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Benito Salomão: O keynesianismo envergonhado de Paulo Guedes

O Brasil da segunda metade da década de 2010 tinha uma agenda econômica clara, interromper a trajetória explosiva da dívida pública e ao menos equilibrar o orçamento primário da União em déficit desde 2014. Inúmeras medidas foram empreendidas neste sentido, porém no meio do caminho, houve uma eleição. O projeto vencedor nas urnas prometeu zerar o déficit primário já no primeiro ano de governo. Justiça seja feita, o déficit não foi zerado, mas houve uma redução em termos reais dos R$136 bilhões em de 2018, para cerca de R$85 bi, em 2019. Não é pouca coisa, no contexto de estagnação da economia e de crescimento compulsório do gasto público obrigatório.

Mas veio a pandemia e com ela a necessidade de ampliar o gasto. Muitos atribuem tal expansão fiscal ao célebre economista britânico John Maynard Keynes que jamais escreveu sobre isto em sua Teoria Geral de 1936. Porém, o governo brasileiro e dentro dele, a equipe econômica, preferiram subestimar a doença por vias de uma coleção de falas infelizes como “com qualquer R$5 bilhões a gente aniquila com o Coronavírus”. Gastaram R$524 bilhões e o país entrou em colapso sanitário.

Até o presente momento, a Pandemia trouxe a óbito cerca de 3,1 milhões de pessoas em todo o mundo. No Brasil, que deve passar os Estados Unidos em número de mortos nos próximos meses, até o presente momento morreram cerca de 392 mil pessoas. Apenas a título de comparação, a guerra civil na Síria que completou 10 anos no último dia 15/03, fez cerca de 388 mil vítimas segundo o Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH). O COVID-19 no Brasil matou mais em pouco mais de 14 meses do que o maior conflito civil do nosso tempo matou em 10 anos.

Trata-se, portanto, de um contexto de guerra, sem escombros, mas com muitas vítimas. E não se faz ajuste fiscal em guerras. Nestes contextos, o orçamento precisa proteger as pessoas. O Brasil não pode ser acusado de não ter gastado durante a pandemia. Segundo o Tesouro, a soma gasta exclusivamente com despesas relacionadas ao combate do COVID-19 em 2020 foi R$524 bilhões, pouco mais de 7% do PIB. Em comparações internacionais o Brasil gastou mais do que países como Israel (6,1% do PIB), Dinamarca (5,1%) e Noruega (4,35%). Mas mesmo com todo esforço fiscal, o país não evitou a hecatombe humanitária que levou a colapso os sistemas público e privado em todo o território nacional.

O problema não é a falta de gasto, mas sim a eficiência do mesmo. Gastou-se muito, porém gastou-se mal. Ao final do processo o país terá um enorme passivo fiscal e um gigantesco trauma humanitário. Por dois anos seguidos, o Estado do Amazonas foi acometido por um enorme caos sanitário. A pergunta é, por que a região norte do país não teve seu acesso limitado de forma preventiva (exceto para a chegada de suprimentos) durante a primeira onda, antes que o caos se instalasse? Uma região de amplo território com pequenas populações demasiadamente espalhadas em localidades de difícil acesso. Não seria muito mais eficiente, em termos sanitários e financeiros, impedir (ou postergar) que o vírus lá chegasse, do que levar atendimento médico e estrutura hospitalar depois que a situação já era grave? Enquanto isso os esforços e recursos seriam direcionados para as periferias dos grandes centros do Sudeste, por onde a doença entrou no país e se mostrou igualmente grave.

Olhando para o orçamento direcionado ao COVID-19 em 2020 no Gráfico 1, o principal item de gasto foi o auxílio emergencial, pago em 9 parcelas que ao final custou R$293 bilhões ao Tesouro. Se o governo tivesse pago por 4 meses, um auxílio de R$1000 mensais o impacto fiscal teria sido de R$256 bilhões. Se isto fosse vinculado às medidas de isolamento social, auxiliando a federação na implementação de um lockdown verdadeiro, com cerca de 2 meses de duração, mais 2 meses para reabertura das economias em etapas, quantas mortes seriam evitadas no auge da primeira onda da doença? Tudo isso sem falar o descaso absoluto da União para com a aquisição de vacinas, dos R$524 bilhões gastos ano passado, apenas R$2.2 bi foram gastos com a compra de imunizantes. Não fosse os esforços do Governo do Estado de São Paulo, a calamidade seria maior.

