não consegue baixar a sua rejeição, a avaliação de seu governo continua ruim, a distância entre ambos no eleitorado feminino permanece abissal. A fala mansa do presidente da República nos últimos dias mostra que a estratégia bolsonarista de confrontação ideológica esgotou-se no 7 de Setembro.

Bolsonaro se manteve nos 31% da semana passada, segundo o Ipec, mas a aprovação do governo oscilou negativamente de 25% para 23%, enquanto a reprovação variou de 43% para 45%. A rejeição ao modo de governar de Bolsonaro oscilou para cima, de 57% para 59%. Lula sentiu o cheiro de animal ferido na floresta e foi à caça. Dos votos de Bolsonaro? Não, resolveu partir pra cima dos eleitores de Ciro Gomes, que estacionou nos 7%. A mesma pesquisa revelou que 52% dos eleitores do pedetista ainda podem de mudar de voto. Lula é sutil no voto útil, mas sua militância nas redes sociais é uma escolada patrulha ideológica, que partiu para cima dos setores de esquerda refratários ao voto em Lula no primeiro turno.

O acordo com Marina Silva (Rede), candidata a deputada federal por São Paulo, em grande estilo, com o compromisso de levar adiante o programa da sua ex-ministra do Meio Ambiente, com quem Lula estava rompido, é considerado como uma sinalização de que chegou a hora de concentrar as forças para derrotar Bolsonaro no primeiro turno e não dar nenhum espaço para contestação do resultado eleitoral. Meia narrativa é de que Bolsonaro representa uma ameaça fascista e, para barrá-la, como ensina a velha tradição de esquerda, o melhor instrumento é uma “frente ampla”. Ocorre que não existe essa frente, o que está se propondo é a unidade de esquerda. A outra metade da narrativa é o argumento de que as forças que apoiam Simone Tebet querem levar a eleição ao segundo turno para barganhar seu apoio e forçar o ex-presidente Lula a assumir um programa liberal, mantendo o teto de gastos, a reforma trabalhista, a autonomia do Banco Central etc, o que afastaria qualquer possibilidade de acordo de cúpula com essas forças no segundo turno.

Volatilidade

Bolsonaro sentiu o golpe da pesquisa Ipec. Havia ampla expectativa de parte do comando de sua campanha de que as grandes mobilizações do 7 de Setembro seriam uma arrancada para a vitória, mas não foi isso que ocorreu. O brado presidencial de que era “imbrochável” roubou toda a narrativa patriótica. O ato revelou mais capacidade de mobilização dos bolsonaristas do que de persuasão dos eleitores indefinidos. Os ataques a Lula com base nas denúncias de corrupção no seu governo também não estão aumentando a rejeição do petista como se imaginava; outras bandeiras bolsonaristas se esvaziaram com a chegada de Bolsonaro ao poder. No fundo, o mau desempenho do governo, principalmente nas áreas sociais, como educação, saúde, habitação, virou uma mala sem alça que seus aliados precisam carregar.

Nas próximas semanas, o ambiente eleitoral se tornará mais volátil, porque a maioria dos eleitores começará a consolidar ou mudar o voto. A possibilidade de uma vitória de Lula no primeiro turno é real, mas nem de longe está consolidada. O que as pesquisas estão mostrando até agora é que o cenário de segundo turno é o mais provável, com Lula e Bolsonaro. Essa polarização pode desidratar Ciro Gomes, nas próximas semanas, em favor do petista; mas esse seria o caso de Simone Tebet? Se sua candidatura do MDB for volatilizada, para onde irão os seus votos?

