celso lafer

A Bíblia não é a Constituição

Não se pode ter a pretensão de, como juiz, assumir, ainda que em surdina, a voz de Deus

Celso Lafer / O Estado de S. Paulo

 “Notável saber jurídico” e “reputação ilibada” são os critérios de escolha de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) estabelecidos pela Constituição. A sua indicação cabe ao presidente da República, mas a escolha só se efetiva depois de avaliação e aprovação pela maioria absoluta do Senado Federal.

Os parâmetros constitucionais são explícitos. Não cabe abrir espaço para considerações a respeito da fé religiosa de um indicado. Não é critério que se coadune com o Direito brasileiro o ingrediente de ser “terrivelmente evangélico”. É, no entanto, o que o presidente aponta como uma faceta de sua escolha preferencial do nome de André Mendonça para o cargo.

Trata-se de um vício de origem no âmbito de um Estado de Direito, que consagra a objetividade do “governo das leis” e repele o idiossincrático de um “governo de homens”. Requer, assim, pronta refutação, pois o Brasil é um Estado laico desde a proclamação da República. Não é um Estado confessional, no âmbito do qual existam vínculos entre o poder político e uma religião.

Em nosso país, na linha da tradição constitucional americana, que inspirou Rui Barbosa, existe, como dizia Jefferson, um “wall of separation” entre o Estado e as religiões. Esse é o sentido do artigo 19 da Constituição. É por isso que a fé religiosa não é critério de escolha para cargos governamentais, muito especialmente o de ministro do STF, instituição que tem, no topo do Judiciário, a responsabilidade pela guarda da Constituição e de seus dispositivos, incluída a laicidade.

A laicidade relaciona-se com grandes matérias constitucionais. Entre elas, a tutela dos direitos humanos, a asserção do pluralismo e da diversidade da sociedade e a aceitação do outro na prática e nos costumes da convivência da cidadania numa democracia.

Estado laico significa Estado neutro em matéria religiosa, não solidário em relação a qualquer atividade religiosa, pois não se fundamenta numa fé, como, na situação-limite, em Estados teocráticos, nos quais poder religioso e poder político se fundem.

A laicidade obedece à lógica da sabedoria liberal da arte da separação das esferas e da sua autonomia. A separação Igreja-Estado está em consonância com a lição dos Evangelhos: “A César o que é de César, a Deus o que é de Deus”.

A laicidade se contrapõe ao dogmatismo e à intolerância. É uma regra de calibração que permite a gestão pública de diferenças religiosas e de opinião. É a base de uma postura aberta em relação ao diverso e ao diferente que caracteriza a pluralidade da condição humana. Tem como método o persuadir, e não o coagir. Parte do pressuposto de que a verdade não é una, mas múltipla, e tem várias faces, dada a complexidade ontológica da realidade.

A laicidade é uma das maneiras de responder aos problemas da intolerância e de um dos seus desdobramentos, a polarização fundamentalista, intransitiva e excludente.

Historicamente, deve-se ao espírito laico a tolerância religiosa, da qual proveio o direito de liberdade de crença e de pensamento, de opinião e da cultura. Dela se originou a revolução científica, o processo incessante de ampliação do saber, que nasce e se desenvolve pela negação do dogmatismo e se baseia na capacidade de revisão contínua dos próprios resultados da pesquisa, à luz da razão e das provas da experiência – e não da fé. É o que fundamenta a liberdade da pesquisa e a autonomia da universidade.

Graças à tolerância deu-se a dinâmica das transformações das relações de convivência por meio da afirmação da democracia, consagrada na Constituição de 1988. É o que cria espaço para a contenção da violência entre grupos e indivíduos, maiorias e minorias, propiciando plataforma comum, na qual todos os cidadãos podem encontrar-se enquanto membros de uma comunidade política, diversificada nas suas crenças e opiniões.

Num Estado laico, o Direito é a sua moldura jurídica. A Bíblia não é a Constituição. Por isso, o juiz deve decidir de acordo com o Direito e os valores nele positivados. O seu método de interpretação deve seguir o espírito laico do exame crítico dos assuntos e dos seus problemas. Nas suas decisões, deve respeitar e buscar no mundo – e não no transcendente – a ética, do viver honesto dos clássicos princípios de não prejudicar ninguém e dar a cada um o que é seu.

Um juiz num Estado laico não pode buscar a fundamentação de suas decisões nas suas crenças religiosas. Não pode ter a pretensão de, como juiz, assumir, ainda que em surdina, a voz de Deus. Num Estado laico e plural, nas decisões do Judiciário vale o que diz Camões: “O que é de Deus, ninguém o entende/ Que a tanto o engenho humano não se estende” e “ocultos os juízos de Deus são”.

Um juiz “terrivelmente evangélico” representa o risco de transpor os seus conselhos de pastor para os seus fiéis, no âmbito próprio da sociedade civil, em inapropriados comandos jurídicos-judiciais do Estado para a sociedade brasileira. É um risco que caberá ao Senado avaliar com a devida profundidade.

*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,a-biblia-nao-e-a-constituicao,70003811047


Celso Lafer: As fronteiras e seu significado

Synesio Sampaio Goes Filho lança obra sobre ‘o estadista que desenhou o mapa do Brasil’

Fronteiras têm grande importância na vida internacional. Definem o espaço da competência jurídica e política própria dos Estados nacionais. Diferenciam o “externo” do “interno”, no âmbito do qual cabe a um Estado, por meio de suas instituições, a responsabilidade de deliberar sobre rumos de uma sociedade. Nessa esfera também se situa o desafio de se orientar no mundo, pois na realidade contemporânea as fronteiras são porosas.

Faço essas considerações para destacar que a definição das fronteiras com reconhecimento internacional é o que configura “o corpo da pátria”, para me valer do sugestivo título do livro de Demétrio Magnoli. Por isso, o primeiro item da pauta da política externa de um país é o de buscar configurar o “corpo da pátria”. Nesse item, a diplomacia brasileira teve sucesso exemplar em obra que teve início com o Tratado de Madri de 1750.

O Brasil é um país de dimensão continental, como a China, a Índia e a Rússia. Em contraste com esses e outros países grandes, médios e pequenos, não enfrenta contenciosos territoriais e suas tensões, presentes em tantas regiões do mundo. Não tem ambição de expansão territorial.

O Brasil, na lição de Rio Branco, é um país “que só ambiciona engrandecer-se pelas obras fecundas da paz, com seus próprios elementos, dentro das fronteiras em que fala a língua dos seus maiores e quer vir a ser forte, entre vizinhos grandes e fortes”. É de pertinente atualidade a afirmação de Rio Branco. Explicita uma pacífica dimensão de nossa inserção internacional.

Pela ação das bandeiras e das monções, a ocupação do território hoje brasileiro foi muito além dos limites previstos no Tratado de Tordesilhas, de 1494, pelo qual Portugal e Espanha buscaram dividir o que estava por se descobrir no “mar oceano”. Por isso, de fato e de direito, eram indefinidas as fronteiras entre os domínios da Espanha e de Portugal na América do Sul. Esses espaços passaram a ser estabelecidos pelo Tratado de Madri, que delineou a fisionomia do nosso país e é ponto de partida da grande obra da definição das fronteiras do Brasil.

O seu grande negociador foi o paulista Alexandre de Gusmão, nascido em Santos em 1695, considerado como o avô da diplomacia brasileira, pois com ele teve início a formação de um capital diplomático, que, a partir da herança portuguesa, vem favorecendo o nosso país.

Sobre Gusmão acaba de ser publicado iluminador livro de Synesio Sampaio Goes Filho: Alexandre de Gusmão (1695-1753) – o estadista que desenhou o mapa do Brasil.

Synesio, com a qualidade de escritor e a profundidade de consagrado estudioso das fronteiras do Brasil, logra transmitir ao leitor contemporâneo o significado do equilíbrio e da razoabilidade das teses defendidas por Gusmão, consagradas no Tratado de Madri. Desvenda ao mesmo tempo o perfil de uma personalidade de intrépido vigor intelectual.

