Ditadura

Roberto Romano: O Congresso como pandemia

Mercenários? Há muitos por lá. Subornos? Ora... Preocupados com o bem público? Poucos

"Já passou a hora de pôr um fim à sua presença neste lugar que perdeu a honra pelo desprezo de todas as virtudes, contaminado por todos os vícios. Os senhores não passam de uma facção inimiga de todo bom governo, pois formam um bando de miseráveis mercenários. Seu gosto é como o de Esaú: vender seu país por um guisado e, como Judas, trair Deus por moedas. Existe uma única virtude entre os senhores e algum vício que não possuam? (...). Qual dos senhores deixou de trocar a consciência por subornos? Existiria um homem entre os senhores preocupado com o bem da Comunidade? Prostitutas sórdidas! Os senhores não infectaram este lugar sagrado e fizeram do templo divino um covil de ladrões por seus princípios imorais e práticas iníquas? Os senhores se tornaram odiosos para toda a nação pois foram postos aqui, pelo povo, para reparar suas queixas, mas se tornaram a fonte da maior queixa. Logo, o seu país apela-me para limpar esta estrebaria de Augias, pondo um ponto final nos procedimentos iníquos desta Assembleia. Com ajuda de Deus e a força que ele me deu, efetivo tal missão. Ordeno, com perigo das suas vidas, que os senhores saiam imediatamente deste lugar. Escravos venais, vão embora! Em nome de Deus, vão!"

Deixei sem aspas o trecho acima para que os informados sobre a história dos parlamentos tenham o prazer melancólico de identificar semelhanças entre o que teria ocorrido na Inglaterra do Rump Parliament e os dias de hoje, no Brasil. Cromwell, a quem se atribui a fala mencionada, se estivesse na porta do Congresso brasileiro, informado das manobras para tornar os parlamentares isentos das leis que eles mesmos devem manter, diria as mesmas palavras do parágrafo anterior. Nada falta para a similaridade entre a situação parlamentar na terra de Shakespeare (“existe algo podre no reino...”) e o Brasil de agora.

Mercenários? Existem muitos no Parlamento nacional. Praticantes de subornos? Ora... Preocupados com o bem público? Poucos.

Naqueles dias como hoje, o ambiente onde são feitas as leis ficou sujo como as estrebarias de Augias. Naquele espaço a equidade é expulsa dia a dia. Falta apenas a figura do ditador que expulsa, relho na mão, deputados que o apoiaram a preço de ouro e dos quais ele conhece a venalidade. Ele conhece seus interesses financeiros, próprios de mercadores de leis. A diferença fica por conta do personagem que fecha o Parlamento.

Cromwell assume, pelo menos de fachada, a ética protestante em seu florescer. Aqui, com muita probabilidade, o chicote nas costas dos deputados será movido por alguém sem ética ou respeito pelo bem público.

Elias Canetti em página memorável enuncia que, ao contrário da vida social marcada pela guerra de todos contra todos, no Parlamento “não deve haver mais mortos. Esta intenção é expressa (...) na imunidade parlamentar, que tem um duplo aspecto: fora, em relação ao governo e aos seus órgãos; dentro, entre os seus pares”. O sistema democrático funciona se a imunidade for garantida. O Parlamento tem como alvo criar, no meio da batalha perene da sociedade, um espaço de paz e segurança. O Legislativo é sagrado porque nele reside a única esperança de algum diálogo, algum respeito. Nele, o instrumento relevante é o voto dos representantes. As cédulas de votação (hoje, o painel eletrônico) atenuam a morte coletiva. Quem usa de modo sacrílego tais cédulas “confessa suas próprias sangrentas intenções”. Assim, cada voto pode gerar vida ou trazer morte.

“O deputado é um eleitor concentrado”, resume Canetti. Se o Legislativo age em causa própria, perverte o sistema das cédulas. O Parlamento é feito para trazer esperança ao coletivo. Se legisla em próprio benefício, sua existência perde a razão de ser. Se decidem sem ouvir os representados, os parlamentares abreviam sua própria extinção. Tomo o inimigo do sistema parlamentar, Carl Schmitt. Se por várias razões “os representantes podem decidir em vez do povo, com certeza um representante único poderia decidir em nome de todo o povo. Sem deixar de ser democrático, o argumento justifica um antiparlamentarismo”. Tal senda prepara a ditadura do “representante único”.

A humanidade sofre ameaça inédita e no Brasil os campos da morte se espalham sem controle. Seria preciso esperar do Parlamento maior zelo pela vida coletiva. Não é o que vemos.

Em clara parceria com um presidente isento de prudência e de respeito aos governados, o Congresso coloca antes e acima de medidas para preservar a saúde pública os seus privilégios e prerrogativas. E usa como desculpa a prisão de um deputado que ousa exigir o fechamento do STF e do próprio Congresso, a retomada do nefasto Ato Institucional número 5.

Quos Deus vult perdere prius dementat – aqueles a quem o divino quer desgraçar, primeiro enlouquece. Talvez seja esta a pandemia maior nas instituições brasileiras, a começar com os frangalhos do Poder Legislativo. E para tal desgraça não existe vacina, salvo a repulsa máxima da cidadania que ainda resta em nossa pátria.

 *Professor da Unicamp, é autor de ‘razões de estado e outros estados da razão’ (Perspectiva)


Catarina Rochamonte: Danilo Gentili e o autoritarismo da Câmara

Imputar saudosismo de ditadura a Gentili é assombrosa aleivosia

Em atitude abusiva, covarde e persecutória, o presidente da Câmara e sua turma acionaram o STF com um pedido de prisão em flagrante contra o humorista Danilo Gentili. O motivo da estapafúrdia peça jurídica, enviada pelo ministro Alexandre de Moraes para apreciação da PGR, foi uma postagem de Twitter na qual o apresentador vale-se de expressão hiperbólica para tecer sua crítica aos deputados que apoiavam aquela que ficou conhecida como "PEC da impunidade."

Augusto Aras se manifestou junto ao STF dizendo não existir, "por ora", motivos para a prisão, mas propôs incluí-lo no inquérito dos atos antidemocráticos e recomendou seu banimento do Twitter. Outras medidas de cerceamento contra as liberdades de Gentili foram propostas, como a proibição de sair da cidade onde vive ou se aproximar a menos de um quilômetro da Câmara.

A Câmara justificou seu arroubo autoritário com a necessidade de "tolher a seiva autoritária" dos "saudosistas da nossa assombrosa experiência ditatorial". Ora, imputar saudosismo de ditadura a Gentili é assombrosa aleivosia. A mensagem que motivou tal empenho retaliatório quis antes atacar a trama autoritária dirigida pela Mesa da Câmara, que, com urgência oportunista, tentou fazer passar a indecorosa PEC que tornava os parlamentares praticamente inimputáveis.

O comediante já foi às redes sociais para se justificar e dizer que sempre defendeu as instituições democráticas. O que, apesar de suas ácidas críticas disparadas a torto e a direito, é substancialmente verdade. O humor de Danilo é fundamentalmente antiautoritário.

A frase que gerou a celeuma é inconveniente, merecendo um pito. Que por causa dela tenha a Câmara pedido a prisão do autor e que a PGR queira que um humorista seja censurado e banido das redes sociais é uma piada que nem o talentoso Danilo faria igual. Entretanto, é preciso que os cidadãos fiquem alertas para não permitir que tal piada se transforme em jurisprudência.


