eleições 2020

Marco Aurélio Nogueira: A nova política dos jovens

Pautas identitárias e desejo de renovação põem a juventude paulistana em campanha

Vera Magalhaes acertou em cheio em sua coluna de hoje, no Estadão, quando constata que há um “degrau geracional” separando as candidaturas que disputam a Prefeitura de São Paulo.

É um problema geral, embora se manifeste de forma particular em cada parte do País. Está latejando forte na capital paulistana.

Guilherme Boulos, do PSOL, é o candidato dos jovens entre 16 e 34 anos, que formam uma massa numericamente expressiva e têm lhe dado impulso para ameaçar sobrepujar o atual prefeito, Bruno Covas (PSDB), na reta final.

Uma boa campanha no segundo turno explica parte da situação, mas não explica tudo. O decisivo é que Boulos está conseguindo falar com os jovens, que são sempre dispostos a contestar e buscar coisas novas, além de não gostarem de obedecer. Têm sido eles o motor de sua ascensão. Boulos não entrou nas periferias pobres da cidade, mas está bombando entre os jovens de todos os extratos de renda.

É compreensível que a campanha de Covas não empolgue a moçada mais jovem. O atual prefeito não é midiático, não se atirou nas redes, sua propaganda é fria, ele age como um executivo e, para complicar, é suscetível a muitas “lacrações”: sofre o desgaste de quem está no cargo, é ligado a Dória, o terrível, pertence a um partido considerado “velho”, tem um vice visto como problemático pelo reacionarismo. Até sua doença, um câncer em fase de remissão, é vista como fator de rejeição.

Covas vai bem entre os extratos de maior idade, mais “leais” e chegados à moderação. E seus votos estão distribuídos em todos os distritos da cidade. Mas, se os velhinhos decidirem não votar por receio da Covid, por exemplo, o prefeito poderá perder a eleição.

Os jovens querem movimento, dinamismo, novidade. Estão cansados da mesma lengalenga tucana onipresente em São Paulo. E não se preocupam muito em ligar a eleição paulistana ao futuro do País, ou seja, às urnas de 2022. Não se perguntam, por exemplo, se a vitória de um ou outro candidato ajudará em maior ou menor medida a luta contra o bolsonarismo mais adiante. São majoritariamente contrários às baixarias e ao regressismo de Bolsonaro, não ligam muito para esquerda vs. direita, aderiram para valer às pautas ditas “identitárias”, não só as de gênero e etnia, mas também as ambientais, as da sustentabilidade, da cidade com menos automóveis, da coleta seletiva do lixo, do consumo consciente. Tais pautas são o modo como agem no mundo.

É uma linguagem que não tem sido praticada pelos políticos. E que Boulos soube capturar, ao menos em parte.

Há que considerar que os jovens de hoje não são militantes como foram os seus pais. Não querem saber de comandos partidários, ordens unidas, chefes e agendas rígidas. Engajam-se de modo tópico, seletivo, espasmódico. Não sacrificam a vida pessoal em nome de uma causa coletiva ou da glória de uma organização. Não se referenciam por líderes ou ideologias. São multifocais, abraçam várias causas simultaneamente. Seu ambiente são as redes sociais, sua maior ferramenta é a conectividade.

Numa época de crise da política e da democracia, a exigência de militância, de causas a serem defendidas, permanece. Os engajamentos estão mais próximos da “política-vida” do que da “política-poder”. É uma época com mais “coração” do que “cabeça” politica. As sociedades estão fragmentadas e individualizadas. Há um desencanto com as instituições.

Sem centros claros de coordenação, as partes (grupos, indivíduos, regiões) se afastam umas das outras e seguem lógicas próprias, ainda que, paradoxalmente, tudo fique mais conectado.

Em particular os jovens (mas muitos não tão jovens também) são social e culturalmente hiperativos, movem-se pela necessidade de se autoexpressarem e não são ligados a lutas por poder em sentido estrito. Olham torto para os políticos que só se preocupam em gerir recursos de poder e maximizar interesses eleitorais, que são rotineiros, previsíveis. Gosta-se mais daquilo que não se conhece.

Pouco importa que os mecanismos concebidos para a deliberação (um mutirão, um orçamento participativo, consultas populares) produzam resultados precários O importante é que sirvam para extravasar indignação, carências, desejos, opiniões.

O problema – sempre há um problema – é que o ativismo jovem pode não ser suficiente para que se consiga estabelecer equilíbrios e consensos que articulem um sistema alternativo. A nova “zona de ação política”, por ser pouco organizada e mais individualizada, estar marcada pela movimentação contínua, por pressões antissistêmicas erráticas, produz uma politicidade de outro tipo, cujo teor e formato institucional ainda estão por ser estabelecidos.

Não há, porém, muralhas intransponíveis separando velhas e novas formas de ativismo, que se cruzam e podem se combinar de diferentes maneiras, beneficiando-se reciprocamente. Se suas agendas contém distintas ênfases e questões, também estão repletas de temas que somente podem ser enfrentados com sucesso se se interpenetrarem e forem articulados em uma plataforma de síntese politica.

O novo ativismo pode ser uma importante alavanca de construção do futuro. Será isso, no entanto, na medida em que souber se articular com o “velho ativismo” e considerar o conjunto da experiência social e convergir para a reforma democrática da sociedade, do Estado e da politica. Se tentar evoluir solitariamente, fechado em suas causas específicas e na busca de autoexpressão, produzirá ruído e efervescência, mas perderá em termos de efetividade.

A necessidade dessa articulação está posta pela vida. Afinal, o social que se fragmenta não desaparece como social. A dimensão coletiva da existência não se dissolve só porque a individualização se expande. Ainda continua a ser fundamental combinar ações e promover convergências.


Bruno Boghossian: Formação de frente contra Bolsonaro surge como experiência em Fortaleza

Associação de candidato com presidente empurrou líderes de PT, PSDB, DEM e PSOL para campanha

A dez dias do primeiro turno, Jair Bolsonaro abriu espaço em sua transmissão nas redes e pediu votos em Capitão Wagner (Pros) para a Prefeitura de Fortaleza. “Parece que é minha segunda cidade do Brasil”, disse o presidente. O candidato chegou ao segundo turno, mas agora enfrenta um consórcio político interessado em derrotar essa aliança.

A disputa na capital cearense exibe os traços de uma experiência para a formação de uma frente antibolsonarista. A associação entre Wagner e o presidente empurrou líderes de siglas como PT, PSDB, DEM e PSOL para a campanha de José Sarto (PDT), candidato de Ciro Gomes.

