DNA

Folha de S. Paulo: Evidências genéticas explicam o passado violento do Brasil

Projeto DNA do Brasil mostra assimetria entre DNA europeu, indígena e africano

Gabriel Alves, da Folha de S. Paulo

Ao olharmos com atenção o DNA do brasileiro, podemos encontrar indícios da chegada dos colonizadores e de povos imigrantes, da vinda forçada de africanos para o Novo Mundo, dos encontros com povos indígenas isolados e também evidências da violência que fez parte da formação do país.

Esse conhecimento tem sido acumulado ao longo dos últimos anos com base no trabalho de grandes nomes da genética nacional como Francisco Salzano (1928-2018) e Sérgio Pena, mas recentemente ganhou projeção após a divulgação dos resultados do projeto DNA do Brasil, publicados em primeira mão pela Folha.

Entre os mais de mil genomas sequenciados e analisados até o momento, foi detectada uma contribuição europeia em 75% dos cromossomos Y (ou seja, de herança masculina), enquanto no DNA das mitocôndrias, organelas celulares herdadas somente da mãe, a contribuição africana é de 36% e a indígena, 34%.

Ou seja, para fechar essa conta, os cruzamentos só podem ter sido assimétricos. Eles se deram com muitos homens de origem europeia e muitas mulheres de origem indígena e africana.

São dois os motivos principais: a baixíssima presença de mulheres de origem europeia no processo de ocupação e exploração do Brasil colônia, especialmente nos primeiros 300 anos, e a violência que permeou as relações entre povos de diferentes origens desde o descobrimento do país.

Como uma população inicialmente apenas 5% europeia acaba gerando 75% da herança masculina?

“Nenhuma explicação biológica de fenômenos que se dão em outras espécies é plausível para descrever isso”, diz Tabita Hünemeier, professora da USP e integrante do projeto DNA do Brasil. “É estranho que ainda hoje haja pessoas que não saibam que o Brasil teve um passado violento. Como morreu 90% da população nativa? Como vieram para cá milhões de escravos?”

Hünemeier, que foi orientada por Salzano no doutorado, é estudiosa do genoma de populações indígenas.

Segundo ela, um dos resultados mais interessantes de pesquisa recentes é que, apesar da extinção de muitos desses grupos, cada vez mais são identificados esses traços no DNA da população que hoje habita o Brasil.

A história da família da técnica em contabilidade e costureira Carmen Inazer Bento, 86, ilustra a diversidade da formação do povo brasileiro e de como o passado pode permanecer marcado em nosso DNA, apesar das aparências.

Sua avó materna, índia, foi pega ainda pequena para viver na casa de uma família branca, onde trabalhava como criada. Deram-lhe o nome de Lídia.

Eduardo, um guarda-livros (contador) português que chegara ao país em 1901, obteve permissão da família para se casar com ela. Juntos tiveram Carolina, mãe de Carmen.

Já o pai de Carmen era Joaquim, filho de negros de Minas Gerais que viveram no fim da escravidão no Brasil. “Meu pai não gostava de falar no assunto, mas meu avô morreu bêbado, debaixo de um pé de café”, conta Carmen, emocionada.

Foto de casamento
A família da técnica em contabilidade e costureira Carmen Inazer Bento, 86, que ilustra a diversidade da formação do povo brasileiro e de como o passado pode permanecer marcado em nosso DNA - Arquivo pessoal

O encontro entre Carolina e Joaquim, carroceiro que vivia viajando, aconteceu no interior de São Paulo. O casal viveu entre Lins e Serra Negra e, além de Carmen, teve outros dois filhos, Wilson e Maria Inês.

Carmen se casou com Wilson Bento, negro, e teve quatro filhos: Cláudia, Cleide, Ariovaldo e Alexandre.

O curioso é que o irmão de Carmen se casou com uma mulher branca, e seus filhos são, ao menos fenotipicamente (ou seja, na aparência), brancos.

