Chile

Hélio Schwartsman: Ponto para a democracia

Chile transformou Constituição com forte vício de origem em experiência real de democracia

Símbolos importam. E os chilenos foram claros quanto a isso ao determinar, por uma margem de quase 80%, que a atual Carta, herança da ditadura de Pinochet, seja substituída por uma nova, a ser elaborada por uma convenção constitucional exclusiva. Ponto para a democracia.

No mundo da vida prática, porém, o Chile, apesar da origem espúria da Carta, já era uma democracia sólida, com alguns ciclos de alternância de poder entre esquerda e direita. Os aspectos mais autoritários da Constituição foram extirpados por uma série de emendas aprovadas ao longo dos anos, notadamente em 1989 e 2005. Não teria sido impossível persistir nesse caminho.

Aliás, num cálculo puramente numérico, será mais difícil aprovar a nova Carta do que emendar a velha. Pelas regras em vigor, algumas matérias constitucionais exigem maioria de 3/5 dos parlamentares para ser modificadas, e outras, as mais sensíveis, de 2/3.

Pelas regras da convenção, só irão para o novo texto constitucional artigos aprovados por 2/3 dos constituintes, e, ao fim dos trabalhos, o projeto ainda terá de ser chancelado pela população em plebiscito.

Outro aspecto interessante do processo constitucional é que será o primeiro no mundo a ser conduzido por uma convenção paritária, com 50% de mulheres e 50% de homens. Achei um pouco autoritário não terem dado aos eleitores chilenos a oportunidade de exercer uma escolha ativa diante de algo tão novo (a opção pela convenção exclusiva já vinha com a paritária), mas são os tempos em que vivemos.

Meu ponto é que constituições são uma parte importante da democracia, mas nem de longe o jogo inteiro.

Há Cartas que são ótimas no papel, mas que na vida real não geram nada parecido com uma democracia, e há casos como o do Chile, que conseguiram transformar uma Constituição com forte vício de origem numa experiência real de democracia. Símbolos importam, mas a prática também.


Janaína Figueiredo: Plebiscito no Chile deixa Bolsonaro mais isolado no continente

Em recente discurso, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, se referiu ao Brasil como um “pária”. O chanceler não especificou muito. Disse apenas que o país está nessa categoria por defender a liberdade. No domingo, quase 80% dos chilenos votaram a favor de uma nova Constituição no país, onde ainda vigora a deixada pela ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Ditadura que o presidente Jair Bolsonaro elogiou em sua viagem a Santiago, em março de 2019, meses antes do início da onda de manifestações que levou à vitória do “aprovo” no plebiscito.

Naquele momento, a atitude do presidente foi repudiada por importantes congressistas, que se negaram a participar de um almoço em homenagem a Bolsonaro no Palácio de la Moneda, o mesmo que Pinochet mandou bombardear em 11 de setembro de 1973. Foi o início de uma fase violenta da História chilena, que trouxe junto a implementação de um modelo econômico liberal, no qual o Estado tem escassa participação e quem manda é o mercado. Um modelo comemorado publicamente pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.

Há um ano e meio, Bolsonaro sentiu na pele o isolamento dentro da política chilena. Hoje, o presidente Sebastián Piñera, que o recebeu em grande estilo, se alinhou à maioria que exigiu mudanças que enterrem definitivamente o passado. O chefe de Estado chileno nunca foi pinochetista, mas tampouco se atrevia a defender uma nova Constituição. O fez, finalmente, sob pressão das ruas.

Piñera mantém contatos com o presidente da Argentina, Alberto Fernández, com quem Bolsonaro nunca quis falar. O presidente do Chile também reconheceu rapidamente a vitória do Movimento ao Socialismo (MAS) na Bolívia, nas eleições do último dia 18 de outubro. O Brasil demorou quase uma semana em se pronunciar.

O isolamento do governo Bolsonaro na região está ficando evidente e poderá acentuar-se se o presidente americano, Donald Trump, não for reeleito. Um eventual governo do democrata Joe Biden daria mais força a governos progressistas e terminaria com a aliança direitista entre EUA, Brasil e Colômbia, formada, entre outros objetivos, para tirar Nicolás Maduro do poder na Venezuela.

O cenário regional não é nada favorável para Bolsonaro. O termo "pária" usado por Araújo ganha cada vez mais sentido.


Adriana Fernandes: Proposta de plebiscito no Brasil é debate às avessas do movimento chileno

Não é correto responsabilizar a Constituição por todas as escolhas ruins que foram feitas por vários e vários governos

BRASÍLIA - Na esteira do movimento ocorrido no Chile, é oportunista a declaração do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), propondo a realização de um plebiscito para que os brasileiros decidam sobre a elaboração de uma nova Constituição.

Sob o argumento de que a Carta Magna transformou o Brasil em um “País ingovernável”, Barros culpou as regras do Orçamento com o argumento de que o Brasil não tem mais capacidade de pagar a sua dívida, que com o efeito da pandemia do coronavírus cresceu muito.

Não é correto responsabilizar a Constituição por todas as escolhas ruins que foram feitas por vários e vários governos. A Constituição não determinou a elevação das renúncias tributárias de 2% para 4,3,% do Produto Interno Bruto (PIB), as várias ineficiências dos programas de governo, a corrupção, a contratação de grande quantidade de servidores, as remunerações acima do teto, os penduricalhos, os seguidos Refis (parcelamento de débitos tributários) que beneficiaram os devedores contumazes, as obras faraônicas sem retorno social e econômico, os R$ 200 bilhões de subsídios via BNDES e outras fontes de transferência de recursos para setores privilegiados, além da falta de prioridade política nas últimas duas décadas para fazer a reforma tributária e cobrar do “andar de cima”.

Não precisa fazer uma nova constituição para dar conta da rede de proteção prevista na Constituição. Tem é que ter coragem para enfrentar o ajuste e as medidas necessárias.

A Constituição tem defeito. Entre elas, amarras que engessam o Orçamento. Mas por que falar de mudanças justo agora quando faltam poucas semanas para uma série de encaminhamentos de medidas de ajuste para 2021? Passa a impressão de que o líder está sinalizando que o governo pouco pode fazer para costurar um acordo no Congresso para medidas que apontem um rumo para 2021 diante do ímpeto gastador dos aliados do presidente Bolsonaro. Estaria o líder jogando a toalha?

Como líder do governo, Barros deveria estar mais preocupado com a criação das condições políticas para a instalação da Comissão Mista de Orçamento (CMO), que poderia ajudar o País a sair do impasse fiscal e orçamentário que tem alimentado as incertezas sobre o futuro da economia.

Como definiu a procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, Élida Graziane Pinto, ferrenha defensora dos recursos para saúde e educação garantidos na Constituição, um plebiscito agora traria, na prática, uma espécie do debate chileno às avessas: uma desconstitucionalização das garantias de saúde e educação públicas universais e um retrocesso brasileiro na contramão da revolta social chilena.


Cristina Serra: O Chile de Isabel Allende

Chilenos escolheram se livrar da Constituição, que ainda era a de Pinochet

Em agosto de 1986, entrevistei a escritora chilena Isabel Allende, recém-convertida em sucesso editorial com seu livro de estreia, "A Casa dos Espíritos". Afilhada do presidente Salvador Allende, morto no golpe do general Pinochet, em 1973, Isabel vivia com a família em Caracas (Venezuela).

Entre vários assuntos, Isabel falou sobre as organizações de mulheres na resistência à ditadura em seu país, antevendo que elas teriam atuação decisiva num Chile que não tardaria a se reencontrar com a democracia. "O povo chileno se pôs de pé", afirmou. De fato, dois anos depois, um plebiscito disse não ao ditador, que deixou o poder em 1990.

O Chile passou a ser visto como exemplo de estabilidade política, alternando governos mais à esquerda ou à direita, sem que nenhum deles, contudo, conseguisse sanar a fratura da profunda desigualdade social. Até que, um ano atrás, o aumento das passagens de metrô levou o povo de volta às ruas, de onde não mais saiu.

O "estallido" incorporou reivindicações como saúde, educação e previdência públicas. E teve participação ativa de coletivos feministas, com a pauta de igualdade de gênero e fim da violência contra as mulheres. Uma das organizações tornou-se fenômeno mundial com o refrão: "El violador eres tú".