O deputado Marcelo Freixo (PSOL) deu o tom dessa coalizão ao declarar apoio a Sarto, na semana passada. “É muito importante derrotar o candidato do ódio, o candidato da mentira, o candidato do medo, o candidato do Bolsonaro”, afirmou o parlamentar, em vídeo que foi divulgado numa página de Ciro.

Na segunda-feira (23), o pedetista levou ao ar em seu programa de TV, manifestações de petistas e de Rodrigo Maia (DEM). “Ninguém governa sozinho”, disse o presidente da Câmara para justificar a participação da sigla na chapa do candidato.

Sarto também exibiu uma declaração do senador cearense Tasso Jereissati (PSDB), que já foi chamado por Ciro de “picareta-mor”. Depois de um longo afastamento, os dois ensaiaram uma reaproximação.

A formação desse tabuleiro carrega as marcas do cenário nacional. Líder de um motim da PM, Wagner rejeita o selo de afilhado de Bolsonaro, mas é um nome identificado com suas bandeiras. O alinhamento parece um mau negócio: 47% dos eleitores de Fortaleza consideram o presidente ruim ou péssimo; 26% dizem que seu governo é ótimo ou bom.

Alianças locais seguem as circunstâncias políticas de cada município, mas a disputa na capital cearense sugere que alguns personagens podem esquecer divergências políticas quando têm objetivos comuns –algo que o próprio Ciro se recusou a fazer no segundo turno de 2018.


Bernardo Mello Franco: Disputa na lama

A disputa pela prefeitura do Rio desceu até o nível do pré-sal. Nos últimos dias de campanha, Marcelo Crivella e Eduardo Paes travam um duelo de agressões e ofensas. O comportamento dos candidatos ajuda a rebaixar a cidade, que já sofre com a pandemia, a crise econômica e os sucessivos escândalos de corrupção.

Em apuros nas pesquisas, Crivella apelou à tática da guerra santa. Num vídeo dirigido a eleitores evangélicos, ele disse que Paes implantaria a pedofilia nas escolas. Não foi a única baixaria protagonizada pelo bispo da Igreja Universal.

Sua campanha imprimiu 1,5 milhão de panfletos em que Paes aparece ao lado de Marcelo Freixo. Além de emporcalhar as ruas, a peça difunde mentiras. Acusa os dois de defenderem legalização do aborto, liberação das drogas e “kit gay” nas escolas.

Crivella investe no fundamentalismo e na desinformação. A legislação sobre drogas e aborto é federal, nada tem a ver com as atribuições de um prefeito. O “kit gay” nunca existiu. É uma ficção usada por políticos reacionários para tapear eleitores religiosos.

O bispo parece descontrolado diante da perspectiva da derrota. No debate da Band, ele disse que o adversário “não gosta de mulher”. Ontem faltou à tradicional sabatina da rádio CBN. À noite, sua propaganda afirmou que Paes estaria prestes a ser preso por corrupção. O discurso já foi usado por um certo ex-juiz, hoje mais perto de Bangu do que do Palácio Laranjeiras.

Com 42 pontos de vantagem, Paes poderia ignorar as ofensas e fazer uma campanha propositiva. Não é o que se vê na TV. Para rebater a sujeirada de Crivella, o ex-prefeito também resolveu chafurdar na lama. Ontem à noite, ele não deu as caras no próprio programa. Foi representado por uma atriz que chamou o outro candidato de “falso pastor”, “mercenário” e “traíra”.

No rádio, o ex-prefeito disse ser contrário à educação sexual nas escolas. “Isso deve partir de dentro de casa, do seio da família”, afirmou. O ensino demonizado por demagogos ajuda a prevenir doenças e gravidez precoce. Na corrida pelo voto religioso, Paes se curvou ao obscurantismo do rival.


Vera Magalhães: Mas sua filha vota

Degrau geracional no voto em SP mostra urgência de falar com eleitor jovem

Apenas dois anos separam os jovens Bruno Covas (40 anos) e Guilherme Boulos (38). Mas as estratégias definidas pelas duas campanhas à Prefeitura de São Paulo levaram a que se estabelecesse um “degrau geracional” no voto de ambos que pode projetar cenários importantes para a política nacional, além das fronteiras da capital paulista.

Em 16 de novembro, dia seguinte ao primeiro turno, o ex-jogador de futebol e comentarista esportivo Walter Casagrande postou a mesma pergunta a Boulos e Covas: ele, dependente químico em recuperação, queria saber a política de ambos para as drogas. Boulos levou menos de duas horas para responder. Covas levou dez. No último fim de semana, Boulos fez uma live com o youtuber Felipe Neto, que tem 40 milhões de seguidores no YouTube, para jogar AmongUs, um jogo eletrônico que é febre entre jovens, acompanhado das filhas. Até a noite de ontem o vídeo tinha 3,1 milhões de visualizações.

Pesquisa Datafolha divulgada na madrugada desta terça-feira explicita a diferença geracional que se estabeleceu no voto do paulistano. A idade é “O” fator de decisão de voto em Boulos, mais que renda, como poderia supor o militante de esquerda. O prefeito vence em todos os extratos sociais, mesmo entre os eleitores que recebem até 2 salários mínimos.

Quando se analisa a faixa etária do eleitor, a coisa muda drasticamente de figura. Boulos dá uma lavada em Covas na faixa entre 16 e 24 anos, vence com folga no grupo imediatamente mais velho, até 34 anos, e quase chega lá entre os eleitores entre 35 e 44 anos.

E é aí que mora o maior risco para a reeleição de Covas, ao qual seus aliados estão atentos: o eleitorado mais velho é também o mais suscetível a não comparecer para votar, num ano marcado por um recorde de abstenções. O risco de contaminação pelo novo coronavírus no momento em que os casos voltaram a subir de forma preocupante pode impactar ainda mais o segundo turno que o primeiro.

Covas praticamente não tem engajamento nas redes sociais. Preferiu fazer uma campanha “old school”, com grande tempo de TV e muito profissional. Deu certo: ele passou tranquilo pelo primeiro turno e lidera com margem de 10 pontos a poucos dias do pleito. Mas ignorar as redes sociais e a personalidade que o eleitor jovem adquiriu nessa campanha pode ser um erro para políticos que queiram alçar voos futuros, e é nesse ponto que a campanha de Boulos serve como case nacional.

A distopia bolsonarista parece ter atingido o eleitor jovem mais que qualquer outro. A forma desrespeitosa e ameaçadora com que o presidente trata mulheres, negros e LGBTQIA+ e questões como a preservação ambiental causa urticária natural em um eleitorado para o qual diversidade, representatividade e sustentabilidade não são pautas “identitárias”, mas sim o modo pelo qual enxergam o mundo.