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-lula-assume-narrativa-do-voto-util-na-reta-de-chegada/

Foto: Maurenilso Freire

Nas entrelinhas: Estratégia de Lula levará disputa para o segundo turno

Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense

As pesquisas estão mostrando que a estratégia de campanha do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que era o franco favorito das eleições, não está viabilizando sua vitória no primeiro turno. Ao contrário do levantamento do Ipec de terça-feira, que não captou a repercussão do debate entre os candidatos, a pesquisa do Ipespe, divulgada ontem, revelou alterações importantes. Na primeira, Lula ainda venceria as eleições no primeiro turno; na outra, não haveria a menor chance de isso acontecer, porque, a 32 dias das eleições, a distância entre o petista e o presidente Jair Bolsonaro é de seis pontos na pesquisa espontânea (40% a 34%) e oito na estimulada (43% a 35%). Lula caiu um ponto na estimulada, e Bolsonaro cresceu quatro na espontânea.

O ex-presidente está enfrentando dois problemas: a lenta recuperação de Bolsonaro em alguns segmentos, como evangélicos e mulheres, na Região Sudeste e na população de renda até um salário mínimo, que até agora parece ser insuficiente para ultrapassá-lo, mas é o bastante para aproximá-lo do petista no segundo turno; e a resiliência dos candidatos da chamada terceira via, que se mantêm na disputa e ocupam uma franja do eleitorado antipetista que não pretende voltar para os braços de Bolsonaro, ao menos no primeiro turno. Ciro avançou um ponto na espontânea (4% para 5%) e manteve os 9% de julho. Simone Tebet subiu de 1% a 3% na espontânea, e ganha também um ponto na estimulada, de 4% para 5%. Felipe D’Ávila continua com 1%, tanto na espontânea quanto na estimulada.

Lula tem forte expectativa de poder a seu favor, mas sua vantagem em relação a Bolsonaro no segundo turno começou a cair, passando de 17 para 15 pontos. Continua sendo uma boa margem, o suficiente para demover o presidente da República de qualquer tentativa golpista, ainda mais porque ficaria muito difícil contestar o resultado das eleições com uma diferença de tal ordem. Mas o cenário efetivamente está em mudança. A pesquisa mostra que a percepção popular em relação ao governo melhora, com reflexos nos índices de rejeição de Bolsonaro.

Recuperação

A geração de fatos positivos pelo governo, a partir da aprovação da PEC Emergencial e do pacote de bondades, começa a repercutir na avaliação do Executivo e na rejeição de Bolsonaro. Auxílio Brasil, vale-gás, auxílio caminhoneiro, auxílio taxista, empréstimo consignado e reduções no preço dos combustíveis servem de agenda positiva para a campanha do presidente no rádio, na televisão e nas redes sociais.

Resultado: sua aprovação foi de 36% para 39%, enquanto a desaprovação diminuiu, de 59% para 57%; a avaliação positiva (“ótima/boa”) foi de 32% para 35%, e a negativa (“ruim/péssima”) recuou de 49% para 46%. A avaliação do desempenho de Bolsonaro também melhorou: o “ótimo/bom” foi de 32% para 35%, enquanto o “ruim/péssimo”, de 49% para 47%. Um dado que merece atenção foi a redução da rejeição de todos os candidatos, exceto Lula, que oscilou de 43% para 44%. A de Bolsonaro recuou três, de 58% para 55%; de Ciro, de 40% para 39%; e de Simone, de 35% para 32%.

Onde Lula pode ter errado? Na política de alianças. A opção estratégica da campanha dele foi ganhar as eleições com uma frente de esquerda, com base numa análise de que havia uma guinada nessa direção em toda a América Latina, e no Brasil não seria diferente. Chile e Colômbia seriam os grandes exemplos de vitória da esquerda com um discurso mais moderado e democrático, mas claramente mudancista. A ideia de uma frente ampla parou na vice para o ex-governador tucano Geraldo Alckmin, ao se rejeitar qualquer possibilidade de aliança mais ao centro, por exemplo, com o ex-presidente Michel Temer. Na verdade, não passou de retórica para esvaziar a chamada terceira via e constranger os setores que a apoiavam a derivar por gravidade em direção a Lula.

