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Rolf Kuntz: Com atraso e sem rumo, vai sair o bloco do governo
Sem Orçamento e sem plano, o governo vai afinal entrar em 2021
Sem carnaval, sem dinheiro, sem rumo claro e sem Orçamento, o governo segue, no entanto, o costume imputado ao povo brasileiro: começar o ano só depois do fim da batucada. Bem depois, no caso do governo, como se a pandemia solta, a vacinação apenas iniciada e a economia sem fôlego admitissem lentidão, indecisão e administração segundo o modelo pazuellino. O presidente Jair Bolsonaro anunciou mais quatro parcelas de auxílio emergencial, provavelmente a partir de março. A recém-nomeada presidente da Comissão Mista de Orçamento, deputada Flávia Arruda (PL-DF), prometeu aprovação da lei orçamentária até o fim do próximo mês. Com as duas providências, o Poder Executivo poderá iniciar, enfim, algo parecido com uma gestão normal, com uns três ou quatro meses de atraso.
Sem a ajuda emergencial, milhões de famílias continuam sofrendo os horrores econômicos produzidos pela pandemia. O auxílio acabou no fim do ano, porque foi programado como se o drama devesse acabar em 31 de dezembro. O projeto de lei orçamentária, enviado ao Congresso no fim de agosto, foi elaborado como se 1.º de janeiro fosse o começo de uma nova história.
Levou-se em conta, no projeto, o legado fiscal das ações especiais de 2020: um enorme desajuste nas contas federais, uma dívida pública bem maior do que se podia prever, uma gestão financeira muito complicada e nada além disso. Mas o mundo real seguia um roteiro diferente, com desafios bem mais amplos. O governo ignorou essa possibilidade, preferindo festejar uma suposta recuperação em V e apostando numa economia mais forte e com mais emprego em 2021.
Enquanto a pandemia matava, os pobres afundavam, o presidente se envolvia em polêmicas sobre a vacina e o ministro da Saúde fazia tudo errado, o governo derrapava na confusão e perdia tempo. O ministro da Economia, Paulo Guedes, demorou a admitir, pelo menos em público, a hipótese de novos pagamentos de auxílio. Pressionado pelos novos presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, acabou, aos poucos, discutindo o assunto mais abertamente.
Resistiu, no entanto, a entrar no jogo, como se a nova ajuda aos mais necessitados só interessasse, politicamente, aos interlocutores. Cobrou soluções, tomando como exemplo as condições especiais aprovadas no ano passado, mas sem a iniciativa de uma proposta. Numa ação paralela, ao menos em aparência, o presidente Bolsonaro logo se mostrou favorável à retomada do auxílio, mas sempre ressaltando as limitações do Tesouro.
No entendimento enfim anunciado na quinta-feira, o ministro da Economia apareceu em segundo plano, porque o presidente da República e os presidentes da Câmara e do Senado se haviam destacado como defensores da nova ajuda.
O interesse do presidente Bolsonaro talvez seja, como em outros momentos, basicamente eleitoral. Mas o socorro aos necessitados pode ser também relevante para a economia. A recuperação iniciada em maio obviamente se enfraqueceu no segundo semestre.
Em dezembro, a produção industrial foi 0,9% maior que em novembro, mas o crescimento perdeu vigor nos oito meses de retomada. No balanço final, o desempenho da indústria em 2020 foi 4,5% inferior ao de 2019. O varejo encerrou o ano com vendas 6,1% menores que as de novembro. O volume vendido em 12 meses foi 1,2% maior que o do ano anterior, mas os números do bimestre final foram muito ruins. Quanto aos serviços, começaram a melhorar só em junho, com pouco impulso, e recuaram 7,8% em 12 meses.
Os últimos dados do desemprego mostraram 14 milhões de pessoas desocupadas no trimestre setembro-novembro. Nada sugere condições muito melhores nos meses seguintes, até porque o setor de serviços, importante fonte de empregos, entrou muito enfraquecido em 2021.
Mas o governo pareceu desconhecer todos esses dados, como se a continuação da retomada estivesse magicamente garantida. Nada relevante foi feito na política econômica desde o início do ano. Nem os saques da poupança em janeiro, um recorde histórico, pareceram inquietar a equipe econômica. Ninguém parece haver considerado a hipótese temível: quantos terão sacado dinheiro para simplesmente sobreviver?
Sem Orçamento, o governo depende agora de um decreto, assinado na quinta-feira, para realizar gastos inadiáveis. Não há notícia de uma política de sustentação da atividade. Os únicos incentivos são os mantidos pelo Banco Central (BC), com juros baixos e estímulos ao crédito.
Com a aprovação do Orçamento e a liberação do auxílio emergencial, importante para o consumo, o governo poderá aproximar-se de algo parecido com uma gestão normal. Para isso será preciso combinar ajuste fiscal e ativação econômica, tarefa tão complicada quanto indispensável.
Mas até a noção de normalidade parece estranha. Afinal, o presidente e sua equipe só tomaram medidas típicas de governo quando foram forçados, pela pandemia, a iniciar ações parecidas com as implantadas em mais de uma centena de outros países. Mas a pandemia continua e as ações típicas de governo sumiram quase inteiramente.
Eliane Cantanhêde: PSDB ataca Doria, DEM tira o tapete de Huck, Lava Jato engole Moro. E Luiza Trajano?
Quem pode preencher esse vácuo é uma mulher, empresária, colecionadora de êxitos, com o pé no chão e defensora de boas causas
Se parece pato, anda como pato e grasna como pato, pato é. Se o novo ministro da Cidadania, João Roma, fez toda a sua carreira no DEM, colado em ACM Neto e era seu chefe de gabinete, ACM Neto ele é. Jura que foi parar no colo do presidente Jair Bolsonaro pelo Republicanos e por Marcos Pereira, ninguém acredita. Depois de Sérgio Moro, em 2019, o maior troféu de Bolsonaro é ACM Neto, que perde o status de uma das grandes promessas nacionais e arrasta junto o DEM.
Além de, novamente, garantir mais armas e mais balas para civis, Bolsonaro está soltando fogos. O Centrão transformou o Congresso em puxadinho do Planalto e o DEM cala Rodrigo Maia, voz decisiva da resistência ao autoritarismo e ao atraso, imobiliza Luciano Huck, obrigado a procurar outra sigla, e desarticula uma saída da catástrofe pelo centro – que está descambando para a extrema direita.
Num movimento combinado, o PSDB segue o desastre do DEM, como um piloto que, em meio a forte tempestade, entra em estado de desorientação espacial. Trancado na cabine (no caso, na bolha), não enxerga nada à frente, não sabe mais se está subindo ou descendo e acelera até se esborrachar no solo logo ali. É mesmo estonteante o DEM e o PSDB elegerem João Doria e Maia como inimigos prioritários.
É hora de atacar Doria? Goste-se ou não dele, e muita gente não gosta, ele é governador do principal Estado do País, ocupa a mais importante vitrine nacional dos tucanos e merece aplausos pela visão, diligência e decisão ao providenciar as vacinas. Com legitimidade, fazia uma dupla fundamental com Rodrigo Maia para dizer “não” a investidas golpistas e medidas retrógradas.
O que seria do Brasil sem as “vacinas chinesas do Doria”? Em fevereiro, teríamos dois milhões de doses para 210 milhões de habitantes, com 9,8 milhões de contaminados, 238 mil mortos e novas variantes mais ameaçadoras, enquanto o presidente insiste no “e daí?”. E, sem Maia na Câmara e Doria no PSDB de São Paulo, quem dará voz e cara à oposição? Bolsonaro torce para Lula e Fernando Haddad.