Falar com esse eleitor nada tem a ver com “lacrar" na internet ou se eleger à custa de memes e fake news, como fez Bolsonaro em 2018. Significa acordar para a necessidade de se comunicar de forma sincera, orgânica e eficiente com um público que vai, nas eleições vindouras, decidir qual o perfil do político para enfrentar Bolsonaro e também para ocupar cadeiras no Congresso.

A “virada” pregada por Boulos parece difícil, pelo voto consolidado de Covas nos segmentos e nos bairros da cidade, além da máquina mais poderosa a seu dispor e da avaliação consistente que tem como prefeito num ano em que as escolhas também se pautaram pela experiência dos gestores. Mas fica o aprendizado de que a disputa civilizada, sem gravata e dentro das balizas da política travada na cidade pode ser laboratório para conquistar corações e mentes de um eleitor ainda não viciado em polarização raivosa.


Rosângela Bittar: A terceira eleição

PSDB não teme solução radical para buscar um novo nome: a realização de prévias

Ao apurar as urnas, no domingo, o município de São Paulo terá o resultado de três eleições. A primeira revelará a identidade do novo prefeito. A segunda, de dimensão nacional, indicará os efeitos desta definição na peleja do governador João Doria e do presidente Jair Bolsonaro. A terceira e mais complexa deflagrará a disputa interna no PSDB, de que pouco se fala mas, com certeza, desabrochará.

A resistência a João Doria definirá sua proporção, no PSDB, a partir de agora. Com o desempenho eleitoral do prefeito Bruno Covas este grupo, que contava apenas com a presença discreta do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, passa a ter um novo ponto de articulação.

Se conseguir levar seu eleitorado a comparecer, Covas continua favorito para vencer o segundo turno, apesar do impulso de crescimento de seu oponente em cima do contingente de indecisos. Se não, pelo resultado até aqui, passou a ser um ator importante nas definições político-eleitorais do PSDB. Não é mais o vice, de carona em um mandato tampão de prefeito. Sua votação tornou-se pessoal. A campanha lhe permitiu, também, mostrar uma gestão reconhecida, apesar da travessia de períodos dramáticos que viveram os cidadãos e ele próprio.

Desempenho eleitoral e gestão o credenciam como força partidária. Não necessariamente em futuro benefício próprio, devido aos problemas de saúde, mas para fortalecer a oposição interna que não vê em Doria o destino do PSDB. Doria está desgastado. Sabe-se, inclusive, o ponto nevrálgico de seu esgotamento, e não está na gestão. O governo é bem avaliado, tem uma equipe melhor que a do governo federal, fez uma reforma administrativa que Bolsonaro levará ano e meio para começar. Como se formou, então, tão denso desgaste? Especialistas identificaram sua origem em um fenômeno que definem como “excesso de imagem”.

Desde o momento inicial, que ficou conhecido como a fase de traição a Geraldo Alckmin, ao abandono precoce do mandato de prefeito, passando pelas dificuldades para desatar a armadilha BolsoDoria, mais os palanques diários, a voz onipresente. Acreditou na comunicação direta como um ativo e cansou o distinto público.

A tese se comprova. Tanto que o momento mais bem sucedido de Doria, no quesito aceitação, se deu quando saiu de cena e deixou Bolsonaro falando sozinho, a comemorar a suspensão da vacina anticoronavírus do Butantã. Colocou médicos e cientistas para duelar com o provocador, levando o Presidente da República a murchar seu ímpeto num instante, completamente sem graça. Mas foi exceção. O PSDB sente-se preparado para articular alternativas. Eduardo Leite, considerado um belo produto político, galvaniza estas forças. Como é pouco conhecido, foi um opositor discreto internamente. Mas agora pode contar com São Paulo. Além de oferecer ao partido a construção de uma candidatura a partir do zero.

Estão todos conscientes de que uma reação como esta é de difícil operação. Bruno Covas tem a política na sua natureza, conhece o centro do poder e sintoniza-se melhor com Leite do que com Doria. Mas é certo que terá enormes dificuldades de liderar o movimento de dentro para fora de São Paulo. Não só pelo constrangimento que, em política, se dilui, mas por questões de outra natureza, como a relação do prefeito com o governador e do partido com o Estado onde se encontra o maior colégio eleitoral.

Reconhecer que é difícil não significa que não vai haver. O PSDB já sente profundamente a necessidade de buscar um novo nome. Gosta de seu dilema de sempre que considera sua marca: não se discute se o partido terá candidato, mas quem será. E não teme, em último caso, a solução radical para este tipo de impasse: a realização de prévias. Que podem ser organizadas num estalar de dedos. Para o PSDB, isto é muito.


Cláudio de Oliveira: A situação financeira da prefeitura de São Paulo

Diga-se com todas as letras: quem quebrou a Prefeitura de São Paulo foi a direita. Eleito em 1992, Paulo Maluf e o seu secretário de finanças, Celso Pitta, aumentaram significativamente a dívida do município com uma gestão perdulária, populista e irresponsável. Maluf investiu pesadamente em obras viárias, várias delas de prioridade duvidosa e com denúncias de superfaturamento, incentivando o transporte individual.

Para desviar a atenção da falta de investimento em transporte coletivo, a propaganda eleitoral de Pitta, em 1996, apresentou uma animação gráfica de um VLT apelidado de Fura-Fila. O projeto contrariava os argumentos técnicos, uma vez que no trajeto do Fura-Fila havia planejamento para uma linha do metrô. O Fura-Fila causou pesado ônus aos cofres do município.

Maluf não implantou o SUS, determinado pela Constituição de 1988. Transformou a saúde pública no desastroso PAS, o Plano de Assistência à Saúde, gerido por cooperativas médicas, assoladas por toda sorte de denúncias de irregularidades. Podemos debater se houve programas positivos como o Singapura, de verticalização de favelas, e o Leve-Leite. Mas, ao mesmo tempo em que o Leve-Leite foi lançado, foi descuidada a merenda escolar. No final da gestão Pitta, chegou a ser servida nas escolas municipais uma merenda composta apenas de suco e bolacha.

O legado do malufismo foi desastroso: um enorme rombo nas contas da prefeitura, um grande déficit de vagas nas creches municipais, um número enorme das famigeradas escolas de latas, as salas de aulas em containers espalhados pela cidade na administração Pitta. Maluf e Pitta deixaram um sistema de transportes caótico, com explosão do número de vans clandestinas, formado especialmente por veículos importados da China à época do início do Plano Real, quando nossa moeda era equiparada ao dólar.