Essa estratégia não está esgotada, porque o “voto útil” pode renascer das cinzas na reta final da campanha, mas está dando errado, principalmente nas eleições estaduais, inclusive São Paulo, onde esses setores de centro podem ser empurrados em direção a Bolsonaro. Nesse aspecto, as candidaturas de Ciro e Simone podem ser a salvação da lavoura, mantendo Bolsonaro distante de Lula e abrindo a possibilidade, aí sim, no segundo turno, da articulação de uma frente ampla cuja tecelagem, obviamente, dependeria de uma mudança de atitude de Lula, do seu projeto de governo e da construção de novas alianças, bem mais amplas

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-estrategia-de-lula-levara-disputa-para-o-segundo-turno

Mitos e heróis na cena eleitoral brasileira | Imagem: reprodução/Caio Gomez

Nas entrelinhas: Mitos e heróis na cena eleitoral brasileira

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

O mito de que o brasileiro é um “homem cordial” vem de um senso comum, desconstruído por Sérgio Buarque de Holanda em sua obra seminal Raízes do Brasil. A expressão cordial é um “tipo ideal” que não indica apenas bons modos e gentileza, vem da palavra latina “cordis”, que significa coração. Segundo Buarque, o brasileiro precisa viver nos outros, um artificio psicológico incorporado ao nosso processo civilizatório. A cordialidade muitas vezes é mera aparência, “detém-se na parte exterior, epidérmica, do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência.” Mais atual impossível.

A apropriação afetiva do outro apontada por Buarque, em grande parte, é responsável pela “fulanização” da política brasileira, apesar de termos instituições seculares bastante consolidadas, alguma das quais com origem na chegada de D. João VI e sua Corte ao Brasil, como o Supremo Tribunal Federal (STF). O exercício efetivo do poder central em todo o território nacional, por exemplo, deve-se ao Judiciário, muito mais do que às Forças Armadas, cujo protagonismo político, na República, por duas vezes, se deu em duradoura contraposição ao Estado democrático de direito, na Revolução de 1930 e no golpe militar de 1964.

Não por acaso, graças à política de conciliação da segunda metade do Império, também temos um Congresso forte, embora nossos partidos políticos, contraditoriamente, sejam fracos, por causa da “fulanização” da política e da construção de acordos interpessoais de natureza fisiológica, corporativa e/ou patrimonialista. De certa maneira, as redes sociais potencializaram essa “fulanização” da política e desnudaram a outra face do “homem cordial”, que agora protagoniza a radicalização política.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro exacerbam essa característica da política brasileira. Ambos têm um viés populista; constroem suas alianças a partir de relações afetivas e, ao mesmo tempo, pragmáticas. Não é outro o sentido da aliança de Bolsonaro com Valdemar Costa Neto, presidente do PL; a escolha do ex-governador Geraldo Alckmin como vice por Lula tem o mesmo significado.

No conceito de Buarque, o “homem cordial” é sinônimo de passionalismo, personalismo e irreverência, um transgressor das normas institucionais. Age mais pela emoção do que pela razão, sua cordialidade está associada ao domínio da esfera privada na vida brasileira. O Estado é sua segunda casa, povoada por familiares e amigos. Não é preciso um grande esforço retrospectivo para constatar esse fenômeno na vida política brasileira, muito menos revisitar as páginas de Raízes do Brasil, quase centenárias, e resgatar a nossa herança colonial lusitana.

Terceira via

O semideus grego da Ilíada de Homero tinha uma existência verdadeira, voltava para casa, tinha uma vida normal, até que a situação exigisse outro gesto glorioso e individual. A filósofa judia alemã Hanna Arendt associava-o ao que hoje muitos chamariam de “lugar de fala”. Sua disposição de agir e falar pode mudar o curso na história. O herói pode ser um indivíduo comum que se insere e se destaca no mundo por meio do discurso, se move quando os outros estão paralisados. Precisa fazer aquilo que outro poderia ter feito, mas não fez; ou melhor, o que deixaram de fazer.