O tucano Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul, tem lá suas qualidades, mas não pode ser séria a articulação do seu nome para a Presidência. Muito jovem, está no primeiro mandato relevante, num Estado que se especializou em torrar seus quadros políticos e nunca reelegeu um único governador. Logo, a caravana tucana pode tê-lo convencido, mas a ninguém mais.
Chutar Doria para pôr Leite no lugar tem cara de blefe, para dissimular uma outra jogada: a aproximação com Bolsonaro. Consolida, assim, a análise de que o melhor que pode acontecer ao PSDB é pôr ponto final na sua bela história, antes de um triste fim - que pode estar perto. Depois do ministro de ACM Neto, Bolsonaro busca nomes vistosos do PSDB e do MDB para o governo.
Com PSDB e DEM se autodestroçando, Bolsonaro corre sozinho, cada vez mais lépido, fagueiro, sem noção e sem escrúpulos, sustentado por Forças Armadas, polícias, milícias, os reinos de Deus, Centrão, Congresso e “oposição”. Não pensem o PT e a esquerda que isso é bom para Lula, Haddad ou quem quer que seja. Na implosão do centro, a debandada é para Bolsonaro.
Doria, Huck, Moro e Luiz Henrique Mandetta são torpedeados antes de alçar voo, mas, como não há vácuo em política, quem pode preencher esse vácuo é uma mulher, empresária, colecionadora de êxitos, com o pé no chão e defensora de boas causas, como cotas, vacinas, menos ideologia e mais resultados. Sim, Luiza Trajano, sem partido e sem traquejo político, mas instada a botar o bloco na rua e, num carnaval tão atípico, animar e atrair um grande aliado de Bolsonaro: o eleitor desiludido, ou desesperado, que só vê o buraco aumentando.
Vinicius Torres Freire: A nova lei da gasolina de Bolsonaro e as velhas mentiras sobre combustíveis
Projeto do governo é até razoável, mas não resolve o problema dos preços
O projeto de lei do governo Jair Bolsonaro que propõe mudar o ICMS sobre combustíveis é razoável. Ou melhor, seria razoável em um mundo em que:
1) Bolsonaro não fosse o demagogo Bolsonaro: a lei não mexe necessariamente com o nível do preço dos combustíveis;
2) os estados se dispusessem a perder receita do ICMS sobre combustíveis, o que é politicamente inviável se não houver compensações que, em um futuro remoto, talvez sejam decididas em uma reforma tributária.
O projeto prevê que o ICMS sobre cada tipo de combustível seja idêntico em todos os estados e que o tributo tenha um valor fixo por quantidade (litro ou quilo), em vez de uma porcentagem. Parece inviável.
A alíquota de ICMS varia de 12% a 34% entre os estados. Ninguém vai querer perder receita se não houver alguma compensação. O ICMS sobre combustíveis equivale a quase 15% da arrecadação dos estados, na média.
O ICMS é cobrado como um percentual do preço de referência dos combustíveis. Quanto maior o preço, maior a receita de imposto, pois. Se o imposto fosse fixo por litro, digamos, o preço final de venda subiria menos em caso de aumento do combustível. Em tese, cairia menos também. Tudo depende da inclinação dos estados de mexer periodicamente nesse valor fixo de imposto por quantidade.
É verdade que o projeto de lei pode limitar a sonegação e também acabar com uma outra mutreta. O ICMS é cobrado sobre um valor estadual de referência do combustível, em geral uma média de preços em algum período. A fim de arrecadar mais, alguns estados mexem pouco nessa média (quando esse valor é alto).
Mas não está aí o problema central. Gasolina ou diesel ficam mais caros porque o dólar aqui está caro e porque o preço do petróleo está aumentando. Deve aumentar mais caso a economia mundial saia da lama da epidemia. O dólar está aparentemente caro demais em parte por causa do estado de avacalhação da economia e da política.
O preço nas refinarias é “livre”: nesse setor ainda dominado pela Petrobras, desde 2017 segue o mercado mundial (ou quase isso, pois a petroleira tem atrasado reajustes). Caso o governo tabelasse o preço dos combustíveis, o prejuízo acabaria na conta da Petrobras, como no governo Dilma Rousseff (tudo mais constante, a empresa tem receita menor, dívida relativamente maior, paga juros mais altos e investe menos). Com a venda das refinarias da Petrobras, vai ser difícil controlar preços.
O preço dos combustíveis tem impacto social sério, como no caso do gás de cozinha. É possível subsidiá-lo com verba do Orçamento (mas seria preciso também cortar outra despesa ou aumentar impostos). Subsidiar gasolina e diesel incentiva a poluição e arruinou a indústria do etanol.
É também possível reduzir a variação excessiva de preços cobrando um imposto regulador (como a Cide). Esse imposto aumenta quando os combustíveis estão em baixa e diminui quando estão em alta. Assim, é possível manter o custo do combustível dentro de uma faixa mais estreita de variação (desde que baixas e altas no mercado mundial não sejam muito grandes). O governo não cuidou de implementar tal política.
Essa conversa toda é bem velha. Já foi objeto de muita discussão sob Michel Temer, em 2018. Mas não houve solução alguma para o problema a não ser subsidiar o diesel dos caminhoneiros a fim de evitar um colapso de abastecimento ou coisa pior durante o caminhonaço, tumulto aliás apoiado por Bolsonaro, que volta agora a fazer demagogia.
A gente está cada vez mais rodada, mas não sai do lugar
Afonso Benites: Direita se engalfinha e desfaz alianças enquanto Haddad, Huck e Moro seguem entre apostas para 2022
Eleição de presidente da Câmara expõe guerra interna do DEM e PSDB e embaralha xadrez para próxima eleição. Bolsonaro premia Centrão com ministério da Cidadania enquanto PT testa primeiro nome da esquerda à sucessão presidencial
Sem lideranças políticas naturais, a direita brasileira está esfacelada em compasso de espera pelas eleições de 2022. E a esquerda também, depois que o PT lançou a candidatura de Fernando Haddad como um balão de ensaio para testar o eleitorado. O presidente Jair Bolsonaro foi incapaz de criar sua própria legenda, a Aliança pelo Brasil, mas alcançou a proeza de embaralhar a miríade das outras composições partidárias que pretendem disputar sua sucessão. Com um cenário de candidaturas diluído, a máquina governamental nas mãos e um apoio na casa dos 30% da população já colocariam o presidente em um segundo turno.
Nas últimas semanas, Bolsonaro cooptou com cargos e recursos da União o Centrão, o fisiológico grupo de centro direita que atua no Congresso Nacional, implodiu o direitista Democratas e acabou estimulando um racha na sigla de centro-direita PSDB. Todo o processo tem como pivô a disputa pela Presidência da Câmara dos Deputados no início do mês, que terminou com a vitória do candidato bolsonarista e expoente do Centrão Arthur Lira (PP-AL).
Nesta sexta-feira, Bolsonaro concretizou parte do acordo firmado com o Centrão em troca de seu apoio por Lira. Ele nomeou o deputado federal João Roma, do Republicanos, para o Ministério da Cidadania em substituição a Onyx Lorenzoni (DEM-RS), que foi deslocado para a Secretaria-Geral da Presidência da República. Roma é amigo e ex-assessor de Antônio Carlos Magalhães Neto, o presidente do Democratas que se aproximou do Planalto rompendo com o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ). Com o movimento, o mandatário começa a pagar a sua fatura em troca de uma base de sustentação legislativa. Ainda restam entre dois e três ministérios a serem entregues ao Centrão, o que deve ocorrer nas próximas semanas.
