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'O genocídio também pode ocorrer por omissão', afirmou Nísia Trindade

Morte de yanomami: garimpo é principal causa da crise e governo Bolsonaro foi omisso, diz ministra da Saúde

BBC News Brasil*

"Houve omissão em relação aos yanomami e outros povos", disse a ministra durante breve entrevista à BBC News Brasil, em Buenos Aires, capital da Argentina. Trindade acompanha a comitiva do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que está no país para uma visita ao presidente argentino, Alberto Fernández, e para participar de VII Cúpula dos Chefes de Estado da Comunidade Estados Latinoamericanos e Caribenhos (Celac).

Na entrevista, Trindade disse que os yanomamis estão em situação de desassistência e que o garimpo ilegal de ouro na região é a principal causa da crise de saúde que afeta a etnia que, no Brasil, vive entre os estados do Amazonas e de Roraima.

No sábado (21/1), Lula e sua equipe foram a Roraima após fotos de indígenas visivelmente subnutridos viralizarem na internet.

Assim como Lula, Nísia Trindade também classificou a situação dos yanomami como um tipo de genocídio. O termo foi usado por Lula ao se referir ao caso no final de semana.

"Eu vejo o abandono como uma forma de genocídio e essa população estava desassistida. O genocídio também pode ocorrer por omissão", afirmou.

Na entrevista, Nísia Trindade também afirmou que o debate para flexibilizar as regras para o aborto legalizado não será política do atual governo.

"Esse debate só pode acontecer no âmbito da sociedade. Não será uma política do Ministério da Saúde", disse a ministra.

Atualmente, o aborto só é permitido no Brasil em três circunstâncias: em caso de estupro; quando a gestação oferece risco à saúde da mulher; e nos casos de fetos anencefálicos.

Confira os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil - O governo decretou situação de emergência em saúde por conta da situação dos indígenas yanomami. Que medidas concretas serão tomadas a partir de agora?

Nísia Trindade - Essas medidas de emergência sanitária são adotadas em situação de calamidade por questões de saúde, seja uma epidemia ou por uma situação de um desastre natural . Neste caso, nós caracterizamos esse episódio como uma situação de desassistência. Isso significa que essa população está sem o devido cuidado por parte do Sistema Único de Saúde (SUS) e isso acontece por várias questões. Grande parte da razão por tudo isso está na desorganização social provocada pela atividade do garimpo ilegal. Essa atividade gera contaminação dos rios e cria escavações que geram depósitos de água em que há proliferação de mosquitos. Com isso, há um aumento muito grande nos casos de malária.

BBC News Brasil - A situação dos yanomami já vinha crítica. Como ela virou uma crise para o governo?

Trindade - Pelo menos desde a transição de governo, eu já vinha acompanhando esses sinais. Nós tivemos uma reunião com lideranças yanomami e com lideranças políticas. Nos foi colocada, também, uma questão sobre a possibilidade de desvio de medicamentos. Mas o grande detonador foi verificar a morte das crianças. Tive vários apelos, antes mesmo de assumir o ministério, para tentar ver a situação do transporte aéreo [para remover pacientes a áreas com melhor infraestrutura de saúde]. Havia crianças que estavam em condições de muita fragilidade e que não conseguiam atendimento apropriado.

BBC News Brasil - Para o governo é claro que a causa dessa crise é o garimpo?

Trindade - Eu posso afirmar que sim, como em todo processo de causalidade, este é um fenômeno multicausal. Então nós precisamos dar mais assistência. Assumi há 21 dias e encontrei o funcionamento da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) muito pouco voltada para essas ações. Um exemplo é a casa que dá acolhimento aos indígenas em Boa Vista. Ficou evidente que ela está em más condições. O garimpo causa essa desorganização social e gerou problemas de segurança, dificultando o acesso das nossas equipes de saúde às regiões em que há doentes.

BBC News Brasil - O ex-presidente Jair Bolsonaro rebateu as críticas que vinha recebendo sobre a saúde dos yanomami e classificou o caso como uma "farsa da esquerda". Como a senhora responde a essa alegação?