O “homem cordial”, na atual cena eleitoral, se apresenta como o herói semideus da Ilíada de Homero, cujos pilares são a grandiosidade e a singularidade, além da aspiração à imortalidade. Em 2018, Bolsonaro saiu do leito da morte para o Palácio do Planalto sem fazer campanha; nestas eleições, Lula deixou a cadeia e pavimentou a estrada para voltar ao poder sem deixar os ambientes fechados. Agora, outro candidato a semideus prepara sua volta à cena eleitoral: o ex-juiz Sergio Moro, personagem central da ascensão e queda da Operação Lava-Jato.

Moro se tornou uma personalidade nacional graças à Lava-Jato, na qual só se pronunciava nos autos. Mas era aplaudido e cumprimentado nas ruas. Representava os órgãos de controle do Estado e a ética da responsabilidade, que zelam pela legitimidade dos meios empregados na ação política. Cumpriu um papel estratégico na luta em defesa da ética na política, vetor decisivo para o resultado das eleições passadas. Contra Moro, Lula não teve a menor chance; seria preso, como foi, pelo juiz durão.

Depois das eleições, convidado por Bolsonaro para ser ministro da Justiça, Moro deixou de ser o juiz “imparcial”. Esse atributo foi posto em xeque pela revelação das mensagens que trocou com os procuradores da Lava-Jato em Curitiba. O cristal foi trincado por conversas banais nas redes sociais. Moro virou um político, sujeito a todos os ritos da luta política e do jogo democrático. Filiou-se ao Podemos, trocou-o pelo União Brasil, sem garantia de legenda. Agora ensaia uma volta à ribalta, como um herói noir, em disputa pela Presidência. Moro pode recuperar o espaço que ocupava no campo da chamada terceira via.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-mitos-e-herois-na-cena-eleitoral-brasileira/

Foto: Beto Barata\PR

Nas entrelinhas: A longa angústia da terceira via na corrida presidencial

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

A angústia se caracteriza por uma situação na qual a pessoa se sente ameaçada por algo que pode acontecer, o que leva à preocupação excessiva, causa irritabilidade e insegurança, provoca dor de cabeça e até dores musculares, além de alterações na frequência cardíaca. Na política, além desses sintomas, a angústia pode provocar uma sequência de atitudes equivocadas, atritos e desavenças que, muitas vezes, só colaboram para que a ameaça se concretize. É o que acontece com alguns protagonistas da terceira via, que continuam se digladiando, em vez de buscar o verdadeiro entendimento.

Uma das causas da angústia é óbvia: a polarização entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL) está cada vez mais cristalizada, segundo as pesquisas de intenção de voto. Há três fatores principais. O primeiro: ambos têm uma base eleitoral muito resiliente, com identidade ideológica e organicidade. Lula em razão de um partido enraizado na sociedade; Bolsonaro devido à relação, por meio de redes sociais, com setores da sociedade com os quais se identifica, como militares, policiais, caminhoneiros, garimpeiros, ruralistas, atiradores etc.

O segundo fator são as realizações à frente do governo, o que força uma comparação entre a vida de antes e a de agora, em termos de renda, emprego, qualidade de vida e por aí vai. Lula deixou o governo em 2010, com o país crescendo a uma taxa de 7,5% e inflação de 5,9%; neste ano, o governo Bolsonaro projeta uma taxa de crescimento de 0,56% e uma taxa de inflação de 7,65%, segundo o último boletim Focus do Banco Central.

O terceiro é a rejeição dos dois candidatos, que se retroalimenta, na medida em que não surge uma candidatura mais robusta de terceira via. Pesquisa FSB, divulgada na segunda-feira, mostra que a rejeição ao ex-presidente Lula, em um mês, foi de 41% para 45%; o número de eleitores que não votariam de jeito nenhum em Bolsonaro oscilou de 57% para 55%. Cada um trabalha a rejeição do outro como um fator decisivo da eleição.