As manifestações acabaram desaguando em outro plebiscito histórico, neste domingo (25). Os chilenos escolheram se livrar da atual Constituição, que, apesar de reformada, ainda era a de Pinochet. Também decidiram que a nova carta será escrita por uma assembleia constituinte a ser eleita no ano que vem, composta meio a meio por homens e mulheres, tendo ainda uma cota para indígenas mapuches. Será a primeira vez no mundo que uma assembleia paritária irá redigir uma Constituição.

Até que a nova carta seja aprovada, em 2022, há um longo percurso. Desde já, porém, o Chile aponta caminhos, reacende esperanças e inspira todos os que acreditam na democracia. Isabel Allende acertou na mosca.


Luiz Carlos Azedo: O golpismo disfarçado

Nossa Constituição é fruto de um amplo processo de mobilização da sociedade e de um pacto de transição à democracia como os militares, derrotados com a eleição de Tancredo Neves

O Chile decidiu em plebiscito convocar uma Constituinte formada por homens e mulheres, meio a meio, e sem a participação dos atuais mandatários, somente cidadãos. Foi o desfecho de um processo de insatisfação popular com o “Estado mínimo” chileno, uma herança do ditador Augusto Pinochet, consagrada na Constituição de 1980. Muita coisa mudou desde então, com sucessivas reformas constitucionais, mas o estigma de uma Carta pinochetista, ou seja, de inspiração fascista, havia permanecido, assim como o caráter privatista de uma legislação que não contemplava os direitos sociais. A convocação da Constituinte chilena, portanto, era uma questão de tempo e representará o fim de um ciclo político de 40 anos de transição do autoritarismo para a democracia plena.

É uma situação completamente diferente da nossa. Temos uma Constituição social-liberal, cujo preâmbulo diz que o nosso Estado democrático é “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”. Nossa Constituição é fruto, simultaneamente, de um amplo processo de mobilização da sociedade e de um pacto de transição à democracia como os militares, que haviam sido derrotados com a eleição de Tancredo Neves, no colégio eleitoral, em 1985, mas se retiraram do poder em ordem.

Entretanto, o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), ontem, no embalo das notícias sobre o Chile, propôs um plebiscito para elaborar uma nova Constituição para o nosso país. Não é uma tese nova. A ex-presidente Dilma Rousseff, após as manifestações de junho de 2013, por exemplo, namorou essa ideia, que foi prontamente rechaçada pelos políticos e pelos juristas. Agora, a proposta vem do outro lado do espectro político, com propósitos igualmente suspeitos, porque sabemos que o presidente Jair Bolsonaro gostaria de uma Constituição que lhe desse mais poderes em relação ao Judiciário e ao próprio Legislativo.

Muitos criticam a Constituição de 1988 porque é social-liberal. O pomo da discórdia é o seu artigo 3º, segundo o qual “constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (I) construir uma sociedade livre, justa e solidária; (II) garantir o desenvolvimento nacional; (III) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; (IV) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. A existência desses dispositivos, principalmente quanto à economia e aos direitos sociais — ou seja, exatamente aquilo que os chilenos, ao aprovar a convocação da sua Constituinte, pleiteiam —, sempre incomodou os setores mais conservadores da nossa sociedade.

Mais poderes
No nosso caso, muitos podem achar que papel aceita tudo e que as coisas não funcionam por causa da Constituição de 1988. Não é verdade. Como diz o ex-deputado Miro Teixeira, um dos constituintes, nosso problema é cumpri-la. O que vem acontecendo ao longo dos anos é que o Supremo Tribunal Federal (STF), cuja missão é zelar pelo respeito à Constituição, vem sistematicamente tomando decisões que obrigam ao cumprimento de diversos dispositivos desse artigo, sobretudo em relação às liberdades e à igualdade de direitos. Uma parte das críticas à “judicialização da política” e às decisões do Supremo resulta do exercício desse papel, como “poder moderador”, ainda mais quando atua para garantir direitos relativos a mudanças nos costumes ou para conter abusos dos governantes.

Pode ser que Ricardo Barros tenha anunciado a proposta para agradar ao chefe, mas é ilusão imaginar que o líder do governo é um bobo da corte. Parlamentar experiente, que há muitos anos lidera setores conservadores do Congresso, viu no plebiscito chileno uma oportunidade. Muitos gostariam de mudar a Constituição por maioria simples, como acontece nas constituintes. Hoje, essas mudanças só podem ser feitas por três quintos dos membros da Câmara e do Senado, em duas votações, sendo que são cláusulas pétreas, ou seja, que não podem ser alteradas: (I) A forma federativa de estado; (II) O voto secreto, direto e universal; (III) A separação dos poderes; (IV) os direitos e garantias individuais.

Agora mesmo, a propósito da polêmica sobre a obrigatoriedade da vacina contra o novo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro investiu contra o Judiciário, com o argumento de que a Justiça não pode decidir sobre esse assunto, embora esteja diretamente relacionado à teoria do dano direto e imediato, consagrada no nosso Código de Processo Civil. Bolsonaro, por diversas vezes, investiu contra o Supremo por acreditar que o fato de ter sido eleito presidente da República lhe dá poderes maiores do que aquele que a Constituição lhe atribuiu. Mudar a Constituição, inclusive para alterar a composição da Suprema Corte e amordaçar a imprensa, reprimir a oposição e se reeleger sucessivas vezes foi o estratagema de muitos mandatários eleitos que governam seus países autoritariamente.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/o-golpismo-disfarcado/

O Estado de S. Paulo: Líder do governo Bolsonaro na Câmara diz que Constituição tornou Brasil 'ingovernável'

Ao comentar votação no Chile, Ricardo Barros defende plebiscito no País e afirma que a Carta brasileira 'só tem direitos e é preciso que o cidadão tenha deveres com a Nação'

Breno Pires e Camila Turtelli, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), defendeu a realização de um plebiscito para que os cidadãos brasileiros decidam sobre a elaboração de uma nova Constituição, sob o argumento de que a Carta Magna transformou o Brasil em um “País ingovernável”. Barros citou como exemplo o Chile, que foi às urnas no domingo, 25, e definiu que uma nova Assembleia Constituinte deverá ser eleita para a criação de uma nova constituição do país.

“Eu pessoalmente defendo nova assembleia nacional constituinte, acho que devemos fazer um plebiscito, como fez o Chile, para que possamos refazer a Carta Magna e escrever muitas vezes nela a palavra deveres, porque a nossa carta só tem direitos e é preciso que o cidadão tenha deveres com a Nação”, disse Barros nesta segunda-feira, 26, em um evento chamado "Um dia pela democracia”.

No começo da tarde, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), rebateu a declaração de Barros. "A situação do Chile é completamente diferente da do Brasil. Aqui, o marco final do nosso processo de redemocratização foi a aprovação da nossa Constituição em 1988. No Chile, deixaram está ferida aberta até hoje", disse ele ao Broadcast Político/Estadão. Maia tem nacionalidade brasileira, mas nasceu em Santiago, no Chile, em 1970, durante o exílio do pai, o também político brasileiro Cesar Maia. O vereador e ex-prefeito do Rio de Janeiro era militante do Partido Comunista Brasileiro e havia fugido por ser perseguido pela Ditadura Militar no País.

Ricardo Barros, que representa os interesses do governo federal na Câmara dos Deputados, disse que a Constituição tornou o País “ingovernável”, ao afirmar que o Brasil hoje tem uma “situação inviável orçamentariamente". "Não temos mais capacidade de pagar nossa dívida, os juros da dívida não são pagos há muitos anos, a dívida é só rolada e com o efeito da pandemia cresceu muito, e esse crescimento nos coloca em risco na questão da rolagem da dívida”, disse. Emendas à Constituição, segundo ele, não são o suficiente.

“A nossa Constituição, a Constituição cidadã, o presidente (José) Sarney já dizia quando a sancionou, que tornaria o país ingovernável, e o dia chegou, temos um sistema ingovernável, estamos há seis anos com déficit fiscal primário, ou seja, arrecadamos menos do que gastamos, não temos capacidade mais de aumentar a carga tributária, porque o contribuinte não suporta mais do que 35% da carga tributária, e não demos conta de entregar todos os direitos que a Constituição decidiu em favor de nossos cidadãos”, disse.

O outro problema, na visão do parlamentar, é que “o poder fiscalizador ficou muito maior que os demais” e, por isso, seria necessário também “equilibrar os Poderes” no país. O deputado, que é alvo de investigações do Ministério Público Federal, diz que é preciso punir quem apresentar denúncias sem prova.