Isso faz que na mesma geração uma família existam pessoas com diversos tons de pele, apesar de dividirem uma boa parte do DNA ancestral, negro e europeu, e até mesmo indígena, herdado de Lídia.

É muito provável que muitos de nós carreguemos, sem saber, um punhado desse genoma indígena, e é isso que fascina Hünemeier.

“Uma coisa é estudar a formação de São Paulo, outra é a ocupação da Amazônia. O processo histórico é diferente em cada região. Ao estudar o DNA temos dados reais, já que muitas vezes não há registros históricos, e é possível entender quem são esses grupos formadores”, conta a cientista. “Hoje a diversidade da população indígena é bem menor do que a de séculos atrás, mas ela ainda pode ser encontrada no genoma de quem vive nessas regiões.”

Os bancos de populações indígenas atuais contam com exemplares de 18 linhagens distintas.

Analisando apenas os primeiros genomas do novo projeto já foi possível encontrar 38 misturados ao DNA da população em geral, conta a pesquisadora.

A meta agora é, com o emprego de ferramentas computacionais capazes de analisar uma montoeira de dados de DNA antigo e moderno, destrinchar as populações e entender quem contribuiu para a formação do povo brasileiro e até mesmo quando esse encontros aconteceram.

Para Lygia Pereira, professora da USP que trabalha com Hünemeier no DNA do Brasil, além de recuperar informações sobre povos extintos por meio do genoma (apesar da pouca quantidade de cromossomo Y), vai ser interessante ver se tem alguma fração dessa herança indígena que aparece com maior frequência do que a esperada nos genomas de hoje.

Seria o que os cientistas chamam de seleção positiva: um gene pode gerar tamanha vantagem para o indivíduo que é mais provável que ele deixe descendentes, perpetuando (fixando) aquele gene na população.

“É uma mistura de história, antropologia, mas também há aí muita biologia e saúde humana. A quantidade de variantes que encontramos só nesses primeiros mil genomas estudados é incrível”, diz Pereira. “Tudo que previmos já foi confirmado nessa pequena análise, mas ainda temos muito o que aprender”.


Luiz Werneck Vianna*: Retomar o moderno, retomar a modernização

Não sairemos desta barafunda infernal com os apertados nós que nos atam ao passado

O denso nevoeiro que até há pouco tempo embaçava a linha do horizonte e nos interditava prever o dia de amanhã começa a desanuviar. Passada a borrasca já se podem contar os perdidos e os salvados, mesmo que os mais estropiados dentre esses não devam esperar uma sobrevida sem sobressaltos. A Olimpíada está conosco e espanta os maus presságios com a festa de confraternização entre povos, que traz consigo o espírito de concórdia de que tanto estamos precisados.

O processo eleitoral se anuncia – esse santo remédio de eficácia comprovada em nossas crises políticas –, e com ele o retorno da política, da discussão sobre que rumos devem ser empreendidos na administração de nossas cidades, que valores e princípios queremos para nortear nossa vida em comum, hora da persuasão de eleitores e de alianças entre os afins. E, quando couber, até entre contrários, do que a eleição para a presidência da Câmara dos Deputados consistiu num auspicioso primeiro sinal.

Velhos timoneiros de volta a seus postos de comando entoam o velho lema de que navegar é preciso e, lentamente, ainda com destino incerto, tateia-se em busca de uma saída desta barafunda infernal em que fomos envolvidos. Não sairemos dela, contudo, enquanto estivermos prisioneiros dos apertados nós que nos atam ao passado.

O mundo mudou e nós mudamos com ele, e não há caminho fácil pela frente neste século 21 que resiste em começar, como neste episódio regressivo do Brexit, com a maré montante da direita e a ressurgência dos temas da xenofobia, do nacionalismo autárquico e a candidatura presidencial de Donald Trump nos EUA no surrado estilo populista de um Mussolini, inventário de horrores que nos vem do que houve de pior no século passado.