Os movimentos no xadrez político de Bolsonaro ocorrem a um ano e 8 meses da eleição. Mas, de pronto, já começaram a minar alianças que estavam sendo planejadas pelo campo autodenominado “direita democrática”. A principal delas foi a articulação feita por DEM, MDB, Cidadania e PSDB. As quatro legendas rascunhavam um acordo para seguirem juntas em 2022. Seu candidato seria João Doria (PSDB), o governador paulista que já foi aliado de Bolsonaro, ou Luciano Huck, o apresentador da maior emissora de TV do Brasil, a Globo, que paquerava uma filiação ao DEM ou ao Cidadania.
Implosão do DEM e racha no PSDB
A implosão do DEM afastou Huck dos democratas, mas há ainda a esperança do Cidadania de tê-lo em suas hostes. Além disso, dos 27 deputados do DEM, 6 disseram que apoiarão a reeleição de Bolsonaro, 14 não descartaram apoiá-lo e apenas dois disseram que não se aliarão ao presidente. Os dados foram levantados pelo jornal O Estado de S. Paulo. “O que o DEM tem dito é que não fechará nenhuma porta, nem mesmo a Bolsonaro. Se o presidente se moderar nos próximos dois anos, o DEM consegue se justificar e seguir com ele, caso contrário, pode tomar outro rumo”, avalia e cientista política Lara Mesquita, que é pesquisadora do Centro de Política e Economia do Setor Público da Fundação Getulio Vargas.
No PSDB, Doria se sentiu forçado a marcar território. Tentou controlar diretamente a Executiva Nacional do partido, atualmente comandada pelo seu então aliado o ex-deputado Bruno Araújo. Mas os figurões da sigla reagiram e estenderam o mandato de Araújo para 2022. De pronto, Doria se enfraqueceu no processo, sinalizou que pode deixar a legenda e viu outro tucano despontar como potencial presidenciável: Eduardo Leite, o governador do Rio Grande do Sul que quer ser uma nova oposição a Bolsonaro. “O Doria é uma liderança de luz própria. Os velhos elefantes do partido não o veem com bons olhos. Ele é uma das pessoas mais pragmáticas da política brasileira. Tanto que se aliou a Bolsonaro para se eleger governador”, diz a cientista política Mariana Borges, pesquisadora em Oxford.
Outra legenda de centro-direita que está em busca de um nome que agregue outros apoios é o Podemos. Os dirigentes esperam que o ex-juiz da operação Lava Jato e ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, anuncie sua filiação até o início do próximo ano. As conversas estavam adiantadas. Mas, nas últimas semanas, o que menos Moro tem feito é se preocupar com a política partidária, já que corre o risco de ter sua biografia ainda mais manchada, quando o Supremo Tribunal Federal está em vias de invalidar as decisões que ele tomou contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Para as duas pesquisadoras consultadas pela reportagem, ainda é cedo para os partidos definirem qualquer cenário. “Tudo ainda depende da economia e de como o Governo vai reagir à pandemia [de coronavírus]. Também tem de ser levado em conta a avaliação da população sobre os processos judiciais contra os filhos do presidente”, diz Lara Mesquita. A narrativa que Bolsonaro empregou na eleição de 2018, de ser um político antissistema também será posta a prova. “Ele está claramente adaptando o seu discurso extremista. Vamos ver até onde isso vai durar”, afirma Mariana Borges.
Da mesma maneira que a direita anti-bolsonaro, a esquerda também enfrenta severas dificuldades de articulação interna. O PT já colocou em prova sua hegemonia nesse campo na última semana, quando o ex-presidente Lula lançou a candidatura do ex-prefeito de São Paulo Haddad e disse para ele percorrer o Brasil em uma espécie de pré-campanha. O PDT se aproxima de uma aliança com o PSB para relançar o ex-governador do Ceará Ciro Gomes. E o PSOL sinaliza que deve seguir com o professor universitário Guilherme Boulos. Ou seja, seria a repetição dos três candidatos que foram derrotados por Bolsonaro na disputa passada. A diferença agora é que Boulos ganhou projeção nacional ao disputar o segundo turno com Bruno Covas pela prefeitura de São Paulo, a maior cidade do Brasil. “Os partidos estão se movimentando porque sabem que se não começarem a se movimentar, eles não terão um candidato do dia para a noite. O Bolsonaro, mesmo, ficou quatro anos fazendo campanha”, diz a pesquisadora Lara Mesquita.
Para Mariana Borges, uma das falhas da esquerda brasileira, especialmente do PT, é manter-se focada no Estado de São Paulo na hora de falar em candidatos, ignorando outras regiões brasileiras. Ela cita que, ao escolher Haddad, Lula deixa de lado lideranças baianas do partido, como o senador Jaques Wagner ou o governador Rui Costa. “Talvez apresentar um nome que não seja tão ligado ao Lula seria a alternativa para atrair os outros partidos de esquerda”, diz.
Outra conta que tem sido feita pelas legendas é a da cláusula de barreira. A partir de 2023, só terá acesso aos fundos públicos eleitoral e partidário quem atingir 2% dos votos válidos para a Câmara em nove Estados ou eleger ao menos 11 deputados. Atualmente, a doação eleitoral privada é proibida no Brasil. E é quase consenso entre os partidos que, sem uma candidatura presidencial como uma vitrine, dificilmente se elegem tantos deputados federais. Como o Brasil tem 33 partidos registrados, sendo que 24 têm representação na Câmara, a tendência é que haja uma disseminação de candidaturas presidenciais.
Tasso Jereissati: 'Partidos foram triturados no Congresso'
Tucano atribui o racha em sua legenda às eleições na Câmara e no Senado, marcadas, segundo ele, pela ‘captação individual de votos’
Julia Lindner, O Globo
BRASÍLIA - O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) afirmou, em entrevista ao GLOBO, que seu partido, assim como os demais, foi “triturado” durante a eleição para as presidências da Câmara e do Senado e agora tem a oportunidade de se reconstruir.
Para ele, o melhor nome para disputar a eleição de 2022 será aquele que conseguir unir as legendas de centro, da esquerda à direita, a fim de evitar a polarização como a que ocorreu no segundo turno do último pleito, entre Jair Bolsonaro e petista Fernando Haddad.
Como o senhor avalia o cenário atual do PSDB? O partido está rachado?
O PSDB está num momento de transição, de reconstrução, procurando manter os seus princípios iniciais e fundamentais. Ao mesmo tempo, esse período agora é diferente, em que todos os partidos, todos, foram triturados ou tratorados pelo processo eleitoral de Senado e Câmara. Em uma olhada panorâmica, o DEM rachou, PSDB trincou, PSD teve problemas... Isso porque o processo que se instalou nas duas Casas do Congresso foi na base da captação de votos individual.
Sempre teve isso, mas os partidos também tinham um grande peso. Agora os partidos foram ignorados como se não existissem. Isso fez com que pessoas, de bolsonaristas a petistas, votassem nos mesmos candidatos. Essa questão de não haver uma coesão absurda não é privilégio do PSDB, todos os partidos estão vivendo problemas.
É possível encontrar uma saída?
É um bom momento para o PSDB se reconstruir, estávamos vivendo isso... Tínhamos uma candidatura natural (à Presidência da República) do governador de São Paulo (João Doria), que só pelo fato de ser governador de São Paulo já o torna presidenciável, e se abre uma nova perspectiva trazendo ao cenário mais um outro candidato de uma parcela do PSDB, o Eduardo Leite (RS), que traz uma perspectiva extremamente democrática para voltarmos às discussões dos nossos ideais, dos nossos princípios. E vai prevalecer aquele que se identificar mais com esses princípios. Tem que ser um princípio que junte mais os partidos de centro.