Conhecido crítico à Operação Lava Jato, Barros acrescentou que, apesar de ser um desejo dos brasileiros, o combate à corrupção não pode ser feito “cometendo crimes”. O deputado disse também ser a favor do parlamentarismo. “Seria um regime de governo muito mais efetivo, que nos permitiria ajustar rapidamente as crises, retomar mais rapidamente o rumo quando existe um impasse, mas vamos ainda lutar por isso”, disse.

O discurso do deputado foi feito em evento organizado pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), que contou com a presença de ministros do Supremo Tribunal Federal, do ministro da Economia, Paulo Guedes, e de juristas.

Integrante do Centrão, deputado federal por seis legislaturas e ex-ministro da Saúde de Michel Temer, Ricardo Barros foi nomeado como líder em agosto, no lugar de Major Vitor Hugo (PSL-GO).


Folha de S. Paulo: Vitória no plebiscito é recado a políticos do Chile e líderes estrangeiros, diz Lagos

Para ex-presidente, aprovação de mudança da Constituição mostra que 'modelo chileno' é falsa solução

Sylvia Colombo Folha de S. Paulo

SANTIAGO - Para o ex-presidente do Chile Ricardo Lagos, 82, o plebiscito que derrubou a Constituição da época da ditadura de Augusto Pinochet é um recado a líderes estrangeiros, como o presidente Jair Bolsonaro, que consideram ou chegaram a considerar que o “modelo chileno” seria um exemplo a ser seguido.

Lagos presidiu o país entre 2000 e 2006. Tentou convocar uma Assembleia Constituinte, mas, na época, partidos de direita se mantiveram unidos e não permitiram a realização de um referendo. O socialista, então, alterou, ponto por ponto, aspectos mais autoritários da Carta hoje em vigor.

Além do tom liberal, a Constituição de 1980 dava muito poder aos militares, o que colocava obstáculos a decisões do Legislativo e do Executivo. Entre as 58 modificações realizadas por Lagos estavam a redução do mandato presidencial de seis para quatro anos, o aumento do peso do poder do Congresso em detrimento da participação das Forças Armadas e o fim da designação de senadores vitalícios.

Como o senhor avalia o resultado do plebiscito?

Estou muito orgulhoso por termos honrado uma tradição chilena de institucionalidade. Este foi um processo que teve momentos de violência nos últimos meses, mas que não foram preponderantes ao final. Tivemos uma eleição massiva se considerarmos a pandemia e o histórico recente do Chile, de comparecimento muito baixo. Os cidadãos votaram com paz, inclusive os idosos, que poderiam ter temido o vírus e ficado em casa. Votou-se com entusiasmo, alegria e respeito.

Por que foi possível aprovar uma Assembleia Constituinte agora e não em seu período como presidente?

No meu tempo, a direita estava unida, e, portanto, era impossível aprovar um processo como este. Hoje, temos um setor da direita que concorda com a necessidade de renovar a Constituição. Demorou, mas chegamos a esse momento. Esses direitistas que mudaram de opinião, que poderiam ser considerados traidores em seu ambiente, deram-se conta de que as mudanças são necessárias. A explosão social do último ano colaborou para que abrissem os olhos para a inevitabilidade de ter de acompanhar as transformações dos tempos. Agora vamos assistir a uma reorganização da direita para a eleição constituinte e para as próximas presidenciais [em novembro de 2021].

O senhor considera que este plebiscito foi um recado à classe política?

Sim. É importante notar que boa parte de quem votou pelo “rejeito” ainda assim escolheu, na segunda cédula, a Assembleia Constituinte integralmente eleita. Ou seja, admitiu que, caso a Constituinte passasse, preferiam que fossem eleitos novos legisladores para redigi-la. Nesse sentido, foi um recado a legisladores e partidos que estão no poder agora. É um número interessante de ser analisado. Porque se os que votaram pelo “rejeito” estivessem contentes com os atuais políticos, pediriam que a assembleia fosse mista, pois assim os partidos de sempre poderiam ter controle da situação. Essa hipótese foi derrotada, portanto, tanto pelos que votaram “aprovo” quanto pelos que votaram “rejeito”.

Quais são os desafios do governo agora?

A votação gerou grande expectativa, mas é preciso que a população tenha paciência, porque a nova Constituição não ficará pronta neste mandato. É preciso eleger os membros da constituinte, que eles redijam a nova Carta e que depois ela seja aprovada. Portanto, os problemas da população seguirão presentes nos próximos dois anos, e o desafio do governo é atender a essas questões mais urgentes agora. No momento, o foco deve estar na recuperação econômica e em vencer a pandemia. O trabalho da assembleia constituinte seguirá paralelo, e seu efeito não é imediato.

O que o senhor diria para líderes como Jair Bolsonaro, que chegaram a defender a aplicação do chamado “modelo chileno”?

Respondi a essa questão a vários líderes, um deles foi o ex-presidente dos EUA George W. Bush. Quando você mexe num tema como a Previdência, por exemplo, adotando a capitalização em vez da repartição, você diminui muito aquilo que a pessoa receberá no futuro. E, no final das contas, isso acaba virando um problema novo para o Estado. A ex-presidente [Michelle] Bachelet teve de fazer aportes novos, com o sistema de “pilares solidários”, que foram repasses de benefícios para quem não tinha com o que viver depois de aposentado. O mesmo acontece em outras áreas quando você quer retirar o Estado de tudo. No final, o Estado tem de arcar com as contas. Ou seja, é uma falsa solução, muito imediata, que não funciona a longo prazo. Isso explicaria ao sr. Bolsonaro. Bush entendeu, nunca mais me perguntou.

O senhor acredita que as manifestações continuarão?

É possível, pois os problemas imediatos seguirão, temos muito a percorrer até a Constituição ficar pronta. Ela pode ser uma solução para o futuro, mas não para o presente. O governo tem de lidar com as urgências. Se não conseguir, as pessoas voltarão às ruas.

*Ricardo Lagos, 82, primeiro presidente socialista do Chile depois de Salvador Allende (1908-1973), que foi deposto pela ditadura de Augusto Pinochet, governou o país de 2000 a 2006. Advogado e economista, anunciou candidatura para as eleições de 2017, mas desistiu pouco depois por falta de apoio dentro de sua coalizão. ​


Entenda o plebiscito

O que foi votado?

No dia 25 de outubro, a população chilena decidiu se o país aprovava ou rejeitava a elaboração de uma nova Constituição. O plebiscito também perguntou se a nova Carta deveria ser elaborada por uma comissão constituinte formada apenas por representantes eleitos ou por uma comissão mista, que inclua também os atuais membros do Congresso.

Quais são as críticas à Constituição atual?

Liberal, a Carta não obriga o Estado a fornecer diretamente saúde, educação e proteção social aos chilenos, o que estimula a atuação privada nessas áreas. Uma mudança constitucional poderia obrigar o governo a ser mais atuante e ampliar o acesso da população a serviços básicos. Outra crítica é a de que ela foi feita pela ditadura de Augusto Pinochet, em 1980, com pouca participação popular, e que refazê-la permitirá incluir demandas de mais grupos, especialmente das mulheres.

E quais eram as razões para não mudá-la?

Defensores do "não" dizem que uma mudança radical pode comprometer a estabilidade econômica e argumentam que a Constituição poderia ser apenas reformada. Os críticos da mudança apontam que expandir a atuação social do governo depende muito mais de ter dinheiro em caixa do que das intenções da Constituição e consideram que ela não deveria ser tão detalhista, como apontar em quais questões sociais o governo deve agir.

Como se chegou ao plebiscito?

A mudança da Constituição foi uma das demandas dos protestos realizados no país a partir de outubro de 2019. O estopim foi a alta da tarifa do metrô em Santiago, mas logo se tornou um movimento contra a alta do custo de vida e a dificuldade de acesso à educação e saúde e o baixo valor das aposentadorias. O Congresso aprovou a realização de um plebiscito constitucional em novembro, que seria votado em abril. Por causa da pandemia, ele foi adiado para outubro.


