Chile

El País: O fantasma de Pinochet paira sobre o Chile

 Semana no país sul-americano ficou marcada por diversos fatos relacionados ao ditador e seu regime

Passaram-se quase 45 anos do golpe de Estado de 1973 e a figura do falecido ditador Augusto Pinochet continua presente na conjuntura do Chile. Na quinta-feira, dia 19, no Congresso, o deputado de direita Ignacion Urrutia, do partido da situação UDI, insultou as vítimas da ditadura. Em meio a um debate sobre o projeto de lei que propõe reparações econômicas a presos políticos, que o Governo de Sebastián Piñera retirou do Parlamento, o congressista afirmou: “Mais do que exilados, foram terroristas”. Os deputados de oposição se retiraram da sala, enquanto que a representante da Frente Ampla de Esquerda, Pamela Jiles, atravessou o semicírculo para enfrentá-lo.

“Manifestações como as de Urrutia em países desenvolvidos seriam punidas”, afirmou a deputada comunista e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, Carmen Hertz. O Governo, por sua vez, por meio de vários ministros, condenou as palavras do deputado da UDI. Para o titular da Justiça, Hernán Larraín, as declarações “revelam seu desprezo aos direitos humanos, a quem foi vítima de crimes e à necessidade de reconciliação”, escreveu no Twitter. “Reflete a profunda falta de critério, odiosa e contumaz.” Gonzalo Blumel, secretário-geral da Presidência e um dos ministros mais próximos de Piñera, condenou as palavras de Urrutia: “É uma frase não só infeliz como cruel, e fere profundamente milhares de vítimas”, afirmou do palácio La Moneda.

Depois de 28 anos da chegada da democracia em 1990, praticamente ninguém defende a ditadura nem as violações aos direitos humanos — pelo menos publicamente — apesar de ainda haver quem respalde o legado econômico do regime, em contraposição a quem considera inaceitável separar as atrocidades das políticas públicas. Nas eleições presidenciais de 2017, a exceção à regra foi José Antonio Kast, o candidato que chegou a 7,93% no primeiro turno apelando à figura de Pinochet e ao voto da extrema-direita. “Se estivesse vivo, votaria em mim”, chegou a dizer em campanha. “A parte de toda a questão dos direitos humanos, o Governo de Pinochet foi melhor para o desenvolvimento do país do que o de Sebastián Piñera [2010-2014]”.

Para Piñera, que neste segundo mandato aspira a fechar acordo com pelo menos cinco grandes grupos de oposição, é no mínimo incômodo que um membro de sua coalizão seja quem acenda o debate em torno de Pinochet. O próprio Chefe de Estado, diferentemente do resto da direita e de alguns dos atuais colaboradores, votou pela opção do 'não' no plebiscito de 1988 que selou o fim da ditadura.

Mas o incidente desta quinta-feira na Câmara não é o único a trazer Pinochet de volta à realidade atual chilena. No início da semana, um memorial em honra a 177 presos desaparecidos e executados políticos na cidade de Valparaíso, a cerca de 110 quilômetros de Santiago, apareceu pintado com os seguintes dizeres: “Viva Pinochet”. Os grupos de direitos humanos da região apresentaram uma petição para investigar o atentado, assim como o representante do Governo na região, o intendente Jorge Rodríguez. Localizado na avenida Brasil da cidade portuária, o memorial sofreu danos graves com a pixação.

Há dois dias, por sua vez, o jornal La Tercera divulgou um vídeo gravado pouco antes da morte de um violador de direitos humanos da ditadura que tinha pedido indulto presidencial por razões humanitárias durante o mandato de Michelle Bachelet (2014-2018). Condenado pela Justiça a 10 anos de prisão por homicídio qualificado, René Cardemil Figueró cumpria o quarto ano de prisão no presídio de Punta Peuco e faleceu de câncer de próstata com metástases em 7 de abril passado no Hospital Militar. “Esses selvagens da Unidade Popular, esses selvagens que se vingaram de nós, não vão ganhar de nós. Nunca vão nos derrotar”, afirmou Cardemil em referência à coalizão de partidos de esquerda que apoiou o derrotado Governo de Salvador Allende.

Em outubro de 1973, no mês seguinte ao Golpe, foi um dos três culpados pelo fuzilamento de seis pessoas em Santiago do Chile, cujos restos foram encontrados em plena rodovia para Valparaíso com múltiplos ferimentos de bala: uma mulher grávida e seu marido — ambos argentinos —, um funcionário do Fundo Monetário Internacional, um empresário, um dentista e um estudante de Pedagogia.