O objetivo do tratado era “estreitar a cordial amizade” entre Portugal e Espanha, eliminando os embaraços das incertezas dos limites dos domínios das duas Coroas na América, para assim “manter os seus vassalos em paz e sossego”. Os critérios estabelecidos para a fixação dos limites foram os seguintes: 1) suas balizas devem ser as paragens mais conhecidas (“origem e curso dos rios e os montes mais notáveis”) para obstar disputas, valorizando assim fronteiras naturais, e 2) “cada parte há de ficar com o que atualmente possui” – é o que veio a ser a tese do uti possidetis –, “à exceção das mútuas cessões as quais se farão por conveniência comum e para que os confins fiquem, quanto possível, menos sujeitos a controvérsias” – o que levou à cessão para a Espanha da Colônia do Sacramento, origem do que veio a ser o Uruguai e a cessão para Portugal da área das missões, que vieram a configurar os contornos do Estado do Rio Grande do Sul.

As teses de Gusmão exigiam o conhecimento do Brasil da época, incluídas as incertezas amazônicas. Daí a importância dos mapas de que se valeu nas negociações. Essa é a sólida origem das bases de uma diplomacia do conhecimento que norteou as negociações do Brasil em matéria de fronteiras levadas a cabo pelo Império e completadas na República por Rio Branco, e que com seus desdobramentos esteve a serviço da construção do Brasil. Daí a relevância do livro de Synesio e sua dimensão de atualidade, pois dá destaque ao acervo de realizações da política externa brasileira e ao soft power do seu capital simbólico.

É esse capital simbólico – que permite a adequada orientação no mundo – que a diplomacia do governo Bolsonaro se dedica cotidianamente a dilapidar. Ela alcança até o Tratado de Madri, pois foi a Fundação Alexandre de Gusmão do Itamaraty, na gestão Ernesto Araújo, que se recusou a patrocinar a publicação do livro, ora editado pela Record, por conta da mensagem do prefácio de Rubens Ricúpero, que, ao realçar os indiscutíveis méritos do trabalho de Synesio, insere-o no âmbito do profícuo papel da diplomacia brasileira nos destinos do Brasil.

*Professor Emérito da USP, foi ministro das Relações exteriores (1992 e 2001-2002)


Celso Lafer: Consequências do trumpismo

Dante inseriria Trump nos círculos do inferno em que penam os falsários e os traidores

A tomada da Bastilha prefigurou a Revolução Francesa; a invasão do Palácio de Inverno, a implantação do comunismo na Rússia; a marcha sobre Roma, a afirmação do fascismo na Itália; a Noite dos Cristais, na Alemanha, o Holocausto. O que configura a ocupação violenta do Congresso em Washington por uma horda de adeptos do trumpismo, inconformados com a vitória eleitoral de Joe Biden? Ela foi uma surpreendente e inédita ruptura dos tradicionais limites que sempre cercaram e protegeram a autoridade das instituições políticas dos Estados Unidos.

A República americana continuadamente teve como uma das características da sua identidade o respeito às instituições e a afirmação de um “governo das leis” sob a égide e a aura da Constituição. É o que foi configurando, no correr de uma longa experiência histórica, a autoridade da democracia ensejando um patamar de estabilidade aos seus processos de mudança política, com destaque para a dinâmica das sucessões presidenciais provenientes de eleições periódicas.

O que mina e corrói a autoridade é o desprezo pelos limites que ela naturalmente impõe. Daí, nos Estados Unidos, a figura jurídica do contempt of Court, que penaliza, num processo, quem deliberadamente cria obstáculos à administração da justiça, descartando a dignidade e a autoridade da Corte. Contempt of Congress aplica-se aos que obstam ou buscam impedir o due course dos seus procedimentos.

Desprezo pelos limites, foi isso que configurou o que se passou em Washington. O estrépito do “vale-tudo” da violência pôs em questão a autoridade das instituições. Buscou comprometer o alcance do abrangente poder conjunto da cidadania de lidar com os problemas e desafios do país pela via do processo eleitoral.

A ocupação violenta do Congresso teve como objetivo obstruir os procedimentos de formalização conclusiva da inequívoca vitória eleitoral de Biden, confirmada pela dinâmica das instituições e pelas diversas instâncias do Poder Judiciário, que rejeitou, por absoluta falta de provas, as incontáveis alegações de fraude com as quais Trump alimentou a sua própria inconformidade e a da horda de seus mais raivosos militantes com o desfecho do processo eleitoral.

O desprezo pelos limites do politicamente aceitável confirmou que a eleição foi uma luta pela “alma” do país e pelo espírito que historicamente a vivificou. Uma luta que Joe Biden travará na sua presidência.

Trump dedicou-se à corrupção da alma da República e da confiabilidade das suas instituições. Foi o que preparou a ruptura dos limites. São notas de sua atuação a mentira como princípio de governança voltada para manipular o Congresso e o Partido Republicano, com o personalismo do seu “bullying”, direcionado para um contínuo esforço de operar um regime ao arrepio da lógica do “governo das leis”. Por isso o empenho do trumpismo em pôr de lado as práticas e os preceitos constitucionais e jurídicos atravancadores do ímpeto da vontade presidencial num Estado de Direito. Daí o deslavado inserir do ilícito nos processos políticos do país, o uso abusivo do “privilégio do Executivo” e do perdão presidencial para proteger os colaboradores que mobilizou na sua sanha destrutiva.

Trump cobriu com um tecido de mentiras o espaço público dos Estados Unidos com a sua solerte operação das redes sociais. Criou “bolhas” intransitivas alimentadas por polarizações, cevadas pelo discurso de ódio, voltadas para desqualificar os que a ele se contrapunham. Aviltou o bem público da inclusividade, que é um dos valores da democracia. Confrontou com suas arengas despropositadas uma das máximas do mérito da democracia: é melhor contar cabeças do que cortar cabeças, nas palavras de Bobbio.

A virtude é um dos ingredientes de uma República que deve zelar pelo bem comum. Quando ela fraqueja, como na presidência Trump, abre-se o espaço para o domínio das baixas paixões, dos ressentimentos, das invejas e da vaidade. Trump traiu a alma das instituições republicanas dos EUA. Dante o inseriria nos círculos do inferno onde penam os falsários e os traidores.

A força das instituições americanas está contendo a sua fúria destrutiva. Mas ela é configuradora de consequências não só para os Estados Unidos, mas para o mundo, com destaque para a vigência do valor da democracia.

O trumpismo mina o softpower gravitacional da democracia americana no mundo. Justificá-lo é uma ameaça generalizada à democracia. Daí a inconformidade democrática, no Brasil, quanto às recentes manifestações do presidente e do seu chanceler. Elas são mais do que a expressão de afinidade com uma concepção da prática política. Revelam uma declarada simpatia pelas posições de Trump e dos seus mais raivosos adeptos. Foram uma oportunidade para nelas identificar uma antecipada prefiguração de uma despropositada fraude eleitoral nas eleições presidenciais de 2022. É um semear de ventos para tempestades políticas futuras.

*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Celso Lafer: Joe Biden e Hannah Arendt

Derrota de Trump foi o choque da realidade do despropósito da sua conduta

Em 28 de maio de 1975 o senador Joe Biden escreveu uma pequena carta a Hannah Arendt para solicitar o envio da conferência que ela pronunciara em Boston em foro voltado para discutir o bicentenário dos Estados Unidos. Indicava que tinha tido notícia da reflexão arendtiana em artigo de Tom Wicker e observava que o conhecimento do texto era de seu interesse como integrante da Comissão de Relações Exteriores do Senado.

A carta integra os arquivos de Arendt, é de conhecimento público e teve alguma circulação no correr da campanha presidencial deste ano nos Estados Unidos. É, por si só, um exemplo de que Biden desde o início de sua vida pública tinha antenas para os grandes desafios do sistema político americano.

É sem conta o número de motivos que me levam a olhar com simpatia a eleição de Joe Biden, o que significa para os valores e a prática da democracia e o que deverá representar para um papel mais construtivo dos Estados Unidos no mundo. Para um estudioso da obra de Arendt, e sem forçar a mão, é natural buscar no seu texto de 1975, que interessou a Biden, elementos que contribuem para o entendimento do alcance da sua vitória eleitoral.

O texto de Arendt, na versão para o português, intitula-se Tiro pela culatra, para indicar que não se pode escapar da avaliação e das consequências de uma crise da república americana, tema que abordou. Hoje integra a coletânea de seus ensaios reunidos no livro Responsabilidade e Julgamento, organizado por Jerome Kohn e publicado em 2003.

O texto de Arendt resulta de suas reflexões sobre um momento de depreciação da vida política americana, que foi o da crise da presidência Richard Nixon e seus antecedentes, que acabou na sequência, observo eu, levando à eleição de Jimmy Carter, com sua dimensão de purgação moral. Tem como pano de fundo o livro de 1972, significativamente intitulado Crises da República, no qual tratou da mentira na política, da desobediência civil e da violência, e como lastro o seu Sobre a Revolução. Neste ela destacou que foi a Revolução Americana que implantou a primeira República moderna, instaurou o governo das leis por meio de uma duradoura Constituição dotada de autoridade que, atenta à pluralidade da condição humana, ensejou a gramática da ação e a sintaxe do poder.

As instituições democráticas republicanas, por mais sólidas que sejam, como as dos Estados Unidos, exigem para a sua durabilidade a prática de costumes democráticos, nisso se incluindo o virtuoso zelo do bem da República.

A campanha eleitoral americana deste ano teve entre suas características uma batalha pela “alma” dos Estados Unidos. Nessa batalha, Biden personificou uma afirmação de continuidade de valores e das instituições americanas, de suas práticas e seus costumes. Foi uma contraposição aos modos de proceder da presidência Donald Trump, que trouxe com o personalismo do seu bullying a erosão generalizada do soft power de atração dos Estados Unidos. Além do mais, foi um esforço de operar um regime do “governo dos homens”, no caso, ele, em detrimento do “governo das leis”. É, por via de consequência, uma faceta da crise da República. Para essa dimensão o texto de Arendt oferece subsídios relevantes.

São muitos os pontos importantes da análise arendtiana de 1975 que comportam analogia com o deletério que a presidência Trump instalou na “alma” e no espírito das instituições americanas. Destaco: a mentira por princípio, para manipular o Congresso e o povo americanos e nesse caminho pôr em questão a credibilidade dos EUA perante outros Estados; o empenho em abolir qualquer lei, constitucional ou não, que se interpusesse aos objetivos da presidência; o inserir da criminalidade nos processos políticos do país; o valer-se do “privilégio do Executivo” para proteger os colaboradores atraídos pela aura do poder; o não aceitar a derrota, qualquer derrota, da maior potência sobre a Terra, cujo poder estava em declínio; o equívoco de respaldar uma economia de desperdício, sem atentar para “as ameaças ao nosso ambiente” (palavras de Arendt em 1975!); o cobrir com um tecido de mentiras os problemas do desemprego e da automação.

Em síntese, a fabricação da imagem como política global norteou a presidência Trump, atropelando no seu ímpeto as instituições republicanas dos Estados Unidos e os seus costumes e práticas. A fabricação da imagem como política global, realçou Arendt, se insere “no imenso arsenal da insensatez humana”. A derrota eleitoral de Trump foi o choque da realidade do despropósito de sua conduta.

Recolocar a República americana nos seus trilhos será a tarefa de Biden e de seus colaboradores. Não será tarefa fácil, como é sabido, e não apenas pela impregnação que Trump retém na sociedade americana e no Partido Republicano, mas também pelo radicalismo das polarizações que permeiam a vida do país e a complexidade do desafio da sua pauta. Nesse contexto, no entanto, as lições de Hannah Arendt de 1975 serão úteis a partir de janeiro de 2021.

*Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Celso Lafer: ONU, 75 anos

Diplomacia do governo almeja para o nosso país a condição isolacionista de pária internacional

O multilateralismo e suas instituições têm como função criar mecanismos institucionalizados de cooperação entre os Estados. Resultam das realidades de um mundo finito e interdependente. Respondem à necessidade de lidar com desafios que não estão ao alcance das relações bilaterais e muito menos de ações unilaterais, como pandemias e mudança climática. É o que convém lembrar preliminarmente, afastando desqualificações “globalistas”, ao comemorar os 75 anos da Organização das Nações Unidas (ONU).

A ONU representa a presença da figura do terceiro no pluralismo do mundo dos Estados. Há na figura do terceiro um potencial de favorecimento do entendimento, que se revela nos conflitos bilaterais.

Os bons ofícios, a mediação, a arbitragem são exemplos da intercessão do terceiro nas soluções pacíficas de controvérsias.

A diplomacia é uma arte do terceiro, que opera no âmbito internacional no trato da governança da complexidade, negociando, persuadindo, contendo tensões, desdramatizando conflitos.

A ONU é um terceiro. Não é um terceiro acima das partes, um tertius super partes, porque não é um governo mundial. É um tertius inter partes, um terceiro entre as partes, criado pelos Estados e institucionalizado pela Carta das Nações Unidas, assinada em 26 de junho de 1945.

Tem como função ser uma instância de abrangência universal de interposição e mediação entre Estados. É dotada de personalidade jurídica própria, que não se confunde com a dos seus Estados-membros. É o que confere à ONU a sua identidade internacional. Para cumprir sua função de instância de interposição e intermediação, rege-se pelas normas da sua Carta. Guia-se pela “ideia a realizar” de ser “um centro destinado a harmonizar a ação das nações” para a consecução dos objetivos comuns dos seus propósitos – paz, segurança, relações amistosas e cooperação internacional.

Os propósitos da ONU e suas realizações foram reafirmados na resolução da Assembleia-Geral de 21 de setembro deste ano, que registra o muito que precisa ser feito, apontando que os grandes desafios do presente são interconectados e interdependentes. Por isso só podem ser enfrentados por meio de um multilateralismo revigorado e pelo reforço do pilar da cooperação internacional.

Do espaço da ONU tem se valido a diplomacia brasileira no correr das décadas, exercendo com competência a arte diplomática do terceiro para articular, na interação com os Estados que integram a sociedade internacional, a voz própria e os interesses gerais do Brasil na dinâmica do funcionamento do mundo.

O multilateralismo vem propiciando soft power para o nosso país, que agrega substância à diplomacia bilateral brasileira. É o que comprovam os estudos acadêmicos e a experiência dos que viveram “de dentro” a responsabilidade de representar o Brasil em instâncias multilaterais.

É o que não percebem a diplomacia do governo Bolsonaro e a vocação negacionista de seu chanceler Ernesto Araújo, que almeja para o nosso país a condição isolacionista de pária internacional.

A figura de secretário-geral corporifica a identidade do tertius inter partes. Ele é um agente administrativo, mas também um ator político, proveniente de seu poder de iniciativa que lhe dão a Carta e a prática construída por sucessivos secretários-gerais, cabendo destacar o papel inaugural que teve Dag Hammarskjold.

Ele, aliás, dizia que a missão da ONU não era a de elevar a humanidade ao céu, mas salvá-la do inferno. Daí a responsabilidade do secretário-geral de promover iniciativas de cooperação que façam da ONU um tertius ativo no encaminhamento dos grandes problemas internacionais.

Muito tem feito, em condições difíceis, o atual secretário-geral, António Guterres, com criatividade e determinação no exercício de suas funções, para as quais vem mobilizando a opinião pública e a sociedade em prol de um mundo mais sustentável e menos precário.

Concluo lembrando conhecida elaboração de Albert O. Hirschman sobre o papel da voz, da saída e da lealdade na dinâmica da vida de organizações. A lealdade numa instituição equilibra a voz e a saída. A saída pressupõe a existência de alternativas, no caso a alternativa ao multilateralismo e suas instituições, como a ONU. Eu não creio, dada a natureza da realidade internacional, que seja possível conviver com os unilateralismos de um Estado de natureza hobbesiana e sua propensão à guerra de todos contra todos. “Somos do mundo, e não apenas estamos no mundo”, como observa Hannah Arendt.

Daí a relevância da lealdade à ONU, que é uma característica histórica da diplomacia brasileira.

Quanto à voz, não faz sentido o monólogo da discussão contra, com a qual se compraz a diplomacia de confronto do governo Bolsonaro, mas sim o diálogo de discussão com os outros integrantes da comunidade internacional, tendo como propósito encontrar interesses comuns e compartilháveis, cujos caminhos o secretário Guterres vem desbravando de maneira corajosa e pertinente.

*Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Celso Lafer: Diplomacia e conhecimento

O negacionismo nos isola no mundo e compromete a nossa inserção internacional

Robert Zoellick, ex-presidente do Banco Mundial, acaba de publicar o livro America in the World. Nele, com conhecimento e experiência diplomática, examina o papel da política externa na construção do poderio dos Estados Unidos no mundo. Um capítulo é dedicado a Vannevar Bush, por ele qualificado como o “inventor do futuro”.