Considerando os nomes de Doria e Leite, qual deles tem o melhor perfil hoje para unificar o centro? Avalia que Doria tenderia mais para a direita do que para o centro?
Eu acho que antes de definirmos o nome, temos que definir o que queremos. Estamos vivendo um momento que, além dos partidos, vivemos uma crise de valores, uma crise sanitária, econômica e social. Então, eu acho que aquele que tiver capacidade de unir desde o centro mais à direita até o mais à esquerda, com o propósito de acabar a polarização em que (entre) a extremíssima esquerda e a extremíssima direita, o ódio é que está prevalecendo... Esse que tiver mais capacidade de fazer essa união será o candidato ideal.
Mas ainda não está na hora de definir (um nome), e sim o que queremos e conversar com outros partidos, inclusive com a possibilidade de aparecer outro nome com poder de agregação.
O senhor vê Luciano Huck com uma dessas alternativas?
Tem essa possibilidade. Não estou dizendo que seja ele, estou colocando. É um rapaz novo, não vejo problema no fato de não ser político, existem vantagens e desvantagens. Ele tem feito um esforço enorme de aprender, captar soluções e ideias que estão pairando pelo mundo. É um rapaz de centro.
A situação na Câmara e no Senado mostrou a bancada dividida e em parte apoiando o nome de Bolsonaro à presidência das Casas. Não é um sinal de que é difícil unir o partido e fazer oposição?
Essa definição de oposição em relação ao governo está tomada. É uma definição que está sendo reforçada com a ratificação do nome de Bruno Araújo (ao comando do PSDB). A diferença que houve durante as eleições não é um desafio só nosso, e sim de todos os partidos e democratas. Houve uma manipulação profunda que dizimou a unidade dos partidos.
O PSDB tem um alinhamento na área econômica com o governo. Como fazer essa diferenciação em relação a outras pautas?
Olhando em uma visão geral nós temos, sim, uma identidade muito grande, não total, na área econômica, mas nas outras questões temos uma distância enorme. Se for para falar de política externa, é o oposto da apresentada pelo ministro de Relações Exteriores, que é incompreensível. Se formos falar de tendência ao autoritarismo, somos um partido que nasceu da redemocratização. Enfrentamento da pandemia, coronavírus e Ministério da Saúde... É um desastre que chega a ser quase criminoso. As coisas que aconteceram e estão acontecendo beiram a irresponsabilidade total.
A nossa identidade é nessa questão da pauta econômica mais liberal, porém não é 100%. Nada nos impede quando as pautas econômicas chegam no Congresso de apoiarmos o governo. Fomos oposição ao (ex-presidente) Lula e à (ex-presidente) Dilma e nunca fizemos o quanto pior melhor. Se vier, por exemplo, uma proposta muito boa para a Saúde vamos aprovar.
Pensando em 2022, o senhor teme um cenário como o da última eleição, com Bolsonaro e o candidato do PT no segundo turno? Isso colocaria o PSDB numa situação difícil?
O Bolsonaro ganhou as eleições porque havia um forte sentimento antipetista na população brasileira. Eu costumo dizer que o Bolsonaro nasceu do PT. Quando o PT começou a dividir o Brasil entre nós e eles, dividiu o Brasil e acabou levando para a radicalização. Isso se transformou na extrema direita. Isso (cenário de 2018) só vai se repetir se nós, do centro, centro-direita, centro-esquerda, formos muito divididos novamente para a eleição. Porque você tem um nicho certo de eleitores na extrema esquerda e na extrema direita.
Se esse centro que é a maioria ficar todo subdividido, pode ser, como aconteceu, que a subdivisão leve a uma reedição de uma maneira piorada dessa polarização que só gerou ódio, dividiu a população. As pessoas não querem saber de argumentos. Tenho grande esperança de que possamos construir uma candidatura de centro mais sólida.
Como o senhor vê a sinalização, por exemplo, do ACM Neto não descartar um apoio a Bolsonaro lá na frente?
Eu acredito que o Neto disse isso mais como uma figura de linguagem, tipo “não estou descartando algum cenário”. Porque todas as vezes em que eu conversei com ele, além de negar de maneira muito veemente qualquer aproximação com Bolsonaro, não é da índole dele, da criação dele, qualquer aliança maior com um governo com esses defeitos.
O senhor falou do antipetismo. Avalia que a oposição do PSDB ao PT e especialmente a postura na eleição de 2014 de questionar o resultado contribuiu para esse ambiente?
Não foi nem a oposição do PSDB ao PT. Quando o PT fez o ‘nós e eles’ visou principalmente o PSDB, demonizou os nossos governos, neoliberalistas, os nossos candidatos, todo o primeiro governo do Lula tinha o negócio da herança maldita. Tudo era feito para demonizar o PSDB. Isso fez com que os eleitores do PSDB acabassem nas mãos da extrema direita, que criou o Bolsonaro.
Aécio Neves (MG) influênciou na eleição da Câmara no apoio ao candidato de Bolsonaro. A permanência dele atrapalha a imagem do PSDB?
Esse assunto está morto. O Aécio não está influindo, está calado lá. Ele não é mais uma liderança do partido, não tem relevância dentro das discussões. É um assunto morto e não tem por que abrir essa ferida. Temos outros assuntos tão importantes agora que isso seria sair do foco.
O que achou das explicações de Eduardo Pazuello ao Congresso? Ainda vê necessidade da CPI da Covid?
A grande maioria do PSDB assinou a CPI da Pandemia e estamos defendendo principalmente depois do depoimento do ministro da Saúde, que não respondeu as questões fundamentais. Alguém de governo tem que ser responsabilizado para que isso não volte a se repetir.
A situação em Manaus evidenciou mais a crítica que se faz ao governo na pandemia?
Claro. Aquilo foi um caos, um conjunto de crimes em relação à total falta de sensibilidade com o que estava acontecendo em Manaus, pessoas morrendo asfixiadas no meio da rua e o governo distribuindo cloroquina. E não só em Manaus. Cidades estão parando de vacinar por falta de vacina. É um conjunto de crimes, e alguém precisa ser responsável por isso. Não é possível que centenas de milhares venham a falecer e essa negligência fique impune. Até para que não volte a acontecer.
Míriam Leitão: Projeto certo na hora incerta
A autonomia do Banco Central é um projeto esperado há muito tempo, mas ontem parecia que a Câmara dos Deputados havia entrado numa realidade paralela. O Brasil está sem orçamento, no meio de um recrudescimento da pandemia, milhões de brasileiros não sabem que dinheiro terão no fim do mês, mas para a equipe econômica e o novo comando da Câmara o fundamental é a autonomia do Banco Central. Mesmo para quem sempre defendeu esse formato institucional para a autoridade monetária, parecia delirante.
O debate não fez sentido também. Os governistas diziam que a autonomia vai garantir a queda dos juros. As taxas nunca estiveram tão baixas na história e devem começar a subir em mais duas reuniões porque a inflação teve uma alta maior do que o BC esperava.
O texto aprovado é ruim e o relator Silvio Costa Filho (Republicanos-PE) não entendeu ainda qual é o papel do Banco Central. Mas para o Ministério da Economia o importante é dar a impressão de que o encalacrado projeto de reformas está andando. Não está. No Senado, o projeto recebeu um acréscimo que cria uma dissonância. “O BC buscará o pleno emprego”, diz o texto. E o relator acrescentou em seu relatório. “Esta é, sem dúvida, mais uma grande conquista para as trabalhadoras e os trabalhadores brasileiros, que se verão protegidos por um órgão governamental.” Suas únicas missões têm que ser garantir a estabilidade da moeda e o equilíbrio do sistema financeiro, que ele fiscaliza. Desta forma, indiretamente ajudará os trabalhadores. Não pode fazer uma política de fomento de emprego porque não é seu papel e conflita com sua missão. Essa verdade aparecerá agora neste semestre: os juros subirão no meio da elevação da taxa de desemprego.
O assunto entrou para o primeiro da pauta da gestão Arthur Lira porque era mais fácil do que discutir qualquer projeto que implique em corte de gastos. A PEC emergencial, por exemplo, propõe congelar salário mínimo, a correção das aposentadorias, e os salários dos servidores em caso de crise fiscal como a que vivemos. Se fosse aprovada agora, só poderia valer para os reajustes do ano que vem, ano eleitoral. A autonomia do BC pode ser comemorada pelo mercado que, com muita liquidez, demanda otimismo.
O PT lutava ontem contra o projeto com os clichês de sempre. O BC ficaria entregue aos banqueiros, capturado pelo mercado financeiro. O projeto seria um fanatismo liberal. Quando o ex-presidente Lula assumiu a Presidência ele nomeou um ex-presidente de banco estrangeiro para assumir o BC. Henrique Meirelles havia sido presidente do Banco de Boston, fora eleito deputado pelo PSDB e foi para a direção do Banco Central. Seu primeiro movimento foi subir a taxa de juros, que já estava em 25%, para 26,5%. Ele demoliu as desconfianças em relação a atuação do BC e em junho começou a derrubar as taxas. Durante os oito anos que ficou no cargo foi pressionado pela bancada do PT na Câmara. Lula o manteve no posto. Ele comandou a travessia da crise de 2008 e o país retomou o crescimento em 2010.
No governo Dilma, o BC derrubou os juros de 11,25% para 7,25%, quando a inflação já estava começando a subir. Deu rebote. A Selic teve que ser elevada para 14,25%. Ilan Goldfajn, no governo Temer, iniciou a redução, após a derrubada da inflação que havia chegado a dois dígitos. E a entregou em 6,5%. O atual presidente Roberto Campos Neto levou a taxa aos níveis atuais.
A conclusão dessa história é que o BC tem tido autonomia de fato, em alguns governos, e nesses momentos ajudou o país a atravessar crises e pavimentar o crescimento. Mas o fez quando cumpriu bem o seu papel de defender a moeda. O primeiro projeto de independência do Banco Central foi de autoria do então senador Itamar Franco, em 1989. Nos 27 meses em que governou o Brasil teve três presidentes do BC. Com dois ele brigou, Gustavo Loyola e Paulo Cesar Ximenes.
Donald Trump nomeou Jerome Powell, mas mesmo assim entrou em conflito com ele. Powell continuou seu trabalho porque o Fed é independente. Na Argentina, o BC era independente, mas em 2010 a presidente Cristina Kirchner conseguiu demitir Martín Redrado. Jair Bolsonaro tenta dominar todas as instituições e fez isso até com a Procuradoria-Geral da República. Esse projeto conterá seus ímpetos. Tem, portanto, valor, mas não era nem de longe a prioridade do momento.
Demétrio Magnoli: Moro, o ‘nada jurídico’
Rosangela Moro, advogada do marido, acionou o STF pedindo a Fachin a revogação da liminar de Lewandowski que dá à defesa de Lula acesso às mensagens trocadas entre Sergio Moro e os procuradores da força-tarefa de Curitiba. A reclamação ilumina o desprezo do Partido da Lava-Jato pela verdade factual e, ainda, pela verdade jurídica.
A peça da advogada repete as duas alegações básicas do ex-juiz e dos procuradores: 1) “Não há prova da autenticidade das mensagens”; 2) As mensagens “não provam fraude na condenação ou suspeição do juiz”.
A primeira afirmação é uma tentativa de circundar, por um artifício jurídico, a questão da verdade factual. Temendo cometer perjúrio, os acusados não declaram que as mensagens são falsas — mas referem-se a elas como se fossem diálogos entre terceiros desconhecidos sobre os quais nada sabem.
A segunda afirmação, se verdadeira, tornaria a primeira desnecessária. Afinal, se os diálogos não contêm ilegalidades, por que não admitir sua autenticidade? Contudo, como as trocas de mensagens evidenciam graves violações da lei, a advogada tira da cartola um terceiro coelho manco e solicita a eliminação processual delas: seriam um “nada jurídico”, devido aos meios ilegais utilizados na sua obtenção.
Nos diálogos, Moro oferece orientações aos procuradores sobre fontes, os instrui sobre possíveis provas e combina com eles a sequência de operações policiais. São evidências abundantes de conluio entre o Estado-julgador e o Estado-acusador. A gangue de Curitiba suprimiu do processo legal o juiz imparcial.
A verdade jurídica não é idêntica à verdade factual, pois a segunda só se torna a primeira quando percorre a estrada do devido processo. Sorte de Moro e de seus comparsas: a verdade factual expressa nas trocas de mensagens seria suficiente para condená-los por subversão do processo legal, se não tivesse vindo à luz pelo túnel da ilegalidade. Tal circunstância não implica, porém, a completa invalidação jurídica dos diálogos criminosos.
A jurisprudência não admite o uso de provas obtidas ilegalmente para condenar alguém, mas permite utilizá-las para sustentar a presunção de inocência. Lula pode até ser factualmente culpado — mas, na vigência do estado de direito, não é possível condená-lo ao arrepio do devido processo. É dever do STF anular as sentenças condenatórias do líder petista tingidas pela mão de gato de Moro.
Moro enxerga a lei como fonte de privilégios e discriminações. No pacote anticrime que formulou quando ministro de Bolsonaro, introduziu o “excludente de ilicitude”, mecanismo destinado a impedir a punição de crimes cometidos por policiais. Na reclamação ao STF, sua advogada alega que as trocas de mensagens “não provam inocência” de Lula, como se cidadãos acusados tivessem o ônus de provar ausência de culpa.
“Nada jurídico” — o qualificativo não serve para invalidar os diálogos que repousam no STF, mas define à perfeição os processos conduzidos pelo Partido da Lava-Jato. As mensagens expõem acertos entre o juiz e os procuradores para plantar notícias na imprensa e financiar a divulgação de propostas legislativas, além da ambição de reformar o sistema político-partidário. Nada jurídico, tudo político: a gangue manipulava suas prerrogativas de agentes da lei para deflagrar um projeto de poder centrado na figura de Moro.
A demanda da advogada ao STF pretende soterrar tanto a verdade factual quanto a jurídica. A guerra contra a verdade tem a dupla finalidade de evitar a desmoralização jurídica da gangue e de conservar os resíduos de um projeto político envenenado pela associação de Moro com Bolsonaro.
Na hora da morte da força-tarefa, o Partido da Lava-Jato conta com três fiéis militantes no STF. Mesmo assim, diante do grito das evidências, a manutenção integral das condenações tornou-se um sonho improvável. Circula, por isso, a ideia criativa de preservar, ao menos, o legado da interdição de candidatura de Lula. “In Fux We Trust”: o compromisso imoral concluiria, melancolicamente, a trajetória de juízes que confundem a lei com suas próprias convicções políticas.
Luiz Carlos Mendonça de Barros: O novo espaço de Paulo Guedes
As novas condições políticas do Brasil serão uma restrição muito forte à liberdade do ministro
Uma pergunta domina hoje coração e mente dos principais agentes econômicos no Brasil: qual será a agenda do ministro Paulo Guedes depois do cavalo de pau - para usar uma expressão dos primeiros anos do governo Lula - que o presidente Bolsonaro acaba de dar na política brasileira?
