Cristian Klein

Cristian Klein: Irritação dos militares é com o fracasso

Alvo é Gilmar Mendes, mas raiva da caserna é ver frustrado plano de mostrar independência em relação a Bolsonaro

Orientador de dissertações de mestrado e teses de doutorado defendidas por militares, o professor da UFRJ e da UFRRJ Francisco Teixeira costuma travar conversas semanais com um grupo de 11 ex-alunos - seis generais, um almirante e quatro coronéis, da ativa e da reserva.

Na mais nova polêmica, o Ministério da Defesa, como se sabe, protocolou uma representação na Procuradoria-Geral da República contra o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, que havia associado a atuação dos militares no Ministério da Saúde a um “genocídio”, devido às mortes na pandemia do novo coronavírus.

A fala ocorreu no fim de semana, mas ainda não foi digerida pelos oficiais. “Eles estão muito irritados por causa da palavrinha forte, genocídio, mas o gozado é que reconhecem que o negócio está errado”, conta Teixeira, que já lecionou na Escola Superior de Guerra (ESG) e na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme).

O “negócio”, em primeiro lugar, é a presença do general da ativa Eduardo Pazuello à frente do Ministério da Saúde. Especialista em logística, Pazuello deveria exercer uma interinidade, desde a saída do empresário e oncologista Nelson Teich, que durou 28 dias no cargo.

Há 62 dias na função, Pazuello está mais que o dobro do tempo que Teich. Nesse período, o número de mortos pela covid-19 no país saltou de 15 mil para mais de 75 mil.

O segundo erro que os militares reconhecem, afirma Teixeira, seria o profundo desmonte promovido no ministério por alguém que, no máximo, deveria estar de passagem. Pazuello desalojou quadros técnicos e instalou pelo menos 25 colegas de farda no primeiro escalão da Pasta, a maioria sem experiência na área, assim como ele próprio. Em alguns casos, diz, as substituições do general até optaram por médicos, mas sem qualquer notório saber em controle de pandemias.

A irritação dos militares, porém, seria menos com a acusação de Gilmar Mendes ou com Bolsonaro, já que o presidente não só não interveio de maneira firme a favor da caserna como sugeriu ao ministro da Saúde que conversasse com o magistrado. A exasperação seria de outra ordem, interna, como se a ficha tivesse caído. “O ponto principal é que as Forças Armadas, definitivamente, amarraram-se ao Bolsonaro e é isso, no fundo, a irritação delas. Não estão irritados com Gilmar, com Bolsonaro ou com o genocídio. Estão irritados com o fracasso da operação de relações públicas de se mostrarem como uma instituição independente. É isso que eles estão percebendo com o chute no balde dado pelo Gilmar: que fracassaram, sobretudo o Exército”, analisa Teixeira.

Para o historiador, os militares tentam tapar o sol com a peneira ao defenderem os 25 da Saúde, quando se sabe que há mais de 3 mil integrantes das Forças Armadas espalhados por todo o governo federal. Em sua opinião não vai adiantar tirar esse pequeno grupo - informação que começou a circular nos bastidores do ministério - e nem a saída de Pazuello, como antecipada pelo vice-presidente Hamilton Mourão. “Esperar agosto não vai mudar em nada. A única coisa que mudaria o carimbo de Bolsonaro que eles receberam seria tirar os militares que estão dentro do Palácio do Planalto. E isso eles não vão fazer. Estão umbilicalmente ligados ao destino do Bolsonaro”, diz, em referência aos três ministros/generais palacianos.

Antes mesmo do fracasso de relações públicas para se diferenciar do governo, a irritação dos militares é composta por outra derrota: a de domesticar o presidente da República. “Eles não podem fazer as duas coisas: tentar tutelar o Bolsonaro e, ao mesmo tempo, se separarem dele. E o Gilmar, inocentemente, ou como as pessoas querem, conspirativamente, evidenciou essa equação que não fecha. Ou são governo ou são independentes”, afirma.

O ministro do Supremo, segundo o professor, ainda que por meio de um arroubo de retórica, proposital ou não, durante uma transmissão ao vivo pela internet, “acertou o tiro” e “a vítima é o Pazuello”. “Porque, agora, já se estabeleceu o prazo. Eles não podem exonerá-lo amanhã de manhã, porque seria um escândalo, seria a aceitação de que, de fato, está havendo um genocídio, mas já disseram que em agosto ele vai sair. Encaçaparam a bola”, afirma.

A fala de Gilmar tende a fortalecer o grupo das Forças Armadas que é refratário à presença de militares da ativa no governo Bolsonaro e que defende a passagem para a reserva, caso queiram permanecer com o presidente. O problema, pondera Teixeira, é que para a opinião pública não “faz a menor diferença se o militar está na reserva ou na ativa”.

Também especialista de longa data em militarismo, o ex-deputado federal e professor aposentado da UFF e da UFCE, Manuel Domingos, destaca o suposto papel contraditório do comandante do Exército, Edson Pujol. O general tem sido considerado o expoente da ala que prefere manter Bolsonaro à meia distância, mas não estaria evitando a militarização do governo, até por falta de maior pressão popular. “Ele vive um dilema muito profundo entre segurar e proteger o governo Bolsonaro ou a corporação, porque o Exército é abalado em seus alicerces. É uma enrascada”.

Segundo Domingos, a Marinha está “particularmente incomodada”, já que a conta da pandemia está chegando às Forças Armadas e a “face mais visível da mortandade e do descalabro da economia será a do militar”. “O Brasil será o campeão mundial desse campeonato macabro. Está na hora de os militares tirarem o time de campo”, defende.

O problema, reconhece, é a falta de unidade na cúpula militar, no que concorda Teixeira. “Isso é o mais improvável. Porque o Alto Comando teria que desautorizar todo esse grupo representado pelo Ramos, Heleno, Braga Netto e Mourão. Aí haveria um racha, um terremoto. É por isso que eles fazem o contrário: tomam a crítica a um deles, como foi a Pazuello, como ofensa às Forças Armadas e acham que os cargos são prebendas”.


Cristian Klein: Menos um CPF para Bolsonaro

Morte de miliciano é seguida do silêncio do presidente e de Moro

De tão nebulosa e mal explicada, a relação entre a família Bolsonaro e a milícia parece um daqueles mistérios insondáveis, supostos assuntos de Estado que governos carimbam como “top secret”. Ao que tudo indica, o selo de alta confidencialidade dura enquanto durar a correlação de forças e a popularidade do bolsonarismo, por sinal pouco abalado pela proximidade do presidente com os grupos paramilitares que praticam extorsão em cada vez mais extensos territórios no Rio, ou fora dele. As mílicias - formadas por PMs, policiais civis, bombeiros - já foram “exportadas” para mais da metade dos Estados brasileiros. Mas é no Rio, e com o apoio do clã Bolsonaro, que cresceram e se aliaram ao poder político.

O presidente da República e seu filho mais velho já defenderam com ardor a existência dessas organizações criminosas que cobram os mais variados tipos de “pedágios” às populações ameaçadas e subjugadas. Da taxa de segurança a moradores e comerciantes aos botijões de gás comercializados com ágio; do transporte ilegal de vans ao fornecimento clandestino de TV por assinatura, internet e energia elétrica; da venda de imóveis irregulares à exploração de novos produtos e serviços como cestas básicas, consultas médicas, seguros de carro e recolhimento de lixo. Sobre estas regiões, já não se fala mais de Estado paralelo. A milícia é o próprio Estado. E tem suas relações institucionais construídas nos escombros de uma polícia civil e militar em sua face falida, corrupta e violenta.

Era dessa PM que vinha o ex-capitão Adriano Magalhães da Nóbrega, morto numa troca de tiros com a polícia no fim de semana numa operação no interior da Bahia. Foragido há mais de um ano, Nóbrega - ou ‘capitão Adriano’ - foi apontado por seu próprio advogado, Paulo Emílio Catta Preta, como alguém que queria se entregar, mas temia ser morto, numa queima de arquivo.

Não é preciso fazer nenhuma ilação. Registre-se apenas a mudez que se seguiu desde domingo pela manhã por parte de Bolsonaro e de seu entorno. O presidente da República não teve o mesmo comportamento de quando era parlamentar, em 2005, e saiu em defesa de Nóbrega, em discurso na Câmara. À época Bolsonaro qualificou Nóbrega, que estava preso desde o ano anterior, como um “brilhante oficial” e criticou sua condenação pela morte do guardador de carros Leandro dos Santos Silva, que havia denunciado policiais.

A campanha pró-Nóbrega na família já tinha sido iniciada em condecorações patrocinadas pelo filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro. Então deputado estadual, Flávio propôs uma moção de louvor ao PM em 2003 e, dois anos depois, foi autor de nova homenagem na Assembleia Legislativa do Rio, concedendo a Adriano Nóbrega a Medalha Tiradentes, comenda mais importante da Casa, quando o policial já estava preso, sob a acusação de homicídio.

Com o histórico de tanta solidariedade, é de se perguntar por que Jair Bolsonaro ainda não decretou luto oficial de três dias pela morte do companheiro miliciano. A família preferiu o silêncio. O ministro da Justiça Sergio Moro, que, há quase duas semanas, havia excluído Nóbrega da lista dos criminosos mais procurados do país, também não se pronunciou.

Sobre bandidos que perdem a vida abatidos por policiais ou por cidadãos que agem em legítima defesa, os bolsonaristas costumam reagir de forma irônica: “Menos um CPF”. Acusado de vários assassinatos e de participar de um grupo de matadores de aluguel - o Escritório do Crime - o ‘capitão Adriano’ não foi alvo do mesmo sarcasmo.

O que gira em torno do personagem inspira respeito e cautela, dado seu potencial explosivo. Nóbrega não era apenas um dos inúmeros policiais homenageados ao longo dos anos pelos Bolsonaro - integrantes ou não da banda podre da corporação. Era alguém de confiança que havia indicado a mãe e a ex-mulher para trabalhar no gabinete de Flávio na Alerj, durante o período de 12 anos em que o ex-deputado praticou, segundo o Ministério Público do Rio, esquema de “rachadinha” no qual apropriou-se de parte do salário de quase uma centena de funcionários.

Apontado como o operador do suposto esquema ilegal de enriquecimento, o PM da reserva Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro, serviu junto com Adriano Nóbrega no mesmo 18º Batalhão de Jacarepaguá, na zona oeste carioca. Em 2003, os dois se envolveram num homicídio ao fazer uma ronda na Cidade de Deus. Queiroz trabalhou no gabinete de Flávio, mas sua relação é com o pai Jair, de quem é amigo desde o início dos anos 1980.

O Brasil está numa democracia, as instituições estão alegadamente funcionando - tão bem quanto as escolas e os hospitais públicos - mas o sistema judicial não consegue desvendar informações, conexões e crimes que a sociedade vai naturalizando como insolúveis. O instituto da condução coercitiva já levou um mandatário da República a depor no aeroporto de Congonhas mas, hoje em desuso, não atinge Queiroz, o velho amigo de pesca de Bolsonaro.

O elo entre o presidente e Nóbrega ficou mais difícil de ser reconstituído graças a uma operação policial que, intencionalmente ou não, destruiu um arquivo vivo. Entre os maiores opositores de Bolsonaro e presidente da CPI das Milícias da Alerj em 2008, o deputado federal Marcelo Freixo (Psol-RJ) argumenta que a grande questão sobre o ‘capitão Adriano’ são seus laços com a família Bolsonaro e menos com o assassinato da vereadora Marielle Franco (Psol) e do motorista Anderson Gomes.

“A grande questão do Adriano é essa relação dele com a família Bolsonaro. Eles não foram criados juntos. Não são amigos de infância. Quando eles [da família Bolsonaro] resolvem ter tanta relação com o Adriano, o Adriano já tinha envolvimento com o crime. É preciso que se esclareça”, diz Freixo, para quem a morte do ex-PM não esfria o interesse pelo caso: “Isso atiça mais a curiosidade. O primeiro passo é saber o que tem nos 13 celulares encontrados com ele. Não tenho dúvida de que tem muita informação nesses telefones”.


Cristian Klein: Bolsonaristas e Bolsonaro na contramão

Tom pessimista do presidente sobre criação do Aliança indicaria desinteresse em participar da corrida municipal

O efeito da eleição municipal sobre a corrida presidencial, dois anos depois, é algo que não encontra comprovação conclusiva na literatura política, embora a sabedoria convencional sempre tenha tratado uma como preparação de terreno para a outra. A relação de causa e consequência não é tão direta, pelo menos para cargos majoritários, vide a ascensão de Bolsonaro, em 2018, despido de qualquer estrutura prévia de poder local espalhada pelo país. Foi na disputa à Prefeitura do Rio, em 2016, aliás, que a família do presidente da República teve a única derrota eleitoral em 24 disputas, contando o pai, os três filhos e a ex-mulher Rogéria Bolsonaro.

Hoje, a derrota de Flávio Bolsonaro, que ficou em quarto lugar, parece ter sido o prenúncio da ascensão do bolsonarismo, mas foi encarado naquele momento como um resultado sem maior significado político. O próprio Jair Bolsonaro foi contrário à candidatura, pois temia tanto um fiasco quanto uma vitória. Não queria dar explicações sobre um eventual fracasso da gestão do filho durante a campanha à Presidência. A história se repete. Bolsonaro é ele acima de tudo e esse comportamento em 2016 já indica qual será sua participação na corrida municipal deste ano.

A peleja de 2020, porém, traz um elemento complicador. Diferentemente de 2016, há centenas de destinos eleitorais que dependem dos rumos que Bolsonaro irá tomar. Se não mergulhou na campanha de Flávio a prefeito, Bolsonaro dá sinais de que também não o fará agora para os candidatos que buscam sua chancela e, mais urgente, precisam de uma legenda por onde concorrer. Muitos são deputados estaduais e federais já prejudicados pela impulsividade de Bolsonaro que levou ao rompimento de sua turma com o presidente nacional do PSL, Luciano Bivar. Bolsonaro e Flávio, detentores de cargos majoritários, já deram no pé e saíram da sigla. Mas aos parlamentares que querem concorrer a prefeito restam apenas três ou quatro alternativas, quase todas ruins ou improváveis. Eis as principais:

A primeira opção, e sonho de consumo dos deputados da ala bolsonarista, é obter uma justa causa sob a alegação de perseguição política e sair do PSL sem perder o mandato - o que já é buscado.

Decisão nesse sentido, porém, precisaria ser rápida, a tempo de registrarem nova filiação até seis meses antes da eleição em 4 de outubro. O tempo da Justiça é demorado, há Carnaval, recursos do PSL, o que torna a justa causa quase uma quimera. Do ponto de vista político, também é de se duvidar que a Justiça eleitoral libere em massa os deputados e abra a porteira e o precedente para o aumento da infidelidade partidária. Com essa “carta de alforria”, como eles comparam, os parlamentares poderiam ir para qualquer legenda.

Pela segunda alternativa, e de forma paralela, os deputados estaduais e federais trabalham na construção do partido bolsonarista Aliança pelo Brasil, que também representaria uma justa causa para troca de legenda, por ser uma sigla nova. Mais uma vez, o grupo esbarra no exíguo prazo, que termina daqui a dois meses. Geralmente uma grande barreira de entrada, a coleta de 492 mil assinaturas nem é o maior problema dada a capacidade de mobilização que vem da força e da popularidade de um presidente da República. Mas há o obstáculo da validação das assinaturas, o que depende da burocracia da Justiça, e a aprovação do registro no Tribunal Regional Eleitoral de pelo menos nove Estados, antes da homologação pelo TSE.

A terceira opção para os deputados bolsonaristas que querem disputar a eleição a prefeito é indicar outro nome do grupo político. Esse já é, por exemplo, o plano B do deputado federal Carlos Jordy, que pretende concorrer em Niterói. O parlamentar diz que, sem a “alforria” ou a construção a tempo do Aliança, ele apoiará o delegado da Polícia Civil e comentarista do SBT Rio Marcus Amin, que hoje está como vice de sua pré-candidatura.

No segundo maior eleitorado fluminense, em São Gonçalo, a indicação do vice, por outro lado, não é uma solução pois os dois integrantes da chapa, Filippe Poubel e Coronel Salema, são deputados estaduais. Há ainda o medo de que o indicado venha a se voltar contra eles. A trajetória do governador Wilson Witzel (PSC), eleito na esteira do bolsonarismo, assombra. Poubel ainda está indeciso se concorre pela vizinha Maricá, onde está seu domicílio eleitoral, ou em São Gonçalo, e receia: “Não tenho nome para indicar em nenhuma das cidades. Veja o que aconteceu com o governador, que é um traidor. Ele disse que não, mas fez campanha para Bolsonaro, andamos com ele nos quatro cantos do Estado”.

A quarta alternativa é a mais kamikaze: sair do PSL na marra, com o risco de perder o mandato. Seria algo tentador para os deputados que, segundo as pesquisas, estariam liderando a corrida a prefeito. É o caso do deputado estadual Dr. Serginho, pré-candidato em Cabo Frio.

Tudo considerado, o Aliança seria a melhor opção para os deputados pré-candidatos. Mas talvez não para Bolsonaro. Pelo número de vezes que o presidente já reconheceu a possibilidade de o partido não ficar pronto a tempo - num suposto tom pessimista - políticos atentos acreditam que o ex-capitão não deseja ter a legenda para já. “Ele não quer o Aliança. Ficar fora da disputa é melhor. Não acredito que Bolsonaro vá apoiar qualquer candidato. Talvez só no segundo turno, se houver polarização com a esquerda”, diz o deputado federal Hugo Leal (PSD-RJ).

Sem o Aliança, a solução paliativa para que o bolsonarismo ganhe fôlego na eleição de outubro - dentro das três alternativas restantes - seria a filiação em outras siglas - como o Patriota e o PRB - seja do grupo dissidente no PSL ou de novas apostas recrutadas - especialmente para a disputa a vereador. O presidente nacional do Patriota, Adilson Barroso, conta que conversou com Bolsonaro no dia 17, por meia hora, mas não tratou do assunto. Diz que seria uma honra receber o grupo do presidente desde que os bolsonaristas eleitos não debandem todos depois para o Aliança. “Barriga de aluguel não é parceria. Tem que deixar um ou dois vereadores pelo menos”, afirma. O PRB, do prefeito Marcelo Crivella, que busca a reeleição no Rio, também almeja receber o grupo. O líder nacional da sigla, Marcos Pereira, terá reunião nesta semana para tratar do acordo com Bolsonaro, informou Crivella à coluna.