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Cacá Diegues: Cantar o que somos

Uma das frases mais sábias da cultura brasileira contemporânea: “Se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi”

O problema é que não sabemos direito quem somos. Dito de outro modo, o brasileiro não tem ideia de quem é ou de onde veio. Somos enganados por sucessivas explicações em que nossos avós eram ora bravos navegadores lusitanos amigos íntimos de sábios indígenas incorruptíveis, ora bandeirantes porretas que enfrentaram a floresta hostil e o gentil castelhano para criar a nação. Na confusão de versões, nunca tivemos um Mayflower que nos desse a garantia de nossa origem, que diabo de povo somos nós, de que ovo viemos, em que galinheiro nos chocaram, educaram e inventaram nossa bárbara cultura.

Só muito de vez em quando temos a oportunidade de responder, pelo menos em parte, a essa questão. Em geral, por causa de um criador de produtos culturais que nos surpreende e assusta.

A primeira vez que vi Roberto Carlos na vida foi no bar do Hotel Plaza, em Copacabana, onde cantava timidamente para uns boêmios desinteressados. Ele procurava ser uma nova versão de João Gilberto, cantando baixinho e pelo nariz. Pouco depois, planejei um documentário em som direto, a novidade da época, em torno de um encontro doméstico de sua turma. Planejado por mim e por David Neves, o filme se chamaria “Alô, alô, Jovem Guarda!” e seria conduzido por Roberto Carlos. Com gentileza e diplomacia, ele ia adiando sua decisão, até que anunciou sua participação na série de filmes de Roberto Farias, tão bem-sucedidos desde logo.

Mas fui o primeiro cineasta a usar uma canção de Roberto Carlos num filme, um passeio romântico pelo recém-construído Aterro do Flamengo, em “A grande cidade”. E foi fácil e rápido obter a autorização do autor. Como foi fácil e rápido, anos depois, obter de Roberto a autorização para que usássemos “Emoções” na trilha de “Dias melhores virão”. Em resposta pessoal a meu pedido formal, não me encontrando em casa, ele deu a autorização pelo telefone à minha mulher, Renata. Só exigiu dela e a fez garantir que não tinha sexo pornográfico na cena em que a canção seria tocada. Não tinha, nem teve.

Na já longa formação da Humanidade sobre a Terra, três relações foram fundamentais para determinar a existência e a cultura de todo ser humano. Em primeiro lugar, a relação com o Outro, a parceria na solidariedade que permite a existência das pessoas entre si. Em seguida, a relação com o Estado, o monte de regras e costumes que organiza e torna possível a existência em sociedade. E finalmente a relação com a Natureza, à qual tratamos até agora como se estivesse a serviço de nossa existência, como se fôssemos os senhores do mundo, quando somos apenas um de seus hóspedes.

Com uma mistura de sabedoria e sentimentos, Roberto Carlos nos ensina que, se esgotamos apenas alguma dessas relações ou, o que é pior, apenas um pedaço delas, estaremos nos condenando ao desastre. Corremos o risco de esbarrarmos com o fim da Humanidade ou até com o fim do próprio planeta que nos suporta há dez milhões de anos com certo e crescente sacrifício.

Uma das frases mais sábias da cultura brasileira contemporânea está numa canção de Roberto: “Se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi”. É preciso aprender a chorar o fracasso no amor ou no que for. Assim como é preciso sorrir para saber se tomamos o rumo certo para o que deve ser. A grandeza da fragilidade que Roberto Carlos nos propõe está em reconhecer que é dessa ambiguidade que nasce algum valor. A certeza, nossa maior fraqueza, será sempre a causa do fracasso derradeiro. Não é à toa que ele é o Rei.


Cacá Diegues: A imaginação de Bolsonaro não tem limites

Se a realidade o incomoda, ele encontra sempre um jeito de passar por cima dela

Ninguém me contou, eu mesmo vi Jair Bolsonaro declarar na televisão que tinha informação segura de que a eleição americana tinha sido fraudada. Como o vi, meses antes, dizer que, em 2018, tinha sido roubado, pois havia vencido a eleição para presidente no primeiro turno. Nos dois casos, como sempre faz, nunca apresentou prova alguma.<SW>

A imaginação do homem não tem limites. Se a realidade o incomoda, ele encontra sempre um jeito de passar por cima dela, contando uma história lá da cabeça dele. A gente até acha graça do que considera desinformação. Mas, de repente, paramos pra pensar e descobrimos uma certa coerência nisso tudo, uma teia que ele tece aos poucos com seus parceiros. Como os galos da manhã de João Cabral, eles nos anunciam um outro dia que nasce radiante. Um dia de radiante horror.

Sua eleição deu-se por infeliz coincidência entre um candidato que representava políticos de quem ninguém queria mais saber e outro que ninguém conhecia, mas se parecia com aquele simpático conversa mole de botequim, sempre dizendo besteiras que nos fazem rir amorosamente. Com ele eleito, descobrimos que era tudo uma peça que a democracia nos pregava. Alguém aí tem hoje alguma dúvida de que, quando ele perder a eleição de 2022, vai declarar que houve fraude e armar um fuzuê para não deixar o poder? O homem só pensa nisso.

Na política e na vida, a mentira é arma poderosa, sobretudo na mão de um candidato que tem poder porque está no poder. O ministro do governo no STF afirmou que esvaziar os templos por causa da Covid é impedir a liberdade religiosa, o ir e vir garantido pela Constituição. Ele propõe, em contrapartida, uma restrição no número de fiéis em cada espaço de oração. E os que, nesse caso, ficam fora desse espaço nos templos não estão sendo impedidos de ir e vir, de exercer sua liberdade religiosa? Esse é um excelente modo de admitir o óbvio inconveniente (a pandemia), propondo uma falsa solução que excita os interessados contra quem age com correção.

Quero ver nossos finos conservadores enfrentando o demônio armado. Já, já ele acaba de formar sua milícia com as armas que está fazendo entrar no país legalmente, a preço de banana. Como já pode ter empolgado os PMs iludidos pela ausência de repressão no levante do Ceará. Ou os negacionistas sinceros, pelas mentiras inventadas pela turma da Bia Kicis sobre a morte do pobre soldado doente da Bahia. E, sobretudo, pelo empenho junto às Forças Armadas, que parece não estar dando resultado, mas que ninguém sabe dizer direito a quantas anda.