No campo da terceira via, o pré-candidato mais rejeitado é o ex-governador de São Paulo João Doria (PSDB). Em março, 57% disseram que não votariam no tucano de jeito nenhum. Agora, são 63%. O pedetista Ciro Gomes é rejeitado por 49% dos entrevistados. Em março, o ex-governador tinha 41%.

Nas intenções de voto Lula lidera com 41% contra 32% de Bolsonaro. Em março, o petista tinha 43% e o atual presidente marcava 29%. Na pesquisa espontânea, que sinaliza o voto mais cristalizado, Lula tem 38% e Bolsonaro, 30%. Ciro Gomes tem 4%, e os demais candidatos, somados, 4%. Os indecisos seriam apenas 16%, enquanto 10% não votariam. É ou não é uma razão para a angústia dos articuladores da terceira via?

Campanha

Outra razão é o calendário eleitoral. Teremos uma campanha muito curta. Entre 20 de julho e 5 de agosto serão realizadas as convenções partidárias para deliberar sobre coligações e escolher candidatas e candidatos à Presidência da República e aos governos de estado, bem como aos cargos de deputado federal, estadual e distrital. Legendas, federações e coligações têm até 15 de agosto para solicitar o registro de candidatura dos escolhidos.

Até lá, são pelo menos 90 dias de pré-campanha, na qual os possíveis candidatos articulam seus palanques e cuidam das chapas proporcionais e da estratégia de marketing, num cenário em que o diabo mora nos detalhes, ou seja, nas disputas regionais. Basta ver o impacto que o cenário eleitoral de São Paulo, o maior colégio eleitoral do país, no qual o candidato tucano Rodrigo Garcia tem apenas 6% de intenções de voto, está tendo na pré-campanha de Doria, um dos candidatos da chamada terceira via.

Os outros são Simone Tebet (MDB) e Luciano Bivar (União Brasil). Os três somados, hoje, têm o mesmo peso eleitoral de Ciro Gomes. Há uma expectativa de que se chegue a um acordo entre os partidos da terceira via em 18 de maio; a maior probabilidade, porém, é que isso não ocorra, porque ninguém acumulou força suficiente e o prazo de registro de candidatura, diante da fraqueza de todos, estimula um tempo maior de decantação.

A eleição para a Presidência parece um jogo de cartas marcadas, porém, não é; muita água vai rolar antes e após o início da campanha eleitoral, que só começa em 16 de agosto. O primeiro turno do pleito será no primeiro domingo de outubro, dia 2; o segundo, no dia 30 do mesmo mês. Façam suas apostas.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-longa-angustia-da-terceira-via-na-corrida-presidencial/

Foto: reprodução

Nas entrelinhas: Ideias de Lula e Bolsonaro têm raízes profundas

Há um Brasil submerso, cujas raízes históricas nos dão algumas pistas sobre a radicalização política que estamos vivendo, na qual Lula e Bolsonaro lideram a polarização eleitoral

A polarização entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que lidera as pesquisas da corrida eleitoral para o Planalto, e o presidente Jair Bolsonaro (PL) tem muitas explicações. As mais evidentes são o recall dos dois mandatos do petista como chefe do Executivo, de um lado, e as vantagens estratégicas de uma candidatura à reeleição no pleno exercício do mandato, na qual a inércia do poder favorece o presidente da República, como aconteceu com Fernando Henrique Cardoso, o próprio Lula e Dilma Rousseff.

Decorrem daí as dificuldades dos demais pré-candidatos para romper a polarização, ou seja, de Ciro Gomes (PDT), Sergio Moro (União), João Doria (PSDB) e Simone Tebet (MDB). Mas isso apenas não explica a resiliência de Lula, que chegou a ser preso na Operação Lava-jato, acusado de envolvimento com a corrupção no seu governo, nem a de Bolsonaro, que protagonizou o negativismo antivacina durante a pandemia de covid-19, cujo saldo de 661 mil mortes não foi suficiente para tirá-lo do páreo, assim como a estagnação, o desemprego e a maior inflação da história do real. Há um Brasil submerso, cujas raízes históricas nos dão algumas pistas sobre a radicalização política que estamos vivendo.