A situação financeira da cidade só não estava pior porque o governo federal, sob o comando de Fernando Henrique Cardoso, havia federalizado as dívidas de estados e municípios, num acordo em que as prefeituras e governos dos estados se comprometiam em pagá-las em parcelas durante 30 anos.

Coube a Marta Suplicy, eleita em 2000, e ao seu secretário João Sayad, o ônus de sanear o descalabro financeiro deixado por Maluf e Pitta, numa conjuntura econômica extremamente difícil. Como sabemos, o segundo mandato do governo FHC foi marcado pelas crises das moedas dos países emergentes, com consequente baixo crescimento, e pelo apagão em 2001. Marta organizou o sistema de transportes públicos e implantou o bilhete único, ainda que tenha aumentado a tarifa de ônibus acima da inflação e a prefeitura não tenha ampliado subsídios, uma vez que a sua situação fiscal não permitia. Ela aumentou o IPTU e implantou sua progressividade, criou as taxas do lixo e da luz, trazendo-lhe grande desgaste político. Ela deu o início à construção dos CEUS, mas não conseguiu zerar o déficit das creches nem eliminar as escolas de lata.

Com a eleição de Lula, em 2002, Marta tentou renegociar os índices de juros da dívida do município com a União, sem êxito. Prefeitos e governadores pretendiam trocar o Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna (IGP-DI), da Fundação Getúlio Vargas, então vigente no acordo com a União, pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

Devido aos juros elevados para segurar o recrudescimento da inflação e a fuga de dólares, a dívida federal havia aumentado consideravelmente. No final do governo de FHC, o Brasil teve de assinar um acordo para ajuda do FMI, além de conseguir empréstimo com o governo de Bill Clinton, com o objetivo de fechar as contas no azul.

Lula assumiu a presidência da República prometendo honrar o acordo com o FMI, no qual previa um superávit de 4% do PIB, para estabilizar a dívida pública e o compromisso de realizar reformas com o objetivo de fazer um ajuste estrutural das contas públicas. O seu ministro da Fazenda, Antônio Palocci, promoveu o maior corte de gastos públicos desde a redemocratização do país, entregando um superávit primário de 4,25% do PIB, ao mesmo tempo em que fez aprovar a reforma da Previdência do setor público.

Com a administração austera em seu primeiro mandato, Lula conseguiu evitar o que aconteceu com a vizinha Argentina, quando o descontrole da inflação levou o presidente Fernando de La Rua a renunciar ante os gigantescos panelaços. Foram essas medidas de austeridade de Palocci que causaram a oposição da ala radical do PT e o surgimento do PSOL, em 2004, ainda antes do escândalo do mensalão. Evitando uma aguda crise econômica e financeira do país, Lula pôde retomar o crescimento econômico no segundo mandato, com uma média de 4% do PIB nos seus dois governos, favorecido pelos bons ventos internacionais, em especial pelo crescimento da China.

Foi nesse contexto mais favorável das economias nacional e internacional que José Serra, eleito em 2004, e Gilberto Kassab, a parir de 2006 e reeleito em 2008, puderam retomar obras paralisadas, retomar a construção dos CEUs iniciados na gestão de Marta, construir escolas de alvenaria em substituição às escolas de lata, por fim ao terceiro turno nas escolas municipais, retomar a construção dos corredores de ônibus e implantar a integração do bilhete único com o metrô e os trens da CPTM.

Ressalte-se que Kassab foi o único prefeito que contribuiu com o governo do estado para as obras do metrô, apontado pelos especialistas como a solução ótima para o transporte público em São Paulo. Porém, Kassab não conseguiu zerar o déficit crônico de vagas nas creches municipais. Serra e Kassab também tentaram em vão renegociar o índice dos juros da dívida do município.

Fernando Haddad foi eleito em outubro de 2012 com apoio da presidente Dilma Rousseff, que prometera na campanha do petista uma ajuda de R$ 8 bilhões para viabilizar o Arco do Futuro, um ambicioso plano de urbanização e obras viárias do centro de São Paulo, apresentado no horário eleitoral.

Porém, com a crise das hipotecas em 2007/2008 nos Estados Unidos, os ventos viraram. Em 2009, o Brasil só não fechou no vermelho graças à compra antecipada por parte da Petrobras de barris de petróleo da União. A partir de 2011, o Brasil terá declínio do crescimento do PIB.

Em 2012, ano da eleição de Haddad, o governo de Dilma só fechou no azul graças à antecipação dos dividendos das estatais e dos bancos públicos. Os anos seguintes serão de manobras fiscais, apelidadas de "contabilidade criativa" e "pedaladas fiscais", que ensejaram a oposição a fazer o pedido de impeachment da presidente Dilma, em 2016.

Já em 2013 era sentido o baque na economia com a indústria paulista dando férias coletivas ou recorrendo ao Lay Off. Segundo a FGV, a recessão começou no terceiro trimestre de 2014 e levou a uma queda do PIB de 8,2%, só inferior à recessão de 1981-1983, de recuo de 8,4% do PIB e que jogou o Brasil na década perdida de 1980.

A ajuda federal de R$ 8 bilhões não veio e, com a queda na arrecadação, o prefeito Fernando Haddad anunciou, em agosto de 2013, a desistência de realizar as obras do Arco do Futuro. Ele tentou renegociar os juros da dívida da prefeitura com o governo federal sob o comando de Dilma, mas também não conseguiu.

Esses índices foram finalmente alterados quando o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, pôs em votação a "pauta-bomba" no segundo mandato de Dilma. Porém, o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, sentou em cima da lei e foi preciso que Fernando Haddad fosse à Justiça para que o governo federal trocasse os índices, o que só aconteceria no ano seguinte, em 2016, ano final de sua gestão.

Depois de desistir do Arco do Futuro e em meio à queda na arrecadação, Haddad tocou a máquina da prefeitura, garantindo os serviços públicos, o que, em se tratando de São Paulo, não é pouca coisa. Ele só conseguiu construir um CEU e não venceu o déficit de vagas nas creches, mas ampliou o número de corredores de ônibus.

À falta de obras viárias vistosas, Haddad ampliou faixas de ônibus e construiu ciclovias e especialmente ciclofaixas. Promoveu corte de gastos em diversos programas, inclusive no Leve-Leite. Para colocar os gastos nos níveis exigidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, sob pena de incorrer em crime de responsabilidade, a prefeitura, entre outras medidas, suspendeu contratos com empresas de segurança nos últimos seis meses da administração, ficando alguns parques municipais sem segurança no período.