Depois da longa ditadura e de tantos anos de uma democracia que julgávamos sólida, o novo regime começou a pifar a partir de erros graves cometidos por Dilma Rousseff. Como não sabemos debater sem eliminar o adversário, os erros foram agravados pelo impeachment dela, uma violência absurda e desnecessária. Um gesto de impotência disfarçada na aparente onipotência de uma oposição que não sabia o que fazer. Nem o que estava fazendo, o que ficava claro na sucessão de tolices ditas antes do voto, para justificar o que ninguém tinha certeza.

Hoje, vivemos nesse inferno de poderes que disputam a culpa da morte de quase 400 mil brasileiros, em vez de tentar impedir que eles morram. Um inferno em que, num plano fechado, um vereador mata seu enteado de 4 anos como se estivesse numa pelada de futebol e uma deputada manda seus 500 filhos acabarem com seu marido. Como diz o assassino do menino Henry, o importante “é virar a pagina”. Mas, no curso desse lodo geral, avançamos sem saber o que nos espera na página seguinte.


Cacá Diegues: O signo da esperança

Biden anunciava uma volta à normalidade democrática que sossegou nossos corações, como o triunfo dos Aliados

Uma irmã de minha avó, a quem chamávamos de tia Sinhazinha, foi enfermeira militar na Força Expedicionária Brasileira (FEB), lutando nos campos da Itália durante a Guerra no final dos anos 1940. Essa minha tia-avó, a tenente Olímpia Camerino, cuidava com afeto dos filhos de suas sobrinhas cada vez que a visitávamos depois de seu retorno vitorioso ao Brasil. Tia Sinhazinha nos contava então, com modéstia e simplicidade, histórias passadas durante a guerra que me fascinavam. Numa delas, cercada numa colina italiana por força inimiga muito mais numerosa, nossa tropa foi salva por um general esperto que mandou espalhar que os inimigos estavam doidos para se render, por pura exaustão. Como estavam sendo informados de que os italianos não aguentavam mais e queriam se entregar, nossos rapazes multiplicaram a valentia e derrotaram o bando de Mussolini que, ainda que majoritário, acabou se rendendo.

Me lembrei de tia Sinhazinha e de suas histórias durante a emocionante posse de Joe Biden, o líder sereno, e Kamala Harris, a vice afro-asiática, no Capitólio norte-americano. Depois de quatro anos de voluntarismo, caos autoritário e suplício trumpista, o novo presidente anunciava uma volta à normalidade democrática que sossegou nossos corações, como o triunfo dos Aliados há mais de 75 anos. Em 1945, a vitória militar era sobre a Alemanha, a Itália e o Japão, o famigerado Eixo. Mas se tratava sobretudo do fim do nazismo, que ameaçava o mundo com sua barbárie organizada e desumana, derrotado por ideais de fraternidade sem preço, liberdade individual e eventual igualdade. E pelo progresso que o mundo haveria de conhecer a partir dali.

Os Estados Unidos eram nosso jovem herói nessa saga, o país que acendia esse sol em nossas vidas, o responsável por essa luz que trouxe com ela os brinquedos e os objetos domésticos de plástico, as máquinas movidas a combustível fóssil, uma cultura universal imposta por filmes de cinema e música popular que ignorava o particular de cada um de nós. Nascia uma visão nada cínica da política, a fantasiosa esperança numa república democrática liberal, formulada e fundada quando nada do tipo existia no mundo e, dois séculos depois, ainda era original. O alvorecer era nosso.

Depois tudo isso foi passando, nossos sonhos foram sendo esmagados por uma Guerra Fria polarizada e triste, em que o Brasil também se dividiu radicalmente. Acho que tínhamos saudades de cowboys de verdade e bailarinas de mentira, mas era fraqueza revelar. Até que Joe Biden nos acorda para um novo sonho, a anunciar que nunca mais haverá supremacia branca, racismo e desigualdade de qualquer espécie, que nunca mais ninguém será discriminado por orientação sexual e identidade de gênero, nunca mais serão deportadas crianças imigrantes ou seus pais, nunca mais tirania do dinheiro e pandemia com mortes que não provam nada. (Como escreveu outro dia nosso Roberto DaMatta, “é doloroso ver a morte, que devia ser uma exceção, se tornar pavorosa rotina”.) Este é o fim da guerra incivil, “the UnCivil War” — a preciosa democracia, como sempre a sonhamos, prevaleceu.

“Política não precisa ser fogo que tudo destrói”, disse Biden no discurso de posse, “não precisa levar à desunião”. Ele jurou defender a verdade e derrotar a mentira (segundo analista de respeito, parece que Donald Trump, em 4 anos, difundiu cerca de 30 mil mentiras). “Nossa história tem sido uma luta incessante entre o ideal americano de que todos somos criados iguais e a feia realidade do racismo, do nativismo, do medo e da demonização que há muito tempo nos divide. (...) Vamos abrir nossas almas em vez de endurecer nossos corações.” E completa, quase épico: “Uma turba selvagem tentou usar a violência para silenciar a vontade do povo. Não aconteceu, nunca vai acontecer. Nem hoje, nem amanhã, nem nunca. Nunca!”.

Jornalista perguntou à poeta afro-americana Amanda Gorman, 22 anos, se alguém da equipe de Biden a havia orientado sobre o poema que escrevera e que leria durante a cerimônia de posse. Ela disse que a única indicação que recebera tinha sido não tratar os adversários políticos com ódio. Amanda leu durante a posse versos em que dizia: “Onde podemos achar luz nesta sombra que não acaba nunca?”. Sem conhecer sua pergunta, o presidente eleito a respondeu com um discurso cujos temas são a esperança, a união e o esforço pela democracia.

O que pensar de Joe Biden para o futuro do mundo e dessa esperança que a política americana atira agora sobre nós, depois de tantos anos de desilusões?