José Arlindo Soares: Alternância sem Ruptura no Chile

 

O Chile acaba de fazer mais uma alternância no comando político do país, ao eleger Presidente da República, em segundo turno, o candidato de Direita Sebastián Piñera, como sucessor da socialista Michelle Bachelet. É a segunda vez que isso acontece na sucessão presidencial após o fim da ditadura militar. O mesmo Piñera já havia sucedido à atual presidente, e fez um governo com um programa liberal, mas sem abalar os fundamentos do sistema democrático chileno.

Com a redemocratização, o Chile retomou a sua tradição partidária e foi possível estabelecer uma solida aliança, a “Concertación”, reunindo os democratas cristãos, o partido socialista e outros grupos da esquerda. O primeiro presidente eleito nessa bem-sucedida coalisão foi o democrata cristão Patrício Aylwin (1990), que teve de governar ainda com a constrangedora presença do General Pinochet como Ministro da Guerra. Na sucessão de Aylwin, a frente democrática (Concertación) voltou a eleger o democrata cristão Eduardo Frei, que avançou bastante na consolidação da democracia no país. Somente na terceira quadra eleitoral, a esquerda socialista conseguiu o rodízio, com a hegemonia da chapa e a vitória da Ricardo Lagos. Em seguida foi eleita Michelle Bachelet, também socialista, mas de uma ala mais à esquerda.

Uma curiosidade é que, como agora, o sucessor foi Sebastián Piñera, representante de uma aliança de direita. O grande desafio dos governos da transição política foi superar os enclaves autoritários, como destaca o pesquisador da Flasco Manuel Garretón. Segundo Garretón, esses enclaves eram de naturezas diversas, como a Constituição elaborada pelo regime anterior, atores renitentes como as Forças Armadas, com poder de veto, a força da Direita não democrática, valores socioculturais autoritários ou éticos, relacionados com os problemas dos direitos humanos. Todas essas questões se submeteram a um processo de pressão /negociação que permitiu ir vencendo ou superando os elementos continuístas do regime militar.

Considerando o atual ciclo democrático, a recente eleição de Piñera é a sétima disputa presidencial, com cinco vitórias da aliança de centro-esquerda e duas da direita. Nessa última eleição, a Frente de Centro Esquerda não conseguiu marchar unida e se dividiu em três candidaturas. O Governo, o partido socialista e o partido comunista (Nueva Mayoria) apresentaram como opção o Senador independente Alejandro Guillier. O Centro, representado pela Democracia Cristã, concorreu com candidatura própria e teve um desempenho inexpressivo. A esquerda mais radical criou um novo movimento (Frente Ampla) e foi a grande surpresa do primeiro turno, chegando bem perto de desbancar o candidato do governo. No segundo turno, o candidato oficial dos socialistas não conseguiu atrair os eleitores da Frente Ampla e teve um desempenho aquém do esperado. Na verdade, não houve esforço por parte de Frente Ampla para somar votos para A. Guillier. Na campanha do segundo turno, a Jornalista Sanchez, candidata da esquerda radical, com mais de 20% dos votos, declarou que pessoalmente votaria em Guillier, mas logo acrescentou “Nós, da Frente Ampla, nos apresentamos como projeto de país, vamos fazer oposição a qualquer um dos candidatos. Não vamos participar do governo, não vamos participar do governo”( El Pais- 18- nov) Trata-se do antivoto, ou seja, do estimulo ao voto nulo.

Nesse clima, Piñera cresceu, aumentou sua vantagem, e prevendo a governabilidade passou a acenar para os eleitores e deputados moderados da Centro Esquerda, isso porque o novo presidente não tem maioria no parlamento. Já na campanha do segundo turno, abriu a perspectiva de discutir a polêmica gratuidade do ensino universitário promovida por Bachelet (El Pais- 19- nov). Os analistas chilenos e internacionais não acreditam em uma virada radical nas leis sociais e nos direitos civis.