Como parte do esforço fiscal de ajustar as contas do município à difícil realidade econômica, Haddad apresentou uma proposta de reforma da deficitária Previdência dos servidores municipais. Diante da reação dos sindicatos dos funcionários públicos e de partidos de esquerda, entre eles o PSOL, a reforma foi suspensa, e seria retomada com mudanças na gestão do seus sucessor João Doria e aprovada na gestão Bruno Covas.

Porém, diante das resistências, a reforma da Previdência municipal foi desidratada: aumentou o desconto de 11% a 14%, criou um fundo complementar para aposentadorias acima do teto do INSS, mas não estabeleceu idade mínima, ficando, segundo muitos economistas, aquém das reformas previdenciárias em vários estados da federação, inclusive dos estados governados pelo PSB, como Pernambuco, e PT, como Bahia, Ceará e Rio Grande do Norte.

Haddad agiu com responsabilidade fiscal, teve capacidade política, manteve um bom diálogo com o governo do estado sob o comando de Geraldo Alckmin. Contra sua gestão não há casos comprovados de corrupção sob sua responsabilidade pessoal direta. Porém, Haddad foi derrotado em todas as 58 zonas eleitorais de São Paulo em sua tentativa de reeleição em 2016, prejudicado por uma conjuntura econômica adversa, somada ao desgaste do seu partido decorrente dos escândalos revelados pela Lava Jato.

As gestões de Doria e Covas promoveram novos ajustes, uma vez que não houve uma recuperação econômica significativa e constante do país, frustradas tanto no final do governo do presidente Michel Temer quanto no primeiro ano de Jair Bolsonaro. Mesmo assim, obras como de CEUs, corredores de ônibus, unidades de saúde e hospitais foram retomadas e continuadas.

Mas, com a pandemia do coronavírus, o município teve de enfrentar uma nova realidade, com gastos com o fortalecimento do SUS e a construção de diversos hospitais de campanha. A situação para estados e municípios só não ficou dramática graças aos programas de auxílio-emergencial e de ajuda econômica do governo federal, inclusive a prefeituras e governos dos estados, aprovados principalmente por iniciativa e pressão do Congresso.

A futura gestão da cidade dependerá de uma equação cujo um dos elementos é a capacidade do governo federal em resolver a crise econômica do país. Com um déficit primário de cerca de R$ 660 bilhões e a incapacidade política do presidente Bolsonaro em liderar o Brasil – ele mais atrapalha do que ajuda –, talvez seja prudente não alimentar grandes expectativas qualquer que seja o eleito no próximo dia 29 de novembro.

*Cláudio de Oliveira, jornalista e cartunista, autor do livro Pittadas de Maluf, ganhador do troféu do melhor livro de charges de 1998


Andrea Jubé: A lição de Patos para a sucessão em 2022

Centro-direita larga fragmentado para 2022

Os ingredientes da eleição para prefeito de uma cidade média no sertão paraibano alçaram-na ao patamar de microcosmo político do país, na visão de alguns cientistas políticos.

Projetando-se o cenário local para o plano nacional, em um criativo exercício de análise política, o resultado da eleição em Patos, na Paraíba, colocaria em xeque o sucesso de uma eventual chapa encabeçada pelo ex-ministro da Justiça Sergio Moro em 2022.

Uma premissa somente autorizada, ressalte-se, no contexto da recuperação da política tradicional como principal resultado do primeiro turno das eleições municipais.

Com 108 mil habitantes, o terceiro reduto de poder mais cobiçado da Paraíba - depois de João Pessoa e Campina Grande - foi palco de uma eleição acirrada, polarizada entre um “outsider” e um representante da “velha política”.

De um lado, concorreu o Juiz Ramonilson Alves, postulante do Patriota, que se aposentou para ingressar na política; na outra ponta, o ex-prefeito Nabor Wanderley, candidato do Republicanos.

Chamado de “Moro da Paraíba”, o Juiz Ramonilson encabeçou a chapa, com o DEM na vaga de vice. Nos discursos, afirmava que a solução para a cidade passava pelo combate intensificado à corrupção e pelo fim do monopólio político local.

Seu adversário era um legítimo representante da política tradicional, encabeçando uma coligação formada por Republicanos, PP, PSD, PSL, Rede e Cidadania. Nabor governou a cidade duas vezes, de 2005 a 2012.

Nabor respondeu a denúncias de corrupção, muitas delas julgadas por Ramonilson. No horário eleitoral e em entrevistas, acusou o ex-magistrado de persegui-lo há muitos anos, desde sempre com finalidades eleitorais.

Ao fim de um embate acalorado, Nabor alcançou 51% dos votos, contra 41% do Juiz Ramonilson. Um resultado local que refletiu o quadro verificado no plano nacional, considerado o placar das capitais e principais cidades brasileiras: a vitória da política tradicional sobre a “nova política”, da qual Jair Bolsonaro foi o expoente em 2018.

“A eleição municipal restaurou o sistema político, o “outsider” perdeu valor no mercado político e o centro institucional saiu consagrado”, disse à coluna o cientista político Nelson Rojas de Carvalho, professor do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

Para ele, este resultado reduz as chances de “players” de fora da política cotados para a sucessão presidencial, como Sergio Moro e Luciano Huck.

O pesquisador aponta a derrota da “nova política” neste pleito, mas, não a do presidente Jair Bolsonaro como cabo eleitoral. Isso porque a eleição municipal não tem determinantes nacionais, mas, sim, consequências no plano nacional.

“A eleição municipal tem uma dinâmica local que gera efeitos nacionais”, argumenta o autor de “E no início eram as bases - Geografia política do voto e comportamento legislativo no Brasil”.

Ele aponta dois efeitos principais do pleito municipal no âmbito nacional: uma configuração mais sólida do quadro sucessório, e a composição de forças no Congresso Nacional na próxima legislatura.

O primeiro efeito do pleito municipal na sucessão presidencial, na visão de Nelson Rojas, é a fragmentação das forças de centro-direita, que tendem a avançar separadamente após o resultado deste ano.

Para o pesquisador, o desempenho do DEM, principalmente nas capitais, levará o partido a lançar candidatura própria em 2022. “O partido não aceitará ser vice do PSDB de novo”.

Um dos nomes colocados é o do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Correm por fora o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

No primeiro turno, o DEM reelegeu Rafael Greca, em Curitiba; Gean Loureiro, em Florianópolis; elegeu Bruno Reis em Salvador; e avança rumo à vitória de Eduardo Paes, que deverá governar o Rio de Janeiro pela terceira vez.