Cacá Diegues: O quinto mandato

Na última pandemia, no terceiro para o quarto mandato, o presidente mandou todo mundo tomar vermífugo

Quem me lê sabe que não costumo publicar nem discutir na coluna mensagens de leitores. Prefiro fazê-lo pessoalmente, por e-mails que eles me indicam. Mas desta vez não posso deixar passar em brancas nuvens o que é dito aqui, vocês vão entender por quê. Para facilitar a leitura, fiz as devidas correções no português do texto original, que tanto podia ser arcaico quanto futurista. Como seu tema. Eis o e-mail que recebi semana passada:

“Prezado escriba. Ainda tenho comigo o jornal de ontem, onde se encontra sua coluna desta semana. Sou seu habitual leitor, mas não posso ver o Brasil maltratado sem me meter. Sou como o nosso presidente: Brasil acima de tudo (e, claro, Deus acima de todos)! O presidente é o homem mais incompreendido do planeta, e o senhor, como bom brasileiro, não devia colaborar com as injustiças de que ele é vítima.

Por exemplo, o desmatamento não é em absoluto a causa principal das queimadas na Amazônia. Quando o fogo chega lá, as árvores já estão no chão atraídas por lei natural. Essa é a narrativa do progresso: quando há um acidente, surge também uma oportunidade. Mas os índios e os caras que moram lá sabotam o progresso, não cedem um centímetro de terra para modesta mineração, nem um riozinho sem importância para uma hidrelétrica. A floresta fica interditada. Os índios, que eram uns 4 milhões quando Cabral aqui chegou, hoje são menos de 200 mil gatos-pingados. E nós é que vamos pagar pelo descaso deles com a descendência?

O governo luta pela sobrevivência do povo, senhor escriba. Na última pandemia, no terceiro para o quarto mandato, o presidente mandou todo mundo tomar vermífugo como precaução. Foi um sucesso, esgotaram-se os vidros de vermífugo nas farmácias, a indústria farmacêutica que os fabricava foi apedrejada pela população que queria mais. Graças ao tratamento precoce com vermífugo, morreram apenas cerca de 550 mil brasileiros, metade dos mortos nos Estados Unidos e na Índia no mesmo período.

Desde que a importação de armas foi liberada por decreto presidencial, a população vem se defendendo com entusiasmo de assaltos e tentativas de homicídio. A Polícia Militar se ocupa agora de tarefas mais graves, mantendo sob vigília oficiais ‘superiores’, como generais, almirantes e brigadeiros que perturbam a vida do governo. A PM foi liberada da servidão a esses oficiais e não depende mais de governadores e prefeitos, civis eleitos ninguém sabe por quem. A medida custou um pouco às finanças do Estado, já que o governo passou a arcar com o necessário desconto nas compras domésticas dos chefes policiais, descontos que foram cobertos pela UIF (ex-Coaf). Ficamos assim protegidos dos dias piores que o presidente teria que enfrentar (só Deus sabe como!), a exemplo de Donald Trump, sacrificado por causa de visita ao Capitólio norte-americano.

Outro dia fui ao cinema, num shopping na Praça Carlos Alberto Brilhante Ustra, recém-inaugurada, e vi com satisfação que não havia nenhum filme nacional programado. O governo parou de financiar esses comunistas, a Lei Olavo de Carvalho não financia mais o marxismo cultural, como fazia quando se chamava Rouanet. Agora ela apoia o apoio ao Brasil, como no caso da soja. Fizemos um trato com agricultores franceses, não perdemos mais tempo, dinheiro e terra arada com soja. Compramos da França, onde a família Le Pen controla o governo desde a sucessão de Macron e sua feia esposa. Os franceses nos vendem a soja com perfume inigualável, além de embrulho e embarque supervisionados por herdeiros de Pierre Cardin.

Nos anos 1930, Getúlio Vargas começou a modernizar o Brasil pela industrialização. Nosso presidente está levando o país de volta ao que sempre foi, uma ensolarada fazenda, onde todo mundo flana igual e ninguém tem pressa de nada. A Ford foi embora porque não se adaptou a esse novo Brasil do futuro. No dia D e na hora H, eles hão de entender que aqui um manda, e o outro obedece. O Congresso, hoje com sua maioria formada pela Aliança do Grande Centro, e o STF, fechado temporariamente para higiene interna, apoiam o presidente. Restam apenas os três meninos sumidos desde o Natal de 2020, que ainda estão escondidos por aí. O mais velho deles, Fernando Henrique, deve estar hoje com uns 25 anos de idade. Os meninos desaparecidos seguem mandando recados para suas comunidades, incentivando-as a resistir. Resistir a quê, meu Deus?!

Vou ter que parar de escrever, pois meu tempo é curto, e o seu, escasso. Preciso sair correndo para ir votar em Jair Bolsonaro, o Mito, para mais um período na Presidência, conforme a oportuna reforma constitucional de 2022, quando seu partido sugeriu ao Congresso permitir que se candidatasse a novos e seguidos mandatos de quatro anos. A pífia oposição ainda tentou argumentar que a inflação passara de 4,52% em 2020 a cerca de 452% esse ano. Mas nossos sólidos economistas argumentaram que inflação é bobagem, não serve para dizer o que acontece de fato no país. E deram como exemplo Juscelino Kubistchek, o criador de Brasília, presidente a partir de 1955, quando ainda não havia reeleição.

Depois desses 12 anos no governo, Bolsonaro vai se sacrificar mais uma vez.

Como ele tem dito a seus apoiadores, na saída do Alvorada, o Brasil ainda precisa do dobro desse tempo para se endireitar de uma vez. Até breve, meu caro escriba”.

Esse e-mail me foi enviado com a data de 10 de outubro de 2034. E agora?


Cacá Diegues: Uma nova democracia

O fracasso da invasão do Capitólio se deu graças à aliança entre democratas e republicanos

Pouco antes da conquista do planeta pelo coronavírus, pegava fogo o debate sobre a crise da democracia. Da versão política de Steven Levitsky à nênia econômica de Thomas Piketty, os pensadores ocidentais se dividiam entre a desconfiança num sistema de lógica tão frágil e a inesperada ascensão de gente como Boris Johnson, Matteo Salvini e sobretudo Donald Trump. Este último trazia a chave que abriu a caixa de Pandora do delírio antidemocrático, iniciado com a crise de 2008. A decadência desse baile de máscaras ideológico nos pegaria em cheio — a eleição, no Brasil, de Jair Bolsonaro, dez anos depois da inauguração dos novos tempos.