Eliane Cantanhêde: Bolsonaro, agora 'Capitão Gotinha', muda a retórica, assume as vacinas e vai abrir as torneiras

O Brasil vai assistir a uma guerra do populismo de esquerda contra o populismo de direita, com Lula ressentido e disposto a tudo e Bolsonaro cada vez mais sem escrúpulos, massacrando os fatos

À deriva, à mercê do coronavírus e exportando novas cepas para o mundo, o Brasil vai assistir – e sofrer – uma guerra do populismo de esquerda contra o populismo de direita, com o camarada Lula ressentido e disposto a tudo e o capitão Jair Bolsonaro cada vez mais sem escrúpulos, massacrando os fatos. Acaba de surgir o "Capitão Gotinha", o maior defensor da vacina no planeta. Acredita quem quer. E o pior é que tantos acreditam em qualquer coisa.

Os dois lados estão armados até os dentes e só nos resta torcer para que a imagem de retórica não vire realidade na era de um presidente com delírios autoritários e fetiche por armas. Depois de papai Jair combater incansavelmente as vacinas, a família presidencial assume um slogan oposto: "Nossa arma agora é vacina". Mas deixaram rastro, fantasiando o doce Zé Gotinha de miliciano, com um fuzil em forma de seringa. Argh!

E a deputada Carla Zambelli (PSL-SP)? Ao assumir a emblemática Comissão de Meio Ambiente da Câmara, a bolsonarista posou para o Estadão com cara de brava e... uma pistola 380. Não, não é contra desmatadores, traficantes, invasores de terras indígenas e criminosos em geral. Seus alvos são as ONGs!

Tudo isso num ambiente contaminado pelos recados velados e ameaças explícitas de Bolsonaro após a entrada de Lula no campo de batalha. Nervoso, o presidente deu um salto triplo carpado a favor das vacinas e atacou, além de Lula, governadores inimigos, como João Doria (SP), e amigos, com Ibaneis Rocha (DF). E acenou com insurreição, saques em supermercados... Eu, hein?! É convocação? Guerra civil?

Lula calibrou milimetricamente o confronto com Bolsonaro e a bandeira branca para o resto, enquanto Bolsonaro perdeu as estribeiras. Mas, afora táticas e estratégias, a polarização vai mostrar o quanto os extremos se aproximam, se parecem e se alimentam mutuamente, inclusive com métodos semelhantes de destruição de adversários, tratados como inimigos, e causas surpreendentemente comuns, camufladas pela ideologia.

PT e Bolsonaro, unha e carne no cerco a Sérgio Moro e à Lava Jato, trabalharam pelo mesmo candidato à presidência do Senado e estavam muito mais próximos na disputa na Câmara do que parecia à luz do dia. Agora, esquartejam a Lei das Improbidades – não para proteger os probos. Na campanha, sítio, triplex, rachadinhas e mansões milionárias farão a festa em palanques e na internet. Pior para Lula, que carrega os fardos do mensalão e do petrolão.

Na economia, PT e bolsonarismo caminham de mãos dadas no "nacionalismo" anacrônico, estatizante e corporativista. As corporações petistas estão na educação, cultura, ambientalismo, sindicatos. As bolsonaristas são mais "hard": militares, policiais, reinos universais, quartéis e cultos. (Lula, lembre-se, jamais teve arroubos contra a democracia, ao contrário de seu oponente, com esse exército.)

Os dois lados douram a pílula para atrair o capital, mas gostam mesmo da boa e velha mão pesada em Petrobrás, BNDES, BB, Caixa, Eletrobrás e Correios. Nada como manipular preços politicamente, alardear a "função social" das estatais e ter o Centrão a bordo. Mas, quando entra o "social", a balança pesa a favor de Lula. Além de correr desesperado atrás de vacinas, Bolsonaro será obrigado a mudar a retórica, acampar no Nordeste e abrir as torneiras.

Se o centro é uma incógnita, o Centrão (ou direitão) é fácil. Quem está com Bolsonaro e já esteve com Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer irá para onde os ventos soprarem. Como define um expert em Centrão, eles são garçons diligentes e cuidam bem da louça suja, não estão nem aí se o menu é comida chinesa ou pizza napolitana. Querem boa remuneração e nacos de poder, que Lula, Bolsonaro e centro dão de bandeja. Quem dá mais?


Pedro S. Malan: 2022, o ano que vem chegando mais cedo

Aung San Suu Kyi: ‘O temor de perder o poder corrompe aqueles que o exercem’

 “Creio que nenhum homem tem plena consciência das engenhosas artimanhas a que recorre para escapar à sombra terrível do conhecimento de sua própria pessoa” (Joseph Conrad). Seria possível imaginar o mesmo de um país? Dizer, como o personagem de Shakespeare (em Macbeth): “Ai de ti, pobre país, quase com medo de conhecer a si próprio”. O Brasil sob o bolsonarismo parece cada vez mais enredado no autoengano e na autocomplacência, empenhado em perder-se em engenhosas artimanhas para escapar ao conhecimento de si próprio.

Mas a terrível sombra está a ficar mais visível com o agravamento da pandemia, e com suas consequências. Paradoxalmente, é o que poderá talvez permitir que escapemos, nos próximos 18 meses, do autoengano coletivo, que seria trágico. Terrível como possa ser, o Brasil, a duras penas, pode estar se conhecendo melhor. Afinal, Bolsonaro e sua grei são parte integrante de nossa realidade. Cumprirá a cada um de nós procurar construir coalizões – de pessoas, de partidos – aptas a apresentar-se à sociedade em geral (não apenas a nichos identitários, corporações estabelecidas e interesses consolidados) como alternativas de poder viáveis e construtivas.

Não será fácil. No presidencialismo à brasileira o poder incumbente dispõe de enormes vantagens, particularmente quando a busca da reeleição constitui sua inequívoca prioridade. O poder que detém o presidente de nomear, demitir, vetar e cooptar não deve ser subestimado. Nem sua presença nas redes sociais ou o expressivo contingente do eleitorado que lhe confere o status de mito.

Em algum momento será preciso convergir para nomes, a política assim o exige. Mas tão importante quanto o quem é com quem mais (pessoas, partidos, grupos sociais), com que tipo de proposta sobre os principais desafios do País, com que tipo de interpretação sobre onde estamos, como até aqui chegamos e para onde se está propondo que caminhemos.

Carlos Pereira, em artigo recente (Folha 8/2), comenta a diferença entre montar uma coalizão para uma disputa eleitoral e gerenciar uma coalizão para efetivamente governar, à luz das dificuldades de coordenação, custos de governabilidade e perspectivas de sucesso legislativo. Após um ano e meio de recusa, Bolsonaro foi obrigado a aceitar uma coalizão e a empenhar-se pessoalmente na eleição dos novos presidentes da Câmara e do Senado. Mas, como notou o autor, “estando o presidente disposto a jogar o jogo do presidencialismo multipartidário, precisa aprender a gerir a sua coalizão de forma profissional e não amadora”. Sua forma de gerir a coalizão alcançada tem se mostrado volátil e estouvada, mas claramente concentrada em sua reeleição. Que depende da consolidação e ampliação de seu eleitorado fiel, do cultivo das corporações que tem como suas e da transferência de responsabilidades para governadores, prefeitos e para a mídia profissional.

A extraordinária disfuncionalidade do Executivo federal no combate à covid é o exemplo mais flagrante e doloroso dessa inépcia, mas não o único. Afinal, é de nosso presidente a afirmação: “O País está quebrado, e eu não consigo fazer nada”. Eis a continuação da mensagem, implicitamente sugerida: porque não me deixam fazer o que eu gostaria, ou o que precisaria ser feito, a culpa não é minha. Em outra fala, saiu-se com variante muito mais grave: “Alguns acham que posso fazer tudo. Se tudo tivesse que depender de mim, não seria este o regime que nós estaríamos vivendo”. Nada surpreendente para quem em janeiro afirmara que “quem decide se um povo vive sob uma democracia ou uma ditadura são as Forças Armadas”. As duas frases não deveriam surpreender a quem conheça sua trajetória, no Exército e no Congresso, ou a quem se dê ao trabalho de assistir, na íntegra, ao vídeo da famosa reunião ministerial de 22 de abril de 2020, verdadeira ressonância magnética de um organismo disfuncional.