Folha de S. Paulo: Em plebiscito histórico, chilenos decidem acabar com Constituição de Pinochet

Com 99,85% das urnas apuradas, aprovação da mudança vence por ampla margem (78%)

Sylvia Colombo, de Santiago

Pouco mais de um ano depois dos protestos que incendiaram o Chile, deixaram 30 mortos e dezenas de feridos e forçaram o governo a convocar um plebiscito histórico, o país decidiu neste domingo (25) acabar com a Constituição da época da ditadura de Augusto Pinochet.

Com 99,85% dos votos contabilizados, o resultado foi a vitória do “aprovo” à nova Carta, por 78,27% contra 21,73% do “rejeito”. Os eleitores chilenos também decidiram que o novo documento será redigido por meio de uma Assembleia Constituinte inteiramente renovada, sem a participação de legisladores já eleitos.

A escolha dessa assembleia será por meio de uma eleição, a ser realizada em abril de 2021, em que haverá paridade de 50% entre homens e mulheres. A proposta venceu por 78,9% dos votos, contra 21% que optaram por uma assembleia mista, que contasse com parlamentares já no cargo. Também ficou decidido que os que quiserem se candidatar a esses postos não precisarão ter vínculos com partidos políticos.

Às 21h25, o presidente Sebastián Piñera declarou que a votação marca o "princípio de um processo constituinte". Ele disse ainda que faria de tudo para "impulsionar uma nova Constituição em que estejam refletidos os valores e os princípios que marcam a alma da nossa sociedade, que reconheça e proteja os cidadãos de abusos e de discriminações, que reforce o Estado de Direito, a Justiça e a igualdade".

Enquanto o presidente falava, do palácio de La Moneda, que foi iluminado com as cores da bandeira nacional, nas ruas se ouvia buzinas e rojões. Na praça Italia, uma multidão festejava com batuques e bandeiras. Houve festejos também em outros pontos do país, embora o Servel (órgão eleitoral), ainda não tivesse feito nenhum pronunciamento oficial.

“Nunca tínhamos visto um processo de participação como o que estamos vendo”, disse o presidente do Servel, Patricio Santamaría, logo após o fechamento das urnas, quando ainda não haviam sido divulgados os números de comparecimento.

Enfrentando uma fase crítica da pandemia de coronavírus, com quase meio milhão de casos registrados e mais de 14 mil mortos em decorrência da doença, o governo adotou um rígido protocolo sanitário, que levou à formação de longas filas nos locais de votação em Santiago, principalmente nos bairros de Recoleta, Providencia e Las Condes.

A demora irritou alguns eleitores, mas já era sinal de que o comparecimento havia sido alto —o que não vinha acontecendo em outros pleitos.

Embora o padrão eleitoral no Chile seja de 14,7 milhões, a abstenção tem sido um problema crescente nos últimos anos. Nas eleições municipais de 2016, o comparecimento foi de apenas 36%. Nas presidenciais, aumentou para 50% dos eleitores aptos a votar.

O último pleito com mais de 60% da presença dos eleitores ocorreu em 1993, com a vitória de Eduardo Frei Ruiz-Tagle, da coalizão de centro-esquerda Concertação.

Neste domingo, os chilenos puderam votar a partir das 8h e na maior parte do dia, o clima foi tranquilo na capital, com muitos policiais nas ruas.

Uma hora e meia antes do fechamento das urnas, marcado para as 20h, um grupo de manifestantes e policiais chegaram a se enfrentar na praça Itália, recentemente rebatizada de praça Dignidade. É ali, em torno da estátua do general Baquedano, que os protestos costumam acontecer desde outubro do ano passado.

As ruas na região foram fechadas, e os policiais usaram jatos de água para dispersar os grupos, que retrocederam.

O presidente chileno votou ainda de manhã no centro da capital e disse esperar que “este seja o dia da democracia e da expressão pacífica da vontade dos chilenos e da rejeição a métodos violentos de grupos como os que incendeiam igrejas e provocam distúrbios”.

“Não há uma preferência única no gabinete do governo por uma das opções. Temos visões distintas, mas o mais importante é que respeitaremos o resultado das urnas e esperamos que todos façam o mesmo. Vamos resolver os problemas do Chile pelas urnas, que é o modo adequado e institucional”, afirmou Piñera.

“Não devemos perder de vista quais são as prioridades agora, recuperar os trabalhos e vencer o vírus.”

O mandatário fez questão de realizar todos os procedimentos de votação lentamente, para mostrar cada passo dos protocolos sanitários.

Assim como os outros eleitores, Piñera entrou sozinho na sala de votação, teve de levar sua própria caneta azul, mostrar um documento e higienizar as mãos com álcool em gel. Depois disso, recebeu as duas cédulas de papel.

Em uma delas, o eleitor escolhe se aprova ou rejeita a elaboração de uma nova Constituição. Na outra, diz se prefere que a nova Carta, caso aprovada, seja realizada por uma Assembleia Constituinte totalmente eleita numa votação em abril, ou se será mista.

Nesta segunda opção, metade dela seria formada por parlamentares que já exercem seu mandato e seriam escolhidos pelos partidos, sem nova votação. A outra metade, por constituintes eleitos em abril.

Em ambos os casos, na nova eleição, 50% dos novos escolhidos devem ser mulheres.

Depois de marcar seu voto, o presidente teve de fechar suas cédulas com um adesivo, e não mais com a língua, como se fazia, para ajudar a evitar a contaminação. Em seguida, depositou os dois votos em duas urnas de plástico diante dos mesários. Foram eliminadas as cortinas de pano que existiam nas eleições anteriores, também para ajudar a arejar o ambiente.

O único procedimento que Piñera não precisou fazer foi baixar por três segundos a máscara, a uma distância de 2 metros dos mesários. Essa medida é exigida a todos os eleitores, para que possam ser identificados.

A atual carta chilena foi promulgada em 1980, durante a ditadura militar de Augusto Pinochet (1973-1990) e com pouca participação popular.

Liberal, ela não obriga o Estado a fornecer diretamente saúde, educação e proteção social, o que estimula a atuação privada nessas áreas. Os que defendem alterar o texto acham que uma mudança constitucional poderia obrigar o governo a ser mais atuante e ampliar o acesso da população a serviços básicos.

Atualmente, o voto é obrigatório no Chile ara os cidadãos entre 18 e 70 anos.

Entre os protocolos estabelecidos para o referendo deste domingo, também foram reservados horários para os idosos, das 14h às 17h.

Piñera insistiu que eles não tivessem medo e os convidou a sair de casa para votar. “Creio na sabedoria dos que têm o cabelo grisalho”, disse, sorrindo e apontando para a própria cabeça.

Corina Concha, 65, chegou para votar em Temuco em uma cama hospitalar. Impedida de andar há mais de cinco anos e sem sair de casa desde o início da pandemia, ela afirmou que não podia perder esse dia histórico. “Quem pode andar, que não perca essa oportunidade, e quem não pode peça ajuda. É o dia de todos os chilenos”.

Além do horário exclusivo, os idosos também tiveram uma fila especial durante todo o dia para votar de modo mais rápido. Funcionários do Servel auxiliaram as pessoas mais velhas a caminhar ou as levaram até suas mesas de votação, empurrando suas cadeiras de rodas.

Os idosos que venceram o medo da pandemia geralmente apareciam com muitas precauções. Havia gente com mais de uma máscara, com proteções de rosto e com roupas térmicas fechadas do pés à cabeça.

No estádio Nacional, Carmen, 87, chegou numa cadeira de rodas, empurrada pela filha Josefa, 64. “Aqui nesse estádio ficaram presos os perseguidos pela ditadura, muitos morreram, eu me lembro. Não podia perder a oportunidade de votar num dia histórico como hoje, que pode apagar de vez o último vestígio daquela época terrível para todos os chilenos”, disse Carmen à Folha.

Uma pesquisa do Instituto Tresquintos divulgada na sexta (23) à noite indicava que a mudança de Constituição seria aprovada por 69% dos eleitores, e que a preferência por uma Assembleia Constitucional inteiramente nova era de 57% dos eleitores.


Marcus Vinicius Oliveira analisa desafios da esquerda com base na via chilena

Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, historiador toma como base livro de Alberto Aggio

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Em 1970, a coalizão da Unidade Popular elegeu Salvador Allende como presidente do Chile, conforme analisa o doutor em história Marcus Vinicius Oliveira, em artigo que produziu para a 23ª edição da revista Política Democrática Online. “Tal eleição representava, para não só o Chile, mas também as esquerdas, o desafio de elaborar as transformações históricas necessárias para a construção do socialismo dentro da ordem e das instituições democráticas, o que implicava a produção de uma novidade no patrimônio das culturas políticas das esquerdas socialistas e comunistas, habituadas a uma visão instrumental da democracia e aferradas aos paradigmas revolucionários”, afirma.