Como disse Manuel Castells, “a desconfiança nas instituições (...) nos deixa órfãos de um abrigo que nos proteja em nome do interesse comum”. Não há interesse comum quando os “representantes do povo” administram seus próprios sonhos em nome das sociedades que supostamente representam. O movimento antidemocrático é a inversão da energia popular: não cabe aos líderes realizar os “sonhos do povo”, mas orientar o povo sobre quais devem ser seus sonhos. É daí que nascem os “brexits”, rompimentos indesejáveis, xenófobos e populistas, que não podem ser condenados por ter sido escolhidos por eleitores.

O surgimento de um personagem excessivo, narcisista e grosseiro como Bolsonaro, que chega ao poder com uma ideologia semelhante à de Trump, pretende liberar energias reprimidas. E nos ameaça, para o futuro próximo, com algo parecido com a invasão do Capitólio. “A chave do sucesso de Trump”, escreve Matt Taibbi, “é a ideia segundo a qual as velhas regras de decência foram feitas para os perdedores que não têm o coração e a coragem de ser eles mesmos”. Essa é a mensagem do trumpismo numa era “narcisista de massa”, bem adequada a ela. O apoiador herda, por transição natural, o poder do apoiado, o herói político que o salvará não apenas da fome, mas também da insignificância de onde só pode se embasbacar com o universo estratosférico dos heróis inatingíveis da Marvel.

Foi o vírus que nos salvou desse mundo de mentira, dessa ficção de blockbuster direitista. A tragédia da Covid-19 nos fez voltar à realidade, trocar o papo enfeitado da política pelo discurso óbvio da sobrevivência da humanidade.

No Brasil do século XIX, por ocasião da Guerra do Paraguai, o governo imperial obrigara cada província a enviar uma percentagem de sua população para a luta. Os senhores de terra prometiam então a seus escravos alforria imediata a quem fosse à guerra no lugar deles. A maior parte desses “voluntários” acabava morta, esquecida no campo de batalha; e os que retornavam voltavam aos poucos à condição de escravos, numa sociedade em que não havia, para eles, outra coisa a fazer para ter um teto e matar a fome. É como se a escravidão estivesse em sua natureza e pudesse ser chamada de democracia, já que dependia apenas da vontade dos que a exerciam.

O melancólico livro de David Runciman, sobre o fim da democracia liberal, nos afirma, logo no início, que “nada dura para sempre”. E acrescenta o que nega ao longo de suas páginas: “A democracia sempre esteve destinada a passar, em algum momento, para as páginas da história”. Mas as páginas da história reproduzem apenas o modo como certas ideias são tratadas em um determinado tempo. Se pensarmos na convivência humana sem limitações ou prejuízo para o outro, estaremos praticando a ideia de democracia. Essa ideia nasceu há muitos séculos, nas reuniões públicas de cidadãos da Grécia Antiga. E, como ideia, já chegou hoje à ausência absoluta de discriminação, onde todos têm os mesmos direitos, seja qual for seu gênero, cor, origem ou formação. A única interdição segue sendo não atropelar os interesses legítimos e o justo desejo do outro.

O fracasso da invasão do Capitólio pelas tropas civis de Trump se deu graças à aliança entre membros dos partidos Democrata e Republicano, políticos tão diferentes quanto Nancy Pelosi e Mitch McConnell. Selvageria e barbárie dos invasores, em cuja tropa não havia um só negro, passaram longe das comoventes passeatas que proclamavam que “black lives matter”. Uma nova democracia pode surgir daí, talvez menor, mas certamente mais humana, sem bravuras mas com solidariedade. Uma democracia que não serve apenas a quem já tem o poder. Mas a do vizinho, nascida da consciência de que estamos todos vivendo num mesmo mundo e dele temos que tirar os mesmos proveitos para sermos felizes. Em tempos de tanta incerteza, não custa nada citar Gramsci: a velha ordem já não existe, e a nova ainda está para nascer.


Cacá Diegues: A vida ao vivo

Este ano não vai conseguir ser pior do que o que foi embora

Joca, meu amigo que mora nos altos do Rio, numa casa cercada por trecho preservado da Mata Atlântica, me telefonou outro dia. Me preparei para aceitar mais um convite para fim de semana no meio do mato, almoçando o que ele mesmo cozinha (Joca é especialista em peixe). Mas havia na voz de meu amigo um certo pânico, vi logo que não se tratava de nada divertido.

Com estardalhaço e a certeza de que estava sendo injustamente prejudicado, Joca desabafou, antes mesmo de um boa-noite regulamentar: ele havia assistido a um programa culto da televisão em que se dizia que o macaco-prego tinha o hábito de devorar o caule das palmas. E Joca sabia, por informação de um desses ecologistas palpiteiros que o frequentavam, que era justamente pelo caule que as palmas se multiplicavam. Como o que mais havia no mato em torno de sua casa eram macacos daquela família, tão numerosos quanto vorazes, Joca entrara em pânico. Se a notícia se confirmasse, a casa, passado algum tempo, poderia se tornar uma ilha de barro cercada de mato seco sem graça, por terrenos baldios sem verde algum.

Eu ia lhe dizer que, mesmo que por absurdo viesse a perder para sempre as palmas da vizinhança, lhe sobrariam folhas e flores, plantas e árvores, verdes infindáveis no entorno da propriedade. Não lhe faltariam mato e bichos de toda espécie para viver nele. Mas, antes que eu pudesse dizer alguma coisa, Joca adivinhou a direção de meu discurso em construção e berrou que ia ler em voz alta, no seu celular, cópia do que eu havia escrito há umas semanas na coluna, depois de um almoço ao ar livre em sua casa.

Tratava-se de um elogio generoso a aves e animais que da mata nos observavam a devorar a peixada que nosso anfitrião nos havia preparado. Entre tucanos e estranhas borboletas, maracanãs e maritacas, eu destacava os encantadores macaquinhos, bravos e simpáticos, moradores da floresta. Alguns até traziam às costas membros de sua prole que assim aprendiam o caminho das palmas, uma cena tornada inesquecível por minha filha Flora, apaixonada pelo lugar. E, com malícia, Joca se dirigia a mim como se eu fosse, em qualquer circunstância, um aliado daqueles animais. Como quem já sabia que, por velha amizade e parceria, eu ia defender os bichinhos gulosos e irresponsáveis, mesmo que estivessem acabando com o planeta.