A nova relação com os partidos do chamado “Centrão” certamente garante uma maior tranquilidade política ao governo, mas implica a aceitação de uma agenda na economia diferente daquela com a qual Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil. Praticamente calado durante todo o mês de janeiro - uma prova de sabedoria - em função da árdua disputa pelo controle das mesas diretoras da Câmara e do Senado, cabe a ele agora mostrar suas cartas para a definição de uma agenda econômica para 2021. A disputa eleitoral no Congresso, controlada com mão de ferro pelo Palácio do Planalto, produziu um forte rearranjo na política brasileira - o terceiro nestes dois anos de mandato do presidente Bolsonaro - e foi montado com o objetivo de preservá-lo politicamente até as eleições presidenciais de 2022 e depois, vencê-las.
E é em função deste cenário que o poderoso czar da economia brasileira na primeira metade do mandato presidencial terá que se posicionar. Não existe mais hoje o governo com uma pauta de ação política e administrativa confusa e sem maiores definições que saiu das urnas em 2018. Nele Paulo Guedes se sobressaiu com um discurso vigoroso, claro e articulado de reformas radicais no modelo econômico que prevaleceu nos últimos 10 anos no Brasil.
Seu objetivo era a construção de uma economia de mercado radicalmente liberal, tendo Roberto Campos - o simbólico ministro do primeiro governo militar - como seu inspirador.
Apesar do longo histórico político de Jair Bolsonaro se chocar com as ideias do então chamado Posto Ipiranga, houve um movimento eufórico no mercado financeiro e entre os grandes empresários, brasileiros ou não.
Embora as metas colocadas para serem executadas - R$ 1 trilhão de privatizações por exemplo - fossem ambiciosas demais para um governo sem nenhuma base política no Parlamento, milagres poderiam ocorrer, e os mercados apostaram nele.
Em março passado, esta euforia já estava desgastada quando recebeu um golpe mortal com a chegada da pandemia ao Brasil. A crise econômica que se instalou obrigou o ministro a adiar seu plano de voo e a recorrer aos velhos ensinamentos de Keynes, inimigo mortal de seu liberalismo e principal inspiração de governos anteriores. A antiga agenda foi deixada de lado e Paulo Guedes - e seu companheiro, o presidente do Banco Central Roberto Campos Neto - presidiram a implantação de um dos mais exitosos planos de enfrentamento da recessão da covid- 19 que aconteceram nas maiores economias de mercado do mundo.
Os dados, que estão disponíveis hoje, confirmam esta minha leitura quando comparados com os dos Estados Unidos e vários países da Comunidade Europeia. Um exemplo claro do êxito das medidas tomadas pela equipe econômica é a recuperação da indústria brasileira que chegou ao fim do ano com sua produção agregada acima do nível do ano de 2019.
Mas este êxito teve um custo fiscal pesado - mais de 10% do PIB - e colocou as contas fiscais e a dívida pública brasileira em uma zona de perigo dentro do protocolo do liberalismo econômico dominante nas elites brasileiras. A reação natural do ministro seria a de promover em 2021 reduções vigorosas no chamado gasto público e acelerar as reformas estruturais que consolidem um equilíbrio fiscal mais sólido para o futuro. Mas as novas condições políticas do Brasil de hoje vão representar uma restrição muito forte à liberdade de ação do ministro.
Do lado do presidente, empenhado que está na campanha de sua reeleição em 2022, não existe mais o mandato que detinha no primeiro ano de governo, como já foi ressaltado acima. Naquela época, com as eleições muito adiante ainda, as suas divagações sobre as maravilhas de uma economia liderada pelas forças de mercado serviam inclusive ao objetivo de diferenciar o governo eleito de seus inimigos históricos da esquerda e centro-esquerda.
Muito ajudou este estado quase eufórico a presença de Rodrigo Maia na presidência da Camara de Deputados com sua origem política e seus valores sinceramente liberais. Tudo apontava na direção de uma parceria histórica com chances de vencer o ranço estatizante de grande parte do Congresso e caminhar na direção de uma economia mais eficiente. Mas esta parceria não existe mais e as primeiras declarações públicas dos novos comandantes do parlamento apontam no sentido contrário.
Me impressionou muito o “body language” do presidente do Senado e do ministro Paulo Guedes em uma rápida entrevista coletiva na noite da última quinta-feira e que deixou claro duas coisas para mim: a primeira é a autoconfiança do senador por Minas Gerais, Rodrigo Pacheco, que preside o Senado, em expor suas ideias em relação à economia. Em segundo lugar, a postura compreensiva do poderoso ministro da Economia que mostrou com clareza - pelo menos para mim - que já entendeu o novo equilíbrio de forças entre Executivo e Legislativo que se seguiu ao cavalo de pau do presidente Bolsonaro.
Um novo desenho ainda não conhecido da agenda econômica em 2021 estará sendo gerado nas próximas semanas deste embate entre o Congresso e o ministro Paulo Guedes, mas com certeza será bem diferente do que os mercados previam.
*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.
Sergio Lamucci: Os obstáculos para a retomada da economia
Vacinação lenta, fim do auxílio emergencial, desemprego e inflação atrapalham retomada mais forte da economia
A economia brasileira começou 2021 sem o auxílio emergencial e com a vacinação em ritmo lento, o desemprego elevado e a inflação ainda pressionada. É um cenário que aponta para uma atividade fraca no primeiro trimestre, com provável queda do PIB em relação ao trimestre anterior. O auxílio, porém, deverá voltar, ainda que num valor mais baixo e por um período não muito extenso. A vacinação, por sua vez, vai avançar e, a depender do ritmo das imunizações, tende a permitir restrições menores à mobilidade, favorecendo o claudicante setor de serviços.
Nesse cenário, a economia pode voltar a ganhar algum fôlego daqui a alguns meses. Alguns fatores importantes, porém, jogam contra a retomada, como um mercado de trabalho fraco e pressões inflacionárias decorrentes principalmente da combinação de commodities em alta e do câmbio desvalorizado. Incertezas em relação à sustentabilidade das contas públicas enfraquecem a moeda brasileira, ao mesmo tempo em que mantêm os juros futuros em níveis elevados. Isso leva a uma piora das condições financeiras, prejudicando a recuperação.
O retorno do auxílio emergencial parece inevitável. O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, que se opunha à medida, falou na volta do benefício na quinta-feira. Segundo ele, o novo auxílio será voltado para metade do público-alvo da sua primeira versão - em alguns meses, chegou a quase 68 milhões de pessoas. O valor será menor que os R$ 600 que vigoraram de abril a agosto de 2020 - e, na visão da equipe econômica, também inferior aos R$ 300 do período de setembro a dezembro, além de um prazo curto, de três meses. No Congresso, as pressões devem ser um por um benefício maior e por um período menor.
Com a piora da pandemia e a vacinação lenta, a volta do auxílio é necessária para evitar uma perda de renda muito acentuada. O desafio é aliar o retorno do benefício - além de eventuais novos gastos com saúde - a um compromisso com a trajetória sustentável para as contas públicas. Na quinta-feira, Guedes atrelou a volta do auxílio a “um ambiente fiscal robusto”, indicando que ela poderia ocorrer num quadro em que o Congresso acionasse o estado de emergência ou de calamidade pública.
Com uma média de mais de mil mortos por dia, um cenário de excepcionalidade se justifica, e parece improvável que o retorno do auxílio ocorra dentro dos limites do teto de gastos. O estado de calamidade permitiria gastos acima do teto, assim como a abertura de créditos extraordinários. O Citi Brasil avalia que, dado o espaço limitado para corte de despesas discricionárias (como o custeio da máquina e investimentos), os gastos públicos devem superar o teto em 1% do PIB neste ano.