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A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza todos os conteúdos com acesso gratuito em seu site. Em seu artigo, Oliveira analisa, cinco décadas após o início da “experiência chilena”, o livro “Democracia e socialismo: a experiência chilena”, de Alberto Aggio (1993), marcando suas potencialidades para a compreensão dos dilemas políticos contemporâneos.

“Na medida em que não abandonava os posicionamentos revolucionários, as ações da Unidade Popular terminaram por pressionar a própria ordem democrática que havia permitido sua ascensão ao poder, “ escreve o doutor em história, para continuar: “Incapaz de compreender os rumos da revolução passiva chilena, a coalizão política vitoriosa, em determinados momentos, procurou, sem consensos políticos estáveis, acelerar e aprofundar o ritmo das transformações históricas, contribuindo para o rompimento daquele consenso democrático”.

De acordo com o autor do artigo, é preciso refletir em torno dos significados da experiência para a política contemporânea. “Não revisitamos a ‘experiência chilena’ para perscrutar seus fracassos ou mesmo reconstruir a oportunidade perdida para a construção do socialismo no século XXI”, afirma.

Distante de qualquer perspectiva socialista, segundo Oliveira, a via chilena dialoga com o nosso tempo na medida em que marca um ponto de inflexão que aponta a necessidade de abandono das expectativas revolucionárias e um redirecionamento das políticas de esquerda para o enfrentamento da democracia, enquanto perspectiva civilizacional capaz de garantir transformações históricas, sem a perda das liberdades e das individualidades.

“Cinco décadas após, o desafio apontado por Aggio na via chilena, marco da história da política democrática das esquerdas de hoje, ainda nos pertence”, afirma o doutor em história. Para o presente, conforme acrescenta, marcado pela ascensão de discursos autoritários e de perspectivas antipolíticas, considerar o tempo da política significa abandonar o sentido de ruptura como um momento condensado no tempo, tanto quanto compreender que o enfrentamento desse desafio civilizacional ocorre em uma temporalidade alongada e multidirecional, na qual devemos produzir os caminhos a partir dos dilemas do presente.

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RPD || Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira: A "experiência chilena" e o tempo da política

Após cinco décadas, o desafio apontado por Alberto Aggio em sua obra “Democracia e socialismo: a experiência chilena”, ainda nos pertence, marcando suas potencialidades para a compreensão dos dilemas políticos contemporâneos, avalia Marcus Vinicius Furtado em seu artigo

Livros e leitores se transformam ao longo do tempo. Longe de ser uma recepção passiva, o ato de ler é capaz de recriar o sentido dos textos a partir das experiências e expectativas vivenciadas no presente, de modo que revisitar um livro pode se tornar a descoberta de significados não acessados durante a primeira leitura. Pensando nessas várias possibilidades que a leitura pode assumir no tempo, esse artigo pretende revisitar, cinco décadas após o início da “experiência chilena”, o livro “Democracia e socialismo: a experiência chilena”, de Alberto Aggio (1993), marcando suas potencialidades para a compreensão dos dilemas políticos contemporâneos.

Em 1970, a coalizão da Unidade Popular elegeu Salvador Allende como presidente do Chile. Tal eleição representava, para não só o Chile, mas também as esquerdas, o desafio de elaborar as transformações históricas necessárias para a construção do socialismo dentro da ordem e das instituições democráticas, o que implicava a produção de uma novidade no patrimônio das culturas políticas das esquerdas socialistas e comunistas, habituadas a uma visão instrumental da democracia e aferradas aos paradigmas revolucionários. Na perspectiva de Aggio, a construção dessa novidade passava pela resolução das ambiguidades entre democracia e revolução, e pela criação de uma nova concepção de tempo político adequada à modernidade política chilena, que se construía, em um processo histórico tenso e conflituoso, ao menos desde a primeira metade do século XX, com a ativação da participação das massas na política e a construção de um consenso democrático.

Na medida em que não abandonava os posicionamentos revolucionários, as ações da Unidade Popular terminaram por pressionar a própria ordem democrática que havia permitido sua ascensão ao poder. Incapaz de compreender os rumos da revolução passiva chilena, a coalizão política vitoriosa, em determinados momentos, procurou, sem consensos políticos estáveis, acelerar e aprofundar o ritmo das transformações históricas, contribuindo para o rompimento daquele consenso democrático.

Na modernidade ocidental, como afirmou Gramsci, o fortalecimento da sociedade civil tornou frívola a perspectiva de um assalto frontal ao aparelho do Estado. Nessa nova configuração política, trata-se de, por meio das relações de força que caracterizam a política, disputar a hegemonia na sociedade. Com isso, o tempo da revolução se torna incompatível com o tempo da política. Enquanto o primeiro é marcado por urgências, o segundo se alonga indefinidamente e constrói novo significado de ruptura, marcado pela ideia de que as transformações históricas devem ocorrer a partir de consensos pactuados politicamente no interior de uma moldura democrática. Por isso, Aggio afirma que “sem conseguir traduzir o seu projeto numa grande criação em que o novo nascesse, de fato, da particularidade chilena que havia possibilitado a existência daquela experiência, e sem formular uma nova noção de tempo político na construção do socialismo, o que implicava uma nova noção de ruptura – pactuada e reformadora –, a via chilena apenas conseguiu anunciar-se como uma via democrática”.

Diante disso, precisamos refletir em torno dos significados dessa experiência para a política contemporânea. Não revisitamos a “experiência chilena” para perscrutar seus fracassos ou mesmo reconstruir a oportunidade perdida para a construção do socialismo no século XXI. Distante de qualquer perspectiva socialista, a via chilena dialoga com o nosso tempo na medida em que marca um ponto de inflexão que aponta a necessidade de abandono das expectativas revolucionárias e um redirecionamento das políticas de esquerda para o enfrentamento da democracia, enquanto perspectiva civilizacional capaz de garantir transformações históricas, sem a perda das liberdades e das individualidades.

Cinco décadas após, o desafio apontado por Aggio na via chilena, marco da história da política democrática das esquerdas de hoje, ainda nos pertence. Para o presente, marcado pela ascensão de discursos autoritários e de perspectivas antipolíticas, considerar o tempo da política significa abandonar o sentido de ruptura como um momento condensado no tempo, tanto quanto compreender que o enfrentamento desse desafio civilizacional ocorre em uma temporalidade alongada e multidirecional, na qual devemos produzir os caminhos a partir dos dilemas do presente.

*Marcus Vinicius é doutor em História e membro do Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira.


Alberto Aggio: Brasileiros de esquerda no Chile de Allende

Irarrazabal chama-se a rua por onde caminhávamos em setembro. É um nome inesquecível porque jamais conseguimos pronunciá-lo corretamente em espanhol e porque foi ali, pela primeira vez, que vimos passar um caminhão cheio de cadáveres. Era uma tarde de setembro de 1973, em Santiago do Chile, perto da Praça Ñuñoa, a apenas alguns minutos do toque de recolher”.

É com essas palavras que Fernando Gabeira inicia a narrativa do seu famoso O que é isso, companheiro?, publicado em 1979, depois da anistia e de seu retorno ao Brasil. O livro alcançou um êxito tão fulminante quanto duradouro, especialmente em função da polêmica que criou ao questionar os valores e crenças daqueles que se lançaram à luta armada no Brasil. Gabeira era um deles e como muitos outros brasileiros que haviam saído do país por vincularem-se à esquerda – armada ou não –, ele estava no Chile no dia do golpe militar de 11 de setembro de 1973.

Naquele final de tarde Gabeira conheceria, mais uma vez, o sabor amargo da derrota. A sensação era pesada e a decisão difícil. Um tanto disfarçadamente, alguns companheiros caminhavam junto com ele pelas ruas de Santiago rumo à Embaixada da Argentina com o intuito de conseguir asilo político. Certamente não passava pela cabeça daqueles jovens a letra de “Para não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré, na qual se cantava, com outro espírito, os versos: “caminhando e cantando e seguindo a canção … a certeza na frente, a história na mão”. Ao contrário do voluntarismo daquela canção que animara os corações e mentes no final da década de 1960, ali só havia uma certeza: para salvar a própria vida, caminhava-se para um “exílio dentro do exílio”. A história lhes escapava das mãos e, como registrou Gabeira, o reconhecimento era inevitável: “as ditaduras militares estavam fechando o cerco no continente”.