Lula

O ex-presidente Lula é protagonista de um processo no qual a redemocratização do país coincidiu com a emergência de um novo movimento operário, mais centrado em grandes unidades de produção e capaz de liderar a numerosa classe média assalariada que surgiu com a forte presença das empresas estatais no modelo econômico adotado pelos militares no período de 1964 a 1985. A formação de uma sociedade civil mais complexa emoldurou essas mudanças na transição à democracia, rivalizando com os partidos.

A criação do PT desvinculou a esquerda brasileira dos modelos soviético e social-democrata, mas agarrou com as duas mãos o nacional-desenvolvimentismo impregnado da ideia de revolução brasileira, inspirada em Caio Prado Junior e outros autores. A velha aliança operário-camponesa se traduziu no apoio de Lula ao MST, que protagonizou a ocupação de terras num momento em que a reforma agrária já não fazia sentido, do ponto de vista do desenvolvimento capitalista no campo, com a emergência do agronegócio produtor de commodities de grãos e proteínas, mas refletia a iniquidade o social que persistia no campo, mesmo em grande parte tendo migrado para as cidades.

Lula pôs em prática uma política de projeção do Brasil na cena internacional, exercendo forte influência em toda a América Latina, a partir de um novo modelo de capitalismo de Estado, no qual grandes empresas brasileiras, as “campeãs nacionais”, foram financiadas pelo Estado para que se tornassem players de cadeias globais de comércio, principalmente de minérios, alimentos e serviços de infraestrutura. Em contrapartida, essas empresas financiariam o seu projeto de poder, o que acabou resultando nos escândalos da Lava-Jato.

O colapso econômico desse modelo arrastou consigo a sustentabilidade política do governo Dilma Rousseff. Do ponto de vista das concepções, havia uma linha de continuidade entre a “nova matriz econômica”, as Reformas de Base de João Goulart e o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek. Até que ponto Lula estará disposto a retomar esse fio da história é a grande interrogação de sua atual candidatura à Presidência.

Bolsonaro

As ideias reacionárias de Bolsonaro e dos militares e setores conservadores que o apoiam também não surgiram do nada, são centenárias. Talvez a matriz possa ser encontrada em Oliveira Vianna, um dos ideólogos do Estado Novo, cujo primeiro livro, Populações Meridionais do Brasil, lançado em 1920, viria a influenciar fortemente o movimento tenentista e a Revolução de 1930.

Vianna interpretava a realidade brasileira em duas chaves. A primeira desagregava o país em três formações político-culturais: o sertanejo, o matuto e o gaúcho. Os centros de formação do matuto, as regiões montanhosas do Estado do Rio, o grande maciço continental de Minas e os platôs agrícolas de São Paulo, exerceriam forte influência na organização da vida social e do patriarcado brasileiro. A segunda seria a incompatibilidade entre o liberalismo e a realidade brasileira. As instituições políticas nacionais refletiriam o divórcio entre o Brasil real e o Brasil legal.

Nossas elites dirigentes seriam alienadas da realidade nacional, sob influência do liberalismo de origem francesa e anglo-saxônica, descolado das características do Brasil e desagregador da coesão nacional. O antiliberalismo, o elitismo castrense e o nacionalismo estão disseminados de forma difusa na sociedade brasileira e são catalisados pelo projeto político de Bolsonaro. O regime militar (1964 e 1985) também refletia esses sentimentos. Os generais que presidiram o Brasil nesse período eram jovens oficiais nos anos 1930 e 1940, no auge do prestígio de Oliveira Viana.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-ideias-de-lula-e-bolsonaro-tem-raizes-profundas/