Trindade - A crise é evidente. É uma crise sobre a qual estamos fazendo um diagnóstico profundo, mas ela se revela em números, 500 crianças mortas. Por isso falamos de desassistência. Isso não é farsa. Isso são fatos.

BBC News Brasil - Na sua avaliação, houve omissão do governo passado em relação aos yanomami?

Trindade - Houve omissão em relação aos yanomami e a outros povos indígenas. Tanto é assim que, ainda como presidente da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), eu pude acompanhar uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) que apontou muitas falhas na proteção dos indígenas. Isso aconteceu não só com os yanomami, mas em outros povos e em relação à covid-19.

BBC News Brasil - O presidente Lula descreveu a situação de saúde dos yanomami como um "genocídio". A senhora acha que é caso de um genocídio?

Trindade - Eu vejo o abandono como uma forma de genocídio e essa população estava desassistida. O genocídio também pode ocorrer por omissão.

BBC News Brasil - Mudando de assunto, a senhora revogou uma portaria que alterou regra sobre os procedimentos para obtenção da interrupção de gravidez. Esse é um ponto muito sensível para a bancada evangélica. O governo teme retaliação por conta desse tipo de medida?

Trindade - Não há motivo para termos retaliação. Acho que uma retaliação em relação ao que eu fiz no Ministério da Saúde e ao que o governo do presidente Lula fez só ocorreria por uma falta de compreensão ou por uma visão distorcida dos fatos. O que nós fizemos foi respeitar o que a lei brasileira já define. Não há nenhuma flexibilização da legislação sobre o aborto. O que nós fizemos? Nós só alteramos a portaria que estava em vigor e que determinava que o médico teria que comunicar à autoridade policial a existência de uma busca pelo aborto por parte de uma mulher vítima de violência no Brasil.

BBC News Brasil - Parte do segmento evangélico afirma que, de alguma forma, a retirada dessa obrigação facilitaria o acesso ao aborto.

Trindade - Esse argumento é uma forma de não ver uma questão que é essencial: muitas vezes, as mulheres não fazem a denúncia porque é uma questão muito complexa para todas as pessoas, independentemente da religião. Muitas vezes, essa violência (sexual) é cometida no núcleo familiar. Isso cria uma dificuldade maior para essa mulher ou para essa menina e seus familiares. O que nós estamos fazendo é proteger a mulher, a menina e o próprio profissional de saúde.

BBC News Brasil - O atual governo foi e é apoiado por diversos movimentos que defendem uma ampliação das regras para o aborto. Nesta gestão, o Brasil vai caminhar para a flexibilização das condições em que o aborto é permitido?

Trindade - Esse debate só pode acontecer no âmbito da sociedade. Ele não será uma política do Ministério da Saúde. É um debate da sociedade, o Poder Legislativo. Não está definido no programa de governo do presidente Lula e os ministérios seguem esse programa.

BBC News Brasil - A senhora acha que a sociedade tem que debater este assunto?

Trindade - Eu acho que é um assunto que já está em debate. O que precisamos: dar espaço para as vozes em relação a esse tema; esclarecer; olhar pelo ângulo da saúde pública e; a sociedade tem que tomar suas definições. Sempre temos dito que a questão dos direitos reprodutivos e sexuais vai muito além da questão do aborto. Significa olhar para a saúde integral da mulher, protegê-la contra as violências, favorecê-la com projetos educacionais, etc.

Texto publicado originalmente na BBC News Brasil.


RPD || Reportagem Especial: Afeto e cuidado aumentam diversidade de configurações de famílias

Modelo tradicional passou a ser ocupado por concepções distintas de organização familiar

Cleomar Almeida

Cenas típicas de comerciais de margarina, com pai, mãe e filhos ao redor de uma mesa de café da manhã, já não refletem mais a realidade das famílias no Brasil e no mundo, já que, ao longo dos anos, o modelo tradicional passou a ser substituído por uma diversidade de novas composições. Todas elas são baseadas, sobretudo, no afeto e no cuidado entre as pessoas.