Entretanto, aquela era uma explicação compreensivelmente unilateral a respeito do que se passava na América Latina e bastante superficial em relação ao que estava ocorrendo no Chile. Era, enfim, a visão daqueles que haviam investido sua juventude na luta armada e que viam a sua situação pessoal se complicar ameaçadoramente a partir da eclosão do golpe militar contra o governo de Salvador Allende. Isto porque àquela altura já não havia mais – se é que alguma vez houve – um movimento guerrilheiro de perfil latino-americano que estava sendo acuado pelas forças da reação, como Gabeira, de alguma forma, supunha em seu registro. As mudanças que se produziam naquela hora teriam, como se confirmará depois, um caráter muito mais profundo do que apenas o de reação a movimentos armados ou governos eleitos pela esquerda. As ditaduras que se impuseram por meio de golpes militares, especialmente a chilena, refundariam seus países e as repercussões disso eram ainda insondáveis para os homens contemporâneos àqueles fatos, especialmente aos que militavam na esquerda latino-americana.

Salvador Allende discursa em manifestação pública em Santiago

Salvador Allende havia assumido o poder no Chile depois de vencer a eleição presidencial de 1970 sendo candidato da Unidade Popular (UP), uma coalizão de esquerda que abrigava os partidos Comunista, Socialista, Radical, Social-Democrata, a Ação Popular Independente e o Movimento de Ação Popular Unificado (MAPU). Ao longo de três anos, Allende exerceu a presidência da República e foi deposto por um golpe militar na manhã daquela terça-feira, dia 11 de setembro de 1973. Seu governo ficou conhecido como a “experiência chilena” porque se propunha realizar uma tarefa inédita: construir o socialismo mediante a manutenção e o aprofundamento da democracia. Essa perspectiva política havia sido denominada por Allende como a “via chilena ao socialismo”, uma consigna que visava expressar o caminho que deveria levar à realização do objetivo maior de seu governo. Analiticamente, a “via chilena” era o projeto que deveria embasar a atuação do governo e da esquerda enquanto a “experiência chilena” constitui-se no processo que marcou todas as realizações, contradições e vicissitudes do governo conduzido por Allende e pela Unidade Popular.

Contrastando com a situação chilena do início da década de 1970, o Brasil vivia, naquela conjuntura, um aprofundamento do autoritarismo e da repressão política que caracterizavam o regime ditatorial implantado no país em 1964. No final de 1968, o Ato Institucional n. 5 (AI5) impôs severas restrições à vida política do país com o fechamento do Congresso, a implantação da censura prévia aos principais veículos de comunicação e a cassação do mandato de diversos parlamentares. Contudo, o Brasil não viveu, no início da década de 1970, apenas os “anos de chumbo” da ditadura militar. Esse também foi o período do chamado “milagre brasileiro” no qual a economia cresceu aceleradamente, com base numa combinação de arrocho salarial e entrada maciça de capitais internacionais, proporcionando uma vigorosa legitimidade ao regime militar. Com ela vieram o ufanismo do “Brasil Grande Potência” bem como o agressivo slogan “Brasil: ame-o ou deixe-o”, uma dramática resposta aos críticos do regime. A situação política do país para aqueles que se situavam ideologicamente à esquerda, vindos do trabalhismo, do comunitarismo cristão, do comunismo, do socialismo ou do trotskismo, e que vislumbravam atuar em oposição ao regime militar quer do ponto de vista político-partidário quer do ponto de vista acadêmico e intelectual era visivelmente restrita e em alguns casos absolutamente impeditiva.

Prisioneiros políticos brasileiros libertados depois de sequestro de embaixador no anos 1970

Não à toa muitos brasileiros tiveram que rumar para o exterior ou lá permanecerem, voluntária ou involuntariamente. Alguns o fizeram como último recurso para salvar a própria vida, outros simplesmente para conseguir dar seqüência à sua carreira profissional, especialmente aqueles vinculados ao meio acadêmico.  Dentre estes últimos, muitos haviam se mudado para o Chile, depois de 1964, e lá permaneceram como pesquisadores da CEPAL (Comissão Econômica para América Latina) quando o regime militar deu mostras de recrudescimento da sua ação repressiva após a promulgação do AI5. Outros, contudo, como o já mencionado Fernando Gabeira, chegaram ao Chile depois de trocados pela liberdade de algum embaixador estrangeiro seqüestrado pela esquerda armada no Brasil. Naquele momento, o Chile tornou-se um dos destinos preferenciais dos exilados brasileiros tanto em função da sua longa trajetória de democracia quanto da vitória da esquerda em 1970. Para todos esses brasileiros, como Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, Plínio de Arruda Sampaio e José Serra, dentre outros, uma frase do hino nacional chileno, em que se canta que o Chile deverá ser sempre “el asilo contra la opresión”, soava bastante literal, além de garantir efetivamente um amparo seguro para eles e, em alguns caos, para suas famílias.

Darcy Ribeiro, um dos principais representantes da intelligentsia trabalhista brasileira, talvez tenha sido a liderança política vinda do Brasil que alcançou mais proximidade com o então presidente Salvador Allende. Darcy Ribeiro foi seu assessor especial e, nessa função, redigiu partes do famoso discurso presidencial de 05 de maio de 1971 no qual Allende define a via chilena como uma segunda forma de construção da sociedade socialista, procurando distinguir o caminho chileno das experiências soviética e cubana. Nesse discurso – que se tornou a principal referência a respeito da via chilena ao socialismo –, Allende menciona explicitamente trechos extraídos dos clássicos do marxismo, especialmente de F. Engels, em que se admite um caminho pacífico para o socialismo. A fala de Allende procurava enfatizar que o caminho chileno seria realizado “dentro dos marcos do sufrágio, em democracia, pluralismo e liberdade”, indicando que o principal desafio do Chile sob o governo da esquerda seria “institucionalizar a via política para o socialismo”.

Darcy Ribeiro, antropólogo e politico da esquerda trabalhista

Anos mais tarde, em suas Confissões (Cia. das Letras, 1997), Darcy Ribeiro relata que, juntamente com outro assessor, o valenciano Joan Garcés, defendera perante o presidente que o primeiro objetivo de seu governo deveria ser a criação de uma legalidade democrática de transição ao socialismo e não a ênfase na política de nacionalizações e estatizações. Assim, para ele, além das grandes transformações estruturais desenhadas no programa da UP – e que deveriam ser realizadas com muito equilíbrio –, o grande desafio da opção assumida no Chile residia no percurso que se deveria trilhar para se conquistar a institucionalização da via política para o socialismo.

Entretanto, os partidos da esquerda chilena se colocaram contra essa idéia, estabelecendo uma outra linha de ação. Nos três anos que se seguiram, a ação transformadora do governo da UP ficou concentrada no Poder Executivo, sob comando do presidente Allende. Acreditando que a legalidade chilena suportaria as transformações que o governo da UP colocaria em curso, adotou-se uma posição intransigente nas ações governamentais, visando incrementar a industrialização do país mediante processos de nacionalização e estatização, intensificar a integração social por meio de políticas públicas de corte popular e aprofundar a democratização com o aumento dos espaços de participação. A temática político-institucional, presente na reflexão de Darcy Ribeiro no inicio do governo, permaneceu em segundo plano e, mais tarde, meses antes do golpe, quando Allende lhe perguntou se a alternativa que propusera teria sido mais viável e eficaz, Darcy não teve como dar ao presidente uma resposta definitiva, preferindo um argumento mais consensual para o momento no sentido de reconhecer que a dimensão econômica já havia chegado ao seu limite e que o governo necessitava de outras soluções para enfrentar a severa crise que já vivenciava. Apesar das divergências de condução política, Darcy Ribeiro compartilhou com Allende a visão de que era preciso compatibilizar as transformações econômicas com o andamento político do processo e manter um comportamento hábil e cauteloso no sentido de “acumular forças” para passos mais decisivos que estariam por vir.