De igual forma, se o PSDB reeleger o prefeito de São Paulo, Bruno Covas, não terá por que renunciar à cabeça de chapa na disputa presidencial em 2022. O nome mais provável é o do governador João Doria, embora o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, também seja cotado para a empreitada.

Mas se Covas for à lona, abatido pelo ativista Guilherme Boulos (PSOL), “o PSDB se perde”, e ficará difícil encabeçar a chapa, diz Nelson. Em especial, após o desempenho de Geraldo Alckmin em 2018, que obteve 4,7% dos votos válidos.

No espectro da esquerda, o pesquisador vê Ciro Gomes (PDT), ou um candidato apoiado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mais competitivos numa conjuntura de crise econômica, em um paralelo com a Argentina, onde a derrocada levou à vitória de Alberto Fernández.

“Se a economia chegar em 2022 em um diapasão tolerável”, as chances aumentam para a centro-direita”, diz o professor, que foi colunista convidado do Valor.

O segundo reflexo das eleições municipais na conjuntura nacional, segundo Nelson Rojas, vai se consumar na eleição dos deputados federais e senadores para a legislatura de 2023-2026.

Ele afirma que a nova correlação de forças que emerge da eleição municipal vai se refletir na composição do novo Congresso, e os partidos que elegeram mais prefeitos serão hegemônicos no Legislativo. As seis siglas que mais conquistaram ou preservaram prefeituras foram MDB, PP, PSD, PSDB, DEM e PL, todos representantes do centro político.

Nelson discorda da interpretação de que o primeiro turno das eleições municipais foi um “plebiscito” sobre o governo Bolsonaro. Ele acha equivocado atribuir o mau desempenho do prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicanos), ao apoio de Bolsonaro. O presidente perdeu, na sua visão, ao não conseguir organizar o seu partido, e com ele, ocupar espaço no pleito municipal.


Bernardo Mello Franco: A frente de Boulos

O prefeito Bruno Covas lidera as pesquisas e é favorito para vencer a eleição de São Paulo. Mas foi da campanha do seu adversário, Guilherme Boulos, que surgiu o fato político mais relevante do segundo turno até aqui.

No sábado, Lula, Ciro Gomes, Marina Silva e Flávio Dino apareceram juntos na propaganda do candidato do PSOL. Os quatro não dividiam o mesmo palanque eletrônico desde 2006, quando o ex-presidente conquistou o segundo mandato.

Boulos emergiu como a grande novidade do primeiro turno. Com 17 segundos na TV, ultrapassou veteranos como Márcio França e Celso Russomanno, que contava com o apoio do presidente Jair Bolsonaro. O candidato do PT, Jilmar Tatto, amargou um vexatório sexto lugar.

O PSOL investiu na dobradinha entre um candidato de 38 anos e uma vice de 85. A presença de Luiza Erundina ajudou a atenuar um dos pontos fracos de Boulos. Se ele nunca ocupou cargos públicos, ela governou a cidade entre 1989 e 1992.

A campanha improvisou uma espécie de papamóvel para a ex-prefeita circular na pandemia. Protegida por uma cabine de acrílico, ela percorre a periferia em busca de votos que se descolaram do PT em 2016.

Apesar da aposta no corpo a corpo, Boulos decolou graças à internet. Sua candidatura ganhou impulso nas redes sociais, onde o bolsonarismo reinou sozinho na última eleição. Ele mobilizou artistas e ganhou a preferência dos eleitores mais jovens.

O líder do MTST moderou o tom, mas não abriu mão do discurso contra a desigualdade e a extrema direita instalado no Planalto. No segundo turno, isso o ajudou a reunificar o campo progressista, que se estranhava desde o rompimento de Lula e Ciro na corrida presidencial.

A união em torno de Boulos fez a esquerda voltar a sonhar com uma aliança nos moldes da Frente Ampla uruguaia para enfrentar Bolsonaro em 2022. O cenário ainda é improvável, mas deixou de ser impossível. E Boulos será peça-chave para qualquer acordo daqui a dois anos.

O prefeito Bruno Covas lidera as pesquisas e é favorito para vencer a eleição de São Paulo. Mas foi da campanha do seu adversário, Guilherme Boulos, que surgiu o fato político mais relevante do segundo turno até aqui.

No sábado, Lula, Ciro Gomes, Marina Silva e Flávio Dino apareceram juntos na propaganda do candidato do PSOL. Os quatro não dividiam o mesmo palanque eletrônico desde 2006, quando o ex-presidente conquistou o segundo mandato.

Boulos emergiu como a grande novidade do primeiro turno. Com 17 segundos na TV, ultrapassou veteranos como Márcio França e Celso Russomanno, que contava com o apoio do presidente Jair Bolsonaro. O candidato do PT, Jilmar Tatto, amargou um vexatório sexto lugar.

O PSOL investiu na dobradinha entre um candidato de 38 anos e uma vice de 85. A presença de Luiza Erundina ajudou a atenuar um dos pontos fracos de Boulos. Se ele nunca ocupou cargos públicos, ela governou a cidade entre 1989 e 1992.

A campanha improvisou uma espécie de papamóvel para a ex-prefeita circular na pandemia. Protegida por uma cabine de acrílico, ela percorre a periferia em busca de votos que se descolaram do PT em 2016.

Apesar da aposta no corpo a corpo, Boulos decolou graças à internet. Sua candidatura ganhou impulso nas redes sociais, onde o bolsonarismo reinou sozinho na última eleição. Ele mobilizou artistas e ganhou a preferência dos eleitores mais jovens.

O líder do MTST moderou o tom, mas não abriu mão do discurso contra a desigualdade e a extrema direita no poder. No segundo turno, isso o ajudou a reunificar o campo progressista, que se estranhava desde o rompimento de Lula e Ciro na campanha de 2018.

A união em torno de Boulos fez a esquerda voltar a sonhar com uma aliança nos moldes da Frente Ampla uruguaia para enfrentar Bolsonaro em 2022. O cenário ainda é improvável, mas deixou de ser impossível. E Boulos sairá da eleição como peça-chave para qualquer acordo daqui a dois anos.


Ricardo Noblat: Ganha emoção a disputa entre Covas e Boulos em São Paulo

Diminui a diferença entre os dois

Bruno Covas (PSDB) ficou onde estava sem perder um único ponto percentual no total das intenções de voto na nova pesquisa Datafolha para prefeito de São Paulo no segundo turno cujos resultados foram divulgados na madrugada de hoje.

Foi Guilherme Boulos (PSOL) que cresceu, reduzindo a vantagem de Covas medida na pesquisa da semana passada. Cresceu em cima de parte dos eleitores que pretendiam votar em branco, anular o voto ou que se diziam indecisos quanto a apoiá-lo.