Fora de si, Joca me anunciou que ia ler o final de meu artigo. Ele aumentou o volume da voz e leu sem respirar, sem respeitar pontos e vírgulas: “Os bichos andam sempre em grupos homogêneos sem a participação indesejável dos que são diferentes. Foi o ser humano que inventou a solidariedade e somente nós a praticamos sobre a face da Terra. Se não a praticássemos, a natureza se reduziria a uma constante guerra entre todos, pelo melhor abrigo e alimento”. Joca suspirou e completou a leitura: “Por que temos que nos submeter ao mal natural, se podemos inventar outro mundo, a partir de um pensamento solidário?”.

Pensei na utopia que a frase propunha, mas fiz silêncio e nem me ocorreu argumentar que todo macaco era um ser irracional, sendo aquele um pensamento muito sofisticado para um ser irracional. Joca também fez silêncio do outro lado, mas ainda suspirava, parecendo extenuado por tão pouco. Depois de algum tempo sem que nenhum dos dois dissesse qualquer coisa, ele mudou de tom e me convidou para dar um pulo com Renata em sua casa para tomar um vinho. Fui. Quase que como se a rápida conversa no telefone me impedisse de não ir.

A caminho de sua casa, meu celular tocou e Renata atendeu. Era ele. Depois de ouvi-lo, Renata, divertindo-se muito, ligou o viva-voz para que eu também ouvisse o que ele dissera: “Diga a ele para não se esquecer de trazer o raio X, que é pra gente ver o calo ósseo”. Eu ainda ria de seu inesperado humor negro, quando Joca retomou o tom anterior da conversa. “Que sujeitinho, né não? Esse cara não consegue dizer nada que seja construtivo, nada que nos ajude a viver”. Imediata e peremptoriamente, Renata respondeu por mim e por ela: “É isso aí, Joca. É isso mesmo”.

Não sei por quê, me vieram ao coração as dores de 2020, com a certeza de que este ano não vai conseguir ser pior do que o que foi embora. Há meses que não vejo meus amigos em pessoa. Estou de saco cheio de lives e encontros virtuais, agradeço o esforço que a ciência contemporânea faz para que não percamos o sinal dos outros, mas quero vê-los ao vivo, a elogiar a vida mesmo que eventualmente infelizes. Quero sobretudo abraçá-los muito nessa entrada de 2021.


Cacá Diegues: O futuro vem aí

Faz parte dessa esperança sabermos que nem todos nos farão de trouxas e que a Fiocruz se recusou a dar, na distribuição das vacinas, a prioridade pedida pelo STF

Por falar em Natal, alguma coisa está mudando em nossos corações. O ano de 2020, por tudo o que aconteceu, talvez tenha sido o pior ano de nossas vidas. Mortes e separações, perda de emprego e falta de dinheiro, os amigos que não temos mais porque sucumbiram à Covid ou porque nunca mais abraçamos por causa da porra do vírus, a solidão provocada pelo temor do contágio. Tanta coisa nos aconteceu e nenhuma delas nos fez mais felizes.

Até a política, que sempre cultivamos como fofoca, nos faltou. É difícil fofocar, rir ou xingar no meio de outros papos, quando o cara disfarça a incompetência e o narcisismo por trás de uma afirmação machista, como a da “gripezinha” ou a do “país de maricas”. Ou quando ele, em plena discussão das vacinas, às vésperas de nossa redenção, da garantia ou da esperança de nossa sobrevivência, jura que não vai se vacinar e ponto final. Prefere inaugurar, com pompa e circunstância, na presença de ministros e funcionários, uma exibição exibicionista das vestes que ele e Michelle usaram na posse, como se isso tivesse alguma importância para nós ou para a História. Quem votou nele porque era um impávido colosso, um homem simples e modesto, igual a qualquer um de nós, deve estar uma fera.

Numa hora dessa, nada disso tem mais importância. O que importa é a nossa esperança, o que a gente acredita que vai passar, vai melhorar embora não saibamos direito como. Como nossa Fernanda Montenegro diante do mar e do sol que nasce generoso do outro lado da praia.

Faz parte dessa esperança sabermos que nem todos nos farão de trouxas e que a Fiocruz se recusou a dar, na distribuição das vacinas, a prioridade pedida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Conforme disse Stuart Mill (que não era de esquerda, nem de direita), em meados do século XIX: o direito de um cessa quando perturba o direito dos outros. Eles que entrem na fila, como todo brasileiro terá que fazer ao longo desses primeiros meses de 2021. Um ano para o qual devemos sorrir com afeto, pois esse é o nosso futuro e é preciso confiar nele.

Quando terminar a pandemia, perceberemos com toda clareza as mudanças em nosso comportamento, as transformações culturais provocadas por ela no ser humano de cada canto do planeta. É cedo para falar dessas mudanças culturais, podemos tentar adivinhá-las, mas ainda não sabemos nem como termina a pandemia.

No Brasil, a tragédia mais grave neste momento é a do desmatamento cultural, o empenho em destruir nas expressões culturais do país tudo aquilo que representamos de fato e que representa nosso comportamento e nossa existência, o que na verdade somos. Para nós, os brasileiros foram sempre os outros, nos acostumamos a nos referir a eles na terceira pessoa, nunca os tratando como “nós”. Ainda assim, o Brasil é a nossa obsessão, vivemos inventando teorias para tentar explicá-lo. Somos o único país do mundo luso-afro-ameríndio e devíamos estar aproveitando essa novidade tão original e rara.

A pandemia nos ensinou algumas lições que havíamos esquecido. Como, por exemplo, viver na solidão como fomos gerados e viemos ao mundo, nosso compulsório destino. Por mais que contemos com a arte e a ciência dos outros, somos nós que fazemos nossas escolhas e tomamos nossas próprias decisões. Somos nós os responsáveis pelo nosso destino, mesmo que não tomemos conhecimento dele. Mas podemos contar com a força e o consolo do outro, a solidariedade de quem nos ama, e tomara que sejam muitos os que nos amam. Se além disso estivermos atentos ao inesperado, ao acaso responsável por quase tudo que acontece, temos uma grande chance de nos sairmos bem na vida. Pois é assim que se dá fora de nós, no mundo físico, mesmo que às vezes demore a acontecer.