Marco Aurélio Garcia e Elizabeth Lobo no Chile em 1971

Contudo, desde o inicio, muitos viam com ceticismo a chamada via chilena ao socialismo. Influenciados pela Revolução Cubana e capitaneados pelo Movimiento de Izquierda Revolucionário (MIR), parcelas do MAPU e pelo Partido Socialista – o partido de Allende –, estes setores entendiam que esquerda e governo deveriam seguir a estratégia de “pólo revolucionário”, contestando de maneira antagônica o “poder burguês”, agindo no sentido de aprofundar as contradições e conflitos até se produzir uma situação pré-revolucionária. Para isso, era preciso “avanzar sin transar”, ou seja, aprofundar as transformações sociais e econômicas sem negociação alguma com outros segmentos do espectro político chileno. O MIR não apoiara a eleição de Allende e, durante todo o período, permaneceu como a força oposicionista mais ativa no campo da esquerda. Seu líder mais expressivo, Miguel Enriquez (que anos mais tarde seria brutalmente assassinado pela ditadura) qualificava de “mentirosa” a formulação da via chilena como um segundo caminho para se chegar ao socialismo. De uma forma geral, todos esses setores de esquerda eram contundentes críticos do projeto da via chilena ao socialismo – e a maior acusação era de que ela se mantinha equivocadamente no interior da institucionalidade do Estado burguês – e visceralmente contrários ao encaminhamento político adotado pelo governo Allende. Há que se mencionar também o fato de que, nessa avaliação, esses setores da esquerda chilena se viam acompanhados por intelectuais que expressavam o pensamento da então chamada gauche revolutionnaire que brilhou na Europa entre os anos 60 e 70. Estes intelectuais (dentre eles a italiana Rossana Rossanda do grupo Il Manifesto, jornal critico e dissidente do velho Partido Comunista Italiano, o PCI) vaticinavam em seus textos de avaliação da chamada experiência chilena que, mais cedo ou mais tarde, como em todos os reformismos, Allende seria forçado a mudar de estratégia, aderindo, por fim, ao caminho revolucionário – definido, para eles, por meio da ruptura armada com o Estado burguês.

Theotônio dos Santos, Vania Brambirra e Hebert de Souza (Betinho) no retorno do exilio

Essa divisão marcaria profundamente a avaliação dos brasileiros que lá estiveram, refletindo a divisão que existia no seio da esquerda latino-americana a respeito do que se passava no Chile. Para boa parte da intelectualidade e da militância política da esquerda brasileira que se exilou no Chile, ao contrário do que defendia Allende, a experiência chilena teria que operar uma inflexão radical: passar do reformismo à revolução e do nacional-desenvolvimentismo ao poder democrático-popular. Um dos mais expressivos representantes dessa posição política foi Theotônio dos Santos, que era inclusive filiado ao Partido Socialista Chileno e dirigia, em 1973, o Centro de Estudos Socioeconômicos da Universidade do Chile (CESO). Nesse mesmo alinhamento poderíamos mencionar também os irmãos Eder e Emir Sader, Rui Mauro Marini, bem como Marco Aurélio Garcia, todos mais ou menos aderentes ou simpáticos às posições do MIR. Para se ter uma dimensão da contundência dos argumentos dessa corrente política, Theotônio dos Santos, no balanço final de um simpósio internacional realizado em Santiago, em outubro de 1971, procurou indicar o que ele entendia que deveria ser o papel chave do governo da UP: “criar condições para a tomada do poder (…) através da constituição do poder alternativo e não da conquista gradual do poder do Estado existente”. Depois do golpe, ao reavaliar todo o período, o que se deveria “julgar”, de acordo com Eder Sader, não eram os homens ou suas condutas no âmbito da esquerda e sim o próprio projeto da via chilena ao socialismo. O veredicto seria implacável: tratou-se de um equívoco trágico e fatal, ainda de acordo com Sader.

Para Darcy Ribeiro, esses setores praticavam um “radicalismo verbal exacerbado” e pretendiam – dogmaticamente – “cubanizar o processo chileno”. Para Darcy Ribeiro, essa “esquerda desvairada” ajudou a direita a dar o golpe definitivo em Allende. Essa avaliação, ainda que insuficiente enquanto uma explicação integral daquele processo histórico, nunca pode ser contestada cabalmente. Por outro lado, em sentido contrário ao que propugnavam no período e ao que escreveram posteriormente, aqueles que, como por exemplo, Theotônio dos Santos, à época criticavam Allende, entendem hoje – numa espécie de tour analítico surpreendente – que o governo da UP deve ser reivindicado “como vanguarda dos ideais revolucionários no nosso continente” e a sua experiência deve ser compreendida como um “projeto possível”.

Fernando Henrique Cardoso na defesa de doutorado em 1961

Entretanto, para além da polarização acima apresentada, é possível identificar também entre os brasileiros uma posição intermediária, que chegou a ser formulada no correr do período Allende. Num texto publicado por Fernando Henrique Cardoso na extinta revista Argumento – escrito antes, mas vindo a público depois do golpe de Estado –, chamava-se atenção para algumas importantes dificuldades do processo político chileno no sentido de superar a situação de dependência existente no país por meio da estratégia e das práticas adotadas pela UP e pelo governo Allende. Para Fernando Henrique Cardoso, os conflitos políticos e sociais que envolviam o governo Allende ameaçavam chegar a um patamar incontrolável e lançavam uma nuvem de pessimismo sobre a situação política. Segundo o sociólogo brasileiro, em função dos graves acontecimentos que marcavam o governo Allende, o cenário que se apresentava não era dos mais auspiciosos para a democracia chilena. Contudo, essa percepção de Cardoso – em tudo distanciada do protagonismo polarizador que marcavam as posições dos dirigentes da esquerda brasileira no Chile – não se transformaria em uma orientação política relevante, permanecendo no seu universo estritamente acadêmico e reflexivo. Deve-se lembrar que Fernando Henrique Cardoso – no Chile, um funcionário da CEPAL – havia publicado, com o chileno Enzo Faletto, em 1967, o livro Dependencia y desarrollo en América Latina que se tornaria um clássico dos estudos sobre a dependência. A superação da dependência do Chile em relação à presença dominadora dos EUA em sua economia era uma das questões centrais do programa da UP e do governo de Allende.

De toda maneira, o que se pode observar é que expressas de forma contrapostas, as falas dos principais protagonistas invadem integralmente o campo de análise, mantendo o passado envolto em uma bruma que não se dissipa. Ao testemunharem sobre o Chile de Allende, é ainda a perspectiva da derrota da esquerda diante da direita que, de maneira exclusiva, conduz o repensar histórico. Evita-se pensar a experiência chilena como o fracasso de um governo conduzido pela esquerda. Nas avaliações publicadas pelos principais protagonistas que participaram daquele processo – e dentre eles alguns dos brasileiros que acima mencionamos – não se toma como relevante o fato de que o governo atuou como nucleador de uma política que seguia a via institucional e as bases sociais da esquerda como um outro pólo que buscou permanentemente resolver a chamada questão do poder para implantar o mais rapidamente possível o socialismo. Essa dissociação foi geradora de uma tensão permanente no campo da esquerda e invadiu o coração do governo da UP. A partir dessa perspectiva de análise é possível perceber que efetivamente Allende foi se tornando, com o passar do tempo, uma liderança disfuncional uma vez que não advogava pela ruptura institucional e, por outro lado, não revelava capacidade para dirigir e controlar por inteiro o processo político que, por fim, redundou numa polarização catastrófica.