A especialidade do novo presidente é a economia, cujos fundamentos ainda não foram mudados, substancialmente, em relação aos deixados por Pinochet. A expectativa é que haja uma redução de impostos para cumprir seu programa de modernização das empresas. O Chile tem uma situação fiscal favorável em relação ao seu entorno na América Latina, embora hoje esteja um pouco alterada, considerando o seu próprio padrão. O importante mesmo é que quase todas as análises apontam para mudanças com base no receituário liberal, com negociação no Parlamento, porém, longe de rupturas radicais.

* José Arlindo Soares é sociólogo e pesquisador do Centro Josué de Castro


José Luis Oreiro: O mito do sucesso econômico chileno

A figura acima foi extraída do livro “Rethinking Economic Development, Growth and Institutions” publicado por meu colega mexiacano Jaime Ros. Essa figura mostra a renda per-capita de cada país relativamente a dos Estados Unidos em duas datas distintas: 1950 e 2008. Dessa forma, ela nos mostra quais países estão em processo de catching-up com os Estados Unidos e quais países ficaram relativamente estagnados ou ainda focaram para trás (falling behind) no processo de desenvolvimento econômico.

De cara podemos ver que a Argentina foi um caso claro de “falling behind” pois sua renda per-capita se situava em torno de 40% da renda per-capita americana em 1950, mas se reduziu para pouco mais de 20% da RPC norte-americana em 2008. Outro caso de “falling behind” foi a Nova Zelândia cuja RPC era superior a 80% da RPC dos Estados Unidos em 1950, mas se reduziu para pouco mais de 60% da RPC norte-americana em 2008. O que há de comum entre os dois países? O fato de que ambos são exportadores de commodities ….

A Espanha, por seu turno, foi um caso de sucesso. Partindo de um valor próximo a 30% da RPC em 1950, a Espanha conseguiu reduzir o hiato de renda per-capita de forma significativa durante essa período, alcançando cerca de 65% da RPC dos Estados Unidos em 2008. Trata-se claramente de um país em processo de catching-up.

Olhemos agora o caso do Chile. Os economistas liberais brasileiros não se cansam de cantar em prosa e verso as vantagens do modelo Chileno relativamente ao modelo “nacional-desenvolvimentista” adotado no Brasil. A propaganda (enganosa) é tão forte que eu mesmo, antes de viajar recentemente para o Chile, realmente achava que iria encontrar uma Espanha latino-americana: uma país desenvolvido na América Latina. Bem, não foi exatamente o que eu vi no Chile ou, pelo menos, na capital, Santiago. Vi uma cidade com favelas, com camelôs, com táxis e ônibus velhos e com estradas em péssimo estado de conservação (ao menos no caminho entre Santiago e a Concha Y Toro). O contraste entre o que era alardeado pela propaganda liberal e o que eu estava vendo com meus próprios olhos me despertou a curiosidade sobre a trajetória de crescimento da economia chilena, o que acabou me levando a figura acima ….

Como podemos observar em 1950 a RPC do Chile se situava em torno de 22% a 23% da RPC norte americana. Na mesma data a RPC do Brasil era menor do que 20% da RPC dos Estados Unidos, algo como 17 ou 18% da mesma; de forma que a RPC Chilena nessa época já era superior a RPC brasileira. Em 2008 a RPC Chilena havia crescido para um patamar em torno de 30% da RPC dos Estados Unidos ao passo que a RPC brasileira cresceu para algo como 22 ou 23% da RPC norte-americana. Daqui se segue que em termos relativos, ambos os países avançaram praticamente a mesma velocidade, talvez com uma pequena vantagem a favor do Chile. Sendo assim, o modelo Chileno de desenvolvimento econômico não se mostrou significativamente superior ao Brasileiro, e ambos os países apresentaram uma performance bastante inferior a da Espanha, cuja RPC em 1950 era maior, mas não muito maior, do que a RPC Chilena.

Como disse meu colega José Gabriel Porcille, economista uruguaio que trabalha na CEPAL em Santiago do Chile: “O Chile está sobrevendido”.


Alberto Aggio: Chile, da revolução à democracia

Uma coluna de fumaça espessa e escura levantou-se na área central de Santiago do Chile na manhã de uma terça-feira, 11 de setembro de 1973. Era um estranho acontecimento. Não parecia um incêndio qualquer, mas algo mais grave e ameaçador, especialmente porque minutos antes foi possível ouvir o ruído dos caças da Força Aérea do Chile em voos rasantes sobre o centro da cidade, onde fica o Palácio La Moneda. O que ocorria não era fortuito.