Bush dirigiu o Escritório de Pesquisa e Desenvolvimento nos governos Roosevelt e Truman. Escreveu Science: The Endless Frontier, excepcional documento de 1945, que inspirou a criação da Fapesp. A Vannevar Bush se deve a concepção do sistema americano de ciência e tecnologia após a 2.ª Guerra Mundial, levando em conta a interdependência da ciência básica e aplicada e da complementariedade entre os distintos papéis do governo, de uma comunidade científica e universitária livre e independente, da indústria e dos empresários privados.

A implementação das concepções de Bush criou um modelo de inovação que eclipsou o sistema soviético, estatal. Esse é um dos dados do sucesso americano na dinâmica da bipolaridade Leste/Oeste. O desafio do presente é a competição entre o modelo de pesquisa e inovação dos EUA e o que vem sendo construído com apreciável sucesso pela China.

Bush antecipou a velocidade com que a cultura científica da pesquisa expande vertiginosamente as fronteiras do conhecimento e vem trazendo mudanças significativas em todas as esferas e dimensões, alterando as condições da vida em escala planetária e impactando a dinâmica da ordem mundial. Henry Kissinger observou que a era digital colonizou o espaço físico e permitiu a ubiquidade do funcionamento das redes que operam na instantaneidade dos tempos. Isso vem induzindo grandes transformações, até na maneira de conduzir a política externa e de atuar no campo diplomático.

Ciência e conhecimento são dados de base do cenário mundial do século 21, o que confere realce especial à afirmação de Bacon “conhecimento é poder”, nela se incluindo o poder da sociedade de dar rumos aos seus caminhos.

Desde o Renascimento a ciência é uma atividade internacional que se alimenta do intercâmbio de ideias e descobertas. Daí as atividades internacionais das academias científicas, incluída a brasileira, no exercício de uma diplomacia da ciência.

As formas como a ciência se insere na pauta internacional e interna levaram a Royal Society inglesa a elaborar novas formulações que vão além da tradicional diplomacia da ciência. Daí o destaque dado à ciência na diplomacia e nas políticas públicas em geral e da ciência em prol da diplomacia. Essas vertentes são ingredientes de grande relevo para um juízo diplomático apropriado para identificar as necessidades internas do País e avaliar possibilidades de melhor inserção internacional.

Dois itens da pauta interna e internacional são reveladores de um negacionismo do papel da ciência e do conhecimento nas políticas públicas e na diplomacia do governo Bolsonaro. O primeiro diz respeito à sua postura no enfrentamento da crise da covid-19, que fez aflorarem novos riscos para a saúde do mundo. A gestão desses riscos requer conhecimento e cooperação internacionais. Demanda as pontes de um multilateralismo permeado pela ciência na diplomacia. Não está no horizonte de uma diplomacia de confronto, que rejeita o acervo de realizações da tradição da política externa brasileira e se alinha aos muros dos unilateralismos excludentes.

O segundo diz respeito ao meio ambiente, tema global, transversal, que permeia a vida internacional. Foi o conhecimento que identificou os riscos que põem em questão a integridade dos ecossistemas, que, no seu conjunto, sustentam a vida na Terra. Foi o aprofundamento do conhecimento que ampliou o escopo operativo da gestão de riscos nessa matéria.

O paradigma do desenvolvimento sustentável consagrado na Rio-92 assinala a presença internacional ativa do Brasil nesse campo e é um exemplo da ciência na diplomacia. O desenvolvimento sustentável é o caminho para lidar, com o apoio do conhecimento, com a interligação economia e meio ambiente.

O desabrido negacionismo do governo Bolsonaro, por atos e palavras, em relação ao tema do meio ambiente é uma denegação do prévio acervo de realizações das políticas públicas brasileiras e de suas instituições de conhecimento. Corrói a credibilidade internacional do Brasil. Põe em questão a nossa capacidade, como país, de lidar criativa e construtivamente, pelo conhecimento, com a riqueza da nossa natureza e com o nosso potencial de crescimento econômico.

Em síntese, como diz o provérbio, “pior cego é o que não quer ver e pior surdo, o que não quer ouvir”, manifestado neste governo por um duplo e interconectado negacionismo: a denegação da importância dos fatos que a ciência e o conhecimento revelam e a recusa do papel da ciência e do conhecimento como o caminho para o seu deslinde. É o que nos isola no mundo e compromete a nossa inserção internacional.

*Professor emérito da USP, ex-presidente da Fapesp (2007-2015), ex-ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002), é membro da Academia Brasileira de Ciências.


Celso Lafer: Democracia, veracidade e 'fake news'

Na era digital, é preciso conter a miserabilidade que vitima a verdade factual e a democracia

Uma das dualidades do significado da palavra política é a da interconexão de política-realidade com política-conhecimento. O desafio resulta de que a percepção da realidade integra a realidade política. A percepção das realidades políticas leva a avaliações, mais elaboradas ou mais toscas, que vão guiar a ação e a sensibilidade das pessoas.

A democracia parte do pressuposto do exercício em público do poder comum, pois o que é do interesse de todos deve ser do conhecimento de todos. Daí o tema da transparência do poder, que enseja a avaliação pela cidadania da atuação dos governantes. Por isso informações exatas e honestas são fundamentais na democracia, para a apropriada percepção da realidade.

Nessa linha, afirma Rui Barbosa: “O poder não é um antro, é um tablado. A autoridade não é uma capa, mas um farol”. Por isso, “o maior, o mais inviolável dos deveres do homem público é o dever da verdade: verdade nos conselhos, verdade nos debates, verdade no governo”. Daí sua crítica à mentira nas instituições e às falsificações públicas e o papel da imprensa como a “vista da Nação”. Por ela, esclarece, é que “a Nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que se lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam”.

É inegável que, nas circunstâncias atuais, com a plena liberdade de expressão, a imprensa de qualidade em nosso país tem cumprido a função de “vista da Nação”, preconizada por Rui.

Nas sociedades urbanas industriais do século 20 nunca foi simples para a imprensa ser a “vista da Nação” e assegurar a difusão da informação exata e honesta. Ela sempre operou no tempo do incessante metabolismo de dar notícias e informar com regularidade, tendo como foco aquilo que capta a atenção de seus múltiplos destinatários. Os meios de comunicação de qualidade, no entanto, sempre se preocuparam nas suas atividades com a sua reputação e confiabilidade.

As sociedades contemporâneas do século 21 operam numa nova realidade trazida pelo advento da era digital, que ampliou de maneira inédita e positiva o acesso à informação. No entanto, o fragmentário de sua difusão e circulação sem as tradicionais pautas de responsabilidade confiável tem o seu impacto na vida da democracia.

A democracia requer, como diz Bobbio, confiança. A confiança recíproca entre os cidadãos e a confiança da cidadania nas instituições. Esta confiança, por sua vez, requer a transparência, que pressupõe no espaço público a boa qualidade da informação necessária para a adequada percepção da realidade política.

Essa confiança está em falta. Esse desafio confere nova dimensão ao tema da veracidade na esfera pública vitimada pelo esconder e pelo destruir, propiciado pela técnica. É o que coloca em novos termos a clássica reflexão sobre a mentira na política e os modos de operar da razão de Estado, seja como atualmente se oculta a informação para impedir a transparência do poder, seja como se falsifica a informação que circula no palácio e na praça para atingir finalidades de política interna e externa.

A verdade da política é a verdade factual, a dos fatos e eventos a partir dos quais se avalia a realidade e se formam as opiniões. O oposto da verdade factual não é o erro, a ilusão ou mesmo a opinião, mas, sim, a falsidade e a mentira, como ensina Hannah Arendt.

A verdade factual é uma verdade frágil, porque pode ser vítima da manipulação dos fatos para denegar a aceitação da realidade. Pôr em questão a estabilidade da realidade factual pelo negacionismo tira das pessoas o chão da tessitura do real, a partir do qual se constrói na democracia o terreno comum, inerente à pluralidade da condição humana. Compromete a confiança que requer a boa-fé, seja na acepção subjetiva de uma disposição de espírito de lealdade e honestidade ou na acepção objetiva da conduta norteada por essa disposição.

A fragilidade da verdade factual aumentou exponencialmente na era digital. É o que acontece com o impacto falsificador das fake news, que se tornaram a má moeda do livre curso na vida política, que amplia, pelas redes sociais, a intransitividade da Torre de Babel, impedindo a comunicação de boa-fé.

É o que também acontece com a ampla circulação das máquinas de ódio e os linchamentos virtuais, que ensejam as “bolhas” autorreferidas que impedem a interconexão da cidadania no espaço público, favorecendo a “ascensão aos extremos” clausevitzianos da guerra.

Neste contexto cabe preconizar, sem censura, um direito à verdade da informação exata e honesta. Entre os caminhos que têm sido aventados está o da autorregulação regulada das plataformas digitais, que têm caráter eminentemente público, apesar da dimensão privada de sua propriedade e de seus usuários.

Diz um provérbio judaico que a verdade nunca morre, mas leva uma vida miserável. É preciso, na era digital, conter a miserabilidade que vitima a verdade factual e compromete a democracia.

*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Celso Lafer: Meio ambiente e desenvolvimento sustentável

Defesa ambiental é um princípio imperativo que não pode ser ignorado num Estado Democrático de Direito

O século 20 foi um século de rupturas. Caracterizou-se pelo ineditismo da transposição de barreiras antes tidas como usuais. Nessa linha, a partir da década de 1970 foi ficando evidente que a natureza deixou de ser um dado da permanência da ordem cósmica e passou a ter o componente de um construído/destruído pela ação humana.

Hoje é inequívoca a vulnerabilidade da natureza por obra da atuação dos seres humanos. Ela deixou de ser concebida como um horizonte quase infinito, aberto à exploração humana. Tornou-se um horizonte de vulnerabilidade, comprometedora da rede global dos ecossistemas que sustentam a vida na Terra.

Responsabilidade provém do verbo latino respondere, responder. No campo jurídico, o termo foi sendo elaborado como resposta do Direito a fatos e situações provenientes de desordens e injustiças causadoras de dano. No caso das situações oriundas da vulnerabilidade da natureza, o assumir de responsabilidades políticas e jurídicas coloca o problema não só do dano causado no passado e no presente, mas também do dano no presente que se projeta no futuro.

O novo contexto passou a exigir novos conceitos. O aprofundamento crescente do conhecimento científico permitiu desvendar os riscos para o meio ambiente. Ampliou-se o escopo operativo da gestão de riscos necessária para analisar o impacto ambiental da ação humana. Daí novos conceitos como o princípio da precaução. Ciência e conhecimento se tornaram fonte material das normas do direito ambiental.

A dinâmica das mudanças econômicas, políticas e intelectuais adensadas no século 20 tornou o mundo finito e interdependente. Aprofundou a porosidade das fronteiras, particularmente relevante em matéria ambiental, pois se a maioria dos ecossistemas se situa em territórios nacionais, o impacto do seu uso tem efeitos transfronteiras. Basta pensar nas múltiplas dimensões da mudança climática. Isso faz do meio ambiente um tema global.

A Conferência da ONU de 1972 em Estocolmo foi a primeira tomada de consciência no plano diplomático mundial da vulnerabilidade da natureza. Abriu caminho para a inserção do meio ambiente na agenda internacional. Identificou o potencial de preocupações compartilháveis, desvendadas pelo conhecimento gerado de maneira crescente pela ciência. Enfrentou as dificuldades de encontrar conceitos e meios para operacionalizá-las num mundo estratificado pela polaridade Norte-Sul, como a de compatibilizar as legítimas aspirações ao desenvolvimento e à preservação do meio ambiente.

O caminho para equacionar essa dificuldade foi a “ideia a realizar” do desenvolvimento sustentável. O conceito, que é heurístico, proposto pelo Relatório Bruntland, de 1987, contribuiu para a vis directiva da Conferência da ONU no Rio de Janeiro, em 1992, na qual foi consagrado. Sob a égide da Declaração da Rio-92, adquiriu notável irradiação, que permeia o contemporâneo direito do meio ambiente na interpenetração do interno e do internacional.

O paradigma de desenvolvimento sustentável trouxe profunda mudança no entendimento do como lidar com o inter-relacionamento de atividades econômicas, sociais e meio ambiente. Este não é uma “externalidade”. Daí o imperativo da “internalização” da avaliação dos custos da sustentabilidade ambiental – que tem efeitos erga omnes em função da vulnerabilidade da natureza – nos processos decisórios públicos e privados, locais, nacionais e internacionais. O desenvolvimento sustentável contrapõe-se a padrões insustentáveis de produção e consumo, como o desmatamento predatório. Alcança a mudança da lógica das matrizes energéticas. Vem levando à busca da economia de baixo carbono e à generalizada validade de padrões de ecoeficiência, exigíveis na certificação da atuação de empresas. É critério de atração de investimentos.

O desenvolvimento sustentável aponta para a responsabilidade coletiva – global, nacional e local – consolidar os seus pilares mutuamente interdependentes e, nesse âmbito, os imperativos solidários de cooperação internacional. Dá realce à obrigação das normas nacionais e internacionais de tutelar o escopo da responsabilidade jurídica por dano ambiental, incluída a que provém do seu impacto transfronteiras. Destaca o direito de acesso adequado às informações relevantes ao meio ambiente, que é hoje um componente de transparência democrática do poder.

O desenvolvimento sustentável não é uma preferência entre outras preferências, como as do “achismo irresponsável” e da cobiça sem freios. Possui a força legitimadora da tutela do direito à vida das gerações presentes e futuras, como estipula o artigo 225 da Constituição federal. É uma obrigação de todos. Por isso a Constituição, ao listar os princípios gerais da atividade econômica em nosso país, estabelece no artigo 170, VI, a defesa do meio ambiente. É um princípio imperativo de alcance geral, que não pode ser ignorado e desconsiderado num Estado Democrático de Direito.

*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Celso Lafer: Ódio

É a negatividade da mescla do ódio nas opiniões que impacta a convivência democrática

O ódio é um sentimento que conduz à aniquilação dos valores. Promove a falta de conexão entre pessoas, isola e desliga, pulveriza e corrói o papel dos indivíduos, como destaca Ortega y Gasset. Tem um efeito que corrompe e avilta o espaço público.

O ódio tornou-se parte do contorno da vida política brasileira. Virou um ingrediente da nossa circunstância. Esteve presente na dicotomia da eleição de 2018. Alimenta a lógica do confronto da Presidência Bolsonaro. Esta se vê continuamente abastecida por fake news e pelas limitadas, mas estridentes manifestações facciosas de movimentos de ódio, denegadores das instituições democráticas e propugnadores de uma “ascensão aos extremos”. O radicalismo dessas posturas, que usufruem a acolhedora benevolência do presidente, impacta a atmosfera política. Compromete o espaço de um centro agregador da sociedade brasileira.

O ódio não reflete. Agita. Na esfera pública movimenta a obscuridade dos ressentimentos privados em relação ao sistema político.

Instrumentaliza na sua dinâmica o sentimento voltado para identificar não adversários, mas múltiplos inimigos. Com estes, para essas facções, cabe travar uma guerra pública, política e cultural. É uma mensagem de combate que está em impregnadora sintonia com a mentalidade do setor ideológico do governo.

O ódio, público ou privado, contrapõe-se à prescrição bíblica. Diz o Levítico (19,17): “Não terás no coração ódio pelo teu irmão”. A reflexão talmúdica sobre essa prescrição ensina que o ódio no coração ao semelhante coloca o ser humano fora do mundo (Tratado Aboth, II-16), ou seja, para falar como Hannah Arendt, impede a pluralidade do estar no mundo com outros seres humanos. Neste mundo o Senhor abomina “o que semeia a discórdia entre irmãos” (Provérbios 6,20).

A discórdia na esfera pública é o que impele o espírito de facção, denega os direitos dos outros membros da cidadania e os interesses gerais da comunidade (Hamilton – Federalista n.º 10). O facciosismo da lógica do confronto presidencial vem comprometendo, entre muitas matérias, a pauta do federalismo cooperativo – até mesmo na situação-limite da covid-19.

Monteiro Lobato fez o Visconde de Sabugosa dizer: “O ódio é assim, não respeita coisa nenhuma”. E Machado de Assis adverte: “Haverá pior coisa do que mesclar o ódio às opiniões?”. É essa mescla que vem envenenando o sistema político brasileiro e a vis directiva dos valores democráticos consagrados na Constituição de 1988.

A diversidade de opiniões é inerente à pluralidade da condição humana. A democracia protege-a por meio das suas instituições, entre elas a divisão dos Poderes, que permite ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal, seguindo a Constituição, se contraporem aos excessos monocráticos da caneta presidencial. Também é a aceitação de que a verdade não é uma, e sim múltipla, que enseja a tutela, no nosso ordenamento jurídico, da liberdade religiosa, de pensamento, de opinião e de sua veiculação e manifestação. Essas são regras do jogo voltadas para assegurar numa democracia o modus vivendi da convivência coletiva.

É precisamente a negatividade da mescla do ódio nas opiniões que impacta a convivência democrática.

As palavras e as mensagens de ódio e suas consequências são um risco para o tecido democrático. Na perspectiva da Constituição, põe em questão um dos objetivos fundamentais da República brasileira, que é o de “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (Constituição federal, artigo 3.º, IV). Esse objetivo é um bem público. Estipula um rumo, um sentido de direção para a sociedade brasileira. Almeja incluir, e não excluir.

As manifestações dos ódios públicos e a veiculação das fake news desqualificam a dignidade dos seus destinatários. São um assalto ao bem público da inclusividade de todos os membros da cidadania brasileira. Comprometem a responsabilidade, que cabe ao poder numa democracia, de proteger a atmosfera de mútuo respeito.

A democracia requer confiança, ensina Bobbio. A confiança recíproca entre os cidadãos e a confiança dos cidadãos nas instituições, o que exige a transparência do poder. A transparência demanda o rigor da informação. Um rigor muitas vezes posto em questão pela atual governança do País, mas que vem sendo contido pela liberdade exercida pelos meios de comunicação não impregnados pelo obscuro facciocismo das fake news e dos “gabinetes do ódio”.

Várias manifestações, reunindo um amplo espectro de pessoas de distintas trajetórias e orientações políticas, foram recentemente divulgadas. Exprimem um sentimento majoritário de preocupação com as consequências para o País dos problemas e suas circunstâncias aqui apontadas. São ações afirmativas da sociedade civil em prol da democracia e da recuperação da confiança que nela, sem facciocismos excludentes, deve prevalecer.

*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


IstoÉ: 'O Brasil é muito maior do que Bolsonaro', diz Celso Lafer

O jurista Celso Lafer, 78 anos, foi um personagem de destaque em vários momentos da história brasileira.

Vicente Vilardaga, IstoÉ

Coube a ele, por exemplo, organizar a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Eco-92. Além disso, ocupou o cargo de ministro das Relações Exteriores por duas vezes, nos governos de Fernando Collor e de Fernando Henrique Cardoso. Escritor profícuo e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), Lafer sempre esteve alinhado com a democracia e com os direitos humanos. Neste momento, portanto, ele tem muito com que se preocupar. Tanto que foi um dos signatários do manifesto Basta!, lançado no dia 31 de maio contra os persistentes ataques do presidente Jair Bolsonaro às instituições democráticas. Mais de 600 advogados assinaram o documento, que denuncia a ofensiva do presidente contra os outros poderes da República. Para Lafer, o governo Bolsonaro substituiu a lógica da cooperação pela do confronto, tanto no plano interno como nas relações internacionais, e está fazendo o País perder credibilidade. “Vivemos um momento de exacerbação dos ódios e o governo dá uma contribuição significativa para isso”, disse à ISTOÉ.

O senhor é um dos signatários do manifesto Basta!, contra os ataques sucessivos de Bolsonaro à democracia. Qual é o objetivo desse manifesto?

Nós aqui no Brasil estamos vivendo um momento politicamente tenso e difícil, que está ligado à crise política, que se soma aos problemas econômicos e ao desafio da pandemia. Temos uma crise de saúde imensa, uma crise econômica muito respeitável e uma crise política que se soma às outras duas. É um problema triplo. E ela tem se colocado também em termos de debate e discussão muito acirrada por parte do Executivo sobre o papel dos demais poderes do Brasil, entre os quais o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso. Acho que para voltar ao tema básico da divisão dos poderes deve haver aí um respeito aos parâmetros que a Constituição estabelece. E a Constituição de 88, que é fruto da redemocratização, colocou como um de seus valores fundamentais a vida democrática e o pluralismo de ideias e opiniões, além do papel próprio das instituições nesta dinâmica.

O senhor acha que a democracia está ameaçada?

Acho que as instituições são fortes e que você tem uma sociedade civil que está se manifestando com muita clareza, como se manifestou na semana passada em diversos documentos e declarações de múltipla abrangência, inclusive com o manifesto Basta!, e de pessoas de diversas linhas e de diversas orientações que sentiram importante manter esse terreno comum, onde pode haver concordância e discordância, mas onde é necessário que haja respeito e civilidade.

O problema é que o ódio está dominando as relações políticas. Como evitar isso?

Nós estamos vivendo um momento de exacerbação dos ódios e para isso o governo dá uma contribuição muito significativa, pelo espírito que alimenta as facções que o apóiam e, inclusive, pela maneira de sustentá-lo por via das fake news. O filósofo espanhol Ortega y Gasset, em um dos seus primeiro livros, a Meditações do Quixote, diz que o ódio é um sentimento que conduz à aniquilação dos valores, promove a falta de conexão entre as pessoas e, ao fabricar essa falta de conexão, isola e desliga, pulveriza e corrói o papel dos indivíduos. O ódio tem um efeito deletério que corrompe e avilta o espaço público.

Há um crescimento do preconceito e da intolerância?

Um dos objetivos da República, entre outros, é o de promover o bem de todos sem discriminação de qualquer espécie. E sem preconceitos, que é a ideia da tolerância. Busca-se construir uma sociedade livre, justa e solidária. Norberto Bobbio dizia que uma das virtudes da democracia é contar cabeças e não cortar cabeças. E o que justamente esses escritos e mensagens de ódio dos grupos radicais almejam é fechar o espaço para o pluralismo de ideias, de opiniões e valores que são característicos da sociedade brasileira. Não creio que uma sociedade abrangente como a nossa deva se abrir para a obscuridade dos ódios públicos no qual o ressentimento desempenha um grande papel. A Hannah Arendt discute isso quando analisa o caso Dreyfus e o Rui Barbosa também trata desse tema dos espasmos de ódio. Machado de Assis diz, com razão, que não haverá pior coisa que mesclar o ódio às opiniões. Creio que, neste momento, a intolerância dos radicais torna difícil a gestão de um país complexo como o nosso. O que serviu para o presidente ganhar a eleição, que foi, justamente, o confronto, não serve para administrar o País. E os grupos de ódio representam uma maneira de minar as instituições e a democracia.

O senhor percebe um esforço do governo de fazer uma mudança cultural, de abolir a cordialidade e a solidariedade da nossa cultura?

Em princípio, a cultura une, diz Bobbio, e a política divide. O que o governo está fazendo no âmbito da cultura é uma política voltada para dividir, separar e isolar e acho que isso vai contra o espírito da Constituição e vai contra a criatividade que sempre caracterizou a cultura brasileira. Ou seja, eles estão remando contra a maré de uma realidade sociocultural cuja importância me parece indiscutível. Você não consegue fazer uma política de estímulo cultural contestando todos os atores culturais.

Fala-se no combate ao marxismo cultural. O governo diz que há uma visão esquerdista que se impõe na cultura. Como o senhor vê isso?

Vejo como uma visão distorcida do que é a cultura brasileira nas suas múltiplas dimensões. Claro que é uma cultura que tem várias vertentes e tem também uma vertente de sensibilidade de esquerda, mas você não mudará isso com afirmações e colocações como essas que caracterizam o gabinete de ódio e os seguidores do Olavo de Carvalho. Você precisa ter um elemento de persuasão, de convencimento, você precisa ter uma capacidade de abrangência. Se quisermos mudar a cultura ou influir sobre a cultura, é necessária certa abrangência para atingir uma sociedade com 200 e tantos milhões de pessoas com muitos desníveis. Não é por uma ação de força que você vai conseguir isso.

Como o senhor vê a posição das Forças Armadas neste momento?

A Constituição conferiu um papel constitucional às Forças Armadas de preservação das instituições. Acho que no correr da nossa história, elas tiveram oscilações, mas as Forças Armadas, como um todo, consideraram importante a redemocratização e creio que houve uma valorização do seu papel social e político. As Forças Armadas têm muitas virtudes, como a noção de responsabilidade, de missão e de patriotismo e acredito que isso não faltará na preservação da democracia.

Em que medida a reunião ministerial que levou à demissão do ex-ministro Sérgio Moro é reveladora do funcionamento caótico desse governo?

A reunião acabou iluminando as características do processo decisório do governo e revelou uma total falta de governança. Hoje em dia há muita preocupação com a governança. Gestão de riscos, por exemplo, é uma preocupação que qualquer um que exerça uma função pública ou privada deve ter. Pois essa reunião ministerial revelou pouca preocupação com os riscos do que foi dito, seja em matéria de meio ambiente, em matéria de educação, de direitos humanos, de investimentos, ou do relacionamento do País com outros países.