Se antes 18 pontos separavam os dois ao se computar apenas os votos válidos, excluídos os brancos, nulos e indecisos, agora são 10. Significa que Boulos precisará tomar de Covas 5 pontos de votos válidos para chegar empatado com ele no domingo.

É possível? Sim, fácil não é. Aumentou a certeza dos eleitores: agora são 86% os que dizem que igualmente votarão em Covas ou em Boulos. Entre os 14% que admitem mudar de idéia, 52% afirmam que migrariam para o voto nulo ou em branco.

O avanço de Boulos se deu principalmente entre os eleitores mais jovens e que revelam maior disposição para votar no domingo. A grande maioria dos eleitores mais velhos está com Covas, embora os efeitos da pandemia possam reter uma parte em casa.

Se houver um voto de protesto por conta do assassinato de João Alberto no Carrefour de Porto Alegre, Boulos se beneficiará disso. Entre os que se apresentam como pretos ouvidos pelo Datafolha, ele cresceu oito pontos percentuais no total das intenções de voto.

Em resumo: tudo pode acontecer nessa reta final de campanha, inclusive nada.


Mathias Alencastro: Para os progressistas, chegou a hora da destruição criativa

O desespero dos caciques e o sumiço dos expoentes do fisiologismo são o principal indício de que a renovação partidária e geracional veio para ficar

A construção da candidatura presidencial do PT em 2018 se articulou em torno de duas disputas regionais. A cidade de São Paulo, maior reserva de votos petista no Sudeste, e Pernambuco, onde Lula investiu todo o seu capital político para isolar Ciro Gomes.

A ascensão de Guilherme Boulos e o racha em Recife provocado pela disputa entre João Campos e Marília Arraes devem inviabilizar a repetição dessa estratégia e alterar o cálculo da disputa presidencial.

Um revés para os petistas, imputável à sua franja mais conservadora, que assumiu o controle da Direção Executiva durante a prisão de Lula. Desde então, o jogo da política foi preterido em favor dos arranjos burocráticos, e o debate programático substituído pela exaltação acrítica.

O abandono de São Paulo em plena pandemia a um candidato bairrista, quando o seu competidor interno era um notável ex-ministro da Saúde, é o retrato de um partido devorado pela sua própria burocracia.

Para manter algum grau de relevância, a Executiva do PT está condenada a ceder espaço às lideranças nordestinas, que movimentam a massa do seu eleitorado e sempre se mostraram favoráveis a novas alianças com partidos de todos os quadrantes. O ano de 2020 vai entrar para a história como um momento de destruição criativa.

Constará nessa história que a hegemonia petista terá sido dinamitada pela criação de novas alternativas, ao invés das guerras judiciárias e ameaças de violência política que caracterizaram a última década.

Guilherme Boulos não apenas introduziu temas e tecnologias fora do alcance dos vetustos quadros petistas, mas também levou o PSOL de São Paulo a deixar de ser um movimento de contestação para se tornar um polo de poder capaz de agregar as principais figuras da centro-esquerda.

Simbolicamente, ele contará no segundo turno da eleição municipal com o voto de Tabata Amaral, uma das mais empolgantes lideranças que emergiram desde o fatídico desmanche da social-democracia em 2018. Essa aliança de circunstância outrora impensável de duas figuras antagônicas do campo progressista deve-se ao declínio do PT, mas também do seu rival histórico na social-democracia, o PSDB.

Ao acatar a indicação de um vice que vai contra os seus valores para alimentar as ambições de João Doria, Covas contribuiu para a primeira frente verdadeiramente ampla da era Jair Bolsonaro, mas não da maneira como ele provavelmente almejava.

Vista como uma heresia, a comparação entre Guilherme Boulos e Tabata Amaral é particularmente relevante para entender a tomada de poder da nova geração. Ambos se construíram na luta contra as estruturas partidárias. Os campeões em testosterona do PDT não hesitaram em perseguir Tabata pelo crime de pensar por conta própria.

Num patético gesto de centralismo autoritário, Gleisi Hoffman ameaçou de exclusão do PT os militantes que aderissem à candidatura de Boulos, antes de terminar a campanha sabotando os esforços do seu próprio candidato. O desespero dos caciques e o sumiço dos expoentes do fisiologismo de esquerda, como Márcio França, são o principal indício de que a renovação partidária e geracional veio para ficar.


Celso Rocha de Barros: Esquerda entrou fragmentada no Rio e em São Paulo, com resultados diferentes

Sobrou para a carioca, em 2020, fazer campanha para o DEM no 2º turno

Em um episódio recente do podcast Foro de Teresina, o jornalista José Roberto de Toledo chamou atenção para a semelhança das estratégias da esquerda no Rio e em São Paulo. Em nenhum dos dois lugares a esquerda entrou unida no primeiro turno.

Em São Paulo, foi ao segundo turno e faz uma bela campanha. No Rio de Janeiro, ficou fora do segundo turno, mesmo tendo uma boa votação na soma das candidaturas.

Comparar os dois casos pode ser um exercício interessante. Quando a fragmentação da esquerda no primeiro turno é administrável (como em São Paulo) e quando não é (como no Rio)? A pergunta tem implicações óbvias para a eleição presidencial de 2022.

Não há dúvida de que grande parte do sucesso da chapa Boulos/Erundina se deve à qualidade dos candidatos e da campanha. O ativismo social de Boulos e a reputação de competência e honestidade de Erundina são exatamente o que o eleitorado paulistano viu no PT quando lhe deu a prefeitura por três vezes.

A campanha foi ágil e inovadora. Todos os partidos de esquerda têm que aprender alguma coisa com a campanha do PSOL de São Paulo.

Mas no Rio as campanhas de Benedita da Silva (PT), Marta Rocha (PDT) e Renata Souza (PSOL) também foram bonitas, cada uma no seu nicho. A de Boulos foi melhor, mas não acho que o suficiente para explicar a diferença de desempenho.

Há uma outra diferença entre as duas eleições que me parece importante para pensar 2022. Nos dois casos, a direita tinha entre os concorrentes um centro-direitista bem avaliado e uma mediocridade bolsonarista. Mas só a mediocridade bolsonarista do Rio concorria à reeleição. Crivella tinha a máquina na mão, Russomanno não.

A máquina funciona melhor na mão de quem é bem avaliado, como Bruno Covas, do que na do sujeito que tem 62% de rejeição e é o pior prefeito da história da cidade, como Marcelo Crivella. Mas mesmo Crivella conseguiu a chance de ir ao segundo turno tomar a surra de escangalhar o cabra que se anuncia para semana que vem.