O governo do socialista Salvador Allende chegava ao fim com seu suicídio no interior do palácio, que estava sendo bombardeado. O golpe militar e o regime autoritário que se instaurou em seguida alterariam profundamente a história contemporânea do Chile. Foi derrubado não apenas o governo da Unidade Popular (UP), que Allende encabeçava, mas suprimida a democracia em todos os aspectos da sociedade chilena.

O presidente deposto, que assumira o mandato em novembro de 1970, queria construir o socialismo por meio de mecanismos democráticos. Através de decretos do Executivo, Allende realizava estatizações e, em alguns momentos, procurou também fazer alianças no Parlamento com a Democracia Cristã (DC), um partido considerado de centro. Para ele e parte importante da esquerda de então, socialismo significava poder popular e estatização. Mas havia vertentes da esquerda que se opunham às vias institucionais. Fortemente influenciados pela Revolução Cubana, amplos setores da UP e do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR) procuraram acirrar as contradições. Queriam acelerar as mudanças, pressionando o governo. As bases sociais mobilizadas por esses setores buscavam resolver a chamada “questão do poder” para implantar mais rapidamente o socialismo.

As diferenças de estratégias e condutas no interior da esquerda afetavam o ambiente político, que cada vez mais se polarizava com a radicalização de ações da direita em oposição ao governo Allende. A falta de consenso dentro da esquerda fez com que a “via chilena ao socialismo” permanecesse apenas como um slogan, o que bloqueou a sua real transformação numa “via democrática ao socialismo”, inédita na história. Era notório que o governo buscava realizar uma revolução feita por mecanismos legais do Estado, mas por meio dela pretendia implantar um socialismo equivalente ao que existia na União Soviética, na China ou em Cuba. A espiral crescente das contradições condenou a liderança de Allende como “disfuncional”, uma vez que o presidente nunca advogou a ruptura institucional, mas também não parecia ter completo controle do processo político. O resultado foi uma polarização catastrófica e o advento do golpe que colocou por terra o governo Allende.

Desfecho
Esse desfecho obviamente não estava estabelecido de antemão, mas acabou por comprovar que aquela proposta de revolução era impossível, ao menos no Chile da época. Salvador Allende e a UP concebiam a revolução e o socialismo a partir da cultura política convencional que predominava na esquerda latino-americana e mundial, com raízes marxistas, bolcheviques, maoístas e, mais tarde, guevaristas e castristas. Tais linhagens têm como referência a revolução como tomada de poder de Estado pela via armada, por insurreição ou guerrilhas. Essa cultura política revelou-se incapaz de enfrentar o ineditismo do processo, demonstrando que não estava amadurecido na esquerda chilena o significado e as implicações da adoção de uma via democrática ao socialismo. Por isso, o governo Allende não pode ser interpretado como o exemplo histórico da impossibilidade desta transição ao socialismo. A chamada “experiência chilena” apenas anunciou esta possibilidade, mas fracassou inapelavelmente.

Personificado no general Augusto Pinochet (1915-2006), a partir de 1973, o novo regime assumiu uma perspectiva fundacional — com a intenção de fundar um novo regime, e não de restaurar a democracia — e impôs ao país uma nova ordem econômica, social e política. Para isto, contou com um aparato repressivo que perseguiu, torturou e assassinou quem era considerado opositor. Em seus primeiros momentos, a ditadura procurou encarnar o inverso dos anseios revolucionários da UP. Paradoxalmente, foi a partir de sua negação que os chilenos vieram a conhecer, de fato, o significado da palavra revolução. Tratava-se agora de uma contrarrevolução: havia metas de transformação radical a serem alcançadas, e não prazos. Em analogia ao “socialismo real” (da URSS e do Leste europeu), o que se estabeleceu no Chile foi uma espécie de “liberalismo real”: um capitalismo quase sem regulações, apoiado num Estado autoritário sustentado por mecanismos institucionais conservadores.

O regime autoritário, que se estenderia até 1990, não foi um “parêntese” na história do Chile. Nesse período, a privatização de empresas, serviços de saúde e previdência, além da abertura comercial, do estímulo às exportações e da supressão do controle de preços redefiniram as estruturas da sociedade. O regime Pinochet transformou-se no show case dos neoliberais de todo o mundo. Até então, o neoliberalismo não havia sido implementado integralmente em nenhum país. O Chile foi, portanto, anterior à Inglaterra de Margareth Thatcher e aos Estados Unidos de Ronald Reagan. Para os ideólogos do regime, tratou-se de uma “revolução silenciosa”, cujo resultado mudaria os valores da sociedade, tornando-a mais individualista, consumista e despolitizada, ou seja, anulando traços distintivos da cultura política anterior. O reconhecimento dessa mudança profunda iria cobrar o seu preço no momento de superação do autoritarismo.