Para o começo do alívio desses nós torna-se necessário reafirmar a velha lição de que somos parte do Ocidente, um outro Ocidente, na caracterização de José Guilherme Merquior em belo ensaio esquecido (Revista Presença, n.º 15, 1988), e de que não devemos cultivar ressentimentos em razão do nosso atraso porque seríamos, de fato, “uma modificação e uma modulação original e vasta da cultura ocidental”. Uma das marcas da nossa originalidade residiria no fato de não termos compartilhado com os europeus o etos da antimodernidade quando a História moderna foi vista como um pesadelo por muitos dos seus intelectuais. Ao contrário, segundo Merquior, o modernismo brasileiro foi percebido em chave otimista, longe da Kulturpessimismus europeia, como um “modernismo da modernização”, tal como presente em Mario de Andrade e confirmada com a ascensão de Juscelino Kubitschek – da prefeitura de Belo Horizonte com a obra da Pampulha à Presidência da República com a criação de Brasília –, quando as agendas do moderno e da modernização caminharam juntas.

O golpe militar interrompeu esse processo benfazejo. Com o novo regime a modernização apartou-se do moderno, que passou a ser reprimido com a intensificação da tutela estatal sobre os sindicatos, com o abafamento das tendências que se vinham acumulando em favor da auto-organização da vida social e com as severas limitações impostas à criação cultural e artística no País, cujos altos preços ainda pagamos. A democratização do País, consolidada com a Carta de 88, concedeu alento ao moderno, mas, a essa altura sem o embalo dos trilhos que antes percorria, ele não teria como se reencontrar com a modernização em razão da pesada herança de desacertos econômicos deixada pelo regime militar.

Sanear a economia foi obra do Plano Real e caberia ao governo do PT levar à frente a agenda do moderno presente nas suas lutas de fundação, respaldadas por importantes intelectuais críticos da modernização autoritária com que se tinha imposto o capitalismo no País, como, entre tantos, Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro e Florestan Fernandes. Partido com origem na moderna sociedade civil brasileira, ao se tornar governo, de modo surpreendente e sem apresentar suas razões, o PT logo se converteu em partido de Estado.

Essa conversão coincidiu com a adoção da obra do marxista italiano Antonio Gramsci – desde os anos 1960, influente em círculos da esquerda – como referência por alguns dos seus quadros dirigentes, embora numa versão antípoda das suas concepções originais, ironicamente caracterizada pelo sociólogo Francisco de Oliveira como hegemonia às avessas. Ao invés de os partidos e movimentos sociais dos seres subalternos buscarem a conquista da hegemonia na sociedade civil em nome de suas concepções políticas e ético-morais, credenciando-se assim ao exercício de papéis dirigentes, pela prática levada a efeito pelas lideranças do PT caberia ao Estado (às avessas) instituí-la por cima.

Nessa reviravolta, mais do que abdicar da agenda do moderno, que pressupõe a autonomia dos seres sociais e de suas organizações, o PT alinhou-se sem alarde à tradição da modernização pelo alto que nos vinha da era Vargas, reanimada pelo ciclo do regime militar, em especial sob o governo Geisel, com as escoras do tipo de presidencialismo de coalizão bastarda que praticava e de suas políticas de cooptação dos movimentos sociais.

Sob a presidência de Dilma Rousseff, menos por sua imperícia nas coisas da política, mais pela exaustão da modelagem herdada do seu antecessor, tanto a agenda do moderno se rebelou contra ela – como se constatou nas manifestações massivas de junho de 2013 em favor da autonomia do social – como se lhe escapou das mãos a da modernização com a economia do País parando de crescer.

Estamos não num fim de caminho, mas no da sua retomada. Se o direito ao moderno não pode mais ser arrebatado da animosa sociedade brasileira de hoje, temos também um compromisso inarredável com a modernização que faz parte do nosso DNA.


*Luiz Werneck Vianna: *SOCIÓLOGO, PUC-RIO

Fonte: estadao.com.br