Em 2021, não deixaremos que nada nos leve a alegria de viver, nossa esperança nas coisas da vida e do mundo. Tentaremos ser mais justos e mais amorosos, como sempre foi o mestre pensador sacrificado na cruz. Mesmo os que não acreditam em seu caráter divino, não poderão negar que o que ele pensou e disse mudou a humanidade nesses últimos dois mil e vinte anos. E continua mudando, mesmo que muitos tentem, em nome dele e em vão, praticar erros, equívocos e maldades. Inúteis alterações perversas de tudo o que ele dizia a respeito de nós, de tudo o que ele dizia esperar de nós.

Vamos nos preparar para o futuro — ele começa no ano que vem, daqui a uma semana.


Cacá Diegues: O Natal do menino Brasil

Nunca fomos o paraíso anunciado, enganamos todo mundo

Não se pode deixar de reconhecer que, vítimas de um equívoco, fomos meio largados no mundo por quem financiou a nossa “descoberta”. Nos primeiros anos depois de Cabral, os reis de Portugal nos ignoraram, mais preocupados com o fim da Inquisição que os havia tornado decisivos nos costumes da Idade Média europeia, encerrada com os huguenotes de Lutero e Calvino na fogueira.

Fomos colonizados por pés-rapados, valentes aventureiros, sonhadores que não tinham nada a ver com a tensa elite lusitana. Queriam era atravessar o Mar Tenebroso e chegar ao Novo Mundo para começar vida nova em nome de Cristo e do futuro financeiro da família. Só pensavam em encontrar terras cultiváveis, madeiras de valor como o pau-brasil, escravos indígenas a mancheias, valores que os tornariam quem sabe até festejados pela sociedade europeia que respirava uma Renascença iluminista, os novos tempos.

Com a Independência e o Império dos dois Pedros, depois que, em 1808, dom João VI fugira de Lisboa com amigos e familiares para não ter que enfrentar a ocupação francesa de Napoleão Bonaparte, o Brasil foi obrigado a descobrir (ou a escolher) quem era. O príncipe fujão criara o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, com capital no Rio de Janeiro, e foi daí que, preocupados com o futuro, começamos a construir nosso passado. Um passado de fantasias, criado por intelectuais e artistas submetidos às ideias do imperador.

Dom Pedro II encomendara a Victor Meirelles a tela que se tornou famosa e popular da “Primeira Missa no Brasil”, uma espécie de nascimento do Brasil (ou o Natal do menino Brasil), concluída em Paris. No quadro, a chegada dos europeus à Bahia era um amável encontro de raças e costumes. Nada mais distante das invasões bárbaras do século XVI e dos genocídios que então passaram a ocorrer. A outro jovem, Pedro Américo, o imperador encomendara outra tela, igualmente popular e famosa, a reprodução do Grito de Independência protagonizado pelo pai do produtor, dom Pedro I. Nada do que está ali corresponde ao que de fato acontecera, Pedro Américo apenas copiava a grandeza e o espírito de exaltação de uma tela de Ernest Meissonier, pintor na moda, em homenagem a Napoleão Bonaparte e seu exército.

As duas obras foram concluídas e expostas ao público de Paris e do Rio na primeira metade da década de 1860, no auge do sucesso político de dom Pedro II e seus ideólogos, como José de Alencar, ou militantes, como Manuel Antônio de Almeida. (Por pura distração, no artigo da semana passada, troquei a tensão paradisíaca da Missa pela proclamação política do Ipiranga, trocando o nome de um pintor pelo do outro, pelo que peço desculpas ao eventual leitor.) Nas duas obras, dom Pedro II e seus artistas pretendiam unir todas as classes num país que deixava de ser formalmente uma colônia. A base dessa narrativa está no livro que já citei aqui, “A conquista do Brasil”, de Thales Guaracy, da Editora Planeta, de São Paulo.

O Brasil não gosta de seu passado, e sempre achamos que não temos direito a futuro nenhum. Para disfarçar, mentimos alegremente sobre o que somos e o que queremos ser. Nunca fomos o paraíso anunciado, enganamos todo mundo com pandeiros, palmeiras e sabiás, com nossos carnavais. Como Pigafetta, viajante italiano que, em 1519, enquanto a corte lisboeta se distraía queimando protestantes, informava que os brasileiros viviam até os 140 anos.

Subestimado durante quase todo o seu primeiro século de vida, o Brasil foi inventado por caçadores de homens (que escravizavam os índios), um exército de exterminadores (que saqueavam a terra), um padre gago (Manoel da Nóbrega) e outro meio cínico (José de Anchieta), além de famílias como os Sás e os Souzas. Como o que interessa é o presente, e este é a consequência do passado concreto e do futuro que sonhamos, ainda é preciso perder as ilusões para entender o Brasil de hoje.

Os pensadores ocidentais sempre trataram nossa diferença como a ausência de alguma coisa que eles reconhecem e cultivam como civilização. Mas é justamente dessa ausência que podemos construir o único Brasil possível, o Brasil que vale a pena. Quem sabe então poderemos ser enfim felizes. O grande poeta russo Vladimir Maiakóvski (ai, meu Deus, vou pra cadeia por elogiar um poeta comunista!) dizia, num de seus poemas mais pessimistas, que haviam finalmente encontrado um homem feliz no planeta. E ele vivia no Brasil.


Cacá Diegues: A conquista do Brasil

Um dos mitos que alimentam com fartura a mistificação está nas mentiras sobre o caráter dos nossos indígenas

Temos alimentado uma imagem do povo brasileiro que nunca correspondeu à realidade. A gente doce e cordial, de permanente bom humor, que olha a vida e o mundo como uma aventura divertida que só aos outros faz sofrer, foi uma criação de intelectuais do século XIX. Eles inventaram o entendimento desde o início, a paz fraterna entre indígenas e portugueses, consagrada pelo famoso e popular quadro de Pedro Américo sobre a Primeira Missa inaugural. Como foram os colaboradores de Pedro II que, por iniciativa e incentivo do imperador, mandaram destacar, na carta de Caminha, que “em se plantando, tudo dá”.

Esse núcleo forte da inteligência brasileira talvez estivesse disfarçando seu sentimento de culpa por trás do mito. Um mito por meio do qual saudou com ensaio, ficção e poesia a Abolição, uma farsa que mal mudou a vida dos escravizados, a República, um golpe de Estado dos senhores de terras, e a própria passagem progressista para o século XX, com a certeza de que, apesar da fome e da miséria, da extrema desigualdade social, o Brasil estava destinado a dar certo.