As tentativas de derrubar a ditadura por via armada fracassaram. As ações armadas, inclusive contra o próprio Pinochet, e as rebeliões populares (las protestas) que eclodiram entre 1983 e 1986, pensadas como possível embrião de uma insurreição de massas, revelaram-se impotentes. A batalha decisiva contra a ditadura viria de onde menos se cogitava. A Constituição de 1980, outorgada por Pinochet por meio de um referendo inteiramente controlado, previa a realização, em 1988, de um plebiscito para estabelecer mais um mandato de oito anos para o ditador. Foi em torno da ideia de politizar o plebiscito, negando esse novo mandato, que se vislumbrou a possibilidade de derrotar a ditadura.

Vitória do "No"
A surpreendente vitória eleitoral do Comando por el No, que dizia “não” ao governo Pinochet, em outubro de 1988, abriu o processo de transição à democracia. O resultado do plebiscito foi de 56% dos votos válidos pelo “Não” contra 44% pelo “Sim”. Os partidos políticos puderam se reorganizar e a oposição a Pinochet, com exceção do Partido Comunista, criou a Concertación de los Partidos por la Democracia, numa tentativa de manter-se unida para a eleição presidencial prevista para o ano seguinte. Mas Pinochet, presidente da República e chefe das Forças Armadas, forçou um pacto com a oposição em torno de reformas constitucionais. Este pacto redundou em um referendo, realizado em julho de 1989, para sancionar as reformas da Constituição de 1980 acordadas entre os principais atores políticos legalizados. Nesse ponto, a submissão da transição democrática à “política do autoritarismo” ficou evidente. O referendo sancionou o que ficou conhecido como enclaves autoritarios: normas concebidas para bloquear, sem transgredir a legalidade, qualquer iniciativa reformista que se propusesse a desmontar a arquitetura básica do ordenamento jurídico-constitucional da ditadura.

A derrota eleitoral sofrida por Pinochet em 1988 converteu-se, portanto, numa vitória política estratégica em 1989, uma vez que se aprovaram apenas reformas superficiais na Constituição de 1980. A transição, contudo, seguiria em marcha. No início da década de 1990, os espaços políticos se democratizam e a disputa se concentra em dois polos: a Concertación, agregando os partidos de centro-esquerda — como o Partido Socialista e a DC — e a Alianza por Chile, articulando as forças de direita e neoliberais — como a Renovação Nacional (RN) e a União Democrática Independente (UDI).

Em relação às outras transições para a democracia no continente latino-americano, o Chile viveu dois aspectos peculiares: não herdou nenhuma crise econômica do regime anterior e conseguiu eleger sucessivamente quatro presidentes pertencentes à mesma coalizão política que havia derrotado a ditadura. A partir de 1990, governaram o Chile Patricio Aylwin, Eduardo Frei, Ricardo Lagos e Michele Bachelet. Os governos da Concertación conduziram com êxito a integração do Chile ao processo de globalização, o que fez avançar os traços de modernidade do país, como a melhoria do setor de serviços, a especialização da produção agroindustrial para a exportação, a despoluição, a inovação e a diversificação empresariais. O crescimento contínuo da economia chilena nesses anos, até a crise econômica mundial que abriu o século XXI, foi notável. As temáticas sociais sufocadas durante a ditadura foram reconduzidas como tarefas do Estado, ampliando a coesão social, ainda que as políticas públicas dos governos da Concertación tenham se revelado insuficientes.

A manutenção de boa parte dos enclaves autoritários, pelo menos até 2005, acabou por gerar um paradoxo: o regime democrático está consolidado, mas a presença de Pinochet no imaginário político chileno deixa a sensação de que a transição permanece inconclusa. A imagem que fica do Chile pós-Pinochet é a de uma “democracia de má qualidade”, resultante de uma transição muito condicionada aos ditames do regime anterior, que só conseguiu produzir “governos de negociação” e, com eles, um “reformismo fraco”. Em 2010, o fim da sequência de governos da Concertación, com a eleição de Sebastián Piñera, da Alianza, representou uma preocupante involução.

