eduardo araújo

José Goldemberg: Movimento ambientalista é de esquerda ou direita?

É preciso redobrar esforços para evitar que o aquecimento global seja ‘politizado’ de novo

Preocupações com a preservação do meio ambiente datam da mais remota Antiguidade. Platão, há 2.500 anos, comparou o desmatamento na Grécia do seu tempo com “o esqueleto de um homem doente: toda a gordura e a carne tenra se foram, deixando apenas a moldura nua da Terra”.

Alguns governantes, ao longo da História, se deram conta das consequências negativas da destruição das florestas. Os antigos egípcios penalizavam quem cortasse árvores e na civilização inca essa prática era punível com a morte.

Apesar disso, a expansão do Império Romano varreu as florestas de quase toda a Europa e da Inglaterra. O mesmo foi feito pelos colonizadores portugueses, que devastaram a Mata Atlântica até esgotar a produção de pau-brasil.

A situação começou a mudar no século 16, por diversas razões: em alguns países, como a Áustria, um reflorestamento foi feito por questões econômicas; em outros, pelo interesse dos aristocratas europeus em preservar as florestas em torno dos seus castelos para garantirem espaço para suas caçadas. Aliás, essa é a razão pela qual Londres tem hoje tantos parques. Na enorme expansão da conquista do território da América do Norte, reservas naturais foram criadas até por motivos estéticos, sob a influência de intelectuais como Thoreau.

Surgiram no século 19 as primeiras associações ambientalistas do mundo, como a Open Society, na Inglaterra, em 1865, o Sierra Club, nos Estados Unidos, em 1892, e a Audubon Society, também dos Estados Unidos, em 1905.

O caráter básico delas era a conservação da natureza, o que levou à criação, em 1952, da União Internacional para a Conservação da Natureza.

No fundo, eram todas elas organizações inspiradas em nobres propósitos, bem aceitos pelo establishment e próximas da “direita”, mas pouco eficazes em evitar a degradação ambiental decorrente da industrialização selvagem do século 19, devida à utilização de carvão em grande escala. Nos países menos desenvolvidos, a expansão colonial dos séculos 19 e 20 levou a degradação ambiental ao resto do mundo.

Foi só a partir da metade do século 20 que surgiram na Europa e nos Estados Unidos movimentos sociais e organizações que começaram a questionar seriamente os modelos de desenvolvimento econômico que levavam à degradação ambiental. Esses movimentos, que se organizaram em parte pela repulsão à Guerra do Vietnã, acabaram se expandindo para a luta contra o apartheid na África do Sul, a discriminação racial nos Estados Unidos, a cruzada contra o uso da energia nuclear, depois do acidente de Chernobyl, e a emancipação feminina, que a pílula anticoncepcional acelerou.

Algumas dessas organizações, como o Greenpeace, introduziram um tipo de ativismo que não existia no movimento ambientalista do início do século 20, que era até então tolerado pela “direita”. Por essa razão a revolução cultural dos anos 1970 ganhou aspectos mais próximos do que se rotula como “esquerda” do movimento ambientalista, crítico da economia capitalista dos países do Ocidente e da economia dos países da área socialista, uma vez que a União Soviética não revelou preocupações maiores com a preservação ambiental do que seus adversários ocidentais na guerra fria.

O que estamos presenciando agora neste início do século 21 é um movimento de “contracultura” ao que se poderia considerar exageros da revolução cultural dos anos 70. Ele se manifesta no renascimento da valorização da família, no nacionalismo e nas restrições à entrada de imigrantes de Estados islâmicos e africanos, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. Neste país em particular, a eleição de Donald Trump tem sido interpretada como uma reação ao “politicamente correto” dos anos de Bill Clinton e Barack Obama.

Ele se manifesta também por meio de ideologias evangélicas cristãs (não católicas), baseadas na sua interpretação pessoal dos Evangelhos, e atrai também grupos de protestantes, mórmons e judeus. Eles têm em comum um forte apoio à economia de mercado (sem controle governamental), questionam a Teoria da Evolução, são contrários à manipulação genética, eutanásia, homossexualidade, educação sexual, ao aborto; e são céticos em relação ao aquecimento global, além de terem uma forte suspeita das elites científicas que questionam as interpretações literais da Bíblia.

Uma vítima dessa descrença no conhecimento científico é a recusa em aceitar o fato notório de que a atividade humana é a causa principal do aquecimento global, o que favorece grupos econômicos importantes nos países produtores de combustíveis fósseis e, principalmente, empresas de petróleo e de carvão.

Existe, porém, um elemento novo que surgiu nesse debate, com o trabalho dos cientistas de grandes universidades americanas como Princeton, Universidade da Califórnia, e também de alguns pesquisadores brasileiros. Esses cientistas analisaram as causas da degradação ambiental, como certos tipos de tecnologias – comuns a todos os países industrializados, capitalistas ou comunistas – e o uso de combustíveis fósseis. E identificaram os verdadeiros vilões, os responsáveis pelos problemas.

Esses trabalhos tiveram o mérito de “despolitizar” o debate e abrir caminho para a adoção de tecnologias limpas, como o uso de energias renováveis. Exemplo de sucesso nessa área foi a melhora da qualidade do ar, da água e a disposição do lixo, cujas consequências positivas são visíveis a olho nu.

Contudo o aquecimento global é mais difícil de explicar, porque não é visível, seus impactos não são imediatos – somente se dão no longo prazo – e combatê-lo tem custos elevados. É por essa razão que é preciso, nesse caso, um esforço redobrado dos cientistas para evitar que o tema do aquecimento global seja novamente “politizado” e deixar muito claro que não é sensato adiar as medidas que poderão resolvê-lo.

*Professor emérito da USP, foi ministro do Meio Ambiente


Hamilton Garcia: O nacional e o democrático como desafios históricos

A nova direita mundial marca sua ascensão pela revalorização do nacional com base no cristianismo conservador, em meio à crise do globalismo capitalista, e é ridicularizada por isto. Não deveria.

Um dos alvos prediletos da zombaria, entre nós, é o Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que, em um artigo que se tornou célebre, afirma que “a nação não é uma escolha, mas um fato indelével e fundacional na vida do indivíduo como o próprio nascimento”, e que o "niilismo", a "desidentificação de si mesmos" e a “desaculturação, pela substituição da história viva pelos valores abstratos, absolutos, (e) inquestionáveis” – que Marx chamava de fetichismo –, são o plano inclinado da “decadência ocidental”[i].

Embora os fatos sociais se distingam dos naturais por seu caráter histórico – permeado pelas vontades em meio às circunstâncias, nos ensinou o mesmo Karl –, Araújo não está nos falando de simples fábula, mas de experiências concretas cujo desprezo, outrora, custou caro ao mundo.

As nações modernas nasceram na Europa, à partir do séc. XIV, impulsionadas pelas transformações econômico-sociais operadas pelo crescimento comercial, na retomada das rotas ocidentais com o Oriente após a reconquista da Península Ibérica pelos cristãos. Tal processo desencadeou mudanças políticas significativas, Europa adentro, forjando a centralização político-administrativa que ficaria conhecida como absolutismo, de onde podemos destacar dois modelos típicos de Estado-nação: o lusitano e o inglês.

No primeiro, o nacional – centralização do poder numa nobreza controladora das fronteiras e dos impostos – se sobrepôs ao democrático – campo das classes sociais em processo de autonomização pela disseminação da ética comercial (burguesia) – catapultando a parceria público-privada que consagraria o mercantilismo. Não obstante o sucesso inicial, na etapa seguinte (revolução manufatureira), a fórmula lusitana, que subordinava a sociedade ao Estado, compelia a livre-iniciativa à dependência de mercês e incentivava o consumo de luxo em detrimento do investimento produtivo, entrou em decadência à medida que o segundo modelo se desenvolvia.

Neste (modelo inglês), o nacional enfrentaria desde o início a resistência do democrático (local) dando início a um conflito que impulsionaria, com o passar do tempo, a livre-iniciativa econômica e o movimento pela emancipação dos indivíduos, acabando por democratizar o Estado (liberalismo) depois de sangrentos conflitos ao longo do séc. XVII. A nova combinação entre Estado (nacional) e sociedade (democrático) se plasmaria no pacto político da Monarquia Constitucional sob a égide do Parlamento, de onde nasceria o moderno capitalismo industrial que rege os destinos mundiais até os dias de hoje.

O triunfo inglês, todavia, se significou a vitória da ideologia liberal, não implicou em sua disseminação como modelo político na Europa, e isto por uma razão simples: o liberalismo, em sua origem, foi um movimento social, que, na maioria dos países europeus, não teve o mesmo desenvolvimento. Isto possibilitou à Inglaterra tirar vantagem das dificuldades alheias, em detrimento de sua própria ideologia como postulado universal, por meio da economia política do livre-comércio internacional, que, na prática, transformava a periferia de então em vassalo da Inglaterra.

A reação à esta metamorfose do liberalismo foi marcada na França de 1789, onde a revolução democrática acabou assumindo um caráter anticapitalista (jacobinismo) cuja superação seria bonapartista (1799) – onde o nacional se arvorava à tutela do democrático em nome de seu desenvolvimento ordenado –, ao invés de liberal.

Já na Alemanha, o bonapartismo – cuja tradução germânica foi Bismarck – seria a mola propulsora da unificação hípertardia (1871), onde o Estado burguês vem à tona sem o povo (democrático), produzindo crises explosivas que poriam abaixo o Reich (1918) em proveito de um governo liberal-democrático apoiado por sindicatos que, no contexto do pós-guerra, sucumbiria ao caos, abrindo caminho ao nacional-socialismo (nazismo) com sua promessa de ordem social, pleno emprego e bem-estar. Somente após a derrota dos nazistas, em nova guerra insana, a Alemanha, finalmente, sepultaria o bonapartismo em prol do pacto democrático-nacional, que unificaria o país em 1991.

No caso dos países periféricos, que sofreram dominação colonial europeia ou nasceram sob ela, os contrastes do processo de modernização não foram menores. Nos EUA, o Estado-Nação nasceria liberal e democrático no séc. XVIII, depois de uma guerra pela independência (1775-1783) contra a Inglaterra, inaugurando modelo inédito de Estado sem nobreza (federalismo), cujas arestas seriam resolvidas por outra guerra (civil), quase um século depois (1861-1865), que impôs o democrático do Norte sobre o escravista do Sul.

No Brasil, ao contrário, o Estado-Nação foi extraído da espinha dorsal aristocrática lusitana, no séc. XIX (1822), sob a égide de um liberalismo de fachada apoiado no escravismo, subjugando a sociedade até o total esgotamento do modelo (1888).

Isto para não falarmos do Oriente, onde o Estado manteria as características patriarcais (China) e de casta (Índia), de origem milenar, até meados do séc. XX – com exceção do Japão (Revolução Meiji, 1868) –, quando um bonapartismo específico resolveria a transição moderna.

Olhando em conjunto tais experiências, são óbvias as desvantagens do modelo bonapartista em face do liberal no que diz respeito aos benefícios da modernização – não aos custos, altíssimos em ambos. Ocorre, porém, que, fora os anglo-saxãos, como observara Samuel Huntington[ii], a maioria das grandes civilizações se modernizaram pela via bonapartista, em variados graus/formatos, o que indica que tal opção está longe de poder ser atribuída a mero “equívoco estratégico", devendo ser entendida como tendência diante das resistências características destas formações sociais ao moderno, em meio a um mundo dominado pelo capitalismo inglês/norteamericano.

Para entendermos isso, em especial o Brasil, é preciso distinguir capitalismo politicamente orientado – usado por Raimundo Faoro[iii] para descrever o fracasso do mercantilismo lusitano diante do capitalismo inglês – de bonapartismo (franco-germânico), no qual o Brasil se espelhou em dois momentos depois de 1930 (1937 e 1964). Confundí-los, apenas por conta da hipertrofia do Estado-nação sobre a sociedade civil, é não levar em conta que o Estado português expressava uma transição primitiva do feudal ao mercantil, enquanto a Revolução Francesa – e ainda mais a alemã – já operava sob a era manufatureira, em meio às dores da urbanização e da emergência da contradição entre seus atores modernos, prometendo conciliá-los a partir do intervencionismo racionalizante do Estado – o que implicava num grau de controle do patrimonialismo inimaginável em Portugal e no Brasil.

Entre nós, o bonapartismo teve que enfrentar um liberalismo de fachada guarnecido por um Estado neopatrimonial fortemente ancorado na formação agrária e comercial do país, de tal modo que os impulsos democratizantes que se oporiam ao autoritarismo bonapartista, em 1945 e 1984, acabariam por ser fagocitados pelo etos patrimonial e sua extraordinária capacidade de adaptação, caracterizando um movimento pendular de modernização-autoritária e democratização-restauradora (revolução passiva) que impediu, até aqui, a plena modernização do Estado e da sociedade.

Do lado do "capitalismo de Estado”, o problema reside em sua relativa incapacidade de romper com a carapaça patrimonial, que envolve o Estado-nação desde sua origem (“capitalismo politicamente orientado"), truncando sua plena racionalização e evolução democrática. Isto se deve às características dos grupos dirigentes, nos dois períodos aludidos, por cima (militares, oligarquias dissidentes e burguesias) e seus apoiadores por baixo (pequena-burguesia e trabalhadores).

No que toca aos trabalhadores, é notória sua incapacidade histórica em resisitir ao neopatrimonialismo por baixo (proletariado), enquanto, por cima (camadas médias), facilmente se deixa seduzir pelo liberalismo de plantão, que segue sendo liberista para usar a categoria de Merquior –, basta ver sua subserviência às práticas neopatrimoniais – mesmo no PSDB – e seu ressurgimento no DEM/Centrão, onde o programa segue sendo a cereja do bolo.

O fracasso das revoluções jacobinas, desde o séc. XVIII, mostrou que não há solução democrática sem o nacional. Mas, em todos os lugares, tal encontro exigiu o abandono do etos patrimonialista, que corrói as bases do edifício democrático. Este é o desafio maior do Brasil ainda hoje.

 

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF[iv])

São João da Barra, 16/03/19.

[i] Vide Trump e o Ocidente, in. Cadernos de Política Exterior, ano III, nº 6, 2017, IPRI-FAG-MRE/DF; pp. 339/348.

[ii] Vide A Ordem Política nas Sociedades em Mudança, EDUSP/São Paulo, passim.

[iii] Vide Os Donos do Poder formação do patronato político brasileiro (vol. I), ed. Publifolha/SP, 2000, pp.96-97.

[iv] Universidade Estadual do Norte-Fluminense (Darcy Ribeiro).


Rubens Barbosa: Prioridades da diplomacia nos primeiros cem dias

Repetindo promessas de campanha, medidas de política externa não surgem como surpresa

De acordo com o texto que teria sido apresentado em reunião ministerial, as propostas feitas pelo ministro Ernesto Araújo para os primeiros cem dias do governo Bolsonaro foram:

1) Visita do presidente Bolsonaro aos EUA e lançamento das bases de Acordo de Parceria Brasil-EUA ou instrumento similar, que incluirá o lançamento de um acordo comercial, bem como entendimentos em segurança, tecnologia e defesa;

2) visita do presidente Bolsonaro a Israel, com a criação de parcerias em segurança, tecnologia e defesa;

3) início do processo e revisão do Mercosul para aperfeiçoamento de instrumentos favoráveis ao setor produtivo, redução tarifária e dinamização da agenda externa;

4) retorno ao modelo de passaporte com o Brasão da República;

5) implementar a isenção unilateral de vistos para cidadãos norte-americanos e canadenses;

6) realização de auditorias nas embaixadas brasileiras que possam ter sido instrumentos de desvios durante os governos do PT.

Repetindo promessas de campanha e declarações depois das eleições, as medidas não surgem como uma surpresa. São prioridades genéricas que precisam ser trabalhadas para que se transformem em diretrizes para a ação diplomática.

A aproximação com os EUA pode ser um elemento muito positivo para o Brasil, caso siga uma agenda clara de defesa de nossos interesses. Espera-se que na viagem presidencial os temas do ingresso do Brasil na OCDE, o Acordo de Salvaguarda Tecnológica, que permitirá a utilização comercial do Centro de Lançamentos de Satélites de Alcântara, e o de bitributação sejam tratados positivamente e aprovados pelo governo de Washington. Alinhamento automático, base militar americana no Brasil, associação à Otan não são de nosso interesse.

Quanto às bases de acordo comercial bilateral, ainda não está clara qual a diretriz do governo brasileiro: flexibilizar as regras do Mercosul para permitir uma negociação bilateral? Os EUA certamente proporão que eventual negociação terá como modelo o acordo com o México e o Canadá. Estará o Brasil preparado para aceitar as condições impostas a esses países, não só quanto ao acesso ao mercado agrícola, mas também às regras (propriedade intelectual, investimento)?

Com relação à visita a Israel, o principal objetivo é ampliar a cooperação também em tecnologia, segurança e defesa. Não há uma diretriz em relação à transferência da embaixada de Tel-Aviv para Jerusalém, anunciada como definitiva pelo primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, durante a posse do presidente Bolsonaro. Caso efetivada, apesar das manifestações de cautela de altos assessores presidenciais (militares), e de preocupação da Câmara de Comércio Brasil-Países Árabes e da própria Liga Árabe, será consumada uma das uma das maiores quebras na atuação da política externa brasileira. Desde 1947, quando nas Nações Unidas foi aprovada resolução criando o Estado de Israel e o Estado de Palestina, o Brasil defende a política de dois Estados para resolver o conflito na região, que ficaria superada.

O início do processo de revisão do Mercosul não poderá mais ser adiado. Criado em março de 1991, o grupo regional nunca sofreu um exame profundo da parte de seus membros. Como se farão o enxugamento e a flexibilização do bloco? Uma das formas para proceder a esse exercício seria a convocação de conferência diplomática, prevista no Protocolo de Ouro Preto, que criou a união aduaneira. Nessa oportunidade poderia ser discutida a ideia brasileira e argentina de modificar as regras vigentes de maneira a permitir negociações bilaterais para os novos acordos e reduzir os “penduricalhos” do Mercosul.

Três itens incluídos nas prioridades dos cem primeiros dias certamente despertarão controvérsia em maior ou menos grau. A abolição de vistos para cidadãos norte-americanos e canadenses passaria a ser permanente e seria uma decisão unilateral, sem reciprocidade, o que modificará a política seguida até aqui pelo Itamaraty, mas poderá facilitar o turismo. A realização de auditorias nas embaixadas brasileiras foi antecipada pelo ministro Ernesto Araújo ao declarar que iria examinar em detalhe a política ativa e altiva do governo Lula para apurar as falcatruas do ministro Celso Amorim. Certamente estarão sob escrutínio as embaixadas em Havana, Caracas, Lima, Quito, Bogotá e, na África, em Angola, Moçambique, Nigéria e República do Congo, países aos quais foram concedidos empréstimos do BNDES por influência política. O retorno ao modelo de passaporte do Mercosul, substituindo o Cruzeiro do Sul, será parte da revisão do grupo e terá repercussão entre os países-membros.

A visita do presidente Mauricio Macri ao Brasil na semana passada mostrou convergência de visões quanto a mudanças no Mercosul e à crise na Venezuela. Ficou claro que nas negociações comerciais em curso (com União Europeia, Canadá, Cingapura, Efta) o Mercosul continuará a negociar com uma única voz. Os novos entendimentos, contudo, passariam a ser conduzidos individualmente pelos membros do grupo. Com relação à Venezuela, sob liderança brasileira está em curso uma agressiva escalada retórica, mas não há indicação de “ações concretas” de como Bolsonaro “tudo fará para ajudar o povo venezuelano a voltar a viver em liberdade”.

Por outro lado, não foram ainda anunciadas as diretrizes e prioridades em relação aos organismos multilaterais e regionais. Tampouco se conhece a orientação do governo, entre outras, acerca das negociações comerciais (se permanecem no Itamaraty), da promoção comercial e do Brics, que se reunirá em nível presidencial no Brasil em novembro.

Espera-se que o ministro aplaque as dúvidas do vice presidente Hamilton Mourão, que teria sugerido: “Terá Ernesto condições de tocar e dizer o que é a política externa?”.

*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice)


Bruno Boghossian: Itamaraty pode virar departamento de relações públicas da direita

Chanceler quer pautar ministério por valores sem conexão com política externa

O chanceler Ernesto Araújo quer transformar o Itamaraty em um mero departamento de relações públicas da direita. O ministro mostrou em seu discurso de posse que pretende mover as ligações do Brasil com o mundo a partir de valores conservadores que não têm conexão com a política externa.

Sob a justificativa de reparar uma influência excessiva do globalismo e dos governos de esquerda, o novo chanceler promete atar novos laços a partir de agora. Crítico ferrenho do PT, que já chamou de “Partido Terrorista”, Araújo corre o risco de repetir e exacerbar justamente aquilo que ataca em seus opositores.

O ministro considera inimigos “quem odeia Deus” e “quem diz que não existem homens e mulheres”. Até onde se sabe, discussões teológicas e sobre discriminação sexual não fazem parte das atribuições do Itamaraty e não norteiam sua política.

No discurso, Araújo ainda disse que o ministério deveria se pautar por liberdades. “A principal delas, se me permitem citar uma novela dos anos 60, é o direito de nascer”, disse. Nos EUA, modelo do bolsonarismo, o aborto é um direito constitucional referendado pela Suprema Corte.

Embora repise o argumento de que o Brasil não deve se curvar à ordem global, valorizando seus próprios interesses, o chanceler parece mais interessado em ganhar pontos num clube conservador. Além dos americanos e dos israelenses, seus amigos são líderes de direita da Itália, da Polônia e da Hungria.

Araújo diz que a política externa dos anos petistas era submissa à agenda da esquerda, mas agora ameaça cair no extremo oposto. Ou alguém acha que Bolsonaro vai abrir os olhos e criticar as interferências autoritárias do premiê húngaro Viktor Orbán no Judiciário?

O chanceler recita com destreza a cartilha e as falsas polêmicas do ideólogo Olavo de Carvalho para dizer que pretende combater a contaminação ideológica no Itamaraty. Diz também que Bolsonaro está libertando o Brasil. Pelo visto, o país ficará preso em uma bolha diferente.