A prova disso, apesar de tudo, era a visível felicidade do povo traduzida no carnaval, no samba e no futebol. Vivemos o século XX com essa certeza. Em nome dela, estivemos indiferentes a golpes de Estado e ditaduras muitas vezes sanguinárias, não demos bola a intervenções urbanísticas autoritárias que derrubaram as moradias populares, a mudanças compulsórias de costumes alimentadas pelo soft power dos poderosos, ao aumento constante da desigualdade provocada por políticas econômicas que nunca levaram em consideração a existência e as necessidades do povo.

Entramos no século XXI ainda com esse espírito, mas já um tanto cansados. E, enquanto julgávamos que tudo isso se tornava claro demais, e alguma coisa teria que ser necessariamente feita por alguém (sei lá por quem), a síndrome só fazia crescer. Quando o presidente da Republica declara que o Brasil foi o país que lidou melhor com a pandemia, essa gripezinha que não aflige o bravo povo brasileiro que se ri da dor, ele não está só dando um jeito de justificar sua maldade, sua incompetência e seu delírio narcisista. O presidente também está falando em nome de uma multidão de cidadãos sofredores que pensa como ele.

Um dos mitos que alimentam com fartura a mistificação está nas mentiras sobre a natureza e o caráter de nossos indígenas, sobre seu encontro com a civilização ocidental e portuguesa. Quando o degredado João Ramalho, o primeiro branco a viver no Brasil, raspava os pelos do corpo europeu para se confundir com os índios de São Vicente, antes da “descoberta” de Cabral e do turismo renascentista de Américo Vespúcio, havia um certo respeito pelo outro, por aquilo que era diferente, seres humanos que viviam nus nas comunidades tupis. Nessa época, havia no Brasil cerca de 3 milhões de índios, que hoje não passam de uns 200 mil. O que aconteceu com os 2,8 milhões que sumiram?

Em seu livro “A conquista do Brasil”, Thales Guaracy, historiador e cientista social formado pela Universidade de São Paulo (USP), considerado por Laurentino Gomes como “dono de uma capacidade invejável de pesquisa”, diz que a travessia pelos portugueses do Mar Tenebroso, como era chamado o Oceano Atlântico, só ganhou importância para nós quando “o Brasil precisava construir para si um enredo histórico coerente com a dominação portuguesa da qual descendia sua coroa”. Ou seja, o papel de Pedro II nessa narrativa.

Mas “a verdadeira História do Brasil saiu da espada de guerreiros inclementes e sanguinários, da chibata dos mercadores de escravos, da rudeza de desbravadores belicosos e da ambição de nobres que encontraram, no ambiente inóspito do Novo Mundo, campo para enriquecer à margem da lei e do próprio mundo civilizado”. Como segue sendo até hoje. Como sempre foi. “Erradicar a pobreza e tornar o país não só democrático, como socialmente mais equilibrado e justo, é uma tarefa histórica numa nação acostumada desde sempre a massacrar a parte mais fraca e muitas vezes discriminada de sua sociedade”. Outras nações fizeram melhor do que nós.


Cacá Diegues: Um prefeito

Zé Pelintra se impôs ao ódio ao carnaval

Temos finalmente um prefeito, coisa que nos faltava há quatro anos. O deputado Pedro Paulo já nos deu más notícias de como vai encontrar as contas da cidade. Mas pelo menos não somos mais obrigados a ver na televisão a cara do bispo tentando iludir não sei quem, com aquela voz e trejeitos de falsa realidade virtual. Seu coração não se partirá mais, o Zé Pelintra se impôs a seu ódio ao carnaval. Agora vamos trabalhar para recuperar a cidade de tanta crueldade com ela e seus (bons) costumes.

As mortes de João Alberto, assassinado num supermercado em Porto Alegre, e de Carlos Eduardo, vítima da tuberculose no chão de uma padaria em Ipanema, bem ilustram a violência brasileira. Não se trata apenas da morte de dois negros. Mas da morte de dois negros pobres que certamente não seriam assassinados, nem deixados sob um plástico às costas de insensíveis, se tivessem algum dinheiro para se virar. Não se trata apenas de racismo, mas de discriminação social agravada pelo racismo. A desigualdade, segundo o Índice Brasileiro de Privação (IBP), um IDH nacional criado pela Fiocruz, responde hoje por 30% da mortalidade de crianças de até 5 anos.

“A cultura é a própria identidade do Rio”, diz o plano do prefeito eleito anunciado antes da eleição“Ela presta homenagem à memória de nossa cidade.” E ainda é objeto de uma economia bem-sucedida. “Vamos refundar a Riofilme, que voltará a ter um papel de protagonista na produção audiovisual carioca.” Um papel que a produção carioca sempre teve no audiovisual brasileiro, desde sempre. No passado, Eduardo Paes garantiu ao setor 1% do orçamento municipal, o suficiente para manter nossos filmes sendo produzidos com sucesso.

O Brasil é um país múltiplo e diverso, sua melhor tradução pode estar num igarapé amazônico, nas areias de praia baiana, nos Pampas, numa cidade histórica de Minas, na Avenida Paulista. Ou nas favelas do Rio. Cabe aos criadores representá-lo como julgarem mais conveniente, não existe verdadeira cultura brasileira sem diversidade. Com a pandemia, pobreza e desigualdade cresceram, vizinhanças inteiras não têm esgoto, nem acesso à água, não importa se o cara é preto ou branco. Segundo o IBGE, o Brasil é hoje o nono país mais desigual do mundo.

Isso talvez devesse ser tema eleitoral da esquerda. Mas a esquerda preferiu disputar a eleição por hegemonia em seu campo. Se a simpática Benedita, a heroica Martha e Renata, a herdeira de Marielle, tivessem acertado uma aliança, seus votos somados teriam colocado a candidatura de esquerda no segundo turno, em vez da velha direita satânica do doutor Crivella. O vencedor escolheu a concertação, em vez da polarização doutrinária, entendeu que o pessoal está querendo é trabalhar em paz (quando tem emprego e, portanto, trabalho). Agora estão ameaçados de não poder se imunizar, porque o presidente não gosta de vacina. Para ele, já está bom se sobrarmos alguns para levantar a economia até 2022 e para morrer de Covid sem encher a paciência do Estado. E daí? Todo mundo morre, e o presidente não é coveiro.

A maioria desses “invisíveis” é hoje administrada por paramilitares ligados ao tráfico de drogas e às milícias. Desde que passou a ser desrespeitada a decisão do STF determinando que operações policiais em favelas só fossem realizadas em situação excepcional, o Rio conheceu 237 ações nas comunidades, mais de uma por dia. Ao todo, 145 pessoas foram mortas por policiais no mês de outubro, um aumento de 179% em relação a setembro. Entre as vítimas, crianças e adolescentes que não tinham nada a ver com isso.

Nunca se levam em conta experiências como as do Favela-Bairro ou das UPPs, que começaram bem e foram desmobilizadas pela própria polícia, pela corrupção e pelos governantes que não se interessaram em executar a melhor parte dos programas, a montagem nas comunidades de centros urbanos com atividades comerciais, de entretenimento e utilidade públicaDez anos atrás, em novembro de 2010, os traficantes foram expulsos do Alemão com estardalhaço e show na televisão. Com isso, instalaram-se ali, entre outros serviços, agências de banco, salas de cinema e um teleférico para servir à população obrigada a subir o morro. Quando, pouco depois, os bandidos voltaram, tudo isso foi abandonado por falta de segurança. O teleférico é hoje uma ruína enferrujada, monumento morto à incompetência e ao arranjo.

Bem depois da Abolição, Joaquim Nabuco escreveu: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Não é necessário ler Karl Marx para entendê-lo. Veja como, há um século e meio, a Suécia era muito mais desigual que o Brasil de hoje e, no entanto, deram um jeito nisso, sem gulags nem massacre de milhões. Para ser um bom prefeito, nem precisa saber nada disso. Basta sensatez e, quem sabe, um bom coração.


Cacá Diegues: Gracias a la pelota

Maradona foi um permanente inquisidor da alma humana. Quase diria que se sacrificou por nós, latino-americanos

Às vezes, temos necessidade de um choque radical para compreender melhor o que já estava diante de nossos olhos. Como o papel civilizatório de Diego Armando Maradona. Além do craque de bola que ele foi, a base moral de seu comportamento no mundo, Maradona foi um permanente inquisidor da alma humana. Quase diria que se sacrificou por nós, latino-americanos, devedores de tantos poderosos que sempre admiramos pelo mundo afora.

Não é que Maradona não desejasse ser conquistado, como o foi tantas vezes, como todos nós. Mas ele queria entender o mundo à sua volta e, para isso, precisava saber por que os homens poderosos amavam e eram amados pelo povo que cultivava Maradona. Nosso herói não era de esquerda, de centro ou de direita; mas se interessava pelas pessoas que professavam tais ideias. Não pelas ideias, mas pelo povo que elas conquistavam, do qual se aproximavam.

Se procurarmos na vasta coleção audiovisual em que o registramos, vamos encontrar cenas em que Maradona se declara a Fidel, de quem tinha uma tatuagem na perna esquerda, justamente a perna genial. Ou confissões de amor a dirigentes políticos como Carlos Menem, um neoliberal populista e popular, a quem ajudou a se eleger presidente da Argentina. E ainda oferecendo ao general Videla, comandante da ditadura mais sangrenta na história de seu país, o título mundial conquistado em Tóquio pela seleção juvenil.

A televisão argentina não se cansava de mostrar Maradona a cantar hinos peronistas, a defender os Kirchners, a se deixar usar pela máfia italiana quando jogava pelo Napoli, a fazer oposição contundente a Macri, a dedicar sua autobiografia ao xeque Mohammed bin Rashid al-Maktoum, cruel ditador árabe, a quem agradecia por “brindá-lo com seu apoio”. Maradona beijava o desconhecido, como beijou o Papa Francisco na bochecha, quando o conheceu, e o atacante Caniggia na boca mesmo, quando este fez, de uma assistência sua, o gol que desclassificou o Brasil na Copa de 1990.

Segundo Tostão, grande cronista de futebol, “Maradona era o maior craque do mundo numa época em que a ciência esportiva tentava fazer do futebol um jogo essencialmente científico, programado e previsível. Ele, com seu show de habilidades, inventividade, imprevisibilidade e efeitos especiais, foi uma resistência ao futebol pragmático”. Podemos dizer a mesma coisa de sua vida pessoal. Quando ele se junta a líderes formados por diferentes ideologias, não está aderindo às ideologias dos políticos. Nunca o vimos comentar, criticar ou elogiar essas ideologias. “Não sou comunista”, disse ele uma vez. “Mas tenho orgulho de ser amigo de Fidel.”

Por meio de seus amigos, de direita, de centro ou de esquerda, por meio da Camorra ou da Igreja, Maradona se aproximou sempre de quem o povo admirava ou simplesmente amava de algum modo, por alguma razão. A única vez em que respondeu à pergunta de repórter sobre as consequências de sua morte, ele disse que queria apenas que em sua lápide estivesse escrito: “Gracias a la pelota”.

Acho que o que ele queria mesmo era entender, por meio de quem o povo amava, o povo que o fez tão grande. Ele se manifestava pela sua genialidade no futebol, o que o aproximava de todos, do “pibe” do Boca aos senhores do mundo. Mas ele queria entender o que era a Humanidade, e essa curiosidade talvez o tenha matado. Nunca entenderemos tudo o que se passa no mundo.

Maradona deixa como legado maior de sua vida e obra os dois gols que fez em 1986, no México, contra a Inglaterra, se tornando pela primeira e única vez campeão mundial de futebol. O primeiro gol, ele fez com a mão esquerda (“la mano de Dios”), falta que só o juiz encantado por ele não viu. No segundo, que consagrou a Argentina campeã do mundo, gol classificado pela Fifa como o mais bonito de todas as Copas, ele driblou o meio de campo e a defesa inteira da Inglaterra, numa inacreditável linha quase reta. É como se estivéssemos recebendo de presente as duas mensagens geniais de Maradona: o politico hábil e o mito divino do futebol. O diabo e deus na terra do sol.


Cacá Diegues: A Academia está mudando

Cinema não é um fenômeno estritamente hollywoodiano

A premiação da produção sