CLT

Míriam Leitão: Atalhos no labirinto

Os sindicatos têm razão de tentar se mobilizar em manifestações porque um dos pontos principais da lei é o fim do imposto sindical. Sem o dinheiro fácil, eles terão que mostrar que são efetivos na defesa dos direitos da maioria dos trabalhadores de cada categoria e não donos de cartório. A reforma trabalhista que começa a valer hoje está a uma distância lunar da necessidade, mas tem qualidades.

A CLT foi escrita nos anos 1940 e recebeu ao longo das décadas um cipoal de normas. Nada do que se escreveu na labiríntica legislação do trabalho consegue proteger 40% dos trabalhadores brasileiros que permanecem na informalidade. Se fosse eficiente, ao longo da sua vida longeva, teria conseguido incluir todos os trabalhadores dentro do marco legal. Hoje, dos 90 milhões de brasileiros, 33 milhões têm carteira assinada. Há os funcionários públicos, os trabalhadores por contra própria e uma multidão sem direitos.

A reforma tem alguns pontos positivos e outros obscuros. Empresários do comércio acham que conseguirão agora organizar a um custo menor o trabalho formal nos fins de semana, principalmente em cidades turísticas. Empresas de turismo acham que o trabalho intermitente é perfeito para o setor que tem sazonalidades muito marcadas. O funcionário que quiser sair da empresa não precisa criar o conflito para receber indenização e FGTS porque agora há a demissão consensual, em que o trabalhador recebe parte das verbas rescisórias e 80% do FGTS. Acaba-se assim com os exóticos acordos em que um lado fingia que demitia e o outro lado tinha que devolver a verba rescisória de forma velada e ambos conspiravam para que o trabalhador tivesse acesso ao seu dinheiro no Fundo. Difícil explicar para um estrangeiro tamanha bizarrice.

No mundo, muitos países flexibilizaram e atualizaram suas legislações. Quem fez isso de forma mais inteligente tem menos desemprego. Quem mantém regras rígidas demais permanece com alta taxa de desocupação. As velhas leis não comportam os novos trabalhos, o coworking, o home office, o tempo colaborativo, o mundo digital, o trabalho por tarefa e não pelo expediente.

A nova lei brasileira não teve tanta ambição. Ela não preparou o mundo do trabalho para os novos tempos, apenas criou alguns pontos de flexibilidade. Nesse momento em que há 13 milhões de pessoas procurando emprego sem encontrar e outros milhões em desalento, a possibilidade de criar formas novas de contratar parece promissora.

Mas é preciso não esquecer em que país estamos. No Brasil, o mesmo ministro que quer criar a carteira de trabalho eletrônica que possa ser acessada pelo trabalhador do seu celular é aquele que assinou recentemente a portaria retrógrada sobre trabalho escravo. A mesma construção civil que se prepara para a contratação de empregados pelo trabalho intermitente é a que pediu que a portaria fosse editada.

A Justiça do Trabalho custa, segundo o “Valor” de ontem, usando dados de 2015, R$ 17 bilhões, e a maioria dos juízes abre a conversa com as partes litigantes propondo acordo. Parece louvável, mas o temor da parte que rejeita o acordo é ter um resultado desfavorável. E no fim, como lembra o economista José Márcio Camargo, se o trabalhador está reclamando direitos legítimos ele receberá apenas uma parte deles. Ou seja, a lei é rígida, mas a Justiça acaba flexibilizando os direitos.

A nova lei criou atalhos no labirinto da CLT mas não simplificou a lei porque isso seria uma batalha muito maior do que é possível ser travada num governo curto e impopular. Ela abre possibilidades de que parte da informalidade possa ser absorvida no mercado formal através dos novos tipos de contrato. A nova lei certamente provocará muita confusão porque tem pontos não regulamentados e porque há juízes dizendo que simplesmente não vão levá-la em consideração.