No entanto, isso precisa ser feito com cautela, para evitar pressões adicionais sobre o câmbio e sobre os juros futuros. O ideal é adotar ao mesmo tempo medidas que enfrentem o crescimento das despesas obrigatórias. Versões mais robustas da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Emergencial e da reforma administrativa ajudariam nesse sentido, ao combater a expansão dos gastos de pessoal. A questão é que o presidente Jair Bolsonaro resiste a bancar esse tipo de medida, e é difícil acreditar na disposição dos novos presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), de levar o Congresso nessa direção, que afeta os interesses do funcionalismo. De qualquer modo, é possível encontrar uma saída para financiar o auxílio emergencial e mais gastos com saúde sem que isso signifique o abandono do compromisso com a sustentabilidade fiscal.
Isso é fundamental para tirar pressão do câmbio, que segue volátil e desvalorizado. Um modelo dos pesquisadores Livio Ribeiro e Samuel Pessôa, do Instituto Brasileiro da Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), decompõe a variação do câmbio, considerando fatores externos (preços de commodities, o comportamento do dólar no cenário global e a taxa de dez anos dos títulos do Tesouro americano), a diferença de juros externos e internos e fatores locais (levando em conta o risco-país, mas expurgando a influência de fatores globais). Pelos cálculos de Ribeiro, a alta de 9% do dólar de 10 de dezembro do ano passado ao fim de janeiro deste ano, quando a moeda passou de R$ 5,02 a R$ 5,47, se deveu quase toda a fatores domésticos. Em texto para o Blog do Ibre, Ribeiro diz que o real “opera descolado do comportamento de seus pares desde o evento da covid, com reconciliações incompletas e pontuais (principalmente em relação ao comportamento das moedas emergentes)”. Segundo ele, há algo específico que “nos atrapalha” e, desde novembro, fica evidente que esse fator negativo é de responsabilidade do país. “O real tem operado sob fogo amigo e, enquanto isso não for resolvido, continuaremos não aproveitando bons ventos globais em sua totalidade. Ainda pior, quando os ventos inverterem, não estaremos bem posicionados para enfrentá-los”, afirma Ribeiro.
No texto, o pesquisador do Ibre/FGV não aponta quais motivos domésticos seriam responsáveis por pressionar o câmbio - pelo modelo, os fatores domésticos são o “resíduo” não explicado pelos fatores externos e pela diferença de juros. As incertezas fiscais, em especial, ajudam a entender as pressões sobre o real, assim como possíveis dúvidas quanto ao ritmo de crescimento do país, devido à piora da pandemia e a vacinação lenta.
Num ambiente de alta dos preços das commodities, o câmbio desvalorizado é um fator que preocupa, por elevar a inflação. Em janeiro, o Índice de Commodities do Banco Central, medido em reais, subiu 10,6%, a maior alta desde maio de 2020, como lembra o Bradesco. Com isso, avalia o banco, a inflação não deve dar alívio no curto prazo. “Se por um lado o aumento das cotações internacionais de produtos básicos, favorecido pela demanda chinesa aquecida, tende a continuar favorecendo as exportações brasileiras, por outro, tais cotações, quando mensuradas em reais, aumentam os desafios na condução da política monetária”, afirma o Bradesco, em relatório.
O BC já indicou que deverá elevar os juros em breve. A persistência da combinação de commodities em alta expressiva e câmbio mais depreciado pode levar a instituição a aumentar a Selic mais do que se antecipa hoje. Isso tenderia a colocar em risco uma recuperação que já é frágil. Além da volta do auxílio e de uma vacinação mais rápida, evitar pressões exageradas sobre o câmbio é importante para garantir a retomada da economia, num país que desde 2014 tem enormes dificuldades para crescer.
Bruno Carazza: Realidades paralelas
O longo caminho da agenda de Bolsonaro
Imagine-se em 2022. No auge da campanha, o candidato à reeleição é questionado sobre seus feitos durante o mandato. A pandemia atrapalhou muito os seus planos, mas com a vacinação já avançada, o pior havia ficado para trás. E o mais importante: a economia voltara a crescer.
Além disso, graças à sua parceria com os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, uma ampla agenda de projetos havia sido aprovada, deixando o país pronto para decolar nos próximos quatro anos.
Aguardada por décadas, a reforma tributária iniciou um processo de simplificação gradual de impostos federais, estaduais e municipais, reduzindo bastante a burocracia. A aliança com o Centrão venceu a resistência das corporações de servidores públicos e, com o novo pacto federativo e a reforma administrativa, seria possível começar a colocar as contas em ordem.
Tantas vezes questionado, Paulo Guedes deu a volta por cima com os novos marcos regulatórios para os setores de petróleo, gás natural, energia elétrica, ferrovias e navegação. Um novo ciclo de crescimento, liderado pelo investimento privado, estava prestes a começar - e a privatização da Eletrobras, anunciada para os próximos meses, não deixava nenhuma dúvida quanto a isso.
Depois que os principais países do mundo controlaram a covid, em meados de 2021, um incrível “boom” de commodities impulsionou a mineração e o agronegócio brasileiros. Com a simplificação do licenciamento ambiental, a regularização fundiária na Amazônia e a autorização para a extração mineral em terras indígenas, as exportações brasileiras bateram novo recorde. A entrada de dólares no país foi beneficiada pelas novas regras no mercado de câmbio e o novo Banco Central independente.
Mas não era só na economia que o presidente tinha resultados a entregar aos seus eleitores. No campo da segurança pública, as forças policiais agora tinham melhores condições de combater o crime com a exclusão de ilicitude nas operações para Garantia de Lei e Ordem. Os agentes públicos puderam se proteger melhor depois que cada um ganhou autorização para adquirir até dez armas de fogo. Cidadãos de bem, associados aos clubes de colecionadores, atiradores e caçadores, também foram beneficiados com uma legislação mais permissiva para a compra de armamento e munição.
Depois de indicar um ministro terrivelmente evangélico para o Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro e a ministra Damares Alves anunciaram a abertura das inscrições para o “homeschooling” em 2023. Contra as críticas de que a medida poderia aumentar o número de crianças abusadas sexualmente, eles citaram as novas leis que aumentaram as penas e tornaram hediondos os crimes sexuais contra menores e a pedofilia.
Entre a intenção e a realidade há uma enorme distância: 513 deputados, 81 senadores e dezenas de votações em comissões e no plenário das duas casas legislativas. Soma-se a isso a resistência da opinião pública e de grupos com interesses divergentes influenciando o jogo.
O anúncio da agenda prioritária do governo servirá de métrica para indicar se o novo casamento de Bolsonaro com o Centrão renderá ganhos eleitorais no ano que vem.
Há frutos fáceis de serem colhidos. Na área econômica, a autonomia do Banco Central, os limites mais restritos para o teto remuneratório no serviço público e a nova lei do gás natural já passaram pelo Senado e estão prontos para serem votados na Câmara. Trilhando o caminho inverso, as novas normas para a navegação de cabotagem e para o gás natural aguardam serem pautadas no plenário do Senado, para daí irem à sanção presidencial.
O pacote fiscal de Paulo Guedes, porém, mal começou a tramitar. O trio das PECs emergencial, do novo pacto federativo e dos fundos públicos ainda aguardam parecer do relator - e a reforma administrativa nem relator tem. Para virarem realidade, precisam ser aprovadas em dois turnos por pelo menos 308 deputados e 49 senadores. Até lá ainda haverá audiências públicas, debates em comissões, manobras para adiamento de votação. Enfim, “it’s a long and winding road”.
