Ditadura

Cejil: Brasil é condenado por não investigar assassinato e tortura de Vladimir Herzog

Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou que o Estado brasileiro apure, julgue e, se for o caso, puna os responsáveis pela morte do jornalista na ditadura militar

A Corte Interamericana de Direitos Humanos - OEA emitiu ontem a sentença do Caso Vladimir Herzog e outros vs. Brasil, condenando internacionalmente o Estado brasileiro pela impunidade dos crimes de tortura e execução do jornalista Vladimir Herzog por agentes da ditadura militar brasileira. A Corte considerou ainda que a não realização de justiça neste caso violou diretamente a integridade pessoal de seus familiares. Herzog foi arbitrariamente detido em 25 de outubro de 1975, por agentes do DOI-CODI de São Paulo, onde morreu em virtude das torturas sofridas. A execução do jornalista foi divulgada sob uma falsa versão de suicídio, mas as reais circunstâncias de sua morte nunca foram devidamente investigadas e processadas.

O Centro pela Justiça e o Direito Internacional - CEJIL representou a família de Vladimir Herzog desde 2009 no Sistema Interamericano. Como destaca Beatriz Affonso, Diretora do CEJIL no Brasil “a sentença da Corte Interamericana é histórica, pois reconhece que o caso está inserido em um contexto sistemático e generalizado de ataques à população civil pelo regime militar instaurado no Brasil a partir de 1964, configurando assim os chamados crimes contra a humanidade”. Esta é a primeira vez que o Tribunal Internacional declara que as ações praticadas pelo regime ditatorial brasileiro configuram crimes contra a humanidade, cuja proibição é norma imperativa no direito internacional.

Diante de tal determinação, tanto os crimes cometidos contra Vladimir Herzog, quanto os demais crimes de Estado deste período, não se submetem a um prazo de prescrição e outras excludentes de responsabilidade. A sentença reafirma ainda que a Lei de Anistia brasileira carece de efeitos jurídicos e reforça a obrigação do Estado brasileiro de respeitar as decisões do Sistema Interamericano e a sua interpretação sobre as anistias políticas.

Em consequência desta condenação, o Brasil terá de adotar medidas para evitar que a prescrição, a anistia ou qualquer outro obstáculo jurídico sejam aplicados nos casos da ditadura militar. Sendo assim, o Estado deverá realizar uma investigação séria, independente, dentro de um prazo razoável, para determinar as circunstâncias da tortura e assassinato de Herzog, o grau de responsabilidade e a punição dos agentes identificados. Ademais, o Estado deverá reparar os familiares de Vladimir Herzog pelos danos materiais e imateriais sofridos.
O Tribunal Internacional declarou ainda que a ausência de esclarecimento sobre os fatos, por meio da reiterada ocultação e negação de informação, assim como a falsa versão de suicídio de Vladimir Herzog, causou graves danos aos seus familiares, violando o direito à verdade.

Esta decisão constitui um marco histórico na luta contra a impunidade por graves violações de direitos humanos cometidas pela ditadura civil militar no Brasil e estabelece estândares importantes que todos os poderes do Estado devem acatar a fim de cumprir suas obrigações internacionais, em especial o Poder Judiciário.

Detalhes da sentença em Coletiva de Imprensa

Para detalhar cada ponto da sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos o Centro Pela Justiça e o Direito Internacional – CEJIL realiza na próxima semana na quarta-feira (11), no Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo, às 15h, entrevista coletiva com Beatriz Affonso - Diretora do CEJIL/Brasil e Clarice e Ivo Herzog – esposa e filho do jornalista assassinado Vladimir Herzog.

Serviço:
Assunto: Caso Vladimir Herzog e outros X Brasil - Entrevista Coletiva Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos
Data: 11/07/2018 (quarta-feira)
Local: Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo - Rua: Rego Freitas, 530 - Sobreloja - Vila Buarque - São Paulo/SP - Fone: (11) 3217-6299
Horário: 15h


El País: Documento da CIA sobre execuções “implode” versão oficial da ditadura

Gerente-executiva do relatório da Comissão da Verdade diz que ainda há arquivos a serem analisados. Bolsonaro questiona documento, que "não vale um tostão" na avaliação de presidente do Clube Militar

Por Rodolfo Borges, do El País

As feridas abertas durante a ditadura militar brasileira (1964-1985) insistem em não cicatrizar. Revelado na quinta-feira, o documento da CIA que expõe a cúpula do Governo militar discutindo execuções em 1974 "implode o núcleo da versão oficial", segundo Vivien Ishaq, gerente-executiva do relatório da Comissão da Verdade. Responsável por coordenar os esforços das mais de 300 pessoas que participaram ao longo de 30 meses da pesquisa que revirou o passado recente do país, a historiadora chama atenção para o nível em que a mensagem da CIA foi trocada. "Do ponto de vista do poder dos personagens, é top secret. De diretor da CIA para primeiríssimo escalão. É extremamente importante", diz Ishaq. O conteúdo da mensagem é posto em dúvida pelos militares, contudo.

De acordo com a pesquisadora, que também coordenou o recolhimento dos arquivos da ditadura no Arquivo Nacional em Brasília, a maior parte do material dessa época disponível no Brasil diz respeito a pessoas investigadas pelo serviço secreto. "Aqui [no memorando da CIA] se vê de outro ponto. De primeiro escalão para primeiro escalão. É documento de Governo, não de serviço secreto", analisa Ishaq, para quem mensagem da agência norte-americana reforça as conclusões da Comissão da Verdade. O relatório final, apresentado em dezembro de 2014, demonstrava a existência de uma política de repressão. "Ao implodir esse núcleo central, também se joga por terra teses muito caras para as Forças Armadas e para os defensores da ditadura", diz a pesquisadora, que cita duas delas: "De que a maioria das mortes teria ocorrido em confronto ou de que seriam resultado de excessos de determinados agentes do Estado", o que eximiria de responsabilidade o comando hierárquico.

Como esse documento estava à disposição para consulta desde 2015, é de se imaginar que ainda há mais para ser descoberto sobre o período. Pelo menos a partir dos arquivos norte-americanos, porque o Exército divulgou uma nota desencorajadora na quinta-feira. Reproduzida pela Agência Brasil, a mensagem do Centro de Comunicação Social do Exército "informa que os documentos sigilosos, relativos ao período em questão e que eventualmente pudessem comprovar a veracidade dos fatos narrados foram destruídos, de acordo com as normas existentes à época – Regulamento da Salvaguarda de Assuntos Sigilosos (RSAS) – em suas diferentes edições”.

O Ministério da Defesa reforçou a mensagem do Exército em nota praticamente idêntica. Mais tarde, questionado por jornalistas sobre o assunto, o ministro Raul Jungmann, da Segurança Pública, disse que o valor das Forças Armadas "permanece nos mesmos níveis [em] que se encontra até aqui". "São documentos da CIA, e o Governo brasileiro não tem conhecimento oficial de nada do que diz respeito a isso. Para se ter um pronunciamento oficial a respeito desse assunto, nós não podemos ficar apenas [nisso]", comentou.

O Arquivo Nacional guarda pelo menos dois lotes de documentos enviados pelos Estados Unidos após a conclusão do relatório da Comissão da Verdade. São 651 os documentos disponíveis para os pesquisadores brasileiros. "A produção documental sobre o assunto é gigantesca. Há 20 milhões de páginas no Arquivo Nacional", diz Vivien Ishaq. Segundo ela, o relatório da Comissão da Verdade produziu apenas uma "fotografia do período em que funcionou" e ainda "tem muita investigação a ser feita e muito documento a ser analisado". E é possível até que existam documentos brasileiros, porque o termo de destruição dos registros também foi destruído. Ou seja, não existe prova de que os documentos foram de fato destruídos.

Militares
Além do Exército, do Ministério da Defesa e do ministro da Segurança Pública, também falou pelos militares o deputado federal Jair Bolsonaro (PSL-RJ). Em entrevista à rádio mineira Rádio Super, o pré-candidato à presidência questionou onde estão os 104 mortos que teriam sido executados pelo regime em 1973, de acordo com o documento da agência de inteligência norte-americana. "Quantas vezes você falou ali num canto que tem que matar mesmo, tem que bater, tem que dar canelada...Talvez esse cara tenha ouvido uma conversa como essa e fez o relatório e mandou", questionou o deputado, referindo-se ao então diretor da CIA, William Egan Colby.

Único dos pré-candidatos à presidência a defender o regime militar, Bolsonaro interpretou a comoção em torno da questão como uma reação a seu prestígio eleitoral. "Voltaram à carga, né? Um capitão está para chegar lá, é o momento. Olha, foi um memorando de um agente, que a imprensa não divulgou. É um historiador que diz que viu, mas não mostrou. Tem que matar a cobra e mostrar o pau. Eu respondo de forma simples: quem nunca deu um tapa no bumbum de um filho e depois se arrependeu?", disse o deputado durante a entrevista.

O presidente do Clube Militar, Gilberto Pimentel, engrossou o coro. Em entrevista ao Estado de S.Paulo, ele classificou a comunicação norte-americana de "inteiramente fantasiosa" e disse que o documento "não vale um tostão furado". Na entrevista, Pimentel destaca o momento em que a mensagem surgiu. "Temos agora na liderança das pesquisas para as eleições presidenciais um candidato que surgiu do nosso meio e um grupo expressivo de militares que, democraticamente, nesses dias consolidou a intenção de candidatar-se aos mais variados cargos de governo, desde os municipais, passando pelos estaduais até os federais”. Levantamento do Estado de S.Paulo aponta a que pelo menos 71 militares pretendem se candidatar na eleição deste ano.

O presidente eleito do Clube Militar, Antonio Hamilton Mourão, que assume o posto em junho, também comentou o assunto em entrevista. Ao jornal gaúcho Zero Hora: “A quem interessa manchar a reputação das Forças Armadas, que segundo pesquisas são as instituições em que a população mais confia, hoje, no Brasil? Gostaria de saber por que esse documento surgiu justo agora, num momento turbulento da nação.”