O descaso com a aquisição de vacinas está causando o prolongamento e ampliação da crise fiscal. Apenas para que se tenha a exata noção, o decreto que instituiu a calamidade pública do Coronavírus durou 288 dias. O custo fiscal diário da pandemia foi superior a R$1,8 bilhões. Com uma segunda onda ainda mais devastadora e possibilidade de uma terceira onda em 2021, o governo vai gastar, principalmente adquirindo vacinas, ou deixar o número de mortes ser a variável de ajuste, junto com a proliferação da pobreza e da fome? Este é o pior cenário possível para as contas públicas, primeiro porque o descontrole da pandemia no tempo vai exigir mais gastos por muito mais tempo, segundo porque isto leva a quarentenas intermitentes que derrubam a arrecadação. Ficaremos com a dívida e com os mortos.

Com isto, o ministro Paulo Guedes faz uma política “Keynesiana” um pouco constrangida, envergonhada e desconectada de objetivos claros. Este é o problema de servir o Governo sendo vinculado à ideologia. Vez ou outra a realidade cobra uma revisão intelectual dos nossos pressupostos. Max Weber previu o duro dilema do homem público que por vezes é posto diante da escolha entre a ética da responsabilidade e a ética da convicção. Se o país vive uma situação de guerra e o aumento temporário de despesas públicas é uma realidade impositiva, que a convicção seja posta de lado e a responsabilidade seja assumida. Afinal, o que se espera do resultado final do gasto público? O Brasil terá evitado mortes com estes gastos? Terá evitado falências? Terá fortalecido o SUS? E o day after da pandemia? Como o governo está se organizando para quando a pandemia acabar?

*Benito Salomão é economista.

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Maria Cristina Fernandes: A capitulação bandeirante

Previsão de déficit empurra Dória para reforma administrativa desgastante na Assembleia Legislativa

O governador de São Paulo liderou a resistência federativa à escalada obscurantista do presidente da República na pandemia. Jair Bolsonaro saía à rua beijando crianças, João Dória nunca aparecia sem máscara. Um dizia que o Brasil não podia parar, o outro pregava o confinamento. Contra a cloroquina federal, ergueu-se a ciência bandeirante.

Cinco meses depois do início da batalha contra o coronavírus, a capital paulista conseguiu derrubar para a metade o número de óbitos registrados no pico da doença. Ainda é cedo, porém, para se cantar vitória contra a covid-19. Não bastassem os ônibus e os bares lotados, o projeto de lei 529, enviado pelo governador em regime de urgência, caiu na Assembleia Legislativa como uma capitulação.

Enquanto o presidente foge de uma reforma administrativa e negocia com o Congresso uma claraboia sobre o teto de gastos para abrigar um programa que dê continuidade ao auxilio emergencial, os governadores estão acuados. Sem o bônus de popularidade com o qual o auxílio brindou Bolsonaro, preparam-se para enfrentar 2021 sem os repasses extras aprovados pelo Congresso e tendo que retomar o pagamento de suas dívidas, suspenso até dezembro.

Em São Paulo, a resposta foi um projeto que revira a administração pública de ponta-cabeça. Privatiza o zoológico e nove parques, extingue a empresa responsável pela coordenação do transporte de cinco regiões metropolitanas (EMTU), autarquias que cuidam da preservação ambiental (Instituto Florestal), da política agrária (Itesp), de criminalística (Imesc) e da administração de aeroportos (Daesp). Acaba ainda com a empresa de habitação (CDHU), com uma rendição explícita, na exposição de motivos, ao avanço do Minha Casa Minha Vida.

Depois de tanto se falar em reconversão industrial para aumentar a segurança nacional na produção de medicamentos e equipamentos hospitalares, o projeto extingue, numa canetada, a maior fabricante pública de remédios do país (Furp), a fundação de pesquisa de câncer (Oncocentro) e a autarquia das endemias (Sucen).