Os 20 anos da Concertación não passaram em vão, mas deixaram muitos déficits nos planos político e social. Em meio a novos movimentos sociais de estudantes e indígenas e a um conjunto de insatisfações resultantes do excesso de privatizações realizadas durante a ditadura e do avanço de empresas capitalistas em terras indígenas, os chilenos vêm demonstrando nos últimos anos que procuram alternativas que possam resultar em reformas efetivas para uma vida melhor. Mas sabem também que essa é uma história aberta e bastante distinta daquilo que eles viveram 40 anos atrás.

 


Mario Vargas Llosa: O cidadão raivoso

Nos últimos anos proliferam as mobilizações movidas pela raiva dos cidadãos. Algumas são positivas, mas não sempre evoluem na direção adequada

O jornalista alemão Dirk Kurbjuweit, da Der Spiegel, inventou alguns anos atrás a expressão Wutbürger, que significa “cidadão raivoso”, e no The New York Times de 25 de outubro Jochen Bittner publica um interessante artigo em que afirma que a raiva que em certas circunstâncias mobiliza amplos setores de uma sociedade é um fenômeno com duas faces, uma positiva e uma negativa. Segundo ele, sem esses cidadãos raivosos não teria havido progresso, nem seguridade social, nem trabalho remunerado de forma justa, e ainda estaríamos no tempo das satrapias medievais e da escravidão. Mas, ao mesmo tempo, foi uma epidemia de raiva social que espalhou corpos decapitados pela França do Terror e que, nos nossos dias, acabou levando ao brutal retrocesso que o Brexit significa para o Reino Unido ou que fez com que exista na Alemanha um partido xenófobo, ultranacionalista e antieuropeu –o Alternativa pela Alemanha – que, segundo as pesquisas, conta com o apoio de nada menos do que 18% do eleitorado. Acrescenta, ainda, que o melhor representante do Wutbürger nos Estados Unidos é o inapresentável Donald Trump, além do surpreendente apoio com que ele conta.

Eu gostaria de acrescentar alguns outros exemplos recentes de uma “raiva positiva”, a começar pelo caso do Brasil, a respeito do qual, a meu ver, houve uma interpretação enviesada e falsa da defenestração de Dilma Rousseff da Presidência. Esse fato foi apresentado como uma conspiração da extrema direita para acabar com um Governo progressista e, sobretudo, impedir o retorno de Lula ao poder. Não é nada disso. O que mobilizou vários milhões de brasileiros e os levou a sair para as ruas em manifestações maciças foi a corrupção, um fenômeno que havia contaminado toda a classe política e do qual se beneficiavam igualmente líderes da esquerda e da direita. Ao longo dos últimos meses, foi possível observar como a foice do combate à corrupção se ocupou de colocar na cadeia, igualmente, parlamentares, empresários, dirigentes sindicais e associativos de todos os setores políticos, um fato a partir do qual tudo o que se pode esperar é uma regeneração profunda de uma democracia que a desonestidade e o espírito de lucro haviam infectado até chegar ao ponto de provocar uma bancarrota nacional.

Talvez ainda seja um pouco cedo para comemorar o ocorrido, mas minha impressão é de que, entre ganhos e perdas, a grande mobilização popular no Brasil foi um movimento mais ético do que político e extremamente positivo para o futuro da democracia no gigante latino-americano. É a primeira vez que isso acontece; até agora, as mobilizações populares tinham objetivos políticos –protestar contra os abusos de um Governo e a favor de um partido ou um líder– ou ideológicos –substituir o sistema capitalista pelo socialismo–, mas, neste caso, a mobilização tinha como objetivo não a destruição do sistema legal existente, mas a sua purificação, a erradicação da infecção que o envenenava e que podia acabar com ele. Embora tenha conhecido uma trajetória diferente, não é algo muito distinto daquilo que aconteceu na Espanha: um movimento de jovens atiçados pelos escândalos de uma classe dirigente que causou em muitos a decepção com a democracia e os levou a optar por um remédio pior do que a doença, ou seja, ressuscitar as velhas e fracassadas receitas do estatismo e do coletivismo.