A História ensina que uma sociedade enjaulada em acerbas polarizações é particularmente vulnerável a populismos fraudulentos. Existem sempre instigadores que despertam e incendeiam a ambição de populistas e tiranos em potencial. Como existem sempre os facilitadores que, ainda que percebam o perigo representado por aquela ambição, imaginam-se capazes de controlar os arroubos autoritários do populista (ou do tirano) enquanto se beneficiam de seu estilo de assalto a instituições estabelecidas. Como aponta com pertinência Aung San Suu Kyi, “não é o poder que corrompe, mas o medo. O temor de perder o poder corrompe aqueles que o exercem. E o medo do açoite do poder corrompe aqueles que estão sujeitos a ele”. Persio Arida retomou o tema em excelente live recente, a propósito do Brasil de hoje.

Nos próximos 18 meses o Brasil deverá decidir se afinal deseja assumir-se como uma democracia vibrante, reconhecida como tal pelo resto do mundo; ou se persistirá na trajetória de incerteza crescente sobre nosso futuro econômico, social e político. E a correr sério risco, à luz de eventos dos últimos dias, de reeditar o tipo de polarização que marcou tanto nossa experiência em 2018 como os últimos trágicos 12 meses de pandemia.

*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC


Rolf Kuntz: A chanchada sinistra do autoritarismo

A pandemia avança, enquanto o governo encena a paródia da ditadura militar

Pornochanchada já era. O Brasil vive agora uma chanchada trágica, encenada pelo mais incompetente e mais desastroso governo de sua História. Não há como estranhar as obscenidades de Jair Bolsonaro e de seu filho Eduardo, especialmente quando dirigidas à imprensa. Suas barbaridades apenas expressam, de modo chulo, o padrão moral, intelectual e político do grupo instalado no centro do poder federal. Quando manda enfiar em lugar impróprio as máscaras destinadas à prevenção sanitária, o filho do presidente celebra, como seu pai, a mortandade dos brasileiros. Essa grosseria, tipicamente bolsonariana, foi postada em 10 de março, quarta-feira. No mesmo dia, um novo recorde de mortes pela covid, 2.349 em 24 horas, foi registrado. A família presidencial poderia celebrar um novo marco em sua história.

Também na quarta-feira o ministro Eduardo Pazuello, famoso por sua omissão quando pacientes morriam sufocados em Manaus, negou o risco de colapso nos serviços de saúde. “O nosso sistema de saúde está muito impactado, mas não colapsou nem vai colapsar”, assegurou. Em todo o País, governadores, prefeitos, secretários e médicos apontavam hospitais lotados e filas de doentes à espera de vaga em UTIs. Todos esses fatos eram componentes de um desastre muito maior: o desmoronamento, iniciado em 2019, da administração federal.

O papel mais patético nessa quarta-feira coube ao chefão da trupe, o presidente Jair Bolsonaro. Ele apareceu de máscara, num evento no Palácio do Planalto, defendeu a vacinação e até lamentou as mortes causadas pela covid. Em São Bernardo, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de novo em condição de concorrer à Presidência, havia criticado a ação federal diante da pandemia. O senador Flávio Bolsonaro pediu aos seguidores a distribuição, em redes sociais, de uma foto de seu pai com a frase: “Nossa arma é a vacina”.

Vinte e quatro horas depois o Bolsonaro de sempre reapareceu, já sem máscara e com a truculência habitual. Apoiadores o haviam aconselhado, segundo fontes de Brasília, a desfazer a impressão de ter sido acuado por Lula. Mas havia sido. Isso foi evidenciado até pelo globo exibido em sua live de quinta-feira, uma resposta a quem o havia chamado de terraplanista.

Palavras grotescas, falsas e ameaçadoras compuseram a live. Contrariando fatos conhecidos e documentados, o presidente negou ter chamado de gripezinha a covid-19. Confundiu com estado de sítio as medidas preventivas, como o toque de recolher, determinadas por alguns governadores. Ele obviamente ignora o sentido de “estado de sítio”, tema tratado na Constituição.

Bolsonaro lembrou sua condição de chefe supremo das Forças Armadas. Raramente um presidente democrata menciona esse fato. Mas, além de falar sobre isso, lembrou o regime militar e pediu apoio ao povo para enfrentar os governadores. “Como é que eu posso resolver a situação? Eu tenho que ter apoio. Se eu levantar minha caneta BIC e falar ‘shazam’, vou ser ditador. Vou ficar sozinho nessa briga?”.

O palavrório é meio estranho, mas, apesar da obscuridade e dos subentendidos, a convocação lembra as ameaças de promover algo parecido com a mobilização comandada pelo presidente Donald Trump. Nos Estados Unidos, o presidente derrotado na última eleição incitou seus apoiadores a invadir o Congresso. Há alguns meses, Bolsonaro mencionou o risco de algo semelhante no Brasil se a eleição de 2022 for realizada sem voto impresso.

Bolsonaro chamou de herói nacional o torturador Brilhante Ustra, criou mal-estar com o governo chileno ao elogiar a ditadura do general Pinochet e cita com frequência o regime militar no Brasil. Referências à ditadura estão longe de ser meros componentes de uma retórica infeliz, grotesca e muitas vezes chula. O presidente, seus filhos e vários componentes da administração federal têm conseguido encenar uma paródia sinistra dos tempos ditatoriais.

O Ministério da Educação enviou a reitores de universidades federais um documento ameaçador, prometendo sanções, por “imoralidade administrativa”, a “manifestações de desapreço ao governo”. A censura é aplicável a professores e alunos. Um processo disciplinar foi aberto contra o ex-reitor e o pró-reitor de Extensão e Cultura da Universidade Federal de Pelotas. Ambos tiveram de assinar um termo de ajustamento de conduta para encerrar o processo.

Técnicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) também foram pressionados. Receberam recomendação de limitar seus contatos com a imprensa e de evitar a divulgação de estudos antes de “aprovação definitiva” pela direção. O presidente do Ipea, Carlos von Doellinger, parece haver esquecido sua experiência dos anos 1970, quando ele mesmo e outros pesquisadores tinham amplo contato com jornalistas. Estudos eram produzidos sem censura. Artigos publicados na revista Pesquisa e Planejamento Econômico discutiam livremente a política econômica. Esse padrão, sustentado por João Paulo do Reis Velloso, um dos criadores do instituto, foi mantido por muito tempo. Talvez faltasse um governo bolsonariano.

*Jornalista


Elio Gaspari: O novo Lula é o mesmo

Ex-presidente reapareceu com um discurso simples e de essência racional

Para o bem e para o mal, o novo Lula é o mesmo. Numa trapaça da história, enquanto o ex-presidente falava, Eduardo Bolsonaro, o 03, mandava que as pessoas enfiassem as máscaras “no rabo”, e seu pai, delicadamente, colocava-a no rosto.

Lula reapareceu com um discurso simples e de essência racional . Na quarta-feira, o número de mortos bateu a casa dos dois mil, num total de 270.917 (a provável população do Brasil no final do século XVII). A “gripezinha” estava no “finalzinho”, e a “conversinha” da nova onda mostrou-se mais letal que a do ano passado. Lula chamou Bolsonaro de “fanfarrão” e seu governo de “incompetente”: “Não siga nenhuma decisão imbecil do presidente da República ou do ministro da Saúde. Tome vacina. Tome vacina, porque a vacina é uma das coisas que pode livrar você da Covid.”

Mais: “O Brasil não é dele e dos milicianos.”

Sem a teimosia delirante do capitão, Lula também tem um pé em sua realidade paralela. Ele fala de uma “Petrobras bem dirigida, como foi no nosso governo”.

A boa gestão no petróleo explicaria “o golpe contra a Dilma, porque é preciso não ter petróleo aqui no Brasil na mão dos brasileiros. É preciso que esteja na mão dos americanos, porque eles têm que ter o estoque para guerra.” Até aí, trata-se de uma opinião, mas Lula foi adiante:

“A Alemanha perdeu a guerra porque não chegou em Baku, na Rússia, para ter acesso à gasolina.”

A Alemanha não chegou a Baku porque foi detida em Stalingrado no início de 1943. A essa altura, os nazistas já haviam sido detidos às portas de Moscou, e os Estados Unidos já haviam entrado na guerra (dezembro de 1941) e quebrado a perna do poder naval japonês na batalha do Midway (junho de 1942). A partir do final de 1942, os alemães passaram a combater numa guerra que não poderiam ganhar, mesmo que tivessem chegado ao petróleo de Baku. Isso para não se falar na bomba atômica, cujo combustível era urânio.

Falando da eleição de 1989, Lula diz: “Não ganhei porque a Globo me roubou”. A edição do seu debate com Fernando Collor foi editada com viés contra Lula, mas foi ao ar depois da transmissão da versão integral, ao vivo. Collor teve 35 milhões de votos, contra 31 milhões de Lula, que só venceu em três estados (RJ, RS e PE).

A agência Lupa checou a fala de Lula e apontou devaneios que custariam caro a Jair Bolsonaro se tivessem partido dele:

“Fachin (reconheceu) que nunca teve crime cometido por mim.”

“FALSO. A decisão do ministro do STF Edson Fachin não cita, em nenhum momento, que o ex-presidente Lula nunca cometeu crimes. Ele apenas considerou que as ações do tríplex de Guarujá (SP), do sítio em Atibaia (SP) e do Instituto Lula não têm relação direta com a Petrobras e não deveriam ter tramitado na Justiça Federal de Curitiba.”

Afora casos como esses, Lula continua ligeiro. Ele já disse que Napoleão foi à China e que Oswaldo Cruz criou a vacina contra a febre amarela. Agora, referiu-se a um artigo de 2004 do juiz Sergio Moro, no qual ele teria escrito que “só a imprensa pode ajudar a condenar as pessoas.” No seu famoso artigo de 2004, Moro não disse isso. Foi preciso, referindo-se à Operação Mãos Limpas italiana:

“Os responsáveis pela operação Mani Pulite ainda fizeram largo uso da imprensa. Com efeito: para o desgosto dos líderes do PSI, que, por certo, nunca pararam de manipular a imprensa, a investigação da ‘mani pulite’ vazava como uma peneira.”

Lula não precisava ter exagerado.

Bolsonaro na disputa

Com Lula e Bolsonaro disputando uma eleição, os jornalistas e as agências de checagem trabalharão como nunca.

Lula viajou pela sua realidade paralela na quarta-feira, Bolsonaro reagiu na quinta e, como mostrou o repórter Mateus Vargas, contou cinco inverdades em menos de meia hora.

Disse que o número de mortos pela Covid está inflado. Contrariou um boletim do Ministério da Saúde.

Disse que que a Organização Mundial da Saúde condena o lockdown.

Disse que, desde o primeiro momento, tentou comprar vacinas. Anunciou seu veto à CoronaVac e recusou propostas da Pfizer.

Disse que o Supremo Tribunal Federal limitou a ação do governo. O que o STF fez foi garantir as iniciativas dos estados e municípios.

Disse que desde o primeiro momento agiu contra a Covid. Era a “gripezinha“ que provocava a “histeria” dos “maricas”.

Cármen e Nunes Marques

O pedido de vista do ministro Nunes Marques alegrou o Planalto, pois a suspeição de Sergio Moro seria mais uma cereja no bolo de Lula.

À primeira vista, as coisas são assim, mas se a ministra Cármen Lúcia mudar seu voto, acompanhando Gilmar Mendes, a manobra falha e carboniza Nunes Marques. A menos que ele se antecipe, condenando Moro.

STF em chamas

O tiroteio do ministro Marco Aurélio em cima dos colegas Luiz Fux e Alexandre de Moraes mostra que o Supremo Tribunal precisa de uma missão pacificadora. Esse foi o barraco público. Felizmente, aqueles que ocorreram no início da semana, com outras excelências, ficaram no escurinho da Corte.

A tensão decorre, em parte, da suspensão do convívio pessoal, provocado pela pandemia.

Mourão disse tudo

Na sua entrevista aos repórteres Gustavo Uribe e Leandro Colon, o vice-presidente Hamilton Mourão disse tudo:

“É aquela história: o povo é soberano. Se o povo quiser a volta do Lula, paciência. Acho difícil, viu, acho difícil.”

Lula 2022

Lula já avisou:

“Eu sou uma metamorfose ambulante”.

Vazou

No início da semana passada, alguns comissários bem informados já sabiam que o ministro Edson Fachin jogaria sua bomba sobre a política nacional.

Guedes na mesa

Nos últimos dias da semana passada, elevou-se a tensão no Palácio do Planalto. Sempre que isso acontece, sobra para o ministro da Economia.

Paulo Guedes terá dias difíceis, com uma janela de oportunidade. Como ele mesmo já disse, dependendo do desconforto, vai-se embora.

O grande chanceler

Com o Brasil assumindo a liderança do número de mortes diárias por Covid, o ministro Ernesto Araújo realizou seu sonho:

“Talvez seja melhor ser esse pária deixado ao relento, deixado de fora, do que ser um conviva no banquete no cinismo interesseiro dos globalistas, dos corruptos e semicorruptos.”

Mandato curto

Com a execução do vereador Danilo do Mercado (MDB-RJ), assumirá sua cadeira na Câmara de Caxias a suplente Fernanda da Costa, filha do traficante Fernandinho Beira-Mar, encarcerado em Mossoró (RN).

Seu mandato poderá ser curto.


Bernardo Mello Franco: O fantasma da polarização

A volta de Lula reabilitou um fantasma que assombrou a última corrida presidencial: a ideia de um país dividido entre dois extremos. Em 2018, a propaganda de Geraldo Alckmin martelou que era preciso evitar, a qualquer custo, a polarização entre Bolsonaro e PT. As duas forças foram apresentadas como “lados da mesma moeda: a do radicalismo”.

A retórica denunciava o desespero do tucano. O eleitorado do seu partido já havia aderido ao capitão, e ele terminou com menos de 5% dos votos. No segundo turno, os candidatos do PSDB esqueceram o discurso e correram para Bolsonaro. A carona ajudou a eleger João Doria e Eduardo Leite, que agora tentam se descolar da imagem do presidente.

A equivalência entre PT e Bolsonaro sempre foi conversa fiada. O partido de Lula tem muitos defeitos, mas nasceu na luta contra a ditadura e governou pelas regras da democracia. Quando Dilma Rousseff sofreu o impeachment, os petistas entregaram as chaves do palácio e foram para a oposição.

Bolsonaro é um antigo defensor do autoritarismo, da tortura e das milícias. Não moderou o discurso na campanha nem no governo, onde passou a flertar abertamente com um autogolpe.

Polarização não é sinônimo de duelo entre extremos. Como lembra o cientista político Cláudio Couto, PT e PSDB polarizaram seis disputas presidenciais sem que nenhum deles fosse extremista. O professor diz o óbvio. Mesmo assim, há quem insista na falsa simetria.

A deputada Joice Hasselmann, ex-líder de Bolsonaro, agora se apresenta como adversária do “bolsopetismo”. O termo não quer dizer nada, mas virou moda em rodas conservadoras. Na falta de um candidato competitivo, apela-se ao fantasma de 2018.