Era uma reunião que deveria tratar de pandemia

E não se tratou do assunto. Mostra uma falta de foco. Um dos grandes problemas do país é, indiscutivelmente, a pandemia e as políticas públicas de saúde. Mas o assunto não mereceu atenção na reunião ministerial.

Há uma aversão do governo às questões técnico-científicas, uma recusa a tomar decisões baseadas na ciência. O que isso revela?

No mundo contemporâneo, onde a inovação científica e tecnológica afeta de maneira tão dramática a vida de todos não é possível você ignorar o conhecimento no processo de gestão. Isso envolve tudo. Envolve desde temas como saúde e passa evidentemente pelos problemas do meio ambiente e da economia. Reduzir as coisas ao achismo ou ao negacionismo é levar o país para a deriva. A agricultura brasileira, por exemplo, que tem um papel tão significativo na vida econômica do País, foi fruto da capacidade empreendedora, mas, ao mesmo tempo, da incorporação da ciência e da tecnologia na área produtiva. Não foi o desmatamento, mas a Embrapa que deu ao agronegócio brasileiro as suas vantagens comparativas. E isso está sendo dilapidado. Estamos perdendo crescentemente nossa credibilidade.

O presidente deveria estar estabelecendo um plano de ação conjunta, mas perde tempo numa briga sem fim com os governadores. Aonde isso vai levar?

O Brasil é uma federação, não é um estado unitário. E os estados e os municípios têm competências próprias e competências que são concorrentes. Cabe ao governo buscar uma ação coordenada para atingir objetivos e fins comuns. Mas não é isso que acontece. O governador Montoro, que era uma figura muito interessante, gostava de fazer uma citação do filósofo Teilhard de Chardin, que dizia que é pela elevação que se chega à convergência. O que caracteriza o atual governo não é a elevação, mas é justamente o oposto, é o rebaixamento, que leva à divergência.

Há uma proliferação de movimentos em defesa da democracia se formando no País. A sociedade brasileira será capaz de conter os desmandos do governo?

Como diz Hannan Arendt, o poder surge do agir conjunto. E as manifestações da sociedade mostram que está havendo um agir conjunto de uma parcela majoritária da cidadania brasileira. A sociedade tem poder de conter o arbítrio ou o potencial do arbítrio.

O senhor crê que o resultado dessa luta será virtuoso?

É um ciclo de contenção da ameaça à democracia e de qualquer ameaça de poder arbitrário fora daquilo que são as competências estabelecidas pela Constituição. O Bolsonaro quer medir o Brasil com a própria régua, mas a régua dele é pequena para o tamanho do País. O Brasil é muito maior do que o Bolsonaro.

Como o senhor vê a diplomacia do governo Bolsonaro?

Tenho sido muito crítico com a diplomacia nesse governo. É uma diplomacia que não atende os interesses nacionais. Sempre considero que a política externa é uma política pública. E ela tem como objetivo traduzir necessidades internas em possibilidades externas, o que envolve uma análise daquilo que é importante para o País e da possibilidade de obter espaços no plano internacional. Aqui existe uma tradição diplomática importante. A diplomacia teve um papel na construção do País e o livro do Rubens Ricupero (“A Diplomacia na Construção do Brasil”) mostra isso com muita clareza. Devemos à diplomacia a construção de um país como o nosso em paz com seus dez vizinhos.

E onde ela está falhando agora?

Acho que esta tradição diplomática brasileira está mais ou menos consolidada nos princípios que regem as relações internacionais no país. E um desses princípios é a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Mas o governo Bolsonaro tem sustentado uma diplomacia de confronto e de combate. É uma expressão no plano externo na maneira de atuar e operar do presidente, que é voltada para o conflito e para confronto. Não sei se esse confronto atende a nossa necessidade. Ele cria dificuldades para nossa inserção no mundo e cria conflitos desnecessários com parceiros importantes para o Brasil, como a Argentina, a França, a Alemanha e, evidentemente, a China.

O Brasil abandonou seus próprios interesses?

A gente tem um sistema internacional muito tenso com lógicas de confronto e tensões de hegemonia, entre as quais esta que caracteriza a maneira pela qual o Trump vê o mundo e a relação dos Estados Unidos com a China. Não é uma agenda do interesse do País e não temos porque endossá-la. Temos sempre que buscar aquilo que foi a característica da nossa presença internacional, que é a de ter um contato construtivo com os países e, além disso, buscar sempre nos valer não apenas das instâncias bilaterais, mas das multilaterais. É justamente a recusa em reconhecer a importância do multilateralismo um dos traços da política externa de Bolsonaro, seja em relação à ONU, à OMS ou aos mecanismos regionais de cooperação.

Qual é a nossa opção?

O Brasil sempre teve um papel criativo e construtivo no âmbito da nossa região e está afastado da possibilidade de exercê-lo. Para nós cabe buscar com nossos vizinhos uma aproximação e transformar nossas fronteiras em fronteiras de cooperação e não de separação. Mas nós estamos nos confrontando com uma situação de isolamento. Basta ver que até mesmo no caso dessa pandemia não estamos sendo vistos como um país que lida com a doença de maneira construtiva e positiva. O Brasil é um país de escala continental, não é uma grande potência, mas tem um papel construtivo, que pode ser exercido na ordem mundial e atender nossos interesses. É o que se chama de “soft power” da nossa dimensão internacional. Estamos dilapidando esse componente de credibilidade.

Isso se percebe no debate sobre o meio ambiente.

É um exemplo óbvio. O Brasil desempenhou desde a Rio-92 um papel importante na área do meio ambiente e na área da sustentabilidade, clima, biodiversidade e na compreensão de que o meio ambiente não é uma externalidade, mas uma coisa a ser incorporada nos processos decisórios das políticas públicas e privadas. Além do mais nos confrontamos com a questão da mudança climática, um tema de natureza global que afeta a tudo e a todos. Por essa razão na área de investimento e nas questões de natureza econômica ter um reconhecimento da importância do meio ambiente é fundamental.

Quais as consequências dessa perda de credibilidade?

No mundo que virá depois dessa grande pandemia, que terá alterações, sejam construtivas ou destrutivas, nossa posição estará profundamente enfraquecida pelos erros de visão e de orientação da diplomacia no governo Bolsonaro.

O Brasil está assumindo uma posição submissa aos interesses dos Estados Unidos? E a relação com a China?

Não nos cabe comprar a agenda de outros países. O que nos cabe é cuidar da nossa própria agenda. E devemos manter uma sábia equidistância dessa grande tensão internacional e aproveitar a capacidade de diálogo que temos com os Estados Unidos e com a China. Não se trata de fechar caminhos, mas de abrir portas. Obviamente há mudanças nas placas tectônicas políticas e econômicas da ordem mundial. E os Estados Unidos e o Trump identificam a China como seu grande rival estratégico. Não é um tema nosso. O que devemos fazer é manter um diálogo aberto. Os americanos falam em “american first”, mas, para nós, o Brasil deve ficar sempre em primeiro lugar.


Celso Lafer: Política externa bolsonarista

Ações da diplomacia de confronto são desvio incompatível com os ditames constitucionais

Em nosso país a competência constitucional para a condução da política externa é da alçada do presidente da República. Na experiência histórica do Brasil a prática confirma esse tradicional preceito constitucional.

Foi pela ação, e por vezes também pela omissão, que em nosso país os presidentes exerceram a função de conduzir a política externa, definindo, à luz do cenário internacional, os caminhos da inserção do Brasil no mundo e no nosso contexto regional. Nessa condução seguiram a estratégia e o temperamento de sua personalidade.

O mesmo se pode dizer da política externa do governo Bolsonaro, que se amolda à estratégia do temperamento do presidente e do seu modo de ser e de atuar, que foi desde sempre o do confronto.

O confronto marcou a sua curta vida de militar da ativa. E caracterizou, com pouca ressonância, a sua longa carreira parlamentar. A lógica do confronto foi também a marca identificadora de sua campanha presidencial de 2018.

Na sequência, vem governando pelo ímpeto do confronto, nutrido por sua vocação para a “ascensão aos extremos”, destituída, porém, da sobriedade recomendada por Clausewitz nessa matéria.