Pior é o caso da reforma tributária, para a qual não há acordo sobre qual modelo deve prosperar: se o da Câmara (PEC nº 45/2019), do Senado (PEC nº 110/2019) ou a alternativa ainda incompleta de Paulo Guedes (PL nº 3.887/2020). Como diz o velho ditado: nenhum vento é favorável quando não se sabe para onde ir.
Na questão ambiental, tanto a regularização fundiária quanto a mineração em terras indígenas ainda não começaram a andar, embora a proposta sobre licenciamento esteja avançada na Câmara. Todas elas, contudo, enfrentarão forte resistência não só de ambientalistas, mas de países comprometidos com o clima - agora reforçados pelos Estados Unidos, com Joe Biden na Presidência.
Por fim, na pauta de segurança pública e costumes, com a exceção do PL nº 3.723/2019, que facilita a aquisição de armas por policiais e já foi aprovado na Câmara, as demais proposições ainda estão em estágio inicial de análise.
É bem verdade que existe um repertório imenso de possibilidades para se pular etapas e se dispensar exigências do processo legislativo. Tudo depende de uma sintonia fina entre o Palácio do Planalto, os presidentes da Câmara e do Senado e os líderes dos partidos. A vitória de Lira e Pacheco foi um importante passo; porém, como num casamento, Bolsonaro terá que cultivar a relação com o Centrão dia a dia.
Também é importante não ter ilusões. Ainda que as PECs sejam aprovadas, os investimentos não inundarão o país imediatamente, pois em geral se exige regulamentação e, sobretudo, estabilidade política e econômica. Aliás, se a PEC emergencial passar, o presidente terá coragem de cortar despesas mesmo em ano eleitoral?
Se os resultados econômicos podem demorar a chegar, mais armas nas ruas e menos rigor com o meio ambiente, por sua vez, têm efeitos imediatos. E eles, infelizmente, são irreversíveis.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Catarina Rochamonte: A alta nata do que não presta
Bolsonaro não só abraçou o centrão como se tornou seu chefe
O mau conceito do centrão —ajuntamento fisiológico mais descarado da política brasileira, com vários dirigentes envolvidos em corrupção— é quase unanimidade, e, por isso, falar mal dele rende votos. Na campanha de 2018, o candidato Jair Bolsonaro referiu-se a esse agrupamento político como "a alta nata de tudo o que não presta no Brasil" e disse que "essa forma de governar" (o "toma lá dá cá", o loteamento dos órgão públicos) "é que levou o Brasil a essa ineficiência e a essa corrupção não encontrada em nenhum lugar do mundo".
No mesmo ano, em convenção nacional do PSL, o general Augusto Heleno parodiou um samba, substituindo a palavra "ladrão" e cantarolando para a plateia: "se gritar pega centrão, não fica um meu irmão...".
Águas passadas e samba velho. Agora, o centrão foi promovido pelo governo ao centro das decisões da República. Bolsonaro não só o abraçou: tornou-se seu chefe, tendo agido com despudor no caso da disputa pela Presidência da Câmara, quando, com verbas bilionárias e oferta de cargos, comprou a eleição de Arthur Lira, um réu por corrupção.
Logo em seguida, veio outra vitória da acomodação de interesses ou do acordão da impunidade: a extinção da Lava Jato (decidida pelo PGR indicado sob encomenda para atingir esse fim). Bolsonaro entregou aos novos presidentes da Câmara e do Senado uma lista de prioridades que não contempla nada da agenda anticorrupção. Nenhuma menção à PEC da prisão em segunda instância (que, segundo o líder do governo na Câmara, foi criada "só para prender o Lula e tirá-lo da eleição").
A "nata do que não presta" está eufórica: varou a madrugada da vitória de Lira comemorando na mansão de um empresário denunciado pelo MPF e réu por fraude tributária. Convivas aglomerados esbaldaram-se em atitude indecorosa pela ostentação e despropósito em um contexto no qual a pandemia já ceifou mais de 230 mil vidas. Muitas das quais poderiam ter sido salvas não fosse a incúria das autoridades.
Celso Rocha de Barros: Bolsonaro vence em Brasília, perde no Brasil
Resta saber se o presidente e seus aliados têm outros projetos em comum além de fugir de impeachment, cassação e cadeia
Na semana passada, políticos que deveriam ser presos por seus crimes durante a pandemia e políticos que deveriam ser presos por corrupção livraram uns aos outros de impeachment, cassação e cadeia.
Na segunda-feira (1º), Bolsonaro elegeu Arthur Lira (PP-AL) para a presidência da Câmara. Com isso, caiu a probabilidade de impeachment. O impeachment seria o começo da responsabilização do presidente da República pelos crimes que cometeu durante a pandemia. O passo seguinte seria sua prisão. Isso teria sido a lei sendo aplicada, as instituições funcionando.
Mas a frente ampla contra o bolsonarismo, representada pela candidatura de Baleia Rossi (MDB-SP), levou uma surra. Houve traições à esquerda, mas ficou claro que Rossi perdeu porque a centro-direita desertou. Doria conseguiu evitar um espetáculo mais vergonhoso no PSDB, mas o DEM, o partido do próprio Rodrigo Maia, vendeu-se para o Planalto na frente de todo mundo.
Na prática, o DEM dissolveu-se no “arenão”, como o jornalista José Roberto de Toledo gosta de chamar o centrão. Na época da ditadura, dizia-se que a Arena era “a filha da UDN que caiu na zona”. Na última segunda-feira, o cafetão que levou o DEM de volta para a zona foi Jair Bolsonaro. O DEM aceitou de Bolsonaro as verbas e os cargos que o PFL, seu antecessor, não aceitou da ditadura no colégio eleitoral em 1985.
Mas não é só dinheiro que segura Bolsonaro no cargo. Na eleição da Câmara, Bolsonaro contava com a popularidade da grande realização de seu governo: o acordão que melou a Lava Jato. Em um eleitorado de 500 deputados em que predomina o arenão, matar a Lava Jato vale como uma mistura do que o Plano Real, o Bolsa Família, crescimento chinês por 20 anos e a realização das promessas daqueles emails “enlarge your penis” juntos valeriam para o público em geral.
Poucos dias depois da eleição na Câmara, Bolsonaro ofereceu o que havia sobrado da Lava Jato como sobremesa para Brasília. O procurador-geral da República de Bolsonaro dissolveu a força-tarefa de Curitiba. A força-tarefa da Lava Jato de São Paulo, é bom lembrar, já tinha renunciado coletivamente em protesto pela intervenção do mesmo procurador-geral, sempre a mando de Bolsonaro.
Não, companheiro, a Lava Jato não foi extinta porque sacaneou o Lula. Nem o Bolsonaro nem ninguém na direita parou e pensou, “pô, realmente, sacaneamos o Lula, terrível esse escândalo da Vaza Jato, vamos reestabelecer os ritos jurídicos apropriados”. As denúncias da Vaza Jato são mesmo gravíssimas, Lula foi mesmo sacaneado, mas a Lava Jato acabou porque era a hora de prender a direita.
Vários analistas viram no engajamento de Bolsonaro na eleição da Câmara um sinal de moderação, de aceitação das regras do jogo. Não há nenhum gesto de Bolsonaro que justifique essa hipótese.
Nas duas pautas que mais exigem governança racional —economia e combate à pandemia— Rodrigo Maia nunca colocou qualquer obstáculo para Bolsonaro, muito pelo contrário. Se o presidente topou gastar tanto para eleger Lira, é porque suas pautas são outras.
No momento em que perde popularidade no Brasil, Bolsonaro venceu em Brasília. Resta saber se o presidente e seus novos aliados parlamentares têm outros projetos em comum além de fugir de impeachment, cassação e cadeia.