No Brasil, há sindicatos com representatividade e outros de fachada, controlados por grupos, às vezes familiares, por décadas. Mas uns e outros não precisavam fazer esforço algum de sindicalização porque todo trabalhador formal era obrigado a pagar o imposto. A partir de hoje só os primeiros terão condição de sobreviver. Mas no Congresso algumas centrais tramam para que o pagamento compulsório seja recriado.

 


José Márcio Camargo: O fim da Era Vargas

Ao superproteger o trabalhador, o Estado o tornou incapaz de lutar por seus direitos e deveres

Após décadas de discussões, finalmente foi aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente da República uma reforma trabalhista que muda a essência da CLT. Como esta foi uma das reformas mais discutidas no País durante décadas, a crítica de que ela foi aprovada de forma açodada é, no mínimo, desinformação e, no máximo, desonestidade intelectual.

Alguns jovens acadêmicos estão certamente mal informados. Mas, como bons acadêmicos, deveriam se informar antes de se manifestar. Porém, as maiores críticas vêm de corporações, como a da Justiça do Trabalho e dos sindicatos, que sobrevivem do imposto sindical, por serem incapazes de convencer os trabalhadores de sua importância, que estão perdendo seus privilégios e o poder político.

A legislação trabalhista brasileira foi imposta à sociedade pela ditadura do Estado Novo, uma das mais violentas de nossa história. Como foi imposta por um regime fascista, tem estrutura fascista. Um dos objetivos da CLT é proteger o trabalhador da “sanha” das empresas por lucros e evitar o conflito entre trabalhadores e empresas. Sempre que tem um conflito, a solução é dada pela Justiça do Trabalho. E Justiça não se contesta, se obedece. Daí o enorme poder do Estado e a fraqueza dos sindicatos de trabalhadores.

Ao superproteger o trabalhador, o Estado o tornou incapaz de lutar por seus direitos e deveres. Não apenas na relação de trabalho, mas na vida em sociedade. O trabalhador não pode decidir quanto vai poupar para o futuro, isto está determinado pelo FGTS e pela Previdência Social. Não pode decidir como quer dividir suas férias, quantas horas por dia e quantos dias por semana quer trabalhar. Se prefere ter meia hora para almoçar e sair mais cedo para estar com seus familiares. Se prefere ter uma redução de salário, em vez de ficar desempregado. Se quer ou não contribuir para um sindicato ou se prefere ter um contrato individual de trabalho, e assim por diante.

Com a reforma, estas decisões e muitas outras serão negociadas entre o trabalhador e seu empregador. O empregador vai buscar o contrato de trabalho que dará a maior produtividade e o maior lucro possível. O que irá aumentar o potencial de crescimento e de geração de empregos da economia. E o trabalhador irá buscar o emprego que lhe dará o maior salário e bem-estar. Em lugar de esperar pela proteção do Estado, os trabalhadores terão de lutar por suas conquistas.

Se isso significa se filiar a um sindicato, ou investir em treinamento e qualificação, ou investir em educação, ou buscar ofertas de emprego mais compatíveis com suas disponibilidades, será uma escolha do trabalhador. Em momentos de desemprego alto os trabalhadores terão menos poder de barganha e vice-versa. Mas essa é uma característica de qualquer mercado e cabe aos trabalhadores se prepararem para aumentar seu poder de barganha em qualquer situação.

Será uma revolução nos incentivos. Teremos trabalhadores e cidadãos mais responsáveis, mais qualificados, mais produtivos, com mais incentivos a investir na relação de trabalho, mais empreendedores e, portanto, mais capazes de lutar por seus interesses. Teremos menos conflito, mais produtividade, mais crescimento e menos pobreza.

Já em 1994, o então presidente eleito Fernando Henrique Cardoso, em seu discurso de despedida do Senado, apontava para a necessidade de acabar com a chamada Era Vargas, “ao seu modo de desenvolvimento autárquico e ao seu Estado intervencionista”. Infelizmente, o ex-presidente pouco conseguiu fazer neste sentido.

A aprovação da reforma não é uma demonstração de força de um governo terminal, como sugerem alguns. É o início do fim da Era Vargas. Apesar da enorme crise política, com a aprovação da reforma trabalhista, o presidente Michel Temer começou a cumprir a promessa feita pelo ex-presidente FHC. E por um governo democraticamente eleito. Falta aprovar a TLP e a Previdência. Vamos em frente!
* É professor do Departamento de Economia da PUC/RIO e economista da Opus Gestão de Recursos

 


Plenário do Senado aprova reforma trabalhista e texto segue para sanção

Por 50 votos contra 26, o Senado aprovou nesta terça-feira (11) a reforma trabalhista (PLC 38/2017). A proposta, que segue agora para sanção presidencial, altera mais de 100 pontos da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), permitindo, dentre as mudanças, que o acordado entre patrões e empregados prevaleça sobre o legislado nas negociações trabalhistas.

A mudança é considerada prioridade para o governo de transição não só para modernização da legislação trabalhista como para fazer frente aos 14 milhões de trabalhadores desempregados no País, resultado do fracasso do governo do PT. Um estudo divulgado pelo banco Santander em junho (veja aqui) mostra que a aprovação da reforma trabalhista tem potencial para gerar cerca de 2,3 milhões de vagas de trabalho em pouco mais de um ano. A estimativa leva em consideração a flexibilização de regras e consequente redução de custos para o empregador, que voltaria a contratar.

Atraso
A votação, prevista para a iniciar no fim da manhã de ontem (11), só iniciou cerca de sete horas depois. O atraso foi provocado por senadoras da oposição. Gleisi Hoffmann (PT-PR), Fátima Bezerra (PT-RN), Ângela Portela (PT-ES), Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), Lídice de Mata (PSB-BA), Regina Sousa (PT-PI) e Kátia Abreu (PMDB-TO) ocuparam a mesa do plenário e se negaram a sair.

A sessão só começou após o presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE), dar um ultimato às oposicionistas e afirmar que começaria a sessão no plenário ou em outra sala do Senado. Quando se aproximava das 19h, Eunício conseguiu sentar na cadeira de presidente e deu início à sessão.

Texto
A proposta de reforma trabalhista prevê, além da supremacia do negociado sobre o legislado, o fim da assistência obrigatória do sindicato na extinção e na homologação do contrato de trabalho. Além disso, acaba com a contribuição sindical obrigatória de um dia de salário dos trabalhadores.

Há também mudanças nas férias, que poderão ser parceladas em até três vezes no ano, além de novas regras para o trabalho remoto, também conhecido como home office. Para o patrão que não registrar o empregado, a multa foi elevada e pode chegar a R$ 3 mil. Atualmente, a multa é de um salário-mínimo regional.

Para que a proposta não voltasse a ser analisada pela Câmara dos Deputados, que aprovou o texto em abril, os senadores governistas não aceitaram nenhuma mudança de mérito no texto e rejeitaram também as emendas apresentadas de modo individual. No entanto, como resposta aos pontos polêmicos da proposta, há um compromisso do presidente Michel Temer de vetar seis pontos da reforma. A ideia é aperfeiçoar esses pontos para que eles sejam reapresentados via medida provisória ou projeto de lei.

Veja o que muda na legislação com a reforma trabalhista:

ACORDOS COLETIVOS
Terão força de lei e poderão regulamentar, entre outros pontos, a jornada de trabalho de até 12 horas, dentro do limite de 48 horas semanais, incluindo horas extras.

Parcelamento das férias, participação nos lucros e resultados, intervalo, plano de cargos e salários, banco de horas também poderão ser negociados.

Pontos como FGTS, salário mínimo, 13º salário, seguro-desemprego, benefícios previdenciários, licença-maternidade e normas relativas à segurança e saúde do trabalhador não poderão entrar na negociação.

Atualmente, acordos coletivos não podem se sobrepor ao que é previsto na CLT.

JORNADA PARCIAL
Poderá ser de até 30 horas semanais, sem hora extra, ou de até 26 horas semanais, com acréscimo de até seis horas (nesse caso, o trabalhador terá direito a 30 dias de férias).

Atualmente, a jornada parcial de até 25 horas semanais, sem hora extra e com direito a férias de 18 dias.

PARCELAMENTO DE FÉRIAS
As férias poderão ser parceladas em até três vezes. Nenhum dos períodos pode ser inferior a cinco dias corridos e um deles deve ser maior que 14 dias (as férias não poderão começar dois dias antes de feriados ou no fim de semana).

Atualmente, as férias podem ser parceladas em até duas vezes. Um dos períodos não pode ser inferior a dez dias corridos.

GRÁVIDAS E LACTANTES
Poderão trabalhar em locais insalubres de graus “mínimo” e “médio”, desde que apresentem atestado médico. Em caso de grau máximo de insalubridade, o trabalho não será permitido.

Atualmente, grávidas e lactantes não podem trabalhar em locais insalubres, independentemente do grau de insalubridade.

CONTRIBUIÇÃO SINDICAL
Deixará de ser obrigatória. Caberá ao trabalhador autorizar o pagamento.
Atualmente, é obrigatória e descontada uma vez por ano diretamente do salário do trabalhador.

TRABALHO EM CASA
A proposta regulamenta o chamado home office (trabalho em casa).
Atualmente, esse tipo de trabalho não é previsto pela CLT.

INTERVALO PARA ALMOÇO
Se houver acordo coletivo ou convenção coletiva, o tempo de almoço poderá ser reduzido a 30 minutos, que deverão ser descontados da jornada de trabalho (o trabalhador que almoçar em 30 minutos poderá sair do trabalho meia hora mais cedo).
Atualmente, a CLT prevê obrigatoriamente o período de 1 hora para almoço.

TRABALHO INTERMITENTE
Serão permitidos contratos em que o trabalho não é contínuo. O empregador deverá convocar o empregado com pelo menos três dias de antecedência. A remuneração será definida por hora trabalhada e o valor não poderá ser inferior ao valor da hora aplicada no salário mínimo.

Atualmente, a CLT não prevê esse tipo de contrato.

AUTÔNOMOS
As empresas poderão contratar autônomos e, ainda que haja relação de exclusividade e continuidade, o projeto prevê que isso não será considerado vínculo empregatício.

Atualmente, é permitido a empresas contratar autônomos, mas se houver exclusividade e continuidade, a Justiça obriga o empregador a indenizar o autônomo como se fosse um celetista.

Sugestões de mudanças
No relatório aprovado pela CAE (Comissão de Assuntos Econômicos) do Senado, Ricardo Ferraço (PSDB-ES) recomendou a aprovação do projeto conforme a redação enviada pela Câmara, mas sugeriu as seguintes mudanças, a serem feitas pelo governo, quando o presidente Temer sancionar a proposta.

Mudanças propostas
Veto ao trecho sobre gestantes e lactantes;
Veto ao ponto que retira o descanso de 15 minutos para as mulheres antes do início da hora extra;
Regulamentação por medida provisória do trabalho intermitente;
Decisão por acordo coletivo sobre a possibilidade de acordos individuais determinarem jornada de 12 horas de trabalho com 36 horas de folga. (Com informações das agência de notícias)

 


Pedro S. Malan: Entre o inconcebível e o inevitável

O Estado brasileiro tem de ser repensado e e reinventado, sem maniqueísmos e ilusões

Em discurso para a militância, na presença de Dilma, durante a campanha eleitoral de 2014, Lula disse que já se imaginava, em 2022, nas comemorações de nossos 200 anos de independência, defendendo, com Dilma, tudo o que haviam conquistado “nos últimos 20 anos”. Assim abri artigo neste espaço (14/12/2014), que continuava: “É perfeitamente legítimo a qualquer pessoa expressar de público suas ‘memórias do futuro’, para usar a bela expressão de Borges para caracterizar desejos, expectativas, sonhos e planos – quer se realizem, quer não”.