Uma das tendências radicalizadas do período se expressou na consigna “criar poder popular”

De uma forma geral, pode-se dizer que a experiência chilena fracassou por razões que pareciam despreocupar os principais atores da esquerda chilena e que eram anteriores a qualquer possível erro de condução política do processo e que também não tinham que ver diretamente com o desafio inédito de construir o socialismo por meio da democracia. Hoje está claro que jogou um papel fundamental o fato de Allende ter sido um Presidente da República com apoio político minoritário do ponto de vista da representação, uma vez que ele havia sido eleito com apenas 36% dos votos e sua posse havia sido aprovada, em segunda instância, pelo Congresso chileno. Efetivamente, somente o “clima revolucionarista” do final dos anos sessenta e a poderosa influência da Revolução Cubana na esquerda latino-americana explicam a temeridade de se buscar avançar na construção do socialismo pela democracia com um percentual tão exíguo de apoio eleitoral. Hoje sabemos também que há, no Chile de Allende, uma extraordinária importância o fato de que as forças políticas à época se dividiam em três correntes político-ideológicas – os liberais e nacionalistas, a democracia-cristã e o eixo socialista-comunista –, com projetos de sociedade distintos e até antagônicos entre si, dificultando a convivência e o equilíbrio do sistema político ao extremarem suas posições. É importante chamar a tenção para o fato de que o Chile nesse momento não tinha um centro político com funções negociadoras. Ao contrario, a DC buscava também implementar o seu projeto de sociedade. Em outras palavras, a DC era um centro excêntrico e isso, senão impossibilitava, dificultava ao extremo qualquer negociação mais substantiva ou duradoura entre esquerda e centro político. Em terceiro lugar, se poderia mencionar um tema programático: as reformas implementadas por Allende, aprofundando a reforma agrária, estatizando bancos e empresas (especialmente aquelas vinculadas à área mineradora), eram excessivamente maximalistas e o caminho adotado para realizá-las, por meio do executivo, acabaram efetivamente abrindo espaço para a ingovernabilidade. A exacerbação da idéia de que socialismo era estatização no plano econômico gerou uma política de tipo “soma zero”, que agregada aos outros fatores acima mencionados, geraram uma crispação sem remissão entre as forças políticas do país. Por fim, há que se agregar o fator externo: o apoio dos EUA à oposição – democrática e não-democrática – e, em seguida, ao golpe de Estado, não deixa dúvidas a respeito da transcendência do que se passava no Chile no início da década de 1970. Impedir uma nova Cuba era essencial para os EUA e, de fato, se configurou como um processo impossível de ser levado a bom termo num país que havia experimentado décadas de vida democrática antes de 1973.

Dividida e aquém dos acontecimentos e dos ditames que a historia lhe colocava, a esquerda buscava, sob Allende, realizar uma revolução feita por mecanismos legais do Estado chileno, mas pretendia implantar um socialismo que não era outra coisa senão algo equivalente ao que se passava na União Soviética, na China ou em Cuba. Realizar uma coisa e outra se mostrou inviável naquelas condições, indicando que, em nenhum sentido, estava amadurecido o significado da via democrática ao socialismo que a esquerda chilena, a partir do governo, vocalizava e dizia querer implementar.

Por essa razão, o governo Allende não deve ser entendido como uma experiência prática da impossibilidade histórica de uma via democrática ao socialismo, como pensou a esquerda brasileira e latino-americana por vários anos, depois daquele 11 de setembro de 1973. Naquele governo apenas se anunciou essa possibilidade. Allende e a UP concebiam o socialismo a partir de uma cultura política convencional que predominava na esquerda latino-americana. Enquanto que o desafio que emergiu no Chile era novíssimo e obrigava a que se concebesse tanto o socialismo de outra maneira quanto um tipo novo de estratégia para se chegar a ele. Ator e circunstâncias se contraditaram e a história, por meio de outros personagens, se impôs implacavelmente.


Luiz Carlos Azedo: Sai Friedman, entra Samuelson

“Marinho convenceu Bolsonaro e ganhou a queda de braço com Guedes. Investimentos em habitação, ou seja, na construção civil, têm grande ‘efeito multiplicador’ na economia”

O principal guru do ministro da Economia, Paulo Guedes, é o grande patrono da Chicago School of Monetary Economics: o economista ultraliberal Milton Friedman, nascido e criado no Brooklyn, em Nova York, filho de um casal de judeus imigrantes da Ucrânia. Friedman queria estudar matemática, mas os professores Arthur F. Burns e Homer Jones o influenciaram a estudar economia. Burns, pela dedicação à pesquisa; Jones, porque conseguiu uma bolsa de US$ 300 para ele estudar na Universidade de Chicago, da qual se tornou professor em 1946, por 30 anos. Em 1962, no livro Capitalismo e Liberdade, no qual reuniu suas principais conferências, defendeu a abolição de subsídios agrícolas, tarifas/cotas de importação, controle de aluguéis, salário mínimo, moradia subsidiada, licenciamento profissional, seguridade social, monopólio estatal dos correios, agências regulatórias e alistamento militar obrigatório. Vendeu 500 mil exemplares.

Em 1976, Friedman ganhou o Nobel de Economia, para o qual foi fundamental sua atuação no Chile, como conselheiro dos economistas chilenos egressos da Universidade de Chicago que implantaram as reformas liberais do general Augusto Pinochet, o ditador chileno que havia deposto Salvador Allende, em 1973, equipe da qual o ministro Guedes fez parte. Vem daí a associação de Friedman ao autoritarismo — as reformas somente foram possíveis depois de um banho de sangue —; porém, ele teve uma única conversa com Pinochet. Entretanto, suas palestras fizeram grande sucesso e seus conselhos foram seguidos à risca: cortes rápidos e severos nos gastos do governo para conter a inflação, instituições mais abertas ao comércio internacional e políticas compensatórias para aliviar a vida das classes mais pobres.

Ontem, o presidente Jair Bolsonaro assinou medida provisória que cria um novo programa de habitação do governo federal, batizado de Casa Verde e Amarela, concebido para substituir o programa Minha casa, Minha Vida, criado em 2009, no governo Lula, para ser o carro-chefe da eleição da presidente Dilma Rousseff. Além de financiamento de imóveis, o programa de Bolsonaro prevê ações voltadas à regularização fundiária, à reforma de imóveis e à retomada de obras. Os juros do financiamento das habitações do programa serão menores nas regiões Norte e Nordeste.

A previsão do governo é gastar R$ 25 bilhões do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e R$ 500 milhões do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS, fundo privado, mantido por bancos) e gerar 2,3 milhões de novos postos de trabalhos até 2024, entre diretos, indiretos e induzidos. O ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, será o responsável pelo programa, que vai ampliar o número de famílias beneficiadas mediante redução na taxa de juros do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço “para a menor da história”, além de mudanças na remuneração dos agentes financeiros.

Político hábil, Marinho convenceu o presidente Jair Bolsonaro e ganhou a queda de braço com Guedes. Economista, é um desenvolvimentista. Investimentos em habitação, ou seja, na construção civil, setor mais dinâmico da economia das cidades e grande empregador de mão de obra direta, têm grande “efeito multiplicador” na economia. É aí que entra o Paul Samuelson, ganhador do prêmio Nobel de 1970, um dos economistas mais influentes do século, defensor da aplicação desse conceito na política econômica. Físico e economista, Samuelson é autor de Fundamentos da Análise Econômica, ou Economics, um clássico da teoria econômica, que extrapola o campo da matemática na análise da complexidade da econômica.

Como funciona

O “multiplicador” é um efeito de segunda ordem sobre o sistema econômico criado pelo investimento. A expansão de um componente específico da renda nacional gera um resultado final maior do que o inicial para o PIB total. Qualquer alteração nas contas de consumo, investimento, gastos governamentais ou exportações impacta os indicadores de crescimento. Há três tipos de multiplicadores: o monetário, o fiscal e o keynesiano. O “multiplicador monetário” ocorre por meio do sistema bancário que, ao emprestar o que recebe através dos depósitos do público, multiplica a base monetária da economia, ou seja, o total de moeda disponível. O tomador do empréstimo vai investir esse dinheiro em produção para obter lucros superiores aos juros negociados com o banco. A poupança vira investimento e aumenta a renda. Já o “multiplicador fiscal” é uma mudança nos gastos governamentais, que impactará toda a renda nacional, com progressivo aumento no consumo e da renda, impactando generalizadamente na demanda agregada. Ou seja, a expansão do gasto público.

O “multiplicador keynesiano” refere-se ao impacto gerado pelo investimento. Quando há um aumento dos investimentos produtivos das empresas, haverá aumento na produção e mais contratação de mão de obra. Essa renda se reverte em consumo e poupança, sendo que o consumo é reinjetado na produção, aumentando ainda mais a renda nacional. A poupança será utilizada na sequência para investir em mais produção (por meio do multiplicador bancário) que será puxada pela demanda, com a ampliação do consumo. Ou seja, cada aumento na equação do PIB — consumo, investimento, gastos do governo ou exportações líquidas — gera um aumento na renda nacional. O problema é que essa conta não fecha numa situação como a que o Brasil está vivendo, sem poupança interna nem capacidade de endividamento. O próximo passo será “furar o teto” dos gastos públicos e emitir moeda.

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