Na campanha presidencial de 2022, Bolsonaro também concorrerá à reeleição. Se chegará como favorito depende da gestão da crise de 2021, que vai ser feia. Mas é mais seguro apostar que em 2022 ter a máquina ainda será uma vantagem, nem que seja para dar a Bolsonaro o direito de apanhar no segundo turno.

Os desafiantes de Bolsonaro pela direita e centro-direita em 2022 —Doria, Huck, Moro etc.— serão mais parecidos com Eduardo Paes ou com Celso Russomanno? Ainda não sabemos. Vai depender, inclusive, do quanto a crise de 2021 vai virar o eixo ideológico da discussão para um lado ou para outro.

Talvez Bolsonaro desmoralize a direita a ponto de derrubar seus concorrentes moderados. É mais prudente que a esquerda se prepare para o pior cenário. Se o cenário em 2022 estiver com mais cara de Rio 2020 do que de São Paulo 2020, a esquerda vai ter que pensar a sério na possibilidade de fazer o máximo possível de alianças no primeiro turno.

Não é realista imaginar uma candidatura única, mas, se houver fragmentação demais, é bom que todos se conformem com a sorte da esquerda carioca neste ano: fazer campanha para o DEM no segundo turno. O fato é que a propaganda de Boulos com Ciro, Lula, Marina e Flávio Dino foram os segundos de TV aberta que mais emocionaram os progressistas brasileiros em muito tempo.​

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Ricardo Noblat: Em cena, o jogo sujo dos candidatos ameaçados de perder a eleição

Propaganda negativa para destruir os adversários

É assim por toda parte, aqui e no exterior, quando o fantasma da derrota bate à porta dos candidatos na reta final da campanha. Eles apelam para qualquer coisa, de preferência a mentira, como derradeira arma para impedir a vitória dos adversários.

A seis dias do segundo turno, a disputa em São Paulo parece uma guerra travada por monges piedosos desprovidos de armas letais se comparada com o que ocorre de maneira particularmente dura em pelo menos duas capitais: Rio e Recife.

Campeão nacional de rejeição entre os candidatos a prefeito das maiores cidades do país, Marcelo Crivella (Republicanos) mandou distribuir no fim de semana 1,5 milhão de panfletos impressos em uma gráfica do Rio com pesadas acusações a Eduardo Paes (DEM).

Acusações que, de fato, não passam de fake news. Crivella diz que Paes é a favor da legalização do aborto, da liberação do consumo de drogas e do uso do “kit gay” para educar alunos da rede municipal. “Kit gay” foi invenção de Bolsonaro na eleição de 2018.

A mais recente pesquisa Datafolha conferiu a Paes 71% das intenções de voto contra 29% de Crivella. Só entre os evangélicos, Crivella, bispo da Igreja Universal, ainda vence Paes. O apoio de Bolsonaro será incapaz de salvá-lo de uma derrota humilhante.

Nada indica que uma derrota por diferença gigantesca esteja no radar de qualquer dos candidatos a prefeito do Recife que restaram no páreo – João Campos (PSB), bisneto de Miguel Arraes que governou Pernambuco três vezes, e Marília (PT), neta.

Mas Campos, herdeiro do pai Eduardo, que governou o Estado e morreu em um acidente aéreo em 2014 quando concorria à presidência da República, foi ultrapassado pela prima nas pesquisas e 10 pontos percentuais separam os dois.

A luz vermelha acendeu para Campos. E a saída encontrada por estrategistas de sua campanha foi desqualificar Marília. Na propaganda de televisão, ela foi acusada de ser contra a Bíblia. Em panfletos apócrifos, de ser pau mandado do PT.

A justiça proibiu Campos de questionar a religiosidade de Marília, católica, e que ontem ganhou o apoio de 13 igrejas evangélicas. Quanto à suposta subserviência de Marília ao PT, nada fez nem poderia fazer. É uma acusação política. Ela que se defenda.

O antipetismo no Recife é forte, e nisso Campos joga sua última cartada. Acontece que ele e o PSB sempre foram aliados do PT. Estiveram juntos na campanha por Lula livre e Fernando Haddad presidente. Juntos, ainda governam Pernambuco.

Do primeiro para o segundo turno, Campos não conquistou novos apoios e viu Marília crescer no eleitorado que votou nos candidatos da direita – Mendonça Filho (DEM) e a Delegada Patrícia Amorim (PODEMOS), avalizada por Bolsonaro em live no Facebook.

Esta semana, 3 pesquisas de intenção de voto darão uma ideia de como vai o humor dos recifenses. Ou Marília ampliará a vantagem sobre Campos ou assistiremos, domingo, a uma apuração dramática de votos. A primeira hipótese parece mais provável.

No combate à Covid-19, um novo desastre se anuncia

Imunização parcial

Enquanto o Ministério da Saúde se cala, e os especialistas no assunto discutem se esta ainda é a primeira ou o começo da segunda onda, só no Estado do Rio de Janeiro, em comparação com duas semanas atrás, houve um aumento de 112% na média móvel de casos e de 153% na de mortos pelo coronavírus.

Pelo sexto dia consecutivo, a doença avança no Rio. Desde março passado, ali foram infectadas 338.263 pessoas, e mortas 21.974. No país, segundo números de ontem, o vírus já infectou 6.070.419 de pessoas, matando 169.197. Ele ganhou fôlego um pouco em toda parte com o relaxamento das medidas de isolamento.

A levar-se em conta o desempenho desastroso do governo federal no combate à pandemia, o próximo desastre ganha contornos nítidos. Um total de 6,86 milhões de testes para o diagnóstico do vírus comprados pelo Ministério da Saúde perde a validade até janeiro. Estão estocados num armazém em Guarulhos, São Paulo.

O ministério informou que assinará em breve “cartas de intenção não-vinculantes” para a compra de vacinas produzidas pela Pfizer, Janssen, Bharat Biotech, Fundo Russo de Investimento Direto (responsável pela Sputinik V) e Moderna. Não citou a Coronavac, a vacina chinesa aqui produzida pelo Instituto Butantã.

O general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, quer evitar colidir outra vez com o presidente Jair Bolsonaro que deu as costas à vacina chinesa porque ela será adotada pelo governo de São Paulo. Bolsonaro elegeu o governador João Dória (PSDB) como seu principal adversário nas eleições de 2022.

O governo federal diz haver previsão de acesso a 142,9 milhões de doses pelos contratos já firmados, o que garantiria a imunização de cerca de 30% da população brasileira. A imunização de toda a população dos Estados Unidos e dos principais países da Europa já foi garantida por seus respectivos governos.