Em 1995, por exemplo, o modelo tradicional correspondia a 58% das famílias brasileiras. Dez anos depois, passou para 42%, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) que fez o levantamento mais recente. Por isso, formatos diferentes dele já são a maioria no Brasil.

Mulheres e homens sozinhos com filhos, pais divorciados que constituíram novas famílias e crianças adotadas por casais homoafetivos são algumas das configurações que se tornam cada vez mais comuns, apesar de ainda serem tratadas como tabu por parte da população.


Pai solo do bebê Henry, Tiago de Oliveira Costa, médico da Marinha do Brasil, decidiu por uma configuração familiar diferente do modelo tradicional
Foto: Álbum de família

Pai solo

O médico da Marinha do Brasil Tiago de Oliveira Costa, de 37 anos, é um dos que decidiram por uma configuração familiar diferente do modelo tradicional. Homossexual, ele é pai solo do bebê Henry, que nasceu em 17 de junho deste ano, depois de ser gestado no útero de barriga solidária de uma amiga dele.

O bebê nasceu depois de o material genético do médico ser inseminado artificialmente em óvulo de doadora anônima e transferido para o útero da amiga dele. Na modalidade de reprodução humana assistida escolhida por Costa, a gestante não é considerada mãe do bebê, e o pai genético torna-se o único responsável pelo recém-nascido logo após o parto. Por isso, o genitor é chamado de “pai solo”.

“Quando me entregaram o Henry no hospital, senti uma responsabilidade muito grande, porque passei a ser pai de uma criança. Foi uma mistura de sentimentos e medos, mas com felicidade única, em situação inédita e indescritível”, disse o médico, que mora em Brasília.

O psicanalista Alvarez Velloso, do Rio de Janeiro, explica que o novo sempre assusta porque desconstrói certezas. Foi assim com a entrada da mulher no mercado de trabalho e, mais tarde, com a lei do divórcio.

“Admitir que outros modelos de família são possíveis questiona a solidez da ‘minha’ concepção de família”, afirma. “É como se desvalorizasse. Mas varrê-los para baixo do tapete não é eficaz nem construtivo”, ressalta.

Alerta

A psicóloga e educadora sexual Ana Cristina Silva Fernandes, que atua em São Paulo, afirma que resumir a formação e a educação de crianças ao modelo que a família determina como adequado pode ser preocupante, a ponto de não prepará-las para respeitar outras configurações.

“Na prática, significa limitar a educação da criança à experiência daquela família, em vez de fazê-la pensar além de sua realidade”, explica Ana Cristina. “Isso não ajuda na construção de uma sociedade igualitária”, completa.

Apesar de ainda ser criança, Andressa Soares Rodrigues, de 9, já sabe lidar bem com a diversidade de configurações familiares na sociedade. Ela é filha biológica da empresária Rosane Portela Escórcio, de 35, e da advogada Cíntia Furquim, que recorreram ao sêmen de um doador anônimo para fertilização in vitro. A família mora em São Paulo.

Educada para o respeito à diversidade e acostumada à curiosidade alheia, a menina sempre se adianta: “Olha, eu não tenho pai. Ele não morreu. Tenho duas mães mesmo”, repete, sempre que é questionada sobre a ausência da figura paterna no seu dia a dia.

As mães de Andressa afirmam que nunca tiveram uma conversa formal sobre homossexualidade com a filha porque não consideram necessário neste momento, já que a menina nasceu e cresceu nesse contexto.

A terapeuta de família Denise Rodrigues Almeida ressalta a importância de a questão ser “tratada com naturalidade”. “De fato, o que a criança não pergunta provavelmente considera natural”, afirma a especialista.

Ela defende que os pais estejam preparados para tirar as dúvidas à medida que surgirem e recomenda construir as respostas junto dos filhos – o que vale para todos, não importa a configuração familiar.

Abordagem de que qualquer aspecto de gênero e sexualidade traga uma erotização precoce, como o amor entre dois homens ou duas mulheres, é considerado um equívoco 
Foto: Kathy Willens/Keystone

Na Justiça

Nesse contexto, cada vez mais arranjos não tradicionais são legitimados pela Justiça, a exemplo da paternidade socioafetiva, que vai muito além da figura do padrasto. Nos tribunais, é crescente a visão de que os laços de afeto são mais importantes que os genéticos.

No entanto, ainda há decisões judiciais que não acompanham as transformações sociais, abertas para novas configurações familiares, como viveu o médico Tiago Costa, pai de Henry.

Ele ainda luta na Justiça federal para reverter decisão da Marinha que negou pedido para concessão de licença-paternidade (20 dias) nos moldes da licença-maternidade (180 dias). O caso dele está na 9ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal (DF).

O médico diz que sua luta deve espelhar outros pais na mesma situação. “Estou brigando pelo filho de outros praças e oficiais que perderam a mulher ou companheiro e não têm com quem deixar a criança. A família monoparental é realidade. O mundo está em processo evolutivo, e a gente tem que acompanhar isso”, ressalta.

 


Não abordar gênero e sexualidade é equívoco, diz psicopedagoga

A psicopedagoga Quézia Bombonatto, conselheira da Associação Brasileira de Psicopedagogia, diz que as famílias temem que abordar qualquer aspecto de gênero e sexualidade (como o amor entre dois homens ou duas mulheres) traga uma erotização precoce. Segundo ela, no entanto, essa postura é um equívoco.

“Não é o fato de esclarecer algo que o transforma em uma ameaça”, diz Quézia “A escola apresenta as configurações existentes, a família orienta e compartilha suas crenças, mas a criança vai construir autonomia para fazer as próprias escolhas”, acrescenta.

Até a década de 1960, os papéis de gênero eram bastante definidos na organização familiar tradicional. O homem, provedor, trabalhava fora e não costumava se envolver em “assuntos domésticos”, como a criação dos filhos. Essa era a principal tarefa da mulher, a “rainha do lar”, que dava conta da faxina e da rotina das crianças. Os tempos são outros.

Em 2015, segundo a Pnad, as mulheres chefiavam 40% das famílias brasileiras. Por outro lado, se tem ganhado força a luta por equiparação de gêneros no mercado de trabalho tem se equiparado, os cuidados com a criança no dia a dia ainda passam longe de serem vistos como responsabilidade de todos.

Na família tradicional, em regra, a mãe é quem se responsabiliza pelos cuidados com a criança, em primeiro lugar
Foto: Elza Fiuza/Agência Brasil

Em regra, a mãe é quem se responsabiliza pelos cuidados com a criança, em primeiro lugar. Depois, essa tarefa é repassada a creche ou escola. Os pais aparecem em diferentes pesquisas somente na terceira posição.

Além disso, deixar as crianças com os avós é uma opção vista como menos estressante para os pais, segundo cientistas da Universidade de Melbourne (Austrália). Além de essa decisão ser mais barata e flexível que uma creche ou uma babá, os pais se sentem mais seguros porque compartilham a parte emocional com cuidadores familiares.

 “Nem sempre os avós ‘estragam’ as crianças”, diz a psicóloga Vera Zimmermann, coordenadora do Centro de Referência da Infância e Adolescência da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Eles podem ter disponibilidade para exercer a chamada ‘função paterna’, impondo regras e limites.”

A responsabilidade pela educação dos filhos não pode ser terceirizada, segundo especialistas. “Colocar uma criança no mundo não transforma os genitores em pais”, afirma o psicanalista Paulo Roberto Ceccarelli, de São Paulo. “Do ponto de vista psíquico, as famílias são sempre construídas e os filhos, sempre adotivos.”


Saiba mais sobre o autor
Cleomar Almeida é graduado em jornalismo, produziu conteúdo para Folha de S. Paulo, El País, Estadão e Revista Ensino Superior, como colaborador, além de ter sido repórter e colunista do O Popular (Goiânia). Recebeu menção honrosa do 34° Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e venceu prêmios de jornalismo de instituições como TRT, OAB, Detran e UFG. Atualmente, é coordenador de publicações da FAP.