No mesmo dia que o projeto de Dória chegou à Assembleia, o prefeito e candidato à reeleição Bruno Covas decretou o enxugamento da Coordenadoria de Vigilância em Saúde (Covisa), um dos eixos do enfrentamento das epidemias na cidade. A portaria levou a uma carta aberta de seis ex-coordenadores do órgão, três dos quais, do PSDB.

O maior golpe no discurso pró-ciência com o qual os tucanos paulistas enfrentaram o presidente da República, no entanto, veio num dos capítulos do projeto de Doria que remete para o tesouro estadual o superávit das universidades e das fundações do Estado, entre elas, a de amparo à pesquisa (Fapesp), de onde saiu boa parte dos estudos sobre a pandemia.

No capítulo menos polêmico, mas nem por isso mais fácil de ser aprovado, o projeto reduz e unifica as isenções do ICMS em 18%, unifica a cobrança do IPVA em 4% (acabando o benefício para veículos de combustível limpo), aumenta o valor das contribuições para a rede de atendimento médico-hospitalar dos servidores (Iamspe), altera a cobrança da dívida ativa e sua securitização, e estabelece uma arbitragem para o valor de imóveis e doações sobre os quais incide o imposto de transmissão.

A amplitude do projeto desnorteou a Assembleia Legislativa. A reação predominante foi a de que o governo, ao reunir tantas iniciativas num único projeto, teve como objetivo “baratear” sua tramitação. Como o pedido de urgência abrevia os prazos, os deputados não teriam tempo para se aprofundar no debate e, pressionados, acabariam aprovando o projeto com poucas modificações.

A deputada Marina Helou (Rede), resume a queixa generalizada de que o prazo de emendas terminou sem que os parlamentares tivessem conhecimento dos dados e projeções que o lastreiam. Por mais sensíveis que estejam à situação financeira do Estado, resistem a votar no escuro.

Temem que, para enfrentar uma situação temporária, o governo faça mudanças estruturais que afetarão definitivamente a formulação de políticas públicas. Se, por um lado, as autarquias fomentam o corporativismo, por outro, são um anteparo às diatribes dos gestores de plantão.

Como secretário do Meio Ambiente em São Paulo, por exemplo, Ricardo Salles só não conseguiu fazer do cargo a antessala do desmonte que hoje promove na Esplanada por conta das autarquias da pasta. Foi este um dos argumentos que levou o governo paulista a mitigar o enxugamento da área.

Idealizador do projeto, o secretário Mauro Ricardo Costa, não descarta novos ajustes, mas desafia opositores a apresentar alternativas para o déficit de R$ 10,4 bilhões do orçamento do próximo ano. Atribui as pedras hoje jogadas contra o governo ao fato de São Paulo ter saído na frente com medidas de enxugamento que todos os Estados e municípios, diz, terão que tomar - “Estão todos quebrados, mas ainda não se atentaram”.

Titular de secretarias de fazenda e planejamento em quatro unidades da federação (São Paulo, Minas, Bahia e Paraná), a convite de gestores premidos por ajustes inadiáveis, Mauro Ricardo não teme protestos, nem mesmo depois de ter assistido ao centro cívico em Curitiba se transformar numa praça de guerra em 2015.

Resiste, por exemplo, a aceitar o argumento de que o financiamento das pesquisas científicas será afetado pela devolução do superávit das fundações ao tesouro. Diz que as fundações não podem pretender ficar com sobra de caixa acumulada para pesquisas de longo prazo quando a saúde, a educação e a segurança pública do Estado ameaçam colapsar. Prevê um desemprego resiliente a empurrar as famílias para escolas e hospitais públicos, além de pressionar indicadores de violência.

Espanta, por isso, que toda essa penúria só não afete os repasses para o Judiciário. O governo paulista conseguiu aprovar na Assembleia a destinação de um terço das taxas judiciárias (R$ 380 milhões) para o Tribunal de Justiça. A Câmara dos Deputados aprovou ontem crédito de R$ 200 milhões para a construção de novas sedes da Justiça Federal e do Ministério Público Federal nos Estados. É a locomotiva, em meio aos escombros, puxando a Federação a todo vapor.