São incontáveis os eventos da manifesta inconformidade do seu temperamento com tudo o que na vida democrática legitimamente cerceia o poder monocrático da sua caneta de chefe de Estado.

O presidente alimenta cotidianamente a sua lógica de confronto pelo intenso uso das redes sociais, abastecidas pelo “gabinete do ódio”. O ódio é um sentimento que, como esclarece Ortega nas Meditações do Quixote, desliga e isola, fabricando a falta de conexão com o pluralismo da realidade nacional e internacional. O ódio veiculado pelo amplo uso das redes sociais instrumentaliza suas mensagens pelas fake news das falsificações mentirosas.

A política externa do governo Bolsonaro é igualmente a expressão e o desdobramento, no plano externo, da sua lógica de confronto. É uma diplomacia de combate ao que identifica, também no plano externo, como “conspirações” e “inimigos” de sua autorreferida visão de mundo. Em função dessa linha de orientação, rejeita de maneira inédita o significativo acervo de realizações da política externa do nosso país. Denega sem hesitação a seriedade do decoro que sempre a assinalou, e que o Conselho de Estado do Império sintetizou nos seguintes termos: “Diplomacia: inteligente, sem vaidade; franca, sem indiscrição; enérgica, sem arrogância”, traços que granjearam o respeito e a credibilidade internacional do Itamaraty, mesmo em momentos difíceis, interna e externamente.

Os princípios que regem as relações internacionais do Brasil, estipulados no artigo 4.º da Constituição, consolidaram a vis directiva da tradição da diplomacia brasileira. As ações da política externa bolsonarista, todavia, são um desvio incompatível com a letra e o espírito dos ditames constitucionais.

A Constituição prescreve a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, o que se faz por meio do relacionamento com outros Estados e pela participação em organizações internacionais. É essa a fundamentação jurídica da diplomacia de cooperação, que nos seus matizes é rejeitada, com graves consequências para o País, pela diplomacia de combate e de confronto do governo Bolsonaro.

O bolsonarismo da política externa apregoado, com patético passionalismo desconectado dos dados da realidade internacional, pelo chanceler Ernesto Araújo aniquila nossa credibilidade internacional. Induz a perda de mercados e de investimentos. Antagoniza gratuitamente parceiros relevantes como a China, a França, a Alemanha e a Argentina, indispensáveis para a própria agenda econômica do governo. Isola-nos na nossa região, até no Mercosul, e, por via de consequência, corrói a capacidade brasileira de nela atuar construtivamente para lidar com os desafios do presente.

Alia-se ao agressivo unilateralismo dos EUA de Trump, intensificando o desmoronamento da nossa capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, especialmente no âmbito das instâncias multilaterais, como a ONU, a OMC e, inexplicavelmente, em função das urgências da pandemia de covid-19, com a Organização Mundial da Saúde. Liquida o nosso ativo de liderança na área do desenvolvimento sustentável, construído a partir da Rio-92, em consonância com o disposto na Constituição sobre meio ambiente. Faz tábula rasa do princípio da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais, que deve ser coerentemente harmonizado com o estipulado no plano interno pela Constituição.

Em síntese, a inepta e desastrada política externa de combate e de confronto do bolsonarismo não permite traduzir necessidades internas em possibilidades externas, que é a tarefa da diplomacia como política pública. É um fardo imobilizador da capacidade do Brasil de encontrar o seu apropriado lugar num mundo tenso e turbulento que tende a se complicar no amanhã do pós-covid-19.

*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP; foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Celso Lafer: Variações sobre o coronavírus

Não temer o perigo e os seus remédios exige em todos os planos a coragem da liderança

A generalizada magnitude do impacto do coronavírus é opressiva. Instiga, na anormalidade dos isolamentos, um parar para pensar o alcance e significado do ineditismo de uma situação geradora, em escala planetária, de medo e insegurança.

A covid-19 é um grande exemplo do que Proudhon qualificou como a fecundidade do inesperado. Surpreendeu governantes e governados. Foi muito além dos cálculos dos peritos em riscos. Não se esgota no âmbito do acaso, que “tem do confuso mundo o regimento”, como diz Camões.

As medidas de contenção da pandemia, baseadas no necessário distanciamento e isolamento social que a ciência no estágio atual do conhecimento prescreve, vêm fulminando a lógica normal da vida cotidiana e da economia. Tornaram uma realidade presente a clássica figura literária de um “mundo às avessas”. Evoca o que diz Gil Vicente: “O mundo é já desgorgomelado/ tudo bem se vai ó (ao) fundo” (Auto Pastoril Português). A palavra desgorgomelado, segundo os estudiosos do léxico vicentino (Teyssier), é um neologismo rústico, calcado em degolado, ou seja, garganta cortada. Aponta assim para a inédita crise de um mundo que não está respirando social e economicamente. Corre o risco de afundar.

As sociedades contemporâneas, inseridas, para o bem e para o mal, num mundo interconectado e interdependente, são sociedades de risco, sujeitas aos desgorgolamentos. A ampliação do conhecimento vem permitindo, na lida com esses desafios, construir em todas as esferas mecanismos e processos de gestão de riscos de todos os tipos – políticos, econômico-financeiros, empresariais, ambientais, de saúde. A gestão de riscos permite ampliar o escopo da prudência mediante a elaboração das modernas técnicas de múltiplos cenários. Estes têm como tarefa avaliar as contingências de um sem-número de imprevistos que transbordam das regularidades do que é tido como usual.

Independentemente da maior ou menor existência de condutas negligentes, em todos os âmbitos da conduta humana, inclusive no plano da saúde e da ordem mundial, existem limites ao horizonte do previsível.

Com efeito, uma característica dos sistemas complexos do mundo contemporâneo, em que estamos inseridos, é a de que é impossível explicá-los completamente e, por via de consequência, ter a capacidade de controlá-los inteiramente. A complexidade induz o potencial da radicalidade da incerteza e dos seus desdobramentos em todas as áreas. É o que observa Thierry de Montbrial – um dos grandes estudiosos da ação estratégica – em texto de 1.º/4 sobre o coronavírus. É o que explica a vigência da observação de Proudhon sobre a fecundidade do inesperado e de seus desdobramentos, que estão e vão impactar a dinâmica de uma já precária ordem mundial permeada pelas forças centrífugas da fragmentação.

Como enfrentar em nosso país o inesperado da covid-19? Para o homem de razão e de ação não cabe a insensível resignação perante a fatalidade dos óbitos. Não cabe igualmente alimentar a expectativa de salvação em curto prazo por meio de um remédio ou de uma vacina que para serem descobertos e aplicados pressupõem o tempo da pesquisa, que não é o tempo da urgência da crise. O homem de razão e de ação parte da objetiva percepção de que estamos diante de um labirinto de dificuldades e cabe buscar os difíceis caminhos de saída recorrendo ao repertório dos conhecimentos existentes e aos cenários de contingência que permitem.

Na condução das políticas públicas da saúde e da economia, em especial na situação-limite do coronavírus, é indispensável ter zelo. Zelo é incompatível com o negacionismo em relação aos fatos e com improvisações e rompantes que alimentam a insegurança, corroem a confiança e dividem a sociedade.

“O verdadeiro zelo teme o perigo e trata dos remédios”, ensina o padre Antonio Vieira, que adverte: “O maior perigo não é quando se teme o perigo, é quando se teme o remédio”. Os remédios são aqueles que o estágio atual do conhecimento e da ciência validados pela Organização Mundial da Saúde indicam. Indicam seja em matéria de contenção e trato médico e hospitalar da pandemia, seja em matéria econômica, nas medidas emergenciais voltadas para mitigar o avassalador impacto da crise na vida das pessoas.

Não temer o perigo e seus remédios exige em todos os planos a coragem da liderança. Delas são exemplos, na área federal, o Ministério da Saúde na meritória gestão de Luiz Henrique Mandetta e a equipe econômica e outras objetivas equipes governamentais; no espaço da Federação, competentes governadores como João Doria e empenhados prefeitos como Bruno Covas; o Congresso e seus dirigentes; as antenas de sensibilidade do STF; a mídia no seu empenho em informar com transparência o que se passa; a sociedade civil nas suas manifestações e na miríade de múltiplos atos de solidariedade e filantropia.

Manter esse rumo, não fragilizar esse sentido de direção, é a única maneira que está ao nosso alcance para impedir um desgorgolamento que nos afundará num “mundo às avessas”.

* PROFESSOR EMÉRITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992 e 2001-2002)