Anistia
Órgãos do Ministério Público Federal divulgaram nota nesta sexta-feira para questionar a Lei de Anistia. A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e a Câmara Criminal do MPF dizem que o "Brasil é o único país do continente que, após ditadura ou conflito interno, protege os autores de graves violações aos direitos humanos com uma Lei de Anistia". "O documento do governo americano, ao revelar nova evidência de que a repressão política pela ditadura militar incluiu uma política de extermínio de opositores do regime, convida para uma resposta breve do Estado brasileiro em favor da promoção da justiça", defendem os órgãos, que dirigem sua pressão diretamente ao Supremo Tribunal Federal. "A Suprema Corte brasileira, ao conformar a aplicação da Lei de Anistia e da prescrição penal às normas vinculantes do direito internacional e às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ajustará o Brasil ao parâmetro adotado por todos os Estados da América Latina que passaram por ditaduras ou conflitos internos durante os anos setenta e oitenta".


O Globo: Memorando da CIA sugere que Geisel soube e autorizou execuções de presos políticos

Memorando da agência americana para Kissinger diz que assassinato de opositores era política de Estado

Por Juliana Dal Piva e Daniel Salgado, de O Globo

Documento de um ex-diretor da CIA para o então secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger, de 11 de abril de 1974, afirma que o então presidente Ernesto Geisel sabia da execução de 104 opositores da ditadura militar durante o governo Médici. O texto afirma que ele autorizou que as execuções continuassem, como política de Estado, com apoio do general João Figueiredo, então chefe do SNI, que o sucederia na Presidência, em 1979. O memorando foi encontrado pelo pesquisador Matias Spektor, da Fundação Getulio Vargas, que o classificou como “o documento mais perturbador” que leu em 20 anos de pesquisa. Em nota, o Exército informou que os documentos relativos ao período foram destruídos.

 

Um memorando feito pelo ex-diretor da CIA William Colby, em 11 de abril de 1974, e destinado ao então Secretário de Estado dos Estados Unidos, Henry Kissinger, descreveu como o ex-presidente Ernesto Geisel soube do assassinato de 104 opositores políticos e autorizou que as execuções dos presos continuassem como forma de política de Estado. O documento foi localizado ontem pelo pesquisador de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV) Matias Spektor. Para ele, o memorando é a evidência mais direta já encontrada do envolvimento dos ex-presidentes Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo com a política de assassinatos.

— Este é o documento secreto mais perturbador que já li em 20 anos de pesquisa — afirmou Matias Spektor.

No ofício, Colby descreve um encontro ocorrido em 30 de março de 1974, 15 dias após a posse de Geisel. Na ocasião, além do presidente, estavam presentes três generais que lideravam o combate armado aos opositores. Entre eles, Milton Tavares de Souza e Confúcio Danton de Paula Avelino, respectivamente os chefes de saída e chegada do Centro de Inteligência do Exército (CIE). No encontro, também estava o general João Baptista Figueiredo, chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI). Figueiredo sucedeu a Geisel em 1979.

EXÉRCITO: DOCUMENTOS FORAM DESTRUÍDOS
Segundo o memorando da CIA, o general Milton Tavares de Souza informou a Geisel, na reunião, a execução sumária de 104 pessoas feita pelo CIE durante o governo de seu antecessor, o presidente Emílio Garrastazu Médici. Em seguida, o chefe do CIE pediu autorização para que os militares continuassem a “política” de extermínio no novo governo.

Segundo Colby, o general Milton Tavares “enfatizou que o Brasil não poderia ignorar a ameaça subversiva e terrorista, e métodos extralegais deveriam continuar a ser empregados contra subversivos perigosos”. Mais adiante, completou: “A este respeito, o general Milton disse que cerca de 104 pessoas nesta categoria foram sumariamente executadas pela CIE durante pouco mais de um ano (1973), aproximadamente. Figueiredo apoiou essa política e insistiu em sua continuidade”.

Na reunião, Geisel pediu para pensar durante o fim de semana sobre a continuidade da “política”. O memorando da CIA informa que, em 1º de abril, o presidente disse ao general Figueiredo que a “política deveria continuar”. No entanto, Geisel orientou que “apenas subversivos perigosos fossem executados”. Ele e Figueiredo concordaram que todas as execuções deveriam ser então aprovadas pelo então chefe do SNI. “Quando a CIE prender uma pessoa que possa se enquadrar nessa categoria, o chefe da CIE consultará o general Figueiredo, cuja aprovação deve ser dada antes que a pessoa seja executada. O presidente e o general Figueiredo também concordaram que a CIE deve dedicar quase todo o seu esforço à subversão interna, e que o esforço geral da CIE será coordenado pelo General Figueiredo”, descreve o documento.

O Exército afirmou ontem em nota que os documentos não existem mais: “O Centro de Comunicação Social do Exército informa que os documentos sigilosos, relativos ao período em questão e que eventualmente pudessem comprovar a veracidade dos fatos narrados, foram destruídos, de acordo com as normas existentes à época — Regulamento da Salvaguarda de Assuntos Sigilosos (RSAS)”.

Segundo a rede do governo americano onde esses documentos estão sendo disponibilizados desde 2015, uma cópia do memorando vai ser entregue ao Secretário de Estado Adjunto para Assuntos Interamericanos. Atualmente, apenas a descrição do conteúdo do arquivo está disponível no site dos documentos históricos americanos. O original ainda está guardado na CIA. Na leitura, é possível reparar que o primeiro e o quinto parágrafos do memorando continuam secretos e não foram divulgados.

O CIE tinha alta influência na cúpula do regime, pois era uma estrutura do próprio gabinete Afinados. Geisel (à esquerda) determinou que execuções deveriam ser aprovadas pelo general João Figueiredo do ministro do Exército. Até a posse de Geisel, o cargo era ocupado por seu irmão, Orlando. Depois, foi nomeado o general Vicente de Paulo Dale Coutinho. Desde a criação pelo regime em 1967, o CIE tinha sede no Rio. Quando Geisel chegou ao Palácio do Planalto, em 1974, o escritório foi transferido para Brasília.

Antes do memorando da CIA, as únicas informações existentes de que os ex-presidentes militares sabiam e autorizaram execuções eram dois diálogos publicados pelo jornalista Elio Gaspari na coleção “Ditadura”, da editora Intrínseca. No terceiro volume, “A ditadura derrotada”, Gaspari registrou uma conversa entre Geisel e Dale Coutinho, em 14 de fevereiro de 1974.

Na ocasião, ambos afirmam que o Brasil só se tornou um “oásis” para investidores depois que os militares “começaram a matar”. Na conversa, Coutinho diz a Geisel: “Agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando nós começamos a matar”. O presidente concorda: “Porque antigamente você prendia o sujeito e o sujeito ia lá para fora. [...] Ó Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser”.

Gaspari também relata outro diálogo ocorrido, em janeiro de 1974, entre o tenente-coronel Germano Pedrozo e o presidente Geisel. Eles falavam sobre um grupo de pessoas presas no Paraná e que vinham do Chile, passando pela Argentina. Geisel questiona Pedrozo: “E não liquidaram, não?”. Pedrozo então confirma as execuções: “Ah, já, há muito tempo. É o problema, não é? Tem elemento que não adianta deixar vivo, aprontando. Infelizmente, é o tipo da guerra suja em que, se não se lutar com as mesmas armas deles, se perde. Eles não têm o mínimo escrúpulo.” O presidente, depois, completa: “É, o que tem que fazer é que tem que nessa hora agir com muita inteligência, para não ficar vestígio nessa coisa”.

Entre 1972 e 1973, a Comissão Nacional da Verdade identificou 138 vítimas, 69 em cada ano. Esse número inclui tanto os mortos oficiais como os chamados desaparecidos políticos, que, depois do governo Geisel, chegaram a um total de 53 só em 1974. Ao todo, durante os 21 anos da ditadura as vítimas fatais chegaram a 434, sendo 208 desaparecidos.

Alguns episódios ficaram conhecidos pelo grau de crueldade usado contra os opositores. Em janeiro de 1973, no município de Paulista, em Pernambuco, ocorreu a “Chacina da Chácara de São Bento”. O caso levou à execução de seis integrantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). O grupo foi denunciado por José Anselmo dos Santos, conhecido como cabo Anselmo, que agia como agente duplo das Forças Armadas dentro da organização e deu informações até sobre sua então companheira Soledad Barret Viedma.

No período, muitas mortes também ocorreram durante a chamada Guerrilha do Araguaia. Entre 1972 e 1974, as Forças Armadas fizeram incursões no Pará para eliminar integrantes do PCdoB. Nessas operações, mais de 70 guerrilheiros desapareceram ou foram mortos após os confrontos com os agentes do Exército, que chegou a usar bombas de napalm contra os revolucionários.


El País: Documento da CIA relata que cúpula do Governo militar brasileiro autorizou execuções

Memorando de 1974 descreve "decisão de Geisel de continuar com execuções sumárias". General relata que cerca de 104 pessoas foram "executadas sumariamente" em um ano

Por Rodolfo Borges, do El País

"Assunto: 'Decisão do presidente brasileiro, Ernesto Geisel, de continuar com as execuções sumárias de subversivos perigosos, sob certas condições", diz um memorando de 11 de abril de 1974 enviado pelo diretor da CIA, a agência de inteligência norte-americana, para o então secretário de Estado Henry Kissinger. O documento, revelado pelo Bureau of Public Affairs do Departamento de Estado dos Estados Unidos, expõe que a cúpula do Governo militar brasileiro (1964-1985) sabia sobre as ações de exceção tomadas contra adversários do regime.

"Este é o documento secreto mais perturbador que já li em vinte anos de pesquisa", descreveu o pesquisador Matias Spektor, coordenador do Centro de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas. Spektor chamou atenção nesta quinta-feira para relatos disponibilizados pelo Governo norte-americano. O relatório começa descrevendo encontro de 30 de março de 1974 entre o então presidente Ernesto Geisel, o general Milton Tavares de Souza e o general Confúcio Danton de Paula Avelino, "respectivamente o ex-chefe e o novo chefe do Centro de Inteligência do Exército (CIE)", na descrição do próprio relatório. "Também estava presente o general João Baptista Figueiredo, chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI)" e futuro presidente do país.

Segundo Spektor, o relato foi tornado público em 2015 e faz parte da política regular de abertura de fonte primária do Departamento de Estado. O relatório registra que o general Milton foi quem mais falou na mencionada reunião. "Descreveu o trabalho do CIE contra a subversão interna durante a administração do ex-presidente Emílio Garrastazu Médici. Ele enfatizou que o Brasil não pode ignorar a ameaça subversiva e terrorista, e afirmou que métodos extralegais deveriam continuar a ser empregados contra subversivos perigosos", diz o documento antes de chegar em seu trecho mais dramático: "Nesse sentido, o general Milton relatou que cerca de 104 pessoas, nessa categoria, haviam sido executadas sumariamente pelo CIE durante o último ano, ou pouco mais de um ano. Figueiredo apoiou essa política e defendeu sua continuidade".

Ainda segundo o relatório, que pode ser acessado pelo site do Departamento de Estado, "o presidente [Geisel], que comentou a seriedade e aspectos potencialmente prejudiciais dessa política, disse que queria refletir sobre o assunto durante o fim de semana, antes de tomar qualquer decisão sobre a sua continuidade". No dia 1º de abril, Geisel "informou ao general Figueiredo que a política deveria continuar, mas que extremo cuidado deveria ser tomado para assegurar que apenas subversivos perigosos fossem executados".

"O presidente e o general Figueiredo concordaram que, quando o CIE detivesse uma pessoa que poderia ser enquadrado nessa categoria, o chefe do CIE deveria consultar o general Figueiredo, cuja aprovação deveria ser dada antes que a pessoa fosse executada", segue o relatório, cuja última mensagem disponível diz que "o presidente e o general Figueiredo também concordaram que o CIE deve dedicar-se quase exclusivamente a combater a subversão interna, e que a atuação do CIE, em geral, deve ser coordenada pela general Figueiredo". Apesar de o sigilo do documento ter caído, dois parágrafos que somam no total 19 linhas foram mantidos em segredo.

Para Spektor, que topou com o registro enquanto pesquisava outros assuntos, o memorando é "prova do envolvimento do regime militar na política de execuções sumárias de inimigos do regime". Ela se soma a evidências já existentes, como a gravação revelada pelo jornalista Elio Gaspari em que Geisel dá luz verde para a repressão à guerrilha no Araguaia e o depoimento em que um general francês descreveu a uma historiadora a ocasião em que Figueiredo o levou para acompanhar uma sessão de tortura. Segundo o pesquisador, "o relato mostra a importância de as autoridades brasileiras também abrirem os seus arquivos".

 


Míriam Leitão: O dia que inventou a noite

Falsificadores de passado inventam virtudes para a ditadura de 64

Foi exatamente há 54 anos que começou a noite de 21 anos sobre o Brasil. Hoje, mais de meio século depois, o país que guarda mal sua memória é vulnerável aos falsificadores de passado e vai se espalhando a ideia de que foi um tempo sem corrupção, com segurança e com crescimento econômico. Não é verdade, na ditadura houve corrupção sem apuração e crise econômica.
É triste ter que recontar os ocorridos daqueles anos do regime militar como se fosse preciso ainda convencer de que houve o que houve. Tortura, morte, desaparecimentos políticos, exílio, censura, cassação de mandatos de parlamentares pelo crime de opinião, aposentadoria forçada de ministros do Supremo e catedráticos, proibição de que estudantes frequentassem a universidade, suspensão do direito de reunião e manifestação, anulação do habeas corpus e de outros direitos constitucionais, fim das eleições diretas para presidente, governadores e prefeitos das principais cidades. Era um tempo horrível.
Hoje há um esforço deliberado de se reescrever esse passado com mentiras para convencer os jovens de que aquele foi um tempo de paz interna, contestada apenas por alguns poucos “comunistas”. Há um grupo que inclusive escolheu como seu líder o torturador símbolo Brilhante Ustra, proclamado herói de certo candidato. Houve recentemente até um assessor do candidato que propôs que as versões do torturador e de seus torturados são equivalentes. Qual dos dois lados falou a verdade? Perguntou. Ora, ora. É preciso poupar-se de todos os fatos ocorridos para ter essa dúvida, inclusive a evidência de que 40 dos torturados morreram no Doi-Codi de São Paulo comandado por Ustra. Se morreram, não foi por bons tratos.

É triste ter que voltar mais de meio século e recontar a história como a história foi, para ter que lutar de novo contra a narrativa dos militares daquele tempo construída com censura à imprensa. Deveríamos estar inteiramente dedicados a pensar o futuro e a superar os muitos desafios do presente. Nossa democracia é imperfeita, passa por crises e isso cria o ambiente fértil para se edulcorar esse passado, desprezível em todos os aspectos.
Na democracia ideal muita coisa que nos acontece hoje não deveria estar ocorrendo. Não haveria tiros ou pressões contra a caravana de um candidato, como acaba de acontecer com Lula. As decisões da Justiça seriam entendidas como decisões da Justiça, e não como golpe. O foro privilegiado não deveria ser o escudo no qual bandidos se abrigam. Não se discutiria se um condenado em dupla instância deveria ou não cumprir pena. Não haveria cenas de pugilato verbal no Supremo. Principalmente não ocorreria o assassinato de uma jovem e promissora vereadora no mesmo centro do Rio, onde, na ditadura, foi morto o jovem Edson Luís há 50 anos.
Em qualquer democracia há divisões. É da natureza das democracias serem cheias de diversidade. O pensamento único só cabe numa ditadura em que as vozes discordantes são caladas pela violência política. Mas é doloroso ver que os debates naturais se transformaram em agressões grotescas entre grupos que têm projetos e versões diferentes. Mas será na democracia que corrigiremos seus erros e temos tido muitos progressos, como o de, pela primeira vez na história, o país estar enfrentando a corrupção com extrema coragem.
O dia 31 de março, há 54 anos, inventou uma noite que durou duas décadas. Nela não era possível divergir, combater os crimes de poderosos, protestar contra a crise econômica. No começo da década de 1980, nos últimos anos daquela noite, o Brasil estava quebrado, com dívida externa impagável, em recessão, desemprego alto, a inflação subia estimulada pela correção monetária criada nos governos militares. Foi a democracia que tirou o país desse buraco, desarmou a bomba inflacionária, renegociou e pagou a dívida. Precisou de 10 anos para superar esse difícil legado. Nos anos seguintes, a democracia se dedicou a resgatar brasileiros da pobreza extrema.
Os dias podem nascer nublados, chuvosos ou ensolarados. Mas é neles que o país construirá o futuro. Mesmo que pareça tão desconcertante e difícil o tempo atual. A noite, aquela noite, passou. E tem que ficar no passado.
* Foi o ministro Celso de Mello que votou pela prisão domiciliar de Jorge Picciani, e não Ricardo Lewandowski.

Fernando Gabeira: Uma fronteira com a tirania  

Cai ou não cai, o cara? O que é que vai acontecer por lá? As perguntas se sucedem nas ruas e não consigo respondê-las a contento. Não importa, também não há assim grande tensão nas perguntas. Se Temer cai, haverá apenas uma troca de seis por meia dúzia, parecem dizer. Todos pressentem um período medíocre, incapaz de provocar grandes paixões. Há quorum, falta quorum? Que interesse há nisso, uma vez que os deputados já fizeram suas apostas em cargos e emendas? E vão esperar um outro momento em que Temer se sinta com a corda no pescoço.

As pesquisas indicam que 81% dos entrevistados querem que a investigação sobre Temer prossiga, com todas as suas consequências. Mas essa mesma correlação de forças não se repete no Congresso. A opinião pública é refém dos eleitos, e eles se acham seguros para negociar. Ainda não se convenceram de que uma catástrofe eleitoral os espera.

Mesmo num quadro tão negativo, é possível se encontrar um certo alento. Se Dilma estivesse no governo, seria uma semana dura.

No auge de uma crise prolongada, mais de uma centenas de mortos nas ruas, a Venezuela entra numa ditadura: um fanfarrão de camisa vermelha dança “Despacito” e baixa o pau nos opositores. Pensei que a esquerda brasileira, na maré baixa, fosse mais discreta. Mas alguns dos seus partidos manifestaram seu apoio a Nicolás Maduro. Isso revela que, no fundo, o modelo bolivariano ainda a atrai. Está implícito em certas bandeiras, como no projeto de controle da imprensa.

Os projetos comuns no Brasil, como uma refinaria em Pernambuco, acabaram sendo um fardo para o Brasil. Chávez tirou o corpo fora e, no âmbito nacional, a corrupção correu solta. O governo petista mandou a Odebrecht que, para não perder a viagem, pagou US$ 9 milhões de propina à cúpula chavista, segundo a procuradora Luisa Ortega. A reeleição de Hugo Chávez contou com um decisivo apoio petista, somado à grana da Odebrecht, que, na verdade, era a grana do BNDES. Essa campanha foi narrada por João Santana e Mônica Moura e foi orçada em US$ 35 milhões.

Incapaz de compreender seus erros internos, parte substancial da esquerda brasileira mergulha nos erros alheios e defende um regime autoritário, violento e isolado internacionalmente.

O Brasil nunca seria uma Venezuela, talvez pudesse chegar perto se a crise avançasse. No entanto, a tentação de avançar nesse rumo não abandonou a esquerda e agora, com a queda de Dilma, ficou mais evidente por que o PT radicalizou.

O controle do Congresso, na base de cargos e verbas, é uma tática que se desdobra até hoje. Mas não é 100% eficaz em momentos dramáticos. O chamado controle social da mídia nunca foi palatável até para os aliados do governo petista. A única saída foi construir uma rede de apoios com blogs e guerrilha digital.

Resta outro ponto, presente na experiência da Venezuela, que jamais aconteceria no Brasil: o apoio das Forças Armadas. Sem esse apoio, o próprio Maduro já teria ido para o espaço.

Dilma pode ter sentido uma tentação de acionar os militares. Mas os sinais que vinham de lá eram desalentadores para um projeto de esquerda.

Apesar de ressaltar seus laços ideológicos e programáticos com o chavismo, no Brasil a esquerda não é protagonista no drama que se desenrola. Ela apenas é um ponto de apoio de um regime brutal. As lentes ideológicas de nada servem para tratar dos problemas que surgem com o mergulho da Venezuela numa ditadura.

Temos fronteiras comuns. Embora num nível menor do que na Colômbia, refugiados chegam em levas maiores em Pacaraima. Já temos um problema social na região. Roraima depende da energia produzida na Venezuela. Talvez seja necessário pensar em alternativas mesmo porque os constantes apagões são um aviso.

O território dos ianomâmi atravessa os dois países. Na década de 1990, chegamos a formar comissão mista Brasil-Venezuela para discutir uma política comum para os ianomâmi. Mas naquele tempo, ainda que imperfeitos, havia parlamentos com espaço para essa discussão.

Nas últimas viagens que fiz à fronteira, voltei com uma sensação de que era preciso uma avaliação do Brasil em face do novo momento. Um cenário provável é que a ditadura de Nicolás Maduro, produzindo mortes diárias, vai ser um tema global tratado na própria ONU.

No momento em grandes atores entram em cena, seria bom que o Brasil soubesse o que quer e o que precisa fazer. Caso contrário, seremos engolfados por uma política internacional sobre um tema que envolve, de uma certa forma, o nosso próprio território.

Não importa se Temer, Maia ou qualquer desses políticos assuma o comando, muito menos se o período é de desesperança. Escapamos, por exemplo, de ver um governo, em nome do Brasil, apoiar o golpe de Maduro e recitar a cantinela da solidariedade continental contra a pressão da direita. Pelo menos disso, escapamos. Agora, o resto está bravo.


A ditadura escancarada e o PT

Se a alguém ainda restavam dúvidas sobre qual é a definição mais adequada a respeito do regime comandado por Nicolás Maduro na Venezuela, elas se dissiparam nas últimas horas. A famigerada convocação, nos termos inconstitucionais em que foi feita, de uma nova Assembleia Nacional Constituinte cujo maior objetivo é afrontar um Parlamento legitimamente eleito e de maioria opositora, o recrudescimento da repressão violenta às manifestações populares contra o presidente e as detenções dos líderes oposicionistas Leopoldo López e Antonio Ledezma, que cumpriam prisão domiciliar e agora voltam à cadeia sem qualquer justificativa legal, revelam de forma categórica que já não há margem para relativismos quando se fala sobre o governo venezuelano. Trata-se de uma ditadura escancarada, um regime autoritário e violento, uma tirania que reprime protestos democráticos, censura a imprensa independente, interfere nos demais Poderes da República e prende adversários políticos.

A ditadura de Maduro está efetivamente instalada e, se ainda não se transformou em um regime totalitário, isso se deve unicamente à forte e corajosa reação de uma parcela amplamente majoritária da sociedade venezuelana, que vem lutando nas ruas pela liberdade e contra o arbítrio. Documentos obtidos pela Organização dos Estados Americanos (OEA) que devem servir como base para uma eventual denúncia de crimes contra a humanidade cometidos pelo regime apontam que o país tem nada menos que 440 presos políticos, o maior número desde o fim do período militar de Marcos Pérez Jiménez, entre 1952 e 1958. Segundo a procuradora-geral da Venezuela, Luísa Ortega, que já foi próxima do bolivarianismo e hoje é demonizada e perseguida pelos governistas, mais de 120 pessoas morreram e quase 2 mil se feriram desde a eclosão dos protestos de rua. Somente no último fim de semana, em que se realizou a farsa da votação da Constituinte, ao menos 15 pessoas perderam a vida. Além do Brasil, que se manifestou com firmeza contra a ditadura de Maduro, países como Estados Unidos, Espanha, Argentina, México, Colômbia, Peru, Paraguai, Panamá, Costa Rica, Chile e Canadá anunciaram que não reconhecem a legitimidade da eleição e solicitaram que a nova Assembleia Constituinte não seja instalada.

Lamentavelmente, alguns setores da esquerda mundo afora, e também muito especialmente no Brasil, defendem abertamente a ditadura venezuelana. Em notas oficiais, PT, PCdoB e PSOL tiraram a máscara e desnudaram sua verdadeira face ao apoiar declaradamente um regime responsável por tamanha atrocidade. Muitos de nós, do campo da esquerda, que cometemos equívocos históricos no passado – entre os quais a ausência de uma visão democrática, certamente a principal causa da derrota do socialismo real –, fizemos uma profunda autocrítica a partir da qual a democracia passou a ser compreendida como valor universal e inegociável. Infelizmente, alguns grupos que se dizem progressistas e participaram da luta contra a ditadura militar no Brasil agora condescendem ou mesmo apoiam o regime autoritário venezuelano. Talvez seja este o pior legado do lulopetismo – uma herança mais grave e perversa, inclusive, do que a própria corrupção.

De certa forma, esses setores mais atrasados da esquerda, que contemporizam com ditaduras desde que elas estejam alinhadas com determinado viés ideológico, são responsáveis pelo fortalecimento de um segmento igualmente populista e reacionário, mas de uma extrema-direita que defende não só a ditadura militar instalada por mais de duas décadas no Brasil, mas as torturas por ela praticadas naquele período de triste memória. Essas forças, que aparentemente se contrapõem nos extremos do espectro político, acabam, na verdade, por se retroalimentar e devem ser combatidas com altivez por todos aqueles comprometidos com os valores democráticos.

É por isso que o PPS, já há muito, defende a unidade de todas as forças democráticas para que, nas eleições de 2018, seja oferecida aos brasileiros uma alternativa fora da nefasta polarização entre uma esquerda atrasada que tanto mal causou ao país nos últimos 13 anos e uma extrema-direita de corte claramente fascista. A construção desse projeto para o Brasil se faz ainda mais necessária neste momento, sobretudo quando observamos o desastre que tomou conta da Venezuela após tantos desmandos perpetrados por governos populistas e antidemocráticos.

Aos irmãos venezuelanos, toda a solidariedade e o apoio para que resistam, derrotem a ditadura e se reencontrem com a liberdade. Ao PT e seus satélites, fica apenas a nossa indignação. O lulopetismo envergonha o Brasil novamente, desta vez por se associar a uma tirania sanguinária e cruel.

 

 


Roberto Freire: O silêncio conivente sobre a Venezuela

A escalada autoritária do governo da Venezuela sob o comando de Nicolás Maduro, líder de um regime marcado pela supressão das liberdades civis e perseguição aos adversários políticos, é motivo de grande preocupação para os democratas latino-americanos e toda a comunidade internacional. Lamentavelmente, está claro que foram rompidos todos os limites institucionais que ainda sustentavam um modelo minimamente democrático naquele país. O que existe hoje é uma ditadura escancarada que mantém presos políticos, sufoca manifestações populares com violência policial e domina amplamente o Judiciário, impedindo a necessária independência entre os Poderes da República.

Diante de um cenário gravíssimo e de tamanha afronta à democracia, é estarrecedor o silêncio conivente de alguns países da região em relação ao desastre promovido pelo governo chavista. Participei recentemente de uma reunião no Parlamento do Mercosul (Parlasul), em Montevidéu, e constatei uma posição claramente pró-Maduro por parte da Mesa Diretora do órgão. O que se nota é uma tentativa velada de se fugir do debate ou, quando isso não é possível, de impor uma abordagem superficial, tímida e acanhada a respeito do tema, visando a escamotear a discussão.

É bom lembrar, afinal, que o Mercosul foi fundado por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai – nações que experimentaram o horror das ditaduras e, uma vez que recuperaram suas democracias, deram início a um virtuoso processo de integração regional. Fruto da ação desses governos democráticos estabelecidos após o fim do período autoritário, o Parlasul também é resultado concreto, portanto, da própria democracia. Esta é mais uma razão pela qual causa estranheza e desalento o fato de o órgão legislativo regional se omitir em uma questão tão urgente.

A ditadura venezuelana causa indignação em todo o mundo democrático, responsável que é por quase uma centena de mortes na repressão violenta aos protestos contra o regime, mas nada disso parece sensibilizar alguns integrantes do Parlasul que se calam diante da barbárie e do sofrimento dos nossos irmãos venezuelanos. Recordemos que o Mercosul, por sua vez, teve uma posição afirmativa e decidiu suspender a Venezuela do bloco por não respeitar a cláusula democrática, ao contrário da postura leniente do Parlasul.

Na semana passada, um jovem de 22 anos foi brutalmente assassinado pelas forças de segurança ao participar de um protesto em Caracas. Dias depois, o mundo acompanhou um vídeo divulgado pela ativista Lílian Tintori em que é possível ouvir os gritos desesperados de seu marido, o líder opositor Leopoldo López, preso político há mais de três anos, denunciando as torturas e agressões das quais é vítima em uma prisão militar.

Como se não bastasse tamanha crueldade, a liberdade de imprensa – um dos pilares básicos da democracia – também tem sido permanentemente atacada pelo governo de Maduro. Segundo o principal sindicato de jornalistas do país, nada menos que 376 profissionais foram agredidos entre 31 de março e 24 de junho deste ano, com 238 casos documentados, a maioria deles vítimas de militares ou policiais. Ao todo, já são contabilizadas 33 detenções flagrantemente ilegais de jornalistas. De acordo com o Ministério Público, o número de mortos já passa de 80 e há mais de mil feridos.

O perturbador silêncio do Parlasul em relação ao recrudescimento da ditadura venezuelana causa perplexidade em todos os que defendemos a democracia, a liberdade e o pleno funcionamento das instituições republicanas. É estupefaciente que alguns dos deputados e senadores que hoje se abstêm de condenar o regime de Maduro, inclusive brasileiros, tenham lutado contra o autoritarismo em seus países.

Mais do que nunca, é necessária uma firme e inequívoca posição do bloco e dos demais países do continente no repúdio veemente ao regime de exceção que está levando a Venezuela ao abismo. A crise só será resolvida a partir da imediata libertação dos presos políticos e do cumprimento de um calendário eleitoral. A democracia, a liberdade e a paz são valores inegociáveis, e os venezuelanos devem recuperá-los o mais rápido possível. Não podemos tergiversar. Não vamos nos calar. (Diário do Poder – 29/06/2017)

* Roberto Freire é deputado federal por São Paulo e presidente nacional do PPS

Fonte: http://www.diariodopoder.com.br/artigo.php?i=55348541946