Notei no artigo anterior que antes de chegar às eleições de 2022 haveria, óbvio, que passar por 2018. E que não seria fácil explicar então as conquistas dos “últimos 16 anos”, como se fossem um coerente e singular período passível de ser entendido como um todo, como a marquetagem política tentou na eleição de 2014, com o discurso dos “últimos 12 anos”. Por quê? “Porque Lula 1 foi diferente de Lula 2; Dilma 1 diferente de Lula 2; e Dilma 2 será diferente de Dilma 1 – e o mais difícil dos quatro quadriênios. Quem viver verá. Ou já está vendo”, escrevi em dezembro de 2014.

Mas muito antes disso já tinha notado que a política econômica de Dilma 1 trazia seu prazo de validade (outubro de 2014) estampado no rótulo e que teria de ser mudada – qualquer que fosse o resultado das urnas.

Volto ao tema do infindável diálogo entre passado e futuro, instigado pelo discurso do ex-presidente Lula na cerimônia de posse dos novos membros do Diretório Nacional do PT, nesta última semana.

Na ocasião Lula teria dito: “Pensávamos o Brasil para 2022, mas não conseguimos construir o nosso projeto... Tudo que construímos, o direito de greve, as conquistas sociais no trabalho, eles estão desmontando... Não podemos aceitar que façam o ajuste em cima daqueles que são as maiores vítimas dos erros do governo, os trabalhadores... Agora eles estão desmontando o nosso país”. Era, por suposto, um discurso para animar a militância ali reunida. Mas Lula é hoje maior que o PT, assumidamente o candidato do partido à Presidência da República em 2018 – e o único do partido em condições de disputar com alguma chance de vitória.

Como já se escreveu, as próximas eleições serão a oitava campanha presidencial de Lula, quer seu nome esteja na urna eletrônica, quer não. Das sete campanhas anteriores, como se sabe, Lula disputou cinco diretamente (perdeu três e ganhou duas, em ambas teve de ir ao segundo turno) e duas por interposta pessoa. Os termos em que definirá sua participação no debate eleitoral não são irrelevantes para a definição do clima geral da campanha e para o real esclarecimento dos desafios a enfrentar de agora até 2018 – e adiante.

Por exemplo, o plenário do Senado deverá votar nos próximos dias a reforma trabalhista, já aprovada pela Câmara. Em artigo publicado neste jornal (Incluindo os excluídos, 4/7), José Marcio Camargo mostrou que (em 2015), dentre os 40% dos trabalhadores que recebem os menores salários, 50% estavam na informalidade e 20% desempregados. A CLT portanto regia apenas 30% dos contratos de trabalho. Por outro lado, dos 20% mais ricos da distribuição de salários, 80% tinham contratos de trabalho regidos pela CLT. A reforma ora em discussão permitiria incluir parte dos excluídos, em particular em setores nos quais a demanda é instável e intermitente. Mulheres (com taxa de desemprego 40% maior que a dos homens) e jovens de 18 a 24 anos (28% de desemprego) seriam beneficiados. Outros podem, legitimamente, discordar. O tempo dirá.

Sobre a divisão “nós x eles”: o Brasil é um país extraordinário em sua rica diversidade e enorme potencial, mas complexo de entender e difícil de administrar, como logo se dão conta aqueles que se propõem a fazê-lo. Não prestam muito serviço ao País aqueles que o dividem de maneira simplória e maniqueísta entre um vago “nós” e um não menos vago “eles”, recurso retórico destinado a incendiar a militância em discursos de palanque.