O que mobilizou vários milhões de brasileiros e os levou a sair para as ruas em manifestações maciças foi a corrupção

Outro caso fascinante de “cidadãos raivosos” é o que vive a Venezuela hoje. Em cinco ocasiões, o povo venezuelano teve a possibilidade de se livrar, por meio de eleições livres, do comandante Chávez, um demagogo pitoresco que oferecia “o socialismo do século XXI” como a cura para todos os males do país. A maioria dos venezuelanos, aos quais a ineficiência e a corrupção dos Governos democráticos levaram a se desencantar com a legalidade e a liberdade, acreditou nele. E pagou caro por esse erro. Por sorte, os venezuelanos perceberam isso, retificaram sua visão, e hoje há uma esmagadora maioria de cidadãos –como mostraram as últimas eleições para o Congresso– que pretende consertar aquele equívoco. Infelizmente, já não é tão fácil. A camarilha governante, aliada à nomenclatura militar bastante comprometida com o narcotráfico e à assessoria cubana em questões de segurança, enquistou-se no poder e está disposta a defendê-lo contra ventos e marés. Enquanto o país se afunda na ruína, na fome e na violência, todos os esforços pacíficos da oposição, valendo-se da própria Constituição instaurada pelo regime, para se livrar de Maduro e companhia se veem frustrados por um Governo que ignora as leis e comete os piores abusos –incluindo crimes– para impedi-lo. Ao final, essa maioria de venezuelanos acabará se impondo, é claro, como aconteceu com todas as ditaduras, mas o caminho ficará semeado de vítimas e será muito longo.

Seria o caso de comemorar o fato de que não existem apenas cidadãos raivosos negativos, mas também os positivos, como afirma Jochen Bittner? Minha impressão é de que é preferível erradicar a raiva da vida dos países e procurar fazer com que esta se dê dentro da normalidade e da paz, e que as decisões sejam tomadas por consenso, por meio do convencimento ou do voto. Porque a raiva muda de direção muito rapidamente; de bem-intencionada e criativa, pode passar a ser maligna e destrutiva, caso a direção do movimento popular seja assumida por demagogos, sectários e irresponsáveis. A história latino-americana está impregnada de muita raiva, e, embora esta se justificasse em muitos casos, quase sempre ela se desviou de seus objetivos iniciais e acabou gerando males piores do que os que pretendia remediar. É um tipo de situação que teve uma demonstração explícita com a ditadura militar do general Velasco, no Peru dos anos sessenta e setenta. Diferentemente de outras, ela não foi de direita e sim de esquerda, e implantou soluções socialistas para os grandes problemas nacionais, como o feudalismo rural, a exploração social e a pobreza. A nacionalização das terras não beneficiou em nada os camponeses, mas sim às gangues de burocratas que se dedicaram a saquear as fazendas coletivizadas, e quase todas as fábricas que o regime nacionalizou e confiscou foram à falência, aumentando a pobreza e o desemprego. No fim, foram os próprios camponeses que começaram a privatizar as terras, e os operários das indústrias de farinha de peixe foram os primeiros a pedir que as empresas arruinadas pelo socialismo velasquista voltassem para as mãos da iniciativa privada. Todo esse fracasso teve um efeito positivo: desde então, nenhum partido político no Peru se atreve a propor a estatização e a coletivização como uma panaceia social.

Seria o caso de comemorar o fato de que não existem apenas cidadãos raivosos negativos, mas também os positivos?

Jochen Bittner afirma que a globalização favoreceu, acima de tudo, os grandes banqueiros e empresários, e que isso explica, embora não justifique, o ressurgimento de um nacionalismo exaltado como aquele que transformou a Frente Nacional em um partido com chances de vencer as eleições na França. É muito injusto. A globalização trouxe enormes benefícios para os países mais pobres, que agora, se souberem aproveitá-la, poderão enfrentar o subdesenvolvimento com mais rapidez e melhor do que no passado, como mostram os países asiáticos e os países latino-americanos –caso do Chile, por exemplo– que, ao abrirem suas economias para o mundo, cresceram de forma espetacular nas últimas décadas. Parece-me um erro muito grave acreditar que progresso significa combate à riqueza. Não, o inimigo a ser eliminado é a pobreza, e também, é claro, a riqueza ilícita. A interconexão do mundo graças à lenta dissolução das fronteiras é uma coisa boa para todos, em especial para os pobres. Se ela prosseguir e não se afastar do caminho certo, talvez cheguemos a um mundo em que já não será preciso haver cidadãos raivosos para que as coisas melhorem.


Fonte: brasil.elpais.com