O retorno de Lula mostrou que não era difícil polarizar com um presidente que nega a ciência e debocha das vítimas da pandemia. Para o petista, bastou aparecer de máscara, defender a vacina e informar que a Terra não é plana.

OS TRÊS PATETAS

Na semana em que o Brasil superou a marca de duas mil mortes diárias pela Covid, os filhos do presidente se destacaram pelas seguintes ações:

Flávio, o Zero Um, comparou medidas para conter a pandemia ao massacre de judeus no Holocausto.

Carlos, o Zero Dois, deu chilique na Câmara Municipal e chamou um colega de “canalha” e “cabeça de balão”.

Eduardo, o Zero Três, divulgou o desenho de um Zé Gotinha miliciano, armado com um fuzil.

HELIO E A FRENTE AMPLA

Com a morte de Helio Fernandes, vai-se uma parte da História do Brasil no século XX. O jornalista resistiu a seguidos apelos para publicar suas memórias. Deixou um único livro, “Recordações de um desterrado em Fernando de Noronha”, além de milhares de artigos no baú da “Tribuna da Imprensa”.

Helio respirava política e trabalhou pela reconciliação de JK e Lacerda quando os dois rivais, que apoiaram o golpe de 1964, viram-se na mira da ditadura que ajudaram a instalar.

A primeira reunião da Frente Ampla ocorreu na casa do jornalista, no Rio, em 22 de agosto de 1966. O movimento foi sufocado pelos militares, e JK e Lacerda morreram sem ver a redemocratização do país. Helio morreu na mesma casa, na madrugada de quarta, aos 100 anos.


Merval Pereira: Política nos quartéis

Caminhamos para uma disputa eleitoral em 2022 com as Forças Armadas sendo utilizadas pelo presidente Bolsonaro como instrumento político, o que não dá certo em lugar nenhum do mundo democrático.

O presidente mistura a incitação de seus militantes contra governadores e o Supremo Tribunal Federal com uma suposta defesa dos militares.
“Vou ficar sozinho nessa briga? O meu exército, que tenho falado o tempo todo, é o povo. Sempre digo que devo lealdade absoluta ao povo brasileiro”, inclusive ao Exército, salientou. “Eu faço o que vocês quiserem. Essa é a minha missão de chefe de Estado”.

Numa irresponsável atitude política, ele tem lançado ao ar em suas lives ameaças e advertências: “Até quando nossa economia vai resistir? Que, se colapsar, vai ser uma desgraça. O que poderemos ter brevemente? Invasão aos supermercados, fogo em ônibus. Greve, piquetes, paralisações. Aonde vamos chegar?", perguntou recentemente.

Qualquer outro poderia ser acusado de estar encorajando populares a atitudes radicais, especialmente um presidente da República, cuja missão é liderar a sociedade diante de uma catástrofe como a pandemia de COVID-19.

Para complicar, Bolsonaro colocou em pauta o Estado de Sítio, medida drástica diante de um perigo iminente de declaração de guerra ou convulsão social. Justamente o que pode acontecer se o presidente da República continuar a incitar a população a não respeitar os atos dos governadores.

Toque de recolher, que alguns Estados como São Paulo estão adotando, e também o Distrito Federal, nada tem a ver com Estado de Sítio, e ele sabe disso, está apenas criando um clima de instabilidade no país, com objetivos evidentes.

A anulação da condenação do ex-presidente Lula por decisão monocrática do ministro Edson Fachin, tornando-o novamente elegível e, em consequência, forte candidato à sucessão presidencial, trouxe de volta os ataques ao Supremo Tribunal Federal nas redes sociais, e a inquietação nos meios militares com a possibilidade de sua eleição.

Nas Forças Armadas – e no Exército em particular -, há muita rejeição a Lula e ao PT, e agora que os processos do ex-presidente voltaram atrás, vai ficar difícil se essa rejeição passar a ser uma arma da retórica de Bolsonaro sobre o Exército.

O presidente já esboçou uma “defesa” do General Villas Boas, muito criticado por ter admitido que o tuíte que soltou na véspera da sessão do Supremo que analisaria um habeas corpus a favor de Lula foi um aviso dos militares, cujos comandantes teriam sido consultados, para que não soltassem Lula.

Não creio que a maioria que votou a favor da manutenção da prisão do ex-presidente o tenha feito com receio de uma reação dos militares, cuja intervenção na decisão da Corte foi rejeitada, naquela ocasião, pelo decano do Supremo, ministro Celso de Melo, num discurso histórico.

Agora, com a decisão de enviar todos os processos de Lula para a Justiça do Distrito Federal, anulando as condenações sem anular as investigações e as provas, voltou o fantasma de Lula a atormentar os militares.

Bolsonaro aproveitou-se disso para sair em defesa do General Villas Boas, como se as críticas fossem uma ofensa pessoal, e não a manifestação democrática de repúdio a uma intervenção indevida. Além das mentiras, o mais grave das declarações de Bolsonaro é ele se referir ao “meu Exército”, um hábito que não é coibido.

Volta e meia Bolsonaro relembra ser o comandante em chefe das Forças Armadas – e realmente é -, como se o status concedido pela Constituição ao presidente da República lhe permitisse usá-las como instrumento político. Infelizmente, os militares não reagem a esse abuso, nem mesmo quando fez comícios em frente ao quartel general do Exército em Brasília, ou quando incentiva ataques ao Congresso e ao STF.

Por reação, imagino que militares de alta patente pudessem sair do ministério, para deixar claro que este não é um governo dos militares.

Essa utilização política das Forças Armadas nada tem a ver com a democracia. Os militares não podem se transformar em uma espada de Dâmocles sobre a política brasileira, escolhendo quem pode ou não pode concorrer à presidência da República. O comandante do Exército, General Pujol, tem razão quando diz que a política não deve entrar nos quartéis. Bolsonaro faz ouvidos moucos.


RPD || João Batista Andrade: Migração do cinema para a literatura

No início da década de 1960 do século XX a cultura brasileira dava um salto para a modernidade. O golpe de 1964 jogou por terra essa utopia, mergulhando o país em uma ditadura de 21 anos, lembra o cineasta e escritor João Batista de Andrade

Para minha geração, o cinema encarnava uma utopia vigorosa.  

Vindo do interior mineiro, entrei na Poli (Escola Politécnica da USP) em 1960, já com vinte anos, muita imaginação, crise existencial profunda e pouco conhecimento cultural.

As crises se sucediam, eleição de Jânio, renúncia com golpe explícito, militares tentavam impedir a posse de Jango, mas Jango tomava posse gerando um governo popular seguindo a mesma crise que se aprofundava até o golpe de 1964. De qualquer maneira, um período rico de formação.

Em quatro anos passando da esperança, da luta à derrota para os militares, enquanto, bebendo do porre democrático do governo JK, a cultura brasileira dava um salto para a modernidade. Bossa Nova, Teatro Novo, Cinema Novo. Minha geração finalmente tinha sua trilha traçada rumo ao futuro, distanciando-se de uma Brasil atrasado e pobre. 

O golpe de 1964 jogou por terra essa utopia, mergulhando o país e minha juventude no absurdo de uma ditadura de 21 anos.

Eu já filmava e escrevia. 

Hoje escrevo. 

MUDANÇA DE HÁBITOS

Poderia escrever: escritor, cineasta.
Ou cineasta, e basta?
Escritor, catador de latas, doutor
Ou nada, parte de uma casta?
Rico, remediado ou vivendo de favor?
Onde estará o bom, o certo, o novo?
No cinema, na literatura ou no viver?

O mundo gira e minha cabeça arde
Em busca de saídas, alguma solução
Mas o povo, o povo, onde está o povo?
Não quero filmar praças e ruas vazias
E morrer nas salas de cinema que me odeiam!

Quem vê o que filmo?
Quem lê o que escrevo?
Quem quer saber o que fiz de novo?
Quem toca no que desenho, esculpo
Senão aqueles que vivem sob tantas perguntas?
Nada me tira desse labirinto
Nem adianta dizer sou negro
Sou índio, sou analfabeto, pobre
Como se tudo não passasse de um capricho

Sou o que sou, sem passado nem futuro
Catando pedras brilhantes onde pobres catam lixo

Só não quero ainda morrer
Nem de vírus nem de tristeza
Sem filmar, prefiro escrever
Escapando ao meu pobre destino
E é o que sempre fiz e faço agora
Um tanto alegre, um tanto comovido

Como escritor, era quase clandestino
Já que cada imagem tem seu santo
E dizem que não se pode ser os dois
Coisa que na vida sempre quis ser três
Como escritor, político, cineasta

Clandestino nunca fui, na arte ou no saber
Mesmo na política, meu nome é JB
Tantas vezes alertado e proibido

Fotografado, filmado e perseguido
Sempre criei desafios aos donos do poder

Cinema Brasileiro morreu tantas vezes
E pateticamente soube reviver
E vive mais do estado do que do sucesso
Nada paga o que se filma, monta, copia
E exibe em salas tão estrangeiras

Há impostos criados para o cinema
Mas há também impostores no caminho
-Para onde vai agora essa famosa grana?
Destino incerto, olhos e bolsos ligeiros…

Tristes utopias dos cinemas nacionais
Com mercados tão facilmente tomados!
Mãos de ratos nos tomam os impostos pagos
Para usar em suas regalias mortais

O Cinema Brasileiro, de olhar perdido
Leva fama injusta, tão usada e infeliz
Quando na verdade somos tão pequenos
Diante das bocas gigantes que nos sugam

O mesmo Estado, sempre enlouquecido
Refém de mãos tão ávidas quanto sujas
Mata-nos como piolhos sob o pente
Com um simples rabisco de caneta bic

Sabemos, sempre soubemos e sofremos
Numa disfarçada ou descarada ditadura
Tudo começa com perseguições, mortes
E a destruição de nossa cultura!

Ao escrever, parece que deixo o ringue
Onde lutei a vida inteira pela utopia
Cineasta da miséria, da fome e do sangue
Estaria jogando a toalha, triste dia…
-Nada disso! Nada disso, senhores
Procuro o melhor lugar dessa guerra
E onde possa buscar o povo, meus leitores!

Escrever é revirar entulhos em busca de vida
É procurar no lixo o que nos chama e pulsa.
Por isso aguardem o novo livro de ficção:
1964- Uma bomba na Escuridão
Romance de ficção
Crise e sofrimento vivencial
Para ler, sentir, gostar
Textos escritos por mim, perdido
Durante e depois do golpe militar.

Em formato novo, buscando o leitor digital
Escapando do cerco das salas e livrarias
Fugindo das prateleiras tomadas por autoajudas
Longe desse vil comércio elitista e mortal
Falsas ciências e outras tantas porcarias!

Filho de índios e negros sem os conhecer
Afinal, quem sou?
Não, não quero, ainda não posso morrer
Mesmo que agora, mal saiba viver.

* Cineasta, escritor. 


Folha de S. Paulo: Entenda a militarização do governo Bolsonaro e as ameaças que isso representa

Especialistas avaliam que presença militar na gestão federal desvia as Forças Armadas de seu papel constitucional

Géssica Brandino e Renata Galf, Folha de S. Paulo

Capitão reformado do Exército, o então deputado federal Jair Bolsonaro voltou às frentes militares em busca de apoio para sua candidatura à Presidência da República em 2018. No governo, deu às Forças Armadas um espaço inédito pós-redemocratização, colocando generais em postos-chave para o país.

À ampla presença militar se somam declarações recorrentes tanto por parte de Bolsonaro e seus apoiadores, quanto por parte dos próprios generais que compõem o governo, ora exaltando feitos do período da ditadura e emitindo mensagens dúbias sobre o regime, ora atacando os demais Poderes.

Em recente entrevista à Folha, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, apontou que a militarização do governo civil é um dos sete sintomas de um processo de corrupção da democracia no país.

Entenda como a remilitarização do governo pode corromper a democracia nacional.

Como a participação militar no governo Bolsonaro se compara com a de governos anteriores no pós-ditadura? A Constituição Federal estabelece que cabe às Forças Armadas a defesa do país contra ameaças externas e, por iniciativa dos Poderes da República, da lei e da ordem. Não há previsão de atuação política por seus integrantes.

Oprofessor Alcides Costa Vaz, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília e coordenador do Gepsi (Grupo de estudos em política e segurança internacional), diz que a presença dos militares em ministérios foi reduzida com a criação do Ministério da Defesa, em 1999, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

Até então, havia três ministérios separados para abrigá-los, o do Exército, o da Marinha e o da Aeronáutica.

As Forças Armadas permaneceram focadas no cumprimento de seus papéis constitucionais, até a instauração da Comissão Nacional da Verdade, criada em 2012 no governo de Dilma Rousseff para investigar crimes do regime militar.

“A partir do momento em que os termos dessa convivência se alteram, esse sentimento contrário à esquerda e uma expressão clara do antipetismo, toda uma perspectiva de natureza ideológica aflorou, se revigorou”, destaca Vaz, que é ex-diretor da Associação Brasileira de Estudos de Defesa.

Já outros especialistas ouvidos pela Folha discordam de que as regras democráticas foram aceitas pela instituição.

Para o professor de ciência política da UFMG, Leonardo Avritzer, autor do livro “Política e Antipolítica: a Crise do Governo Bolsonaro”, o elemento mais grave dessa conjuntura foi a revelação de que um tuíte do general Villas Bôas pressionando o STF em 2018 teve origem de uma reunião da cúpula do Exército.

Outro exemplo citado por ele é a nota do Clube Militar divulgada após a confirmação pela Câmara da prisão do deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ), em que afirmam que grande parcela da população tem saudades da ditadura. "O Clube Militar representa bem os militares brasileiros? É muito difícil dizer quem representa e quem não representa, mas claro que aquilo ali é uma expressão muito forte daquilo que se pensa [entre os militares]", avalia ele.

"Então o problema é esse, ou seja, os militares brasileiros, pela história deles, pela maneira como eles formam pessoas nas escolas militares e pela maneira como eles se comportam estando no poder, não nos levam a achar que eles são parte da institucionalidade democrática do Brasil", diz Avritzer.

Samuel Vida, advogado e professor de direito da UFBA (Universidade Federal da Bahia), considera que o Brasil nunca chegou a ser uma democracia consolidada e que a militarização, por exemplo, sempre foi uma realidade para determinados grupos, particularmente as populações negras e indígenas

“Se nós analisarmos as políticas de segurança pública no Brasil, assim como se nós analisarmos a gestão dos conflitos no campo, (...) vamos encontrar uma presença militar, no sentido amplo, não só das Forças Armadas, mas também das polícias militarizadas que atuam nos estados e que é muito anterior a essa conjuntura. Ou seja, a militarização da política no Brasil é um fenômeno antigo quando você focaliza nas comunidades indígenas e negras."

ACOMPANHE A SÉRIE DE REPORTAGENS SOBRE O ESTADO DA DEMOCRACIA

  1. Saiba quais são os sete sintomas de corrupção da democracia apontados pelo ministro Fachin
  2. Sob tensão, democracia é frágil e requer defesa, dizem representantes da política, economia e sociedade civil
  3. Entenda a militarização do governo Bolsonaro e as ameaças que isso representa

​​Qual o espaço das Forças Armadas no governo Bolsonaro? Além de escolher como vice o general Hamilton Mourão, Bolsonaro também nomeou generais para ministérios. O general Walter Braga Netto, por exemplo, é o primeiro a comandar a Casa Civil, desde 1981, quando Golbery do Couto e Silva deixou o cargo.

Além dos postos no alto escalão, do início de seu mandato até julho de 2020, Bolsonaro tinha aumentado em 33% a presença de militares da ativa no governo, com mais de 2.500 integrantes em cargos comissionados em 18 órgãos. Dos 21 ministros de Bolsonaro, seis são das Forças Armadas.

Se confirmada a nomeação do general da reserva Joaquim Silva e Luna para a Petrobras, mais de um terço das estatais federais controladas pela União terão comando militar.

Na última quinta-feira (25), o presidente também decidiu que o almirante Flávio Rocha deve acumular a chefia da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) e o comando da Secom (Secretaria de Comunicação Social), hoje chefiada pelo empresário Fabio Wajngarten.

Quais são as pautas pró-militares do governo? O presidente Bolsonaro tem sido fiel à promessa de ampliar o armamento no país e não tem feito cortes ao orçamento do Ministério da Defesa como em outras áreas.

No primeiro dia do ano de 2021, por exemplo, ao sancionar com vetos a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias), que serve como guia para o Orçamento, o governo preservou os principais projetos estratégicos das Forças Armadas, entre eles o de uma Escola Superior de Defesa.

Os militares também foram poupados na reforma da Previdência, preservando privilégios em relação a outros grupos de trabalhadores.

Em outro episódio corporativista, diante da queixa de militares, o presidente voltou atrás dois dias após editar uma norma que acabava com a promoção por critério de antiguidade para o posto de coronel —o último antes da patente de general no Exército.

Quais as consequências da militarização do governo para a democracia? Para Vera Karam, professora de direito constitucional da UFPR e pesquisadora do CNPQ, ao integrar o governo civil os membros das Forças Armadas podem imprimir uma lógica antidemocrática à gestão, sem que haja necessidade de um golpe.

“Esses militares que hoje ocupam postos no governo também se alimentam dessa memória da ditadura militar para justamente imprimir uma racionalidade antidemocrática, de exceção”, diz.

Doutora em filosofia e presidente do Instituto Liberal do Nordeste, Catarina Rochamonte, que é colunista da Folha, diz que a presença notória dos militares, especialmente no Ministério da Saúde, indica que Bolsonaro quer nomear pessoas servis e que há um processo de 'venezuelização' do Brasil.

“Estamos entrando num chavismo à direita, porque na Venezuela a coisa começou assim."

Para Samuel Vida (UFBA), a militarização da política vai além do governo Bolsonaro.

“Não se pode pensar a militarização apenas a partir do momento que o general Pazuello é nomeado para a Saúde, ou outros generais para outros postos. Esse é um fenômeno de agudização, de exacerbação, de uma prática que já vem de longa duração sendo tolerada quando os atingidos são negros e indígenas.”

Como a interferência na gestão da Petrobras e a nomeação de Pazuello para o comando da Saúde, um general da ativa, entre outros episódios, refletem nas Forças Armadas? Professor titular sênior da Ufscar (Universidade Federal de São Carlos) que estuda as Forças Armadas, o cientista político João Roberto Martins Filho afirma que a cobertura da imprensa passou da esperança de que os militares poderiam ter uma atuação técnica e capacidade de tutelar o presidente para a constatação de que isso é impossível.

“A sociedade está mais ou menos farta dessa, vamos dizer, da entrada maciça dos militares no governo e há muito pouca evidência de que eles querem sair”, diz.

Como estratégia para tentar diminuir a vinculação dos integrantes do governo das Forças Armadas, há pressão para que Pazuello adiante sua aposentadoria e passe a reserva —como fez o ministro-chefe da Secretaria de Governo, o general Luiz Eduardo Ramos—, mas ele já sinalizou que não pretende fazer isso.

Quais as consequências da declaração do general Villas Bôas para o relacionamento entre os Poderes? Em recente entrevista para um livro, o general Eduardo Villas Bôas revelou que a cúpula do Exército, então sob o seu comando, articulou um tuíte de alerta ao Supremo antes do julgamento de um habeas corpus que poderia beneficiar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2018.

Lula acabou tendo o pedido negado pelo plenário do Supremo e, no dia 7 de abril, foi preso e levado para Curitiba. Deixou a prisão 580 dias depois, após o STF derrubar a regra que permitia prisão a partir da condenação em segunda instância.

O professor Vaz classifica como muito grave a revelação de que a cúpula do Exército participou da redação daquela mensagem.

“É o sintoma de uma politização que, neste caso, é nefasta, porque de alguma forma ela fere pressupostos fundamentais. É como você legitimar, em nome de um posicionamento político, a quebra, o rompimento das regras mais estruturais do processo democrático e da convivência e harmonia entre os poderes”, afirma.

João Roberto concorda. “Essa postura de se colocar como um Poder da República, que responde, que dialoga, que pressiona o Poder Judiciário, que julga o Judiciário, que julga os políticos, ela é uma postura extremamente nociva e anticonstitucional. É claríssimo isso. Não está previsto na Constituição”.

Desde que Bolsonaro assumiu a Presidência, a tese de intervenção das Forças Armadas a partir do artigo 142 da Constituição foi evocada em diversos momentos. Apesar de tal interpretação já ter sido rejeitada pelo Supremo, o que sua presença no debate público representa? Em momentos de pressão, Bolsonaro costuma radicalizar o discurso na tentativa de fidelizar a sua base de apoio mais fiel e relaciona a democracia do país à vontade das Forças Armadas.

Em maio de 2020, por exemplo, manifestantes bolsonaristas usaram faixas com uma menção em postagem em rede social pelo presidente ao artigo 142 da Constituição, que trata do papel das Forças Armadas na República, alimentando uma série de discussões.

Apoiadores extremistas do presidente afirmavam que esse trecho da Carta dá respaldo para uma eventual intervenção militar, tese repudiada por instituições como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e a Câmara dos Deputados.

Esse trecho da Constituição disciplina o papel dos militares no país. Diz o seguinte: "As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". ​

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  1. Entenda a discussão sobre artigo da Constituição que trata das Forças Armadas

Para especialistas ouvidos pela Folha, falas de generais que integram o governo, assim como a declaração de Villas Bôas, mostram que a visão de um poder moderador tem apoio na instituição.

“O mais preocupante é que eu acho que a maioria dos generais vê as Forças Armadas como um poder moderador. Embora as Forças Armadas não contemplem um golpe de estado tradicional, elas partem da ideia de que são mais capazes que os civis de resolver os problemas para o país”, diz João Roberto.

Samuel Vida também acredita que haja uma legitimação crescente de que militares são adequados para resolver problemas.

“A gente sabe que o treinamento militar para resolver problemas é todo dirigido pela lógica da violência. A democracia exige exatamente outro tipo de lógica, do diálogo, da tolerância, da escuta do outro, da negociação, da busca por alternativas.”

Em 2020, o número total de policiais e militares eleitos aumentou em todo o Brasil. A quantidade de comandantes de cidades com origem em forças de segurança cresceu 39% em 2020 na comparação com a eleição municipal de 2016.

Alcides Vaz completa que faz parte do etos militar a visão de guardião da pátria, pelas funções onstitucionais que exercem, mas há uma extrapolação nefasta quando lideranças das Forças Armadas julgam ter credibilidade e legitimidade para dizer o que é bom ou não para o país.

“Essa sensação com que a gente convive agora: há ou não há um espectro de uma intervenção militar; Quando isso ocorre num governo de uma pessoa que fala abertamente disso, que decanta isso, de fato são fundamentadas as razões de preocupação sim”, diz.

O apoio de militares ao governo de Jair Bolsonaro deve continuar em 2022? Até o momento, a previsão é a de que esse apoio será mantido no pleito no qual o presidente buscará a reeleição. Embora não esteja claro o que pode acontecer caso Bolsonaro perca as eleições, a análise de especialistas é que, caso isso ocorra, as Forças Armadas devem voltar aos seus deveres constitucionais.

MINISTROS MILITARES DE BOLSONARO

Origem nas Forças Armadas

Casa Civil
Walter Souza Braga Netto, general da reserva do Exército

Secretaria de Governo
Luiz Eduardo Ramos, general da reserva do Exército

Gabinete de Segurança Institucional
Augusto Heleno, general da reserva do Exército

Defesa
Fernando Azevedo e Silva, general da reserva do Exército

Saúde
Eduardo Pazuello, general do Exército

Ciência e Tecnologia
Marcos Pontes, tenente-coronel da reserva da Aeronáutica

Minas e Energia
Bento Albuquerque, almirante da Marinha

Infraestrutura
Tarcísio de Freitas, capitão da reserva do Exército

Controladoria-Geral da União
Wagner Rosário, capitão da reserva do Exército


Merval Pereira: Os extremos se encontram

O conselheiro da Petrobras Marcelo Mesquita, em entrevista à GloboNews, fez um comentário lateral sobre a crise na estatal, com a tentativa do governo Bolsonaro de controlar os preços dos combustíveis, que se torna fundamental quando se olha o quadro de maneira mais abrangente. Disse ele que “se fosse o PT, nós sabemos que teríamos esse problema há dois anos”, referindo-se à política do governo Dilma Rousseff na mesma direção.

Não é à toa que o PT está defendendo a intervenção do governo, e até mesmo o ex-ministro Aloizio Mercadante elogiou o general Joaquim Silva e Luna como “um militar nacionalista”. Há muitos pontos de contato entre visões de mundo autoritárias. Lula deu uma entrevista recente apoiando Bolsonaro quando ele critica o jornalismo profissional. Os dois se sentem atingidos pelas críticas e denúncias.

Tanto Bolsonaro quanto o PT consideram que o indutor do crescimento nacional é o governo e usam as estatais com tal objetivo, mesmo que já tenha sido provado na prática que o resultado é nulo. Mesquita lembrou que a Petrobras teve que pagar US$ 3 bilhões para encerrar uma ação de investidores internacionais (class action), quando o governo Dilma segurou o preço dos combustíveis com o intuito de conter a inflação.

Noutros governos, como o de Fernando Henrique Cardoso, houve essa tentativa, frustrada, uma das vezes quando o ex-ministro José Serra era candidato à Presidência em 2002 e queria que o ministro da Fazenda, Pedro Malan, segurasse os aumentos de combustíveis durante a campanha.

Agora o presidente Bolsonaro anuncia que vai “colocar o dedo” na eletricidade, o que geralmente dá choque nos governantes que tentam. Também a ex-presidente Dilma controlou o preço da eletricidade na canetada, e o resultado foi que, mais adiante, o repasse teve que ser feito de maneira mais acentuada, e até hoje a Eletrobras ainda sofre com o rombo provocado naquele tempo.

Na medida provisória que permite ao BNDES estudar a privatização da estatal de energia — o que parece mais um gesto simbólico do que realidade —, há o sistema de capitalização com a intenção desfazer o rombo nas tarifas das usinas da Eletrobras da época de Dilma. Com isso, a empresa pode vir a recuperar sua capacidade de investimento. Mas técnicos admitem que um impacto para cima nas tarifas haverá, seja ela privatizada ou não.

As trapaças da sorte levaram a que tanto Bolsonaro quanto o PT tivessem inimigos comuns, como o ex-ministro Sergio Moro, e métodos semelhantes para tentar se livrar das acusações de corrupção que atingem Lula e Flávio Bolsonaro. O caminho da anulação de provas, ou de julgamentos, leva ao mesmo objetivo: conseguir nos tribunais superiores (STJ e STF) a alforria dos seus.

A razão pela qual a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça anulou as provas contra o hoje senador Flávio Bolsonaro, uma justificativa insuficiente do juiz de primeira instância para autorizar quebra de sigilo, é uma tecnicalidade semelhante à que levou à anulação do processo conhecido como Castelo de Areia, que envolvia empresários e políticos: a investigação se originou numa denúncia anônima.

Mas, quando se quer beneficiar alguém, aceitam-se até provas ilícitas, como no processo que julga uma denúncia de parcialidade contra o então juiz Sergio Moro. A decisão da 2ª Turma do Supremo, que deve ser contra ele, vai anular a condenação do ex-presidente Lula no caso do triplex do Guarujá e poderá levar de roldão todos os demais julgamentos em que ele foi condenado. E até outras condenações de réus da Lava-Jato.

Assim como a anulação das provas pode levar a investigação contra Flávio Bolsonaro à estaca zero. É possível ampliar o entendimento da lei, como a Operação Lava-Jato fez durante cinco anos, com bons resultados. Mas também usar provas ilegais, como os diálogos entre os procuradores e o então juiz Moro, para absolver condenados. Mesmo que, sabendo da discutível utilização dessas provas, elas não apareçam nos votos dos ministros da 2ª Turma do STF, elas já foram divulgadas largamente para criar um clima contrário ao juiz. O mesmo que acusam os procuradores e o próprio Moro de ter feito. Desde que Bolsonaro partiu para a confrontação com Moro, surgiu um campo enorme de interesses comuns entre Lula e ele.


Mariliz Pereira Jorge: Instituições barram ímpetos golpistas do presidente, mas não de seus seguidores

Ataques de Bolsonaro a seus opositores empoderaram essa muito gente cafona e, certamente, desocupada

Depois do decreto que pretende flexibilizar o acesso às armas e que só tem o intuito de abastecer milícias bolsonaristas, temos mais um capítulo de “como as democracias morrem”. Um grupo criou uma tal Ordem dos Advogados Conservadores do Brasil, que nada tem com a OAB, mas com o compromisso de intimidar críticos ao governo.

Por meio de um comunicado nas redes sociais, ameaça processar “todos” que ofenderem Bolsonaro, sua família e integrantes da administração: “vamos derrotar o mal”. O “mal”, como sabemos, é a liberdade de expressão garantida pela Constituição, que dá aos brasileiros o direito de fiscalizar, questionar, desaprovar e esculhambar até o ocupante do cargo mais importante do país.

Os ataques de Bolsonaro a seus opositores empoderaram essa muito gente cafona e, certamente, desocupada, que pretende promover uma cruzada contra políticos de oposição, artistas, professores e, claro, jornalistas, os que estão em primeiro plano na mira da seita criada pelo presidente.

Se o ministro da Justiça usa sua caneta para perseguir profissionais como está fazendo com meus colegas Ruy Castro e Hélio Schwartsman, por que um grupo de gente ressentida e ignorante, mas com diploma de advogado, não faria o mesmo? Sigamos o mestre, devem pensar.

Pode parecer meia dúzia de aloprados, mas é exatamente como têm sido tratados grupos envolvidos em manifestações pró-golpe militar e em disparos de fake news. As instituições, por enquanto, têm barrado os ímpetos golpistas do presidente, mas não podemos dizer o mesmo sobre seus seguidores. Somos testemunhas do como a democracia vem sendo corroída pelas bordas —e por gente aparentemente insignificante.

Sempre bom lembrar do vice-presidente Pedro Aleixo, em 1968, que foi a única voz discordante da atrocidade do AI-5. “O problema é o guarda da esquina.” Como sabemos, este governo está cercado cada vez mais de gente assim, em cada esquina do país.