Mas que não contribuem em nada para a elevação da qualidade do debate e o entendimento da opinião pública em geral, tratando-a como se ela fosse portadora de uma doença infantil que só entenderia escolhas binárias, do tipo “só existem duas posições sobre qualquer assunto, a nossa e a deles”. O mundo e o Brasil são muito, muito mais complicados.

Toda sociedade precisa ter alguma consciência social de seu passado, algum entendimento do presente como História e um mínimo de senso de perspectiva, além de conviver com a inevitável competição entre narrativas sobre como e por que chegamos à situação atual. Mesmo quando sabemos que o que realmente importa é sempre o incerto futuro – e que a História nunca se repete, mas por vezes rima, com frequência ensina e, de quando em vez, a muitos desatina.

Como escreveu Larry Summers em trabalho recente: “É preciso estar preparado para observar longas cadeias de causas e consequências... pensar e debater sobre um problema, considerar propostas para sua solução não significa que o problema será rapidamente resolvido. Mas o debate afeta o clima de opiniões e as coisas podem evoluir da condição de inconcebíveis para a condição de inevitáveis”.

É o processo pelo qual o Brasil vem passando – e terá de continuar a fazê-lo. A reforma da Previdência, por exemplo, é inevitável: terá de ser feita, talvez em mais de uma etapa, a custos maiores. O próximo governo terá de enfrentar reformas na área tributária. É inevitável repensar e reinventar o Estado brasileiro. Sem maniqueísmos, sem ilusões. Sem busca de atalhos, sabendo que não é fácil lidar com interesses corporativos longamente constituídos.

Mas o País não tem alternativa se deseja crescer de forma sustentada a taxas mais elevadas, com justiça social, estabilidade macroeconômica e menos ineficiência em seu setor público. Não é fácil. Nunca foi. Nunca será.

* Pedro Malan é economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC

 


Hélio Schwartsman: Reforma trabalhista

Se planejar todos os aspectos da vida econômica resultasse num ordenamento eficiente, os Estados comunistas teriam dado certo. Não deram.

Raciocínio análogo se aplica à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que, com mais de 900 artigos, pretende regular nos detalhes as relações entre patrões e empregados.

São reduzidas as chances de esse calhamaço de imposições legais, muitas delas concebidas para lidar com a realidade laboral dos anos 40, que não existe mais, produzir soluções satisfatórias para ambas as partes.

Um exemplo banal. Lembro de já ter sido forçado diversas vezes pela CLT a sair em férias em períodos em que fazê-lo não interessava nem a mim nem à empresa. Ora, uma legislação deixa os dois lados insatisfeitos e não traz nenhum benefício público não tem razão para existir.

É óbvio que nem tudo na CLT são firulas como essa. Alguns de seus artigos (poucos) estabelecem normas que efetivamente protegem o trabalhador, mas não há dúvida de que já passa da hora de promover uma rodada de desregulamentação que nos livre dos anacronismos, ingerências e aposte na capacidade das partes de resolver seus problemas sem a tutela do Estado.

A livre negociação, vale lembrar, está na base da democracia e é um dos principais elementos que explicam o melhor desempenho da economia de mercado sobre outras formas de organização social.

É difícil dizer se a reforma proposta pelo governo é a ideal. Ela até caminha na direção correta, mas só saberemos se não contém exageros depois que ela for colocada em prática e produzir resultados.

Se surgirem efeitos deletérios provocados pela mudança na legislação e não pela crise econômica (é fácil confundir as duas coisas), não será complicado voltar atrás. Parlamentares não hesitam muito antes de aprovar “direitos”. É em parte por causa dessa tendência que nos metemos na enrascada fiscal em que estamos.


Marco Aurélio Nogueira: A guerra suja das “narrativas”

Boa parte dos conflitos sociais e das lutas de classes assume hoje a forma de “guerras discursivas” e disputas de narrativas. Dizer isso é reiterar uma espécie de cláusula dos estudos sociais, nos quais a linguagem ganhou posto de honra.

Numa sociedade estruturada em redes sociais ativas e influentes, tudo o que se passa nelas reflete o que circula à boca pequena, e vice-versa. Nem tudo, porém, presta ou tem mérito. Suspeita-se mesmo que parte importante das “narrativas” é composta de lixo, dejetos e fragmentos de verdade, que vão sendo despejados sobre uma multidão de pessoas nem sempre preparadas para processar o que recebem. A oferta é abundante, mas de má qualidade.

Muitas narrativas são construídas à base de mentiras, meias-verdades e desinformação. Na luta política, elas são feitas para persuadir emocionalmente, ou seja, mobilizar, normalmente contra e não a favor. Para sustentar, por exemplo, que o projeto de terceirização aprovado pela Câmara é contrário aos interesses dos trabalhadores, faz-se um exercício de demonização apoiado em duas premissas: (a) a medida seria “contra todos” e (b) estaria destinada a acabar com certas conquistas sociais importantes, como, por exemplo, 13.º salário, férias, seguro-desemprego, verbas rescisórias e licença à gestante, terminando por se chocar com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Trata-se de uma mentira. Ela insufla os ânimos e faz com que muitas pessoas se mobilizem para “lutar por direitos”, sem nem sequer se dar ao trabalho de avaliar se eles estão de fato sob ameaça. Não analisam o texto em questão, nem consideram que ele ainda não foi convertido em lei, que o presidente poderá alterá-lo, suavizando-o ou não, e assim por diante.

A atitude de disseminar falsidades tem um duplo vetor. Por um lado, mobiliza, mas mediante exageros e distorções. Por outro, em decorrência, cria falsas expectativas nas pessoas e reforça a ignorância delas. Tem, também, uma dimensão crua, rasteira, passional, e uma dimensão mais sofisticada, escudada em estudos acadêmicos, pesquisas e números que, devidamente esmerilhados, provariam qualquer coisa.

Os que se valem desta atitude, por sua vez, alegam estar combatendo mentiras disseminadas pelo governo, como por exemplo a que estabeleceria a tese (falsa) de que a terceirização criará empregos, como num passe de mágica.

O “terrorismo verbal” de um polo alimenta o “terrorismo verbal” do outro. Sem a terceirização, não teremos crescimento, diz um; com a terceirização, diz outro, a “precarização” será inevitável.

Com isso, a noite desce sobre todos, tenebrosa, espalhando suas sombras de medo, insegurança e incerteza.

Desaparecem as mediações, inclusive de sentido. Perde a democracia, que requer cidadãos politicamente esclarecidos, e o conflito social fica sem potência positiva, diluindo-se em choques inconsequentes. A impressão é de tensão crescente, mas no fundo tudo não vai além de escaramuças sem maiores efeitos.

Os ativistas das redes sociais caem facilmente nessa esparrela. Seja porque não têm tempo para pensar e vão ao embalo das provocações, seja porque gostam de “causar” sem medir as consequências, seja porque estão dispostos a contribuir para o embrutecimento geral por acreditarem que com ele farão a luta avançar. Ou simplesmente porque aceitam tudo o que leem desde que venham de fontes que legitimam ou tragam certas palavras simbólicas reconhecíveis de um jato.

Deveríamos limpar o terreno e melhorar o desempenho das “narrativas”, no mínimo fazendo com que elas não se descolem demais do bom senso e da realidade factual. Quando mais dramático o tema, quanto mais importante for para vida das pessoas comuns, mais cuidado e seriedade deveria haver na argumentação.

Ganharíamos todos.

*Marco Aurélio Nogueira é professor de teoria política da Unesp
__________________________________________________________________________
Fonte: http://gilvanmelo.blogspot.com.br/2017/04/a-guerra-suja-das-narrativas-marco.html