el pais

El País: Departamento de Justiça dos EUA não encontra prova de fraude capaz de alterar o resultado eleitoral

O procurador-geral William Barr, frequentemente apontado por servir aos interesses de Trump, inflige o último revés à ofensiva judicial do republicano

Amanda Mars, El País

Donald Trump sofreu nesta terça-feira sua enésima e provavelmente mais grave derrota até agora na batalha judicial que lançou contra os resultados eleitorais depois de brandir acusações infundadas de fraude. O procurador-geral dos Estados Unidos, William Barr, disse na terça-feira que o Departamento de Justiça não encontrou provas de nenhum caso de irregularidade de importância suficiente para reverter a vitória do democrata Joe Biden. Barr, muitas vezes criticado por servir aos interesses do presidente, frustra a estratégia da campanha de Trump, que continua sem reconhecer o presidente eleito Biden, apesar de ter perdido em todos os tribunais até agora.

“Até o momento, não vimos fraude em uma escala que pudesse ter levado a um resultado diferente na eleição”, disse Barr em declarações à agência Associated Press (AP), dando algo parecido com um tiro de misericórdia para na ofensiva legal do mandatário. Pouco depois da declaração da derrota eleitoral, apesar de se distanciar das teorias da conspiração de Trump e seu círculo, Barr o havia alentado instruindo os procuradores federais de todo o país a investigar acusações que fossem “claramente críveis” e afetassem o resultado. Essa intervenção foi atípica, uma vez que a supervisão do desenrolar das eleições é responsabilidade dos Estados.

Conforme explicou à AP, tais acusações não tinham fundamento. “Foi alegado que poderia haver fraude sistêmica e que algumas máquinas foram programadas para, basicamente, distorcer os resultados eleitorais. O Departamento de Segurança Interna e o Departamento de Justiça analisaram e, até o momento, não viram nada que comprovasse isso”, explicou o promotor.

Trump agitou o fantasma da fraude durante toda a campanha, alegando que a enxurrada de votos pelo correio e antecipados, que as autoridades de muitos Estados facilitaram por causa da pandemia, eram um terreno fértil para irregularidades. Quando Biden foi declarado vencedor, uma equipe jurídica liderada por Rudy Giuliani, assessor pessoal de Trump e ex-prefeito de Nova York, entrou com ações em todos os Estados decisivos para a derrota. As teorias da conspiração alcançaram graus insólitos. Giuliani e o advogado Sidney Powell chegaram a dizer que havia servidores alemães com informações sobre eleitores norte-americanos e um software criado na Venezuela “sob a direção de Hugo Chávez”, que morreu em 2013.

Enquanto todo o estratagema legal desmorona como um castelo de cartas, proliferam rumores sobre um futuro político com Trump na linha de frente. Seu círculo mais próximo deixou escapar que planeja voltar à carga e se apresentar como candidato em 2024, embora na ocasião terá adversários do partido que lhe disputarão o próprio trumpismo. Até então, parece que encontraram o relato idôneo de sua nova campanha, a do presidente despojado do cargo por um roubo.

O republicano arrecadou cerca de 170 milhões de dólares (cerca de 885 milhões de reais) desde 3 de novembro, de acordo com vários veículos de comunicação norte-americanos, graças a doações solicitadas para financiar a malsucedida batalha judicial, mas que também estão engrossando um fundo para suas atividades pós-presidenciais.


El País: PT não conquista nenhuma capital pela primeira vez desde 1985 e volta ao tamanho ‘pré-Lula’

Com estratégia focada em chapas próprias e enfrentando a força do antipetismo, partido segue o encolhimento que já protagonizava desde 2016 e deverá enfrentar debate sobre futuro da sigla

Beatriz Jucá e Joana Oliveira, El País

Partido dos Trabalhadores (PT) não elegeu nenhum candidato próprio nas capitais brasileiras nestas eleições até agora ― está ainda na disputa em Macapá, onde as eleições foram adiadas. É a primeira vez que isso acontece desde a redemocratização do país, em 1985. Em todo o Brasil, o partido conquistou apenas 183 prefeituras, enquanto outras siglas tiveram resultados muito superiores, como MDB e PP, que superaram as 600 prefeituras cada uma. Seguiu o encolhimento que já protagonizava desde 2016, quando fez 254 prefeitos e voltou, neste ano, a um tamanho semelhante ao que tinha antes dos Governos de Luiz Inácio Lula da Silva, iniciados em 2003 - cerca de 200 cidades com comando do partido.

Por um lado, é uma amostra que o antipetismo segue como uma força política significativa. De outro, trata-se do resultado de uma estratégia que optou por, quase sempre, lançar chapas próprias em detrimento de alianças com outras siglas de esquerda. É o caso de São Paulo, onde o candidato Jilmar Tatto amargou menos de 10% dos votos no primeiro turno, assistindo à ida de Guilherme Boulos, do PSOL, à segunda rodada eleitoral. O resultado foi a fragmentação dos votos e a consolidação de partidos como o PDT e o próprio PSOL como novas opções ao eleitorado de esquerda.

Apesar do resultado das urnas, analistas políticos afirmam, no entanto, que é prematuro falar em uma derrocada política completa. O PT ainda demonstra alguma força. Foi novamente às urnas em 20 das 57 cidades que tiveram segundo turno ― todas elas com colégios eleitorais significativos. E venceu em quatro delas: Contagem, Juiz de Fora, Diadema e Mauá.

Na maioria das cidades, o PT apostou em candidaturas de ex-prefeitos que contavam com a marca da experiência. O objetivo do partido era retomar espaço dentre os 96 maiores colégios eleitorais brasileiros, grupo que inclui as 26 capitais de estados e 70 cidades de interior com mais de 200 mil eleitores, um contingente em que, há quatro anos, o partido venceu apenas em Rio Branco (AC). A maior cidade que será governada por um petista a partir do ano que vem é Contagem, a terceira maior de Minas Gerais, onde a ex-prefeita Marília Campos venceu o advogado Felipe Saliba (DEM) por margem estreita (51,35% dos votos).

“Não posso cravar uma derrocada do PT, mesmo porque esteve em 15 das 57 grandes cidades que tiveram segundo turno. Não é porque perdeu em 11 que vou desconsiderar esta força e dizer que vão esquecer o partido”, declara o cientista político Rudá Ricci. Feita esta ponderação, Ricci avalia que o partido sai diferente destas eleições e prevê que deverá enfrentar um embate interno pela mudança de perfil de seus filiados com mandato. Isso porque candidaturas que tiveram êxito nas urnas, como por exemplo em Contagem e Juiz de Fora, não representam a ala majoritária do PT, ligada ao ex-presidente Lula. “Acho que vai ter um embate interno muito importante porque a corrente majoritária saiu derrotada. Mudou a conjuntura política de quem tem mandato no PT. E não dá pra fazer mais a narrativa que coloca a culpa nos outros”, analisa Ricci.

Já Wilson Gomes, filósofo, professor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital, diz que “o PT estancou a sangria de 2016, mas teve uma grande perda nos dez maiores colégios eleitorais do país [São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte, Fortaleza, Curitiba, Manaus, Recife, Porto Alegre e Belém]”, explica

A presidente nacional do partido, Gleisi Hoffmann, tentou defender os resultados alcançados. Destacou que o PT venceu em quatro das 15 cidades que disputava neste domingo e que teve mais de 40% dos votos em nove delas. “Vencemos com o PSOL em Belém, lutamos ao lado de Boulos e Manuela. E o Brasil viu o q fizeram p/ barrar Marília em Recife. O PT segue junto com o povo”, acrescentou. E arrematou dizendo que o “segundo turno mostrou que a esquerda sabe lutar”.

Mudança de perfil

Neste ano, o eleitor que votou nas candidaturas de centro-esquerda não mais associou este campo diretamente ao PT, pontua Ricci. Este eleitorado votou de forma mais plural, em candidatos do PSOL e do PDT, por exemplo. “O PT vinha crescendo desde os anos 1980 e fez quatro vezes a presidência, então ofuscava estes partidos, que agora cresceram”, avalia. O cientista político vê uma transição se formando no campo de centro-esquerda brasileiro, cujas inovações estariam sendo protagonizadas especialmente por mulheres e suas candidaturas coletivas às câmaras municipais. O campo começa, ainda, a apresentar uma pluralidade de lideranças. Ele cita como exemplo nomes como Manuela D’Ávila (PCdoB)Guilherme Boulos (PSOL) e Marília Arraes (PT). Embora nenhum deles tenha vencido no segundo turno, ganharam destaque e foram competitivos. Seria, portanto, uma pluralidade de lideranças que o cientista político não vê no campo de centro-direita.

O Partido dos Trabalhadores começou a crescer nos anos 1980, mas a partir do final dos anos 1990 afastou-se do “modo petista de governar” no âmbito local, representado, por exemplo, pela ideia de um orçamento participativo, conselhos e inversão de prioridades. Com a chegada de Lula ao poder, em 2002, o partido montou um modelo de coalizão ampla que o aproximou do modelo de centro-direita que tradicionalmente domina as prefeituras brasileiras. Nunca chegou a ser um partido majoritário nas municipais, mas ganhou fôlego. Em 2008, fez 557 prefeitos e se tornou a terceira força política do país. Em 2012, chegou a 632 prefeituras. No âmbito nacional, se afastou das bases e dos movimentos sociais e foi se parlamentarizando, com deputados em postos de liderança interna. A partir de 2016, voltou a encolher nos municípios. “Lula não mudou essa lógica do centro-direita da política brasileira. Ele a reforçou. É como se tivéssemos uma cabeça de esquerda e o corpo todo de centro-direita”, compara Ricci. Esta trajetória, para o cientista político, soma uma sucessão de erros estratégicos.

Para Wilson Gomes, um dos maiores equívocos é a resistência a olhar o espelho. “O PT está muito envelhecido, sua cúpula está envelhecida, mas o partido não faz nenhuma mudança em sua autoimagem, nenhuma autocrítica, nada”, diz.

“O PT se tornou um partido com a lógica tradicional, mas que tinha relações com a base marginalizada. É um partido funcional do sistema, mas a base não romperia com este sistema porque tinha o PT e as instituições como canal. Chegou um momento que este canal ficou interditado”, aponta Ricci.Gomes, que considera que o “antipetismo foi o maior eleitor em 2016 e em 2018″, avalia que esse sentimento demonstrou ter ainda grande poder eleitoral em 2020.“Vimos, por exemplo, até um vídeo de Silas Malafaia apoiando João Campos, um candidato supostamente progressista, só para fazer oposição ao PT de Marília Arraes, mesmo em um estado em que ele não tem interesses diretos”.

Mas os resultados deste ano pouco apontam para a discuta de 2022, considera Ricci. “O eleitor está procurando outros caminhos”, analisa. Após uma decepção com o bolsonarismo, o eleitor médio voltou à moderação e ao conhecido e fez dos partidos de centro-direita os grandes vitoriosos desta eleição. “Ele está em transição, abandonando a extrema direita e o totalmente novo de 2016 e de 2018. Ao mesmo tempo, o campo do centro-esquerda também está tendo uma transição importante”, diz.

O antibolsonarismo cresceu e tornou-se uma força política. Prova disso é que 11 dos 13 candidatos apoiados pelo presidente da República não foram eleitos. “Mas isso não significa que o antipetismo diminuiu”, pondera Gomes. “A questão é que o que demorou 13 anos para chegar para o PT chegou em apenas dois para Bolsonaro. Não sei se o que mais prejudicou ele foram as eleições nos Estados Unidos ou as municipais brasileiras”, acrescenta.


Fernando Abrucio: "Eleitor evangélico mostrou que não é voto de cabresto"

Para cientista político, PT ampliou o isolamento e bolsonarismo terá dificuldades em 2022. “Ninguém aguenta mais ficar ouvindo essa discussão ideológica, essa invasão da política na vida diária das pessoas, é uma overdose, cansou”

Aiuri Rebello, El País

Atuando como consultor na construção de candidaturas para as eleições de 2022 e com acesso a diversas pesquisas qualitativas junto a eleitores encomendadas por partidos, o cientista político Fernando Luiz Abrucio, professor da Fundação Getúlio Vargas, está confiante em dizer que o tempo do bolsonarismo acabou, apesar de ainda haver mais dois anos de mandato para o presidente Jair Bolsonaro. Mais que isso, ele observa que a esquerda perdeu a hegemonia na discussão de questões sociais e que essa pauta definirá o próximo pleito presidencial e para governador nos Estados. “O grande tema para 2022 é a questão social no país. E isso é o contrário do bolsonarismo”, resume. Nessa entrevista ao EL PAÍS onde analisa o cenário político brasileiro com o resultado das eleições municipais de 2020, Abrucio fala ainda do isolamento do PT e da confirmação de que os eleitores evangélicos na enorme maioria dos casos não coloca a pauta dos costumes acima de questões concretas como emprego, saúde e educação. Leia abaixo.

Pergunta. O que chama atenção nos resultados das eleições municipais deste ano? Existe um padrão no segundo turno?

Resposta. Não só no segundo turno, também no primeiro, nas principais cidades do país vemos uma derrota muito forte do bolsonarismo. Ele teve derrotas muito claras em campanhas nas quais se envolveu, mas não é só isso. O discurso dos vencedores anuncia já um clima de opinião muito diferente do clima de 2018. A eleição municipal é importante não para dizer quem vai ganhar a eleição presidencial, mas para vermos o clima de humor, os assuntos, o clima de opinião. O clima de opinião que vimos em 2018 já estava colocado nas eleições de 2016. O candidato antissistema já estava lá. Pensemos no Doria quando dizia “eu sou gestor, não sou político”. Nessa campanha nenhum dos vencedores falou eu não sou político. Bruno Covas fez uma campanha muito certinha, quadradinha, e explorou o oposto. Dizia na TV, “eu sou político”.

Fora que a imagem do Bolsonaro está muito desgastada. Se pensarmos que o presidente da República e os filhos fizeram campanha pessoalmente para a Wal do Açaí ao cargo de vereadora em Angra dos Reis e ela não se elegeu... Ele teve um nível de superexposição nestes dois anos, lives no Facebook toda semana, tempo todo nas redes sociais. Para o eleitorado mediano em um contexto de crise, afetou ele fortemente, fica se oferecendo como alvo para a frustração das pessoas com a situação.

P. Bruno Covas se distanciou da imagem e discurso do padrinho político dele, no caso o governador João Doria.

R. Não foi só em São Paulo que isso aconteceu. Em todos os lugares o discurso de valorização da política, um discurso mais orgânico, de ativação com a sociedade, isso tudo veio muito forte. Na verdade é o contrário de tudo que foi o bolsonarismo em 2018, uma candidatura antissistema, polarizadora, baseada em chavões e não em discussão de programas. Ele fez uma campanha inteirinha sem falar em questões sociais em um país tão desigual e carente de soluções na área como o Brasil. Se pegarmos as campanhas a prefeito nas capitais agora, olha em Salvador e Rio o DEM, em São Paulo o Bruno Covas e o Guilherme Boulos, as principais candidaturas foram todas muito parecidas em suas temáticas. Especificamente as questões sociais, esse é o tema. E esse vai ser o tema de 2022. É muito diferente do humor eleitoral que a gente tinha em 2018. Eu pego muitas pesquisas qualitativas constantemente e uma coisa está muito clara: o grande tema para 2022 é a questão social no país. E isso é o contrário do bolsonarismo. Hoje não temos um ministro da Educação e nem da Saúde dignos do nome do cargo. Se você fizer uma enquete na rua ninguém vai saber quem são os dois, não conseguem nem gastar o pouco dinheiro que tem.

Na área social o Governo é uma nulidade e a agenda bolsonarista foi enterrada pela pandemia e pelas eleições municipais. Ainda tem a mudança de humor no cenário externo, com a eleição do Joe Biden e que ainda não foi sentida por aqui. A União Europeia agora vai atacar fortemente isso e a China e os EUA também. Vai juntar os três para pressionar o Brasil. A gente começa a perceber que existe uma mudança externa, a pandemia e as eleições municipais que fazem com que aquela agenda e clima de opinião que imperou em 2018 acabou já era.

P. O bolsonarismo está morrendo?

R. Não, mas vai diminuir progressivamente e chegar em 2022 bem menor. Em 23 das 26 capitais, aumentou muito a rejeição ao Bolsonaro nas últimas duas semanas. Isso é impressionante. Em São Paulo, tem pesquisa colocando ele com 17% de bom e ótimo... nunca teve isso e a tendência é piorar, não é melhorar. Não vai ter muito dinheiro para o ano que vem, os partidos do Centrão ali vão se afastar completamente do bolsonarismo para compor a eleição da presidência da Câmara e continuarem firmes, toda a oposição a ele vai começar a bater cada vez mais forte. É todo mundo contra ele. Vendeu-se uma ilusão de que seria um governo que antissistema, que derrubaria o sistema por completo, que acabaria com a corrupção, e essa bandeira o Bolsonaro não tem mais condições de carregar, não consegue mais se colocar como um arauto anticorrupção.

P. O peso do voto evangélico nesse cenário diminuiu?

R. Se você pegar no Rio de Janeiro, grande parte dos evangélicos votou no Eduardo Paes. Por que os evangélicos votaram nele? Em 2018, grande parte dos evangélicos foi nesse discurso bolsonarista de ser contra a corrupção, pela pátria e a família. Passados dois anos, boa parte desse grupo percebeu que precisa de mais alguma coisa. Não adianta ficar falando de pátria, família e religião se não tiver emprego, renda, escola, se parentes estiverem ficando doentes e morrendo de covid-19. Quem é o evangélico com perfil mais padrão na Baixada Fluminense, por exemplo? Homens e mulheres negros ou pardos, é o primeiro dado demográfico. Aí vem o presidente e o vice-presidente dizer que não existe racismo no Brasil? O cara já está sem emprego, vivendo da economia informal, o auxílio emergencial está acabando, percebe que seu filho está sem aula e tem algum parente ou amigo que morreu de covid? Esse cara não está para brincadeira nesse momento.

Para completar, sente-se uma inflação nessa mesma ponta. Embora esteja começando a se alastrar agora e o tamanho disso ainda tem de ser mesurado e vermos se o efeito será duradouro, até agora é principalmente uma inflação acelerada de alimentos. E quem é que sente mais isso? As famílias de baixa renda, boa parte delas evangélicas. A imagem do Bolsonaro está bastante desgastada inclusive dentre os evangélicos, não adianta tentar se desvincular de todos os problemas, as pessoas precisam de soluções. Ele tem um erro de estratégia e comunicação de privilegiar essa coisa ideológica ao invés de políticas públicas. Ninguém aguenta mais ficar ouvindo essa discussão ideológica, essa invasão da política na vida diária das pessoas, é uma overdose, cansou. Neste ano, o eleitor evangélico não é um voto de cabresto, que não obedece cegamente as orientações das lideranças das igrejas. No Rio e em São Paulo, para ficarmos só nesses exemplos, os candidatos da Igreja Universal e do bispo Edir Macedo, Marcelo Crivella e Celso Russomanno, perderam inclusive entre os evangélicos, mostram as sondagens.

P. É possível falar em um renascimento da esquerda, mesmo que incipiente?

R. Não sei. Na verdade o que a gente vê é que a agenda social tornou-se muito forte e não foi exclusividade da esquerda. Os candidatos de direita e centro-direita que abraçaram a pauta social se deram bem. Mais importante que falar no fortalecimento da esquerda é falar no fortalecimento da pauta social, que sempre foi prioritária da esquerda e agora foi incorporada por outros atores políticos. Se pegarmos a situação de Porto Alegre, por exemplo, tirando as fake news contra a Manuela D’Ávila que tiveram um peso importante na derrota dela, o Sebastião Melo começou a falar da questão social o tempo todo. Teve o bárbaro assassinato no Carrefour e ele rapidamente entrou no Twitter e já se posicionou, estava antenado com isso. Os conservadores mais empedernidos que insistem em não legitimar questões como o enfrentamento ao racismo estão de fora dessa nova onda. Isso mostra que apesar de resultados importantes em alguns lugares, mais do que o renascimento da esquerda é a ascensão da questão social, essa é a nova questão central.

P. O presidente e o bolsonarismo de uma maneira geral conseguem se reposicionar e entrar nessa onda?

R. Não, ficou muito ruim para o presidente, porque ele não está preparado para lidar com a questão social. Não tem essa agenda, não se preparou para isso. Não tem técnicos capazes de dar essas respostas, não tem gente que pensa a questão social no Governo federal. Para fazer isso tem de haver vínculos com a sociedade civil, de diversas formas, e o que o Bolsonaro fez desde que assumiu foi cortar essa ligação do Governo com o resto do país, ele está completamente desarticulado com a sociedade. Ele acha que fazer política é fazer live na Internet. Fechou conselhos de participação social, não conversa com ninguém. O retorno que a gente tem de empresários, políticos, representantes de entidades e organizações civis de reunião com o Paulo Guedes e com o Bolsonaro é de que eles não são ouvidos. Então essa ascensão da questão social, que vai se tornar mais forte em 2022, pegou o bolsonarismo de calça curta. Eles não contavam no meio do caminho com a pandemia. O auxílio emergencial é um acidente. Não existia no programa de governo do Bolsonaro nenhuma previsão de transferência de renda. Eles não tem como transformar isso em uma pauta social porque nunca tiveram essa preocupação, não sabem nem por onde começar.

O próprio entendimento sobre a segurança pública pública está mudando. Em 2022 vai ter muito candidato defendendo que a criminalidade é uma questão social. Aquele discurso linha dura do Doria, do Wilson Witzel, caiu. Em 2022 quem vier com esse papo de que bandido bom é bandido morto vai ter ali 15%, 20% dos votos e não passa disso, vai ser massacrado. Nessa campanha a gente viu policial para tudo quanto é lado nas candidaturas e, se olharmos os resultados com calma, não teve a mesma onda que rolou em 2018. Os caras pensaram que iam surfar. Em São Paulo elegeram dois vereadores da segurança pública e um deles foi eleito com a defesa dos cães e gatos. É uma piada. A questão social ganhou uma dimensão que não vai dar em 2022 para falar de segurança pública sem um ponto de vista mais amplo. Teve esse assassinato covarde em Porto Alegre que gerou uma onda forte de revolta ao redor do país, a questão racial está na pauta do dia no cenário externo. A morte do George Floyd nos EUA foi um divisor de águas nesse sentido. É uma onda muito forte essa, igual foi a Operação Lava Jato, o combate à corrupção e a linha dura na segurança pública em 2018. À direita e à esquerda, quem quiser ir bem nas eleições vai ter que modular o discurso e as ações de acordo com essa conjuntura toda que é uma novidade.

P. Qual o perfil do candidato “ideal”, de acordo com esse clima político?

R. Não existe um perfil ideal. Tanto Bruno Covas quanto Guilherme Boulos, por exemplo, com perfis completamente diferentes, foram bem em São Paulo. No caso do Covas, o que ainda prejudicou a imagem dele foi a associação com o vice e o governador João Doria. Não fosse isso ia ser mais parecido ainda. Do ponto de vista programático, não há nenhuma diferença frontal entre as propostas dos dois. Ninguém discorda das questões sociais e identitárias. Essa é uma onda que eu acho que vai vir avassaladora nas próximas eleições.

P. O que podemos dizer da situação do PT? Sai da eleição politicamente enterrado e sem nenhuma capital?

R. No cenário nacional, o que vemos é que o PT ficou mais isolado ainda no cenário político. O eleitor que tradicionalmente votava no PT preferiu o Boulos, o candidato do Ciro e em 2022 pode fazer mesmo ao invés de votar no Lula ou seu indicado novamente. Eu não diria que é um grande perdedor, por que na verdade quem já estava por baixo não tem como ser o grande perdedor. Grande perdedor é quem estava forte e perdeu espaço. Ele não sai maior ou menor, sai mais isolado.

P. E o papel do Novo nesse ciclo político que se inicia agora?

R. Qual é a grande marca do Novo em meio a pandemia? Processo seletivo para lançar candidatos. Não conseguiu oferecer nada de concreto para o país. Eles parecem completamente descolados da realidade brasileira. O resultado eleitoral é esse aí, pífio. A principal liderança eleita deles, que é o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, vai ter problemas para conseguir se reeleger. É engraçado como eclodiu uma nova agenda e muitos não se prepararam, incluindo o Novo. Eles não conseguiram entender até agora o que é fazer política pública. E fora isso perderam identidade. Eles eram a favor do Sergio Moro, da Lava Jato. O Moro saiu do jeito que saiu do Governo e o que eles fizeram? Nada. Estão completamente perdidos. Se você olhar as redes sociais, muito mais que o Novo quem tem ocupado o lugar de um partido liberal na economia e costumes é o Livres. O Novo se propôs a ser conservador nos costumes e liberal na economia. Não precisava de um partido novo para isso. Tem vários na praça com essa proposta. Talvez fosse em uma campanha em outro país, um muito rico. Eles perderam o bonde da história.

P. Com o resultado do Bruno Covas em São Paulo, o governador João Doria obteve uma vitória importante para lançar seu nome à presidência?

R. Eu vejo o Doria enfrentando muita dificuldade. Ele foi muito longe no discurso bolsonarista e agora está com problemas para voltar atrás. Você a aprovação do Doria e do Bolsonaro em São Paulo nessas últimas pesquisas, é ruim igual. É um negócio assustador ali na casa dos 15% de bom e ótimo. Disseram que a campanha em São Paulo ia ser uma prévia do embate entre Doria e Bolsonaro, e o Covas tem o dobro de popularidade dos dois. O eleitorado identificou nele sensibilidade social. O Doria vai ter muita dificuldade de fazer essa volta no discurso. As pessoas não perdoam ele em São Paulo. Se chegar em 2022 com essa rejeição em São Paulo, o PSDB não vai querer dar a cabeça de chapa presidencial para ele e, se fizerem isso, vão começar a ter problemas para eleger bancada legislativa. O Doria tem o ano que vem para mostrar que se redimiu e está dentro da nova agenda da sociedade brasileira. Nesse quadro, a vacinação prometida pode virar o jogo para ele.

P. O ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, fica onde nesse xadrez político e eleitoral?

R. Esse impulso de novas temáticas pode ser aproveitado pela centro direita e pela esquerda. A direita mais ligada ao bolsonarismo e a Lava Jato está muito distante dessa pauta. O Moro não entendeu em que país estamos. Não tem a menor ideia do que fazer em educação, saúde, combate à desigualdade, não sabia nem o que fazer na segurança pública. A única agenda dele é o combate à corrupção. O discurso de que isso vai salvar o país não cola mais. As pessoas continuam achando importante, mas perceberam que sem um conjunto de medidas mais amplo não resolve nada. Essa agenda específica hoje está lá embaixo na lista de prioridades. Então vejo muita dificuldade eleitoral para os dois salvadores da pátria, Bolsonaro e Moro, que brigaram e querem disputar entre si. Mesmo o eleitorado de classe média, mais conservador, percebeu que precisa de mais que isso. A situação social piorou demais no país, e todo mundo vê isso.


El País: Desmatamento na Amazônia dispara e atinge recorde em 12 anos

A maior floresta tropical do mundo perdeu 11.088 quilômetros quadrados de árvores no ano passado, 9,5% a mais que no ano anterior

Naiara Galarraga Cortázar, El País

Más notícias para o planeta. O desmatamento na Amazônia ―a cifra anual com a qual o restante do mundo mede o desempenho do Brasil em meio ambiente― disparou no último ano e alcançou o nível mais alto dos últimos 12 anos. A maior floresta tropical do mundo, crucial para conter as mudanças climáticas, perdeu 11.088 quilômetros quadrados de árvores, de acordo com o balanço anual divulgado nesta segunda-feira pelas autoridades. Esse aumento, de 9,5% em relação ao ano anterior, evidencia os graves efeitos da política do presidente Jair Bolsonaro de enfraquecer as fiscalizações do meio ambiente, encorajar a impunidade dos invasores de terras e desprezar os indígenas que querem preservar suas terras.

A Amazônia é tão vasta que o Greenpeace fez algumas contas para que seja mais fácil entender a dimensão da perda. São 626 milhões de árvores derrubadas. É como se a cada minuto do ano passado a Amazônia tivesse perdido o equivalente a três campos de futebol, até somar 1,58 milhão de estádios. A ONG sustenta em nota que “o desmantelamento de órgãos e das políticas ambientais nos levou a um índice quase três vezes superior à meta de redução do desmatamento para 2020 estabelecida por lei”.

Dois membros do Governo ―ambos militares da ala mais pragmática e menos ideológica do Gabinete― participaram da apresentação dos dados. No entanto, o ministro do Meio Ambiente não estava com eles. “Não estamos aqui para comemorar nada disso, porque isso não é para comemorar”, disse o vice-presidente, general Hamilton Mourão. Ao seu lado, o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes, o primeiro astronauta do Brasil. O vice-presidente tem incentivado os inspetores, com frequência fustigados por Bolsonaro, a continuar a fazer seu trabalho orientados pela ciência, a tecnologia e a lei.

A cifra divulgada nesta segunda-feira é resultado das medições feitas por satélites pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). É um balanço anual que abarca a superfície de árvores destruída entre agosto de 2019 e julho de 2020. Sua difusão sempre demora vários meses. E representa um balanço preliminar que só se consolida com os dados definitivos no primeiro semestre do ano.

O Governo Bolsonaro está perfeitamente ciente de que a política ambiental é crítica em suas relações exteriores, tanto com a União Europeia como com os Estados Unidos quando Joe Biden assumir a presidência em janeiro. A ecologia tem um peso enorme no processo de ratificação do acordo comercial UE-Mercosul.

O deslocamento de milhares de militares brasileiros para as áreas mais sensíveis e a criação do Conselho da Amazônia para coordenar todos os órgãos envolvidas no cuidado com o meio ambiente e o combate aos incêndios não reverteram o aumento do desmatamento que começou antes de Bolsonaro chegar ao poder e se acelerou nestes dois anos.

A destruição da Amazônia em 2004 ultrapassou 27.000 quilômetros quadrados (quase o triplo de agora). Foi o primeiro ano de Luiz Inácio Lula da Silva como presidente. A partir de então, a derrubada anual de árvores diminuiu até chegar a 4.570 quilômetros quadrados em 2012 (o mínimo desde que há medições). E a partir daí, com Dilma Rousseff no poder, a alta recomeçou até atingir a cifra atual.

A WWF, uma organização não-governamental, destaca em um comunicado que o desmatamento registrado desde que Bolsonaro está no poder indica a desconexão do Governo dos desafios e oportunidades (também econômicas) que a Amazônia representa.

O INPE possui um outro sistema, que registra alertas todos os meses e serve para mobilizar os fiscais ambientais ou a polícia, que já havia sinalizado que o desmatamento continuava a aumentar. Em uma crítica, o Greenpeace afirma que, apesar disso, “a resposta do Governo federal ao aumento do desmatamento tem sido mascarar a realidade, militarizar cada vez mais a proteção ambiental e trabalhar para frear as ações da sociedade civil, prejudicando a nossa democracia”, segundo uma porta-voz.


El País: Eleições municipais 2020 trazem vitória de pauta social e derrota do programa bolsonarista

Candidatos à direita e à esquerda que se preocuparam com aflições concretas do eleitor como saúde, educação e emprego foram eleitos ou tiveram bons resultados, mostram urnas e analistas

Aiuri Rebello, El País

Apurados os votos do segundo turno das eleições municipais e definidas as posições dos jogadores nessa rodada do xadrez político, uma coisa ficou clara: o grande vencedor foi a pauta social. Em meio a uma crise econômica que já dura seis anos com poucos refrescos e a maior pandemia em mais de um século com a covid-19, sem nenhuma solução concreta à vista para os dois problemas e seus desdobramentos, o eleitor brasileiro depositou seu voto naqueles que conseguiram sinalizar saídas ou mostrar realizações em áreas como saúde, educação e emprego. Candidatos à esquerda e à direita que deixaram essa temática evidente durante o processo eleitoral foram eleitos ou obtiveram resultados politicamente importantes, apesar da derrota.

Na contramão, os que ignoraram esses assuntos e tentaram fazer neste ano uma reedição de 2018 —surfando no apoio do presidente Jair Bolsonaro e focados em questões de costumes e segurança pública— encontraram problemas para se eleger e foram derrotados na maioria dos casos e nas principais cidades do país. É o que mostram os resultados das urnas e a análise de especialistas ouvidos pelo EL PAÍS.

Reeleito em São Paulo com 59% dos votos válidos, Bruno Covas mostrou-se sintonizado com o humor do eleitorado e buscou afastar a imagem de direita deixada pela administração que herdou do governador João Doria em 2018. Para isso, contou com as ações de combate à pandemia como a criação de hospitais de campanha que funcionaram, e escondeu o padrinho durante toda a campanha, focando seu discurso em questões sociais. “Vamos construir o consenso, é momento de diálogo e união”, declarou Covas após a vitória. “Temos que combater as desigualdades, temos que combater o coronavírus, investir em saúde e educação, e fazer da nossa gestão um mantra na busca de emprego e oportunidades”, completou.

As eleições, de um modo geral, mostraram que a expectativa do eleitor mudou. “É muito diferente do humor eleitoral que a gente tinha em 2018, muito diferente, que por sua vez já estava colocado nas eleições municipais de 2016”, afirma o cientista político Fernando Abrucio, professor da Fundação Getulio Vargas. “Em 2018 não se discutiram questões sociais no país. E não é só uma questão da esquerda. Se você pegar a campanha do Boulos e do Covas, são muito parecidas nesse sentido”, diz. Abrucio fez uma análise da campanha de Covas, e diz que mais de 80% do tempo de TV foi dedicado a questões sociais. “Na campanha de 2016, o Doria falou menos da metade em questões sociais. Era o gerente, antipetismo e isso aí”, afirma.

O filósofo e analista político Roberto Romano, professor aposentado da Unicamp, concorda. “Me parece que levou vantagem neste ano aqueles que mostraram mais preocupação com os fatos da vida cotidiana das pessoas”, diz ele, que vê também um reequilíbrio das forças políticas em uma configuração mais estável do que a vista em 2018. “Foi uma reconfiguração do sistema político pós Operação Lava Jato”, afirma o cientista político Vinícius do Valle. “A direita teve de se reposicionar mais ao centro e se afastar do extremo. Essa centro-direta ganhou espaço e vai disputar votos com uma esquerda que passa por um processo de renovação e está mais plural.”

Derrotado na capital paulista, Guilherme Boulos, do PSOLconseguiu mais de 2 milhões de votos e sair maior do que entrou dessa eleição. Desponta como uma das novas lideranças da esquerda brasileira e um nome importante para a composição de forças para as eleições de 2022. “Não foi dessa vez, mas a gente vai vencer”, disse o candidato oriundo do MTST, movimento social de luta por moradia. Por outro lado, o candidato que apostou no apoio do presidente Jair Bolsonaro como grande diferencial de sua campanha naufragou já no primeiro turno. Celso Russomanno, do Republicanos, obteve 10% dos votos.

Dentre as maiores capitais do país, os candidatos bolsonaristas não conquistaram nenhuma vitória. Vencedor no segundo turno do Rio de Janeiro com 64% dos votos válidos contra o candidato do presidente Bolsonaro e prefeito em busca de reeleição Marcelo Crivella (Republicanos), Eduardo Paes, do DEM, foi quem deu o tom e largada para a disputa de 2022. “Esse governo que acaba foi ruim na gestão, piorou a vida das pessoas e fez mal a tanta gente”, afirmou ao lado do correligionário e presidente da Câmara, Rodrigo Maia. “Esse clima de raiva, de muito ódio não fez bem ao Brasil e nem aos cariocas, vamos mudar isso daqui pra frente.”

“Não só no segundo turno, mas nas principais cidades do país o que vemos é uma derrota muito forte do bolsonarismo”, avalia Abrucio. “Ele teve derrotas muito claras em campanhas nas quais se envolveu, mas não é só isso. O discurso dos vencedores anuncia já um clima de opinião muito diferente do clima de 2018. A eleição municipal é importante não para dizer quem vai ganhar a eleição presidencial, mas para vermos o humor, os assuntos, o clima de opinião”, diz.

O cientista político observa que em Fortaleza o candidato do bolsonarismo até tentou mudar o discurso, chegou a melhorar a performance, mas não foi bem-sucedido. “Ele veio na vaga da segurança pública e tal, tentou mudar a lógica do discurso e começou a falar que o grande problema de segurança era uma questão social e não de polícia tentando desgrudar sua imagem da do presidente de qualquer forma”, diz Abrucio. A estratégia não funcionou e Sarto Nogueira, candidato do PDT e de Ciro Gomes, venceu Capitão Wagner, do PROS, com 51% dos votos válidos.

Abrucio aponta que em Goiânia o senador Vanderlan Cardoso, do PSD, começou a apresentar queda acentuada nas pesquisas de intenções de voto conforme abraçou a pauta bolsonarista e passou a defender na campanha o presidente e seu Governo. Mesmo intubado na UTI com covid-19, Maguito Vilela, do MDB, ganhou no segundo turno com 52% dos votos válidos.

Em Belém, Edmilson Rodrigues (PSOL) venceu o segundo turno com 51,76% dos votos válidos. O candidato do PSOL venceu Everaldo Eguchi (Patriota), um ex-delegado da PF que faz discurso anti-corrupção na capital do Pará, seguindo a fórmula lavajatista que funcionou em 2018, mas perdeu o brilho em 2020. A disputa foi acirrada, mas pesquisas recentes já mostravam Edmilson Rodrigues à frente.

Já em Porto Alegre, Sebastião Melo, do MDB, venceu Manuela D’Ávila (PCdoB) com 54% dos votos válidos e, também, um discurso de foco na saúde, emprego e educação. Na capital gaúcha, porém, a vinculação, errônea, de Manuela à extrema esquerda teve algum peso na reta final, o que mostra ainda um recall dos últimos pleitos. Para o cientista político Rudá Ricci, trata-se de uma eleição “de transição”, escreveu ele no Twitter. “A marola do antissistema de extrema direita e apolítico acabou. O eleitor cravou no conhecido e tradicional. Nessa, o centro-direita levou a melhor”, concluiu.

Do Valle faz a mesma leitura. “A centro-direita é a principal vencedora porque conseguiu se descolar da imagem do Bolsonaro e se colocar como uma força política em si, apesar de ainda não ter um nome muito forte ou definido. Virou um desafio para o presidente”, diz do Valle. “O bolsonarismo vai ter que buscar uma forma de juntar forças e agora enfrentar esses dois polos. A centro-direita e essa esquerda que renasce das cinzas ainda de uma forma bem plural e comanda capitais importantes fora da sombra do PT.”

O resultado das eleições já apontam as diretrizes para a eleição presidencial dentro de dois anos. “O grande tema para 2022 é a questão social no país. E isso é o contrário do bolsonarismo”, afirma Abrucio. “E ainda tem a mudança de humor no cenário externo, com a eleição de Joe Biden e que ainda não foi sentida por aqui”, diz ele. “A União Europeia agora vai atacar fortemente isso e a China e os EUA também. Vai juntar os três para pressionar o Brasil. A gente começa a perceber que existe uma mudança externa, a pandemia, o resultado das eleições municipais… isso tudo indica que aquela agenda e clima polarizado de opinião que imperou em 2018 acabou, já era”, afirma. Para Roberto Romano, o bolsonarismo sai menor, sem dúvida. “Ele vai chegar em 2022 em uma situação difícil, e até lá vamos sofrer muito com ele.”

Se o bolsonarismo perdeu espaço nestes eleições, a situação não ficou melhor para o PT. O partido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não ganhou em nenhuma capital. Foi o pior resultado na história da sigla desde 1985. No segundo turno em Vitória e no Recife, era em Pernambuco que a sigla tinha mais chance de manter pelo menos um bastião entre as capitais brasileiras, mas não deu. João Campos, do PSB, bateu Marília Arraes com 56% dos votos válidos.


El País: Eleições põem à prova o potencial das alianças anti-Bolsonaro

Pleito vai vislumbrar o potencial de frentes amplas criadas em oposição ao presidente em capitais como Rio de Janeiro e Fortaleza e se a esquerda intensifica o avanço apontado nas pesquisas em SP

Naiara Gallarraga Cortázar, El País

As prefeituras de São Paulo e Rio de Janeiro, as duas maiores cidades do Brasil, são o prato principal do segundo turno das eleições municipais que 60 cidades realizam no domingo. O primeiro turno, no dia 15, foi um revés ao presidente Jair Bolsonaro e uma vitória da direita tradicional. Ainda que sejam eleições decididas principalmente por dinâmicas locais, também permitirão vislumbrar o potencial das alianças anti-Bolsonaro ― os prognósticos para seus candidatos são ruins ― e se a esquerda intensifica o avanço que lhe dão as pesquisas em São Paulo até surpreender e ganhar a prefeitura da cidade mais rica do país.

Mesmo com pouca repercussão midiática, a violência golpeou com força a campanha. Por volta de 200 candidatos foram assassinados, feridos e vítimas de tentativa de assassinato, segundo o Tribunal Superior Eleitoral.

Para Bolsonaro, o tiro saiu pela culatra em sua estratégia de desprezar a gravidade do coronavírus, que matou 172.000 brasileiros, e culpar governadores e prefeitos pelos estragos econômicos da pandemia. O presidente parecia acreditar que os milhões de dinheiro público entregues aos brasileiros mais pobres bastariam para que os candidatos indicados por ele triunfassem. Não foi assim no primeiro turno e, de acordo com as pesquisas, também não será no segundo. Nesta semana, coincidindo com um aumento de hospitalizações por covid-19, chegou a acusar a imprensa de inventar a declaração que se transformou na síntese de sua gestão da pandemia, a de que o coronavírus é “como uma gripezinha”, palavras que pronunciou em um discurso ao país em março.

Nestas eleições “vemos um esfriamento da extrema-direita, um fortalecimento de uma direita tradicional, uma maior pluralidade na esquerda”, resume a cientista política Flavia Bozza Martins, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ela acrescenta que em plena crise sanitária, o eleitorado apostou em políticos com experiência de gestão e castigou as candidaturas antissistema e de outsiders.

O ultradireitista apoiou no primeiro turno das eleições municipais um punhado de candidatos divididos por diversas siglas porque ele há tempos está sem partido. Dois foram ao segundo turno. Estes dois apadrinhados são sua opção para salvar a honra nas eleições. Sua principal aposta é o pastor evangélico Marcelo Crivella, que disputa a reeleição à prefeitura do Rio de Janeiro, feudo político do presidente e a segunda maior cidade do Brasil.

Mas o desempenho ruim de Crivella no primeiro turno se somou a uma frente ampla de quase todos os outros contra ele, que acabou por afundá-lo nas pesquisas. Crivella tem por volta de 32% das intenções de voto contra 68% de Eduardo Paes, de acordo com o Datafolha deste sábado. Quase todo o arco político, da direita tradicional à extrema-esquerda, pediu voto a Paes para derrotar um prefeito que encarna o ultraconservadorismo e gera grande repúdio.

O apoio a Paes é entusiasta em alguns casos. Outros votarão nele tapando o nariz. Por que o que foi o prefeito do Rio nos anos da Copa e das Olimpíadas é cercado por suspeitas de corrupção, ainda que nunca tenha sido formalmente acusado. Apaixonado pelo Carnaval, seus partidários destacam as melhorias no transporte como o grande feito de sua gestão (2009-2016).

Também em Fortaleza foi criada uma grande frente contra o candidato apoiado pelo presidente, o policial militar Wagner Souza, agora empenhado em se desvincular de Bolsonaro. Lá a aliança foi forjada ao redor do homem do clã político que manda na região, a família do esquerdista Ciro Gomes. Tem 20 pontos de vantagem em relação ao capitão Wagner.

A batalha mais encarniçada é a de São Paulo, onde Bolsonaro não conseguiu colocar seu candidato no segundo turno. O duelo é entre o prefeito, Bruno Covas, de centro-direita, e o esquerdista Guilherme Boulos, um ativista e professor que surpreendeu ao passar ao segundo turno e que desde então foi subindo até se colocar a 10 pontos de Covas. Como se não faltasse intriga à disputa, Boulos testou positivo para coronavírus na sexta-feira, o que causou a suspensão do último debate e sua entrada em quarentena. Boulos deu um impulso formidável ao pequeno Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), uma cisão nascida do flanco esquerdo do Partido dos Trabalhadores.

“Não quero gritar gol antes, mas acho que estamos em um período de paixões menos desatadas, onde aumenta a racionalidade, a escuta, o espaço às propostas de Governo, ao debate, isso que toda democracia precisa”, diz a cientista política Martins. “Isso irá se manter para (as eleições presidenciais de) 2022? Não se sabe”.

A melhor aposta do PT para salvar sua honra, após os resultados ruins no primeiro turno, está em Recife. É também a disputa eleitoral que atrai mais curiosidade porque coloca dois primos frente a frente, herdeiros de um clã político. A petista Marília Arraes e João Campos estão em empate técnico. Ambos têm 50% dos votos válidos, segundo pesquisa Datafolha deste sábado.


El País: Brasil vai às urnas votar para prefeito com um olho na covid-19 e outro na presidência em 2022

Saúde foi um dos temas mais debatidos nas redes nos últimos dias, segundo a FGV DAPP, após nova alta de contágios nas últimas semanas e com UTIs cheias em várias cidades

Se no dia 15 de novembro o eleitor fez cálculos de qual força política deveria sair fortalecida nas urnas, neste segundo turno o foco são os problemas imediatos que afligem suas cidades, em especial, o repique da covid-19 constatada nas últimas semanas. As notícias de que a ocupação de UTIs para infectados por coronavírus voltou a subir a níveis preocupantes aumentaram o interesse dos brasileiros com os investimentos em saúde em seus municípios. Um levantamento da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (DAPP-FGV) mostra que em capitais como São Paulo e Recife o tema saúde virou prioridade nos debates no Twitter. A pesquisa foi feita entre os dias 16 e 23 de novembro.

Na última quinta-feira, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, chegou a admitir o crescimento da pandemia em vários locais do país ―“repiques”, segundo ele— após um período de estabilidade. O país já soma quase 172.000 mortes por covid e mais de 6 milhões de casos. Alguns resultados no primeiro turno já apontaram que a preocupação do eleitor com a pandemia ajudou a decidir resultados. Caso de Alexandre Kalil (PSD), em Belo Horizonte, ferrenho defensor das regras da Organização Mundial de Saúde (OMS) no comando da capital mineira, apesar da pressão do governador Romeu Zema (Novo) pela reabertura do comércio em momentos críticos. Kalil foi reeleito em primeiro turno com mais de 60% dos votos e já se cacifa como um dos potenciais nomes do seu partido para 2022.

Em São Paulo e no Rio de Janeiro, o assunto pegou de frente na reta final da campanha. O candidato tucano, Bruno Covas, que lidera as pesquisas na capital paulista, foi questionado até o último dia sobre o aumento de contágios em São Paulo. “Há uma estabilidade da pandemia na cidade de São Paulo”, garantiu Covas neste sábado, 28. “Houve aumento na quantidade de internações, mas há uma estabilidade me relação ao número de casos e óbitos”, garantiu. Até este final de semana, a cidade somava 406.362 casos de covid-19 e 14.387 mortes confirmadas por coronavírus.

A pandemia atingiu, inclusive, candidatos nesta eleição. Em Boa Vista, a candidata a vice pelo MDB, Edileusa Barbosa Gomes, faleceu de covid-19 aos 57 anos no dia 25 de outubro, em plena campanha. Também o candidato a prefeito de Goiânia Maguito Vilela, do mesmo partido, chegou ao segundo turno sem saber que é o favorito. Está internado na UTI do hospital Albert Einstein em São Paulo, entubado depois de complicações respiratórias que começaram no dia 15, antes do fechamento das urnas no primeiro turno.

A covid=19 permeia esta eleição em todas as frentes e acirra inclusive as fricções que começam no xadrez político para 2022. A disputa pela vacina contra a doença também mexeu com o imaginário dos brasileiros após notícias da chegada da Coronavac ao país no dia 19, segundo a FGV DAPP. A vacina é produzida pela chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, de São Paulo. A Coronavac, porém, não está entre as vacinas cotadas para um possível acordo de compra pelo Governo federal, um reflexo do embate entre o governador João Doria (PSDB) e o presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Ambos se perfilam para concorrer à presidência da República em 2022 e calculam passos e estratégias nesta eleição para estudar o terreno.

Enquanto Doria e Bruno Covas celebram ter controlado a pandemia no Estado e na cidade, Bolsonaro tem sido atacado pela omissão na crise sanitária —o que pode influenciado negativamente aqueles candidatos a prefeito que tentaram colar sua imagem à do presidente. Nos últimos dias, Bolsonaro tem se embananado nas respostas à pandemia, mesmo diante dos sinais de retomada dos contágios. Há poucos dias o jornal O Estado de S. Paulo revelou que quase 7 milhões de testes para covid-19 estocados não foram distribuídos ―e estavam próximos de vencer. Também em um lapso de memória, o presidente disse em uma live na última quinta-feira que nunca havia chamado a covid-19 de “gripezinha”. “Não existe um vídeo ou um áudio meu falando dessa forma”, disse ele, desmentido na sequência por todos os jornais que retransmitiram aparições públicas em que usou o termo. Uma delas em cadeia nacional de rádio e televisão.

A notícia de que a pandemia se estenderá e exigirá equilíbrio no binômio saúde e economia é uma realidade inexorável e deve marcar os próximos passos de todos os governantes ―dos prefeitos que vão assumir em 1º de janeiro, aos governadores e o presidente. A julgar pelo pleito dos Estados Unidos, é inegável que a covid-19 jogou um papel importante na derrota do republicano Donald Trump, segundo analistas, uma vez que a economia do país vai melhor do que se esperava. No Brasil, contudo, a atividade econômica continua morna, o que vai requerer soluções criativas para superar a crise. Candidatos mais à esquerda defendem ajudas no estilo do auxílio emergencial, mas vivem o dilema de encarar o teto de gastos de apertados orçamentos que caem com a queda da arrecadação. Mais à direita, surgem as propostas para reativar atividades comerciais como solução para retomar emprego e renda.

Esse embate já está desenhado no Brasil, que se engalfinha ainda sobre o périplo das vacinas, diante de uma população que vai perdendo a vontade de se manter confinada. A alegria pela vitória neste domingo dos 57 eleitos em segundo turno vai ser grande, mas vai durar pouco. A necessidade de preparar uma estratégia concreta para lidar com a pandemia quando assumirem seus cargos em 2021 deve abreviar a euforia e será um teste de resiliência política para passar pelo crivo do eleitor nas próximas disputas.


Sergio Leo: A diplomacia de Bolsonaro mira eleitor de 2022

O que o presidente faz em política externa tem como propósito animar dentro do país seus eleitores fiéis e lhes dar um discurso para a próxima eleição presidencial

É um exercício interessante buscar o nome de Jair Bolsonaro no site Cablegate.org, que reúne um pacote de quase 260 mil telegramas diplomáticos do Departamento do Estado americano, vazados há uma década pelo site Wikileaks, de Julian Assange. Nesses telegramas, parte deles divulgados por um consórcio de jornais do qual fez parte EL PAÍS, há informações sobre as desconfianças e esperanças de Washington em relação à figuras de proa do então governo petista. Há também detalhes de lobbies, como o da venda (frustrada) de jatos para a Força Aérea Brasileira. O vazamento revelou, ainda, as personagens de interesse dos Estados Unidos no Brasil, e o número de vezes em que aparece o nome de Bolsonaro ilustra a importância que a diplomacia americana dava ao então deputado: zero.

Bolsonaro, na época, militava no baixo clero do Congresso, com pautas corporativas em favor de militares e policiais, ou servindo a lobbies, como o de subsídios a setores industriais que lhe inspiraram um dos raros projetos aprovados na Câmara. Transitava fora dos radares da embaixada americana, apesar de suas declarações, polêmicas e sem relevância para diplomatas estrangeiros. Já seu ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, inspirou telegramas relatando a oposição do militar à criação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. O telegrama da embaixada americana em Brasília considerava legítimas as razões para criação da reserva e concordava com o general em apenas um ponto: sem infraestrutura e apoio do Estado, a criação da reserva não daria condições adequadas de sobrevivência aos indígenas beneficiados.

Eleito presidente, Bolsonaro parece manter a alienação sobre política externa que marcou seu mandato parlamentar. Sua demora em reconhecer a vitória do presidente eleito nos Estados Unidos, Joe Biden, não obedece a um projeto claro para a relação diplomática entre Brasil com os EUA, e sim a interesses de política interna. Manifestações de Bolsonaro, nesse campo, são calibradas para manter sua legião de apoiadores nas redes sociais, apreciadores de teorias conspiratórias, cuja marca, neste mês foi uma intensa atividade no debate sobre as eleições americanas, sintonizadas com o material divulgado por apoiadores de Trump.

Essa é a chave para compreender os gestos do Presidente da República na diplomacia: o que faz ou deixa de fazer em política externa tem, como propósito, animar, dentro do país, seus eleitores fiéis e lhes dar discurso para o debate eleitoral que pretende travar em 2022.

Desafios do Brasil na geopolítica? Estratégia para lidar com a Influência dos grandes atores globais na América Latina? Resposta às grandes causas civilizatórias no plano internacional? Tudo isso é tratado pelo presidente como um tormento que lhe rouba o tempo, e frustra o desejo de confraternizar tomando caldo e cana na rua e comendo pastel.

O Presidente da República não se encarrega de planejar, coordenar ou conduzir a política externa; limita-se a aprovar ou barrar iniciativas isoladas de seus subordinados com base em avaliações superficiais de fundo ideológico. Como boa parte das políticas do governo Bolsonaro, a única marca que une seus gestos para a comunidade internacional é a do improviso, inspirado pelo calor do momento, ou pelos conselhos de assessores próximos, também movidos pela guerra ideológica que empolga os militantes nas redes sociais.

“Minha vida aqui é uma desgraça problema o tempo todo; não tenho paz para absolutamente nada”, desabafou Bolsonaro, para surpresa dos próprios assessores, na terça-feira, 10, no mesmo dia em que ameaçou reagir com “pólvora” às possíveis pressões do presidente eleito Joe Biden, para proteção da Amazônia. Não se sabe que tipo de paz esperava o candidato Jair Bolsonaro ao concorrer para a Presidência da República de um país com uma das piores distribuições de renda da América Latina, sérios problemas de custos para fazer negócios, engolfado em recessão, com uma dívida interna crescente e um sistema partidário fragmentado (do qual se beneficiou).

A diplomacia com sabor de cana e pastelzinho fez mais uma aparição nesta terça, 17, no discurso de abertura de Bolsonaro na Reunião dos BRICS, grupo que reúne a Rússia e os grandes emergentes China, Brasil e África do Sul. Bolsonaro abriu seu pronunciamento na defensiva, jurando esforços para conservar a Amazônia e logo mudou de tom, avisando que, em breve, anunciará nomes de países que criticam o Brasil mas importam madeira ilegal – insistindo na troca de acusações como resposta às preocupações internacionais com a falta de convicção do governo brasileiro em relação aos compromissos do país na área ambiental.

No discurso do BRICS, misturou defesa do nacionalismo anti-globalista defendido por Trump e pelo chanceler Ernesto Araújo com reivindicações tradicionais multilateralistas do Itamaraty, como a ação conjunta dos Brics e o assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Na falta de um Presidente interessado em se aprofundar no assunto e capaz de dar coerência à atuação diplomática do governo, com um ministro de Relações Exteriores que defende para o Brasil a condição de “pária internacional”, hoje cabe às diversas instâncias do governo o esforço de retardar a caminhada do país rumo à irrelevância na tomada de decisões internacionais.

Discretamente, em fevereiro, por exemplo, o ministério da Agricultura conseguiu fechar um inédito acordo com a Argentina, de redução de burocracia no comércio bilateral, que poderá abrir caminho, especialmente, a vendas de frutas, troca de material genético em pecuária e abertura de mercados alternativos no país vizinho para produtos como leite destinado à alimentação animal. Questões mais importantes de interesse comum, que exigiriam instâncias superiores à área técnica, como um acordo para certificação de animais livre de febre aftosa ficaram em suspenso, porém, à espera de melhores condições diplomáticas, enquanto o presidente brasileiro, em suas poucas manifestações sobre a Argentina, hostiliza o mandatário argentino, Alberto Fernandez, cuja eleição lamentou publicamente.

A aproximação discreta com a Argentina, na área comercial, é uma rara iniciativa com resultados concretos no entorno sul-americano, onde mudanças políticas trazem ao Brasil consequências econômicas, de segurança e sociais, com repercussões nas correntes migratórias, nas oportunidades de negócio, no combate à criminalidade e na segurança de comunidades de brasileiros no exterior. As atitudes de Bolsonaro e seu chanceler, porém, apagam o esforço feito pelo Brasil no passado para se credenciar como mediador nas questões internacionais, movido por critérios técnicos e diplomáticos.

Na posse do novo presidente da Bolívia, de quem ainda importamos gás para a indústria paulista e onde estudam dezenas de milhares de brasileiros, o Brasil esteve representado burocraticamente, pelo embaixador brasileiro em La Paz; na recente convulsão política no Peru, limitou-se a uma nota breve, em que indicou satisfação com a previsão de novas eleições em 2021 e saudou o anúncio do novo governo – que cairia, sob protestos populares, quatro dias depois. Ao servir de palco para uma visita de fins eleitorais de um enviado de Trump à fronteira da Venezuela, em setembro, o Brasil aprofundou sua desmoralização como ator relevante nas negociações para resolver a crise política no país.

A situação da Venezuela, aliás, deve ser um dos assuntos de uma das primeiras iniciativas anunciadas pelo futuro governo Joe Biden, uma “cúpula pela democracia” vista com desconfiança no Palácio do Planalto, com potencial para tornar-se um constrangimento para Bolsonaro.

O governo Joseph Biden, nos Estados Unidos, em algum momento, terá de ser reconhecido em Brasília. Já é, de fato, um dos principais desafios para a política externa sem cabeça do governo bolsonarista. Foi magro, quando não claramente negativo, o saldo da subordinação da diplomacia brasileira aos interesses de Washington, em iniciativas nas Nações Unidas e em outras instâncias multilaterais, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento, no qual Trump preteriu a candidatura brasileira a uma vice-presidência em favor de um nome indicado por Honduras.

Quando os produtores de aço no Brasil, no ano passado, discutiam a retirada das cotas que limitam as exportações àquele país, foram surpreendidos por Trump com a decisão de uma sobretaxa até mesmo em produtos siderúrgicos usados como matéria-prima nas aciarias americanas; a pedido de Bolsonaro, evitou-se a sobretaxa, apenas para o governo se ver surpreendido, em 2020, com a reivindicação - atendida – para que o Brasil deixasse de vender toda a cota prevista aos EUA, deixando lugar para produtores locais em regiões americanas de interesse eleitoral para Trump.

O raro gesto positivo em matéria de comércio bilateral foi obtido já em clima de campanha de Trump à reeleição: um acordo de facilitação de comércio, que empresários dos dois países e ambos os governos começaram a discutir em meados de 2019 e se apressaram a fechar em meados do ano. Foi saudado como “ambicioso” por empresários brasileiros, por trazer avanços concretos em matéria de transparência, autorização para uso de documentos eletrônicos, desburocratização nas fronteiras e segurança no comércio de bens perecíveis. Mas deixou de fora os principais obstáculos à venda de mercadorias brasileiras no mercado americano, as chamadas barreiras técnicas e fitossanitárias, que demandam visitas de especialistas e adaptações nem sempre possíveis nos processos de produção dos exportadores no Brasil.

Muitos dos avanços saudados pelos empresários brasileiros dizem respeito a facilidades para importar, e não exportar, produtos, com a redução do chamado custo Brasil e a aplicação, aqui, de práticas já adotadas nos EUA. É um benefício da internacionalização do qual os antigobalistas do bolsonarismo nem suspeitam: acordos internacionais servem para confrontar pressões de lobbies corporativos e adotar medidas que aproximam o país das melhores práticas de nações desenvolvidas. Os verdadeiros ganhos do acordo com os EUA dependerão, porém, de medidas ainda a serem tomadas pelos governos, de Biden (com envio de missões técnicas, por exemplo), e de Bolsonaro (com aprovação do acordo no Congresso, tarefa em que a anomia da diplomacia bolsonarista falhou miseravelmente no caso do Chile, com acordo aprovado desde 2018, mas paralisado, à espera, até hoje, do aval dos parlamentares brasileiros).

Biden, às voltas com problemas prementes, como a prioridade ao combate à pandemia, as expectativas de respostas de política interna ao racismo sistêmico nos EUA e a disputa mundial de influência com a China, que inclui restrições a equipamentos chineses na tecnologia 5G de transmissão de dados, tende a evitar confronto direto com o Brasil, mesmo em sua anunciada prioridade para o combate ao aquecimento global. Entrevistas recentes do ex-presidente Barack Obama, que teve Biden como vice-presidente e conselheiro em temas internacionais, mostram disposição dos democratas em tratar o Brasil com alguma deferência, embora o começo não tenha sido promissor, com a reação irritada de Bolsonaro à oferta de uma linha R$ 20 bilhões para ajudar na proteção da Amazônia e evitar “consequências econômicas significativas”.

Até agora, Bolsonaro cuida da relação com o novo governo nos EUA na base do improviso que marca sua anti-diplomacia. Só no segundo fim de semana de novembro, segundo a Folha de S. Paulo, Araújo pediu aos auxiliares cenários para lidar com uma eventual eleição de Biden. Segundo um experimentado funcionário do Departamento de Estado, a falta de iniciativa brasileira prejudica o Brasil, em um momento no qual Biden define seus primeiros passos no governo e anuncia iniciativas e os indicados do novo governo quase diariamente, para não deixar vácuo no noticiário que seja aproveitado por um Trump inconformado com a derrota.

Entrando ou não no radar da administração Biden em seus primeiros dias, Bolsonaro já tem marcado, para abril, um teste de seu relacionamento com a nova política dos EUA para o continente: nesse mês, na Flórida, o governo americano hospeda a Cúpula das Américas, com todos os países do continente e, possivelmente, Cuba e Venezuela. Bolsonaro e seu chanceler terão a oportunidade de testar sua tese sobre o Brasil como pária internacional. Até agora, caminham a passos largos nessa direção, e Biden é um dos poucos chefes de Estado capazes de desviá-los do caminho. Mas, para isso, terão de mudar radicalmente o hábito de responder às preocupações com o meio ambiente empurrando as culpas para os outros, ou para esdrúxulas teorias conspiratórias.

Sergio Leo é jornalista e escritor, especialista em relações internacionais


Vladimir Safatle: A república oligárquica precisa morrer

O processo de mudar o que significa “governar” tem sua mola principal na liberação da energia e inteligência dos setores mais violentados de nossa história de latifúndio escravocrata primário-exportador

Os resultados das eleições do último domingo evidenciaram duas linhas principais de confronto a animar a política brasileira. Não seria mero exercício retórico afirmar que nosso destino a curto e médio prazo depende do desdobrar de tais linhas.

A primeira delas indica a resiliência da República oligárquica brasileira. Os números mostram com clareza a hegemonia eleitoral de uma constelação na qual encontramos representantes tradicionais do aparato econômico e da chamada “direita de sobrenome”, ou seja, esse setor da elite política que tem relações históricas e familiares com o poder, espalhado em múltiplos níveis regionais e locais. Tal grupo há muito conseguiu se consolidar como verdadeira “casta” política e é marcado por práticas políticas conhecidas, nas quais se misturam brutalidade policial e racista, guerra contra pobres, ausência de qualquer formulação de fortalecimento do espaço comum, assim como submissão aos múltiplos interesses imobiliários e concentracionistas em operação em nossas cidades.

Esse grupo conseguiu se vender, ironia maior do Brasil contemporâneo, como “anteparo de racionalidade” contra o “extremismo” do Governo federal, como retorno da “política” contra o “populismo”. Na verdade, essa foi sua estratégia para reconstituir a balança do poder diante da ascensão de outro grupo, a saber, uma extrema direita popular, composta por setores que eram normalmente sócios menores e subalternos dos consórcios do poder. Setores compostos por: milicianos, representantes do aparato repressivo policial, agitadores midiáticos de extrema direita e pastores. Normalmente, eles eram servidores da direita oligárquica que conseguiram, nesses últimos anos, subir ao primeiro time, amparado pela força histórica das tendências fascistas na sociedade brasileira.

Esta direita oligárquica, que comunga com a extrema direita o mesmo projeto econômico de espoliação e concentração, a mesma brutalidade social e indiferença no uso da violência de Estado, mas que sabe usar melhor planilhas de CEO, conceitos acadêmicos e sabe onde fica a Avenue Foch, viu-se em meados deste ano a ponto de ser definitivamente afastada do poder dentro de uma escalada pré-golpe. Como a arte da sobrevivência lhe é um traço inerente, ela soube reordenar suas forças, capitanear chamados a “frente ampla e redentora contra o fascismo e em prol da defesa da democracia” para simplesmente repactuar uma divisão provisória de poder. Agora, ela soube se vender nas eleições como uma espécie de “volta à normalidade”, mesmo que essa normalidade seja o verdadeiro nome da catástrofe brasileira.

Ela tentará agora colocar em circulação estratégias aprendidas observando o comportamento de sua matriz, a saber, a direita oligárquica norte-americana encarnada no Partido Democrata. Nas últimas décadas, o Partido Democrata em seu eixo Clinton-Obama procurou compensar a aliança incondicional com políticas militaristas e de preservação do capitalismo financeiro de Wall Street com um “rosto mais humano” expresso na tentativa de integração de representantes dos setores mais sistematicamente violentados da população (pretos, LGBT’s , mulheres), sem mexer em praticamente nada nas engrenagens de espoliação, de precarização e sujeição socioeconômica que lhes afetam mais diretamente. Afinal, não é possível nomear Timothy Geithner (representante maior dos interesses dos sistema financeiro) secretário do Tesouro na administração Obama e fingir que se está a lutar pela transformação estrutural contra as múltiplas formas de sujeição social. A pobreza é a matriz das piores violências.

Mas há um problema que faz essa equação não fechar muito bem. A revolta vinda desses setores é potente, explosiva, assim como é real seu desejo de transformação. As tentativas de vampirizar sua força pela direita oligárquica equivalem a tentar domar, com velhos truques de mágica, processos com verdadeiro potencial de mudança. Ou seja, a tendência de que esse arranjo se quebre é grande e chegará uma hora que o espantalho de “todxs contra o trumpismo” não funcionará mais. De toda forma, o trabalho do Partido Democrata é relativamente facilitado porque eles não têm, por enquanto, nenhuma força à sua esquerda com quem se confrontar. Esse não é, felizmente, o caso do Brasil.

É nesse ponto que encontramos a segunda linha principal de confronto que emerge do primeiro turno das eleições. Se a primeira se resume às estratégias de preservação das oligarquias locais contra a extrema direita de matriz integralista, sob fundo de concordância geral, a segunda diz respeito à paulatina incorporação de novos processos coletivos de exercício do poder popular. Por isto, essas eleições foram também o início de um novo embate que começa, não por acaso, no centro econômico e financeiro do país: São Paulo.

São Paulo é uma das representações mais bem acabadas do poder das oligarquias. O Estado é governado de forma ininterrupta, há quase quarenta anos, pelo mesmo grupo e suas divisões internas. De Montoro a Doria, a linha é reta e constante. Diante de tanta continuidade há de se imaginar que São Paulo deva ostentar resultados robustos de políticas inovadoras nas áreas de saúde, educação, transporte, habitação, saneamento ou qualquer outra área. Mas a mediocridade dos resultados das políticas públicas do Estado só é ofuscada pela tranquilidade olímpica com que sua oligarquia dirigente se vê exercendo algo como um direito divino de mando entregue por deus em pessoa desde a época dos cafezais e dos bandeirantes caçadores de homens.

Há de se admirar os representantes dessa casta a falar, sem tremer, da “experiência” que porventura teriam na arte de “ser gestores”. Alguém poderia, nesses momentos, perguntar: experiência exatamente em relação a o quê? A como tentar despoluir um rio por 30 anos, como o Tietê, sem sucesso gastando 1,7 bilhão de reais só nos últimos noves anos? A como tentar passar ração humana como merenda escolar? A como implantar políticas de combate a pandemia enquanto obrigava mais de 2 milhões de pobres a pegarem transporte público lotado? A construir Rodoanéis que nunca terminam e eivados de processos por corrupção que, milagrosamente, caem no esquecimento? Talvez haja um dialeto ainda não identificado nessas terras onde “experiência” significa algo oposto ao seu sentido trivial em português castiço.

Contra isto, novas forças lutam por mostrar que “governar” pode significar abrir os processos decisórios e deliberativos à inteligência coletiva dos movimentos sociais e profissionais, à inteligência coletiva dos artistas, à inteligência coletiva das universidades. É isto que se está a defender em São Paulo, contra a falácia de um saber tecnocrata que sempre foi apenas a gestão em nome da preservação dos interesses oligárquicos de sempre. Esse processo de mudar o que significa “governar” tem sua mola principal na liberação da energia e inteligência dos setores mais violentados de nossa história de latifúndio escravocrata primário-exportador. Diferente dos norte-americanos, esses setores não precisam lidar aqui com as travas impostas pela realidade política bipartidária. Por isso, eles têm campo para declinar sua potência de transformação no espaço estendido dos embates econômicos, políticos e sociais, como vimos ocorrer na sublevação popular do Chile, com seus resultados surpreendentes. Se bem sucedido entre nós, esse processo pode ser o início de uma abertura do campo político à energia de tudo aquilo que a oligarquia temeu e procurou apagar.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo


Eliane Brum: “Me beija e me chama de centro”, diz direita brasileira

No Brasil, o “moderado” que se apresenta para “unir o país” é o novo velho malandro da crônica política

Mais importante que o mau desempenho nas urnas dos candidatos que Bolsonaro apoiou formalmente são os dois grandes marcos desta eleição: um novo líder se consolida no campo da esquerda no Brasil; e a disputa do legislativo aconteceu com um número inédito de candidatos negros, de indígenas e de pessoas transexuais, algumas delas as mais votadas de seus municípios. Também o número de mulheres cresceu. É pouco, diante do domínio de alguns dos partidos mais viciados e fisiológicos, mas é bastante em um dos países que mais mata negros e faz vítimas por transfobia do mundo, além de ostentar um número assombroso de estupros e feminicídios.

A ampliação da diversidade na política institucional acontece exatamente no momento em que o país é governado por um presidente declaradamente racista, misógino e homofóbico. O avanço dessas forças e o risco de Bolsonaro fracassar em seguir representando os interesses das elites econômicas faz a direita iniciar um curioso processo de mudança de identidade. “Me abraça, me beija e me chama de centro” poderia ser o título do mais recente capítulo da crônica política brasileira.

A eleição de domingo mostrou que toda a violência e o autoritarismo de Bolsonaro não foram capazes de interromper o crescente protagonismo dos grupos periféricos da sociedade― negros, indígenas, mulheres e LGBTQIA+― que reivindicam o centro político. Mostrou também que, depois de passar os últimos anos dando voltas em torno do próprio rabo, devido ao controverso legado de Luiz Inácio Lula da Silva e do Partido dos Trabalhadores, o campo da esquerda começa a se mover. Guilherme Boulos, do PSol de Marielle Franco, é líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, uma das principais organizações populares de luta por moradia do país. O fato de disputar o segundo turno para a prefeitura de São Paulo, maior e mais rica cidade brasileira, é a maior notícia desta eleição. Que o PSDB de Bruno Covas saia na frente, com toda a máquina de governo e o tempo de propaganda eleitoral a seu favor, é o óbvio. Boulos é o corte.

O que acontece em São Paulo sinaliza rumos para o Brasil. Não justifica nenhum maremoto de otimismo, mas aponta que existem brechas e que aqueles que aprenderam a resistir seguem avançando por elas. Se é verdade que o antipresidente fracassou como cabo eleitoral, é também muito cedo para dar Bolsonaro e, principalmente, o bolsonarismo, por derrotado. Em pequenas e médias cidades, abrigados nos mais variados partidos, há muitos prefeitos bolsonaristas de alma e também de coldre, e a violência nos interiores do Brasil, tanto quanto nas periferias urbanas, é da ordem do massacre. Como, por exemplo, em municípios do Arco do Desmatamento, na Amazônia.

Os sinais de que Bolsonaro pode se enfraquecer para disputar a reeleição em 2022, porém, já levou a direita a buscar um rearranjo estratégico nas últimas semanas. Figuras que até pouco tempo atrás dançavam de rosto colado com o antipresidente, como o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e o ex-ministro da Justiça Sergio Moro, começaram a costurar uma aliança para 2022 junto com Luciano Huck, popular apresentador da TV Globo, que já fez efusivas carícias públicas em Bolsonaro. Doria quis tanto se grudar em Bolsonaro em 2018 que literalmente colou o nome dos dois na propaganda eleitoral: “BolsoDoria”. No caso do herói decaído da Operação Lava Jato, até sua mulher, Rosângela Moro, insuspeita, portanto, já afirmou que via o juiz justiceiro e o Governo Bolsonaro “como uma coisa só”. Huck, na eleição de 2018, chegou a declarar que Bolsonaro tinha “uma chance de ouro de ressignificar a política”.

Antecipando-se ao risco de que a esquerda possa se unir para disputar a sucessão de Bolsonaro, como acontecerá no segundo turno de São Paulo, a direita tira do bolso truques manjados, mas que ainda podem funcionar. Como fizeram com Lula quando o então líder sindical se iniciou na política, as urnas nem tinham terminado de ser apuradas no domingo e já começaram a estampar em Boulos o carimbo de “radical”, na tentativa de amedrontar o eleitor num momento de intenso desamparo por conta do desemprego e da pandemia. Ao colocar “radical” como palavrão, a direita revela seu profundo preconceito contra os movimentos sociais. Tratar como radical a luta por moradia num país em que há mais casas sem gente do que gente sem casa revela mais da direita que se finge de centro do que da esquerda que Boulos representa.

O fato é que a esquerda finalmente começa a dar sinais de que há vida depois do lulismo ―e o legislativo vai ficando mais preto e mais trans. Dez prefeitos indígenas e mais de 50 vereadores quilombolas também foram eleitos, desbranqueando prefeituras e câmaras, embora ainda não suficientemente. Nas ruínas do Brasil, é necessário olhar para onde está a resistência que teima em criar vida mesmo nos escombros.

Assustada, a velha direita tenta vestir a máscara de moderação de Joe Biden. O problema é que Joe Biden foi eleito porque teve o apoio da esquerda progressista do Partido Democrata, na qual a maior parte dos expoentes nasceu justamente de lutas contra o racismo e o preconceito. A direita que agora se finge de centro e pretende nunca ter apoiado um defensor de tortura, quer justamente fazer o contrário: esmagar toda a potência emergente que primeiro Michel Temer (MDB) e depois Bolsonaro golpearam, mas fracassaram em parar. Não há máscara grande o suficiente para conter o topete laranja que salta bem no meio da testa destes malandros.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


El País: Sentença histórica contra o centro de tortura de mulheres na ditadura de Pinochet

Um juiz do Chile considera que os abuso sexuais cometidos por agentes da polícia secreta constituíram “uma forma específica de violência contra a mulher”

Pablo Cadiz, El País

Beatriz Bataszew ficou aterrorizada quando soube o que estava acontecendo no porão de Venda Sexy. Horas antes, em 12 de setembro de 1974, ela havia sido detida por agentes da Direção Nacional de Inteligência (DINA), a polícia secreta da ditadura de Augusto Pinochet, que a transferiram para aquele centro clandestino instalado em uma casa de dois andares de um setor de classe média da comuna de Macul, em Santiago do Chile.

A origem do nome Venda Sexy está registrada no primeiro Relatório da Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura ―mais conhecido como relatório Valech. Lá ficou estabelecido que era parte do jargão dos agentes da DINA e estava relacionado ao seu método preferido de tortura: abuso sexual, principalmente de mulheres, que durante sua passagem pela casa ficavam nuas e vendadas.

Para Beatriz Bataszew, estudante de engenharia florestal e militante do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), sua passagem pelos porões da casa foi de cinco dias, nua, vendada, sem contato com o exterior e submetida a vários interrogatórios nos quais foi torturada, agredida e abusada sexualmente. O lugar também era conhecido como a discoteca: um toca-discos ficava ligado a todo volume para ocultar o horror.

O que aconteceu em Venda Sexy, afirma Beatriz, estava completamente fora do que ela e outros militantes de movimentos de esquerda imaginavam sobre a repressão, em meio aos anos mais duros da ditadura. Um dos primeiros avisos do que ela iria viver chegou ao escutar a história de Marta Neira, de quem perderiam todo o rastro e iria engrossar a lista dos mais de 1.210 presos desaparecidos pelo regime: “Ela voltou do porão e relatou desesperada, desconcertada, que havia sido violentada pelo cachorro. Isso foi terrível para nós que ainda não tínhamos passado por aquela experiência, porque quando ela contava eu pensava que isso iria acontecer comigo, e de fato aconteceu”.

Beatriz Bataszew participa em dezembro de 2019 de homenagem às mulheres assassinadas no centro de detenção Venda Sexy.
Beatriz Bataszew participa em dezembro de 2019 de homenagem às mulheres assassinadas no centro de detenção Venda Sexy. MEMORIAS DE REBELDÍAS FEMINISTAS

Os estupros eram perpetrados pelos próprios agentes da DINA e em especial por uma mulher: Ingrid Olderock, descendente de alemães, com ideias ligadas ao nazismo, que se tornou conhecida na polícia secreta por meio de seu cachorro Volodia, da raça pastor alemão e treinado para cometer os abusos. “Não foi só violência sexual, foi violência política sexual, que tinha como objetivo nos domesticar, nos disciplinar e particularmente nos punir, porque éramos mulheres que lutávamos decididamente contra a ditadura”, diz Beatriz Bataszew, lembrando o que viveu há quase meio século.

O caso dela faz parte de uma decisão inédita da Justiça chilena que incorporou uma perspectiva de gênero ao condenar os ex-agentes da DINA Raúl Iturriaga Neumann, Manuel Rivas e Hugo Hernández a 15 anos de prisão como autores de sequestros e uso de tortura com violência sexual contra Beatriz e cinco outras mulheres: Cristina Godoy, Laura Ramsay, Beatriz Bataszew, Sara de Witt, Alejandra Holzapfel e Clivia Sotomayor; além de quatro homens que foram vítimas de sequestro e tortura entre 1974 e 1975, dentro de Venda Sexy.

A particularidade da decisão do juiz Mario Carroza reside no fato de que os abusos cometidos durante os interrogatórios foram considerados “uma forma específica de violência contra a mulher”, em consonância com padrões internacionais. “No estudo do ocorrido no referido recinto clandestino de detenção, os agentes não se limitaram apenas a sequestrar homens e mulheres, com o propósito de trancafiá-los e deles extrair informações, sob tortura, que no caso das mulheres, por sua natureza e gravidade, tiveram um impacto sobre elas que marcou sua vida futura”, explica Carroza ao EL PAÍS.

Casa onde funcionava o centro de detenção Venda Sexy, operada pela polícia secreta de Pinochet.
Casa onde funcionava o centro de detenção Venda Sexy, operada pela polícia secreta de Pinochet.CONSEJO DE MONUMENTOS NACIONALES

Para o juiz, o que as mulheres vivenciaram no interior daquela casa “foram circunstâncias desumanizadas, degradantes e abusivas”, e que deveriam ser entendidas como uma figura penal diferente e que “tornasse evidentes essas circunstâncias”. Com as sentenças de prisão dos ex-agentes, Carroza condenou o Estado do Chile a pagar uma indenização de 80 milhões de pesos chilenos (cerca de 560.000 reais), por danos morais, a cada uma das demandantes. A sentença é inapelável.

Para Beatriz Bataszew, a sentença “tem um valor importante, mas tem limitações, entre as principais o fato de que não ser considerado o elemento político daquela violência. Isso significa que são julgados os que cometeram os atos, mas não quem orquestrou esse instrumento de terrorismo de Estado. Ou seja, não se julga a autoridade política”. “Há um progresso no sentido de que se avança na verdade, mas não consideramos que seja justiça um ato executado quase meio século depois. Se a justiça não é oportuna, não é justiça”, diz.

Já para a advogada Camila Maturana Kesten, da Corporação Humanas, organização feminista que presta apoio jurídico a vítimas de violações aos direitos humanos, “é da maior importância que o Judiciário chileno reconheça e destaque a particularidade da repressão exercida por agentes do Estado em Venda Sexy, assinalando que, além de infligir grave sofrimento físico e psicológico às pessoas sequestradas, foi cometida violência sexual sistemática e maciça, em particular contra mulheres”.


El País: China e outros 14 países da Ásia e Oceania assinam o maior acordo comercial do mundo

Tratado RCEP, que englobará 30% do PIB e da população mundial, representa um impulso econômico e político para Pequim, em detrimento da influência dos EUA na região

Macarena Vidal Liy, El País

Quinze países da Ásia e da Oceania assinaram no domingo (15) um acordo para formar a maior associação comercial do mundo, em uma grande vitória para a China, principal promotora do projeto desde que ele começou a ser negociado, em 2012. A Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP, na sigla em inglês) exclui os Estados Unidos, mas reunirá 2,1 bilhões de consumidores e 30% do PIB mundial.

China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia assinaram o pacto, juntamente com os dez países que compõem a Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean) ―Indonésia, Tailândia, Singapura, Malásia, Filipinas, Vietnã, Myanmar, Camboja, Laos e Brunei― ao fim da reunião de cúpula desta organização, realizada neste ano por videoconferência devido à pandemia. A Índia, que decidiu abandonar as negociações no ano passado devido ao temor de que produtos chineses baratos inundem seu mercado, terá a possibilidade de se incorporar à RCEP no futuro, se quiser.

Como a reunião foi por videoconferência, a assinatura do acordo seguiu um protocolo próprio, adaptado às circunstâncias da pandemia. Cada país realizou sua própria cerimônia, na qual o respectivo ministro do Comércio firmou o documento sob o olhar de seu chefe de Governo ou de Estado.

“Estou muito satisfeito porque, depois de oito anos de negociações complexas, finalmente concluímos hoje de forma oficial as negociações da RCEP”, afirmou o primeiro-ministro vietnamita, Nguyen Xuan Phuc, cujo país preside atualmente a Asean.

Impulso

O sucesso das negociações e a assinatura do acordo representam um impulso econômico e político para Pequim. Como principal propositor dessa iniciativa, a China consolida sua influência na Ásia, em detrimento dos Estados Unidos. Envia a mensagem de que é Pequim, e não Washington, o Governo que está realmente interessado na região. Ela poderá desempenhar um papel-chave no desenvolvimento das regras comerciais do continente. O pacto abre ainda novos mercados para suas exportações, em um momento de incerteza sobre a evolução da economia global. E reforça as credenciais que o país busca como defensor global do multilateralismo, em meio a uma tendência à desglobalização que foi acelerada pela pandemia de covid-19.

O pacto é uma alternativa ao TPP, o Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica. A administração do ex-presidente americano Barack Obama via o ambicioso acordo entre países dois lados do Pacífico, do qual a China estava ausente, como um pilar econômico para sustentar a influência dos Estados Unidos na Ásia. Quando chegou à Casa Branca, o presidente Donald Trump ordenou a retirada americana do pacto, que outros 11 países ratificaram.

A saída americana foi um golpe quase fatal para o TPP e reforçou os argumentos de quem afirmava que a maior potência mundial não tem interesse em se envolver realmente na região. A decisão de Trump reavivou as negociações para a RCEP, que se arrastavam havia anos. O interesse dos Governos regionais de encontrar formas de estimular suas economias, afetadas primeiro pela guerra comercial e tecnológica entre EUA e China e depois pela pandemia, fez o resto.

Para o primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, “nas atuais circunstâncias mundiais, [o acordo] traz um raio de luz e de esperança em meio às nuvens escuras” deixadas neste ano pela pandemia e pelas tendências desglobalizantes. A RCEP, acrescentou, “mostra claramente que o multilateralismo é o caminho correto e representa a direção adequada para a economia mundial e o progresso da humanidade”.

“Acreditamos que a RCEP, como o maior acordo de livre comércio do mundo, é um importante passo rumo a um marco ideal de comércio global e regras para o investimento”, assinalaram os países signatários em um comunicado. É um grupo muito diverso, que inclui algumas das economias mais avançadas do mundo, como o Japão; a “socialista com características chinesas” em Pequim; e algumas das mais pobres do planeta, como Laos e Camboja.

Diferenças

A RCEP e o TPP são muito diferentes. Enquanto o TPP se concentrava na redução de barreiras não tarifárias (proteção do meio ambiente, padrões para investimento estrangeiro), a RCEP dá ênfase principalmente às tarifas, sem a preocupação com proteções dos direitos trabalhistas, oferecidas pela tratado promovido originalmente pelos EUA.

A aliança elimina tarifas sobre mais de 90% dos bens trocados entre os membros. O acordo também inclui proteções sobre propriedade intelectual e capítulos sobre investimentos e comércio de bens e serviços. Além disso, estipula mecanismos para a resolução de disputas entre os países.

No total, a RCEP reduz tarifas e estabelece regras em cerca de 20 áreas. Entre outros, elimina impostos sobre 61% das importações de produtos agrícolas e pesqueiros da Asean, Austrália e Nova Zelândia, juntamente com 56% da China e 49% da Coreia do Sul.

Com a assinatura do acordo, aumenta a pressão sobre o presidente eleito dos EUA. Joe Biden, para demonstrar o compromisso de seu futuro Governo com a região que acumula o maior potencial de crescimento nos próximos anos. Biden afirmou no ano passado que tentará renegociar o TPP para que os Estados Unidos se reincorporem ao pacto, o que não parece ser uma tarefa fácil.

As próprias negociações iniciais para levar adiante o pacto promovido pelos EUA já se mostraram muito espinhosas, e é possível que economias como a japonesa exijam condições mais rígidas. O próximo inquilino da Casa Branca também terá de lidar com um Congresso muito mais reticente em relação a grandes acordos comerciais. À medida que a campanha eleitoral foi avançando, Biden foi se mostrando menos enfático sobre suas aspirações de retomar o TPP, e já declarou que prefere se concentrar primeiro na recuperação econômica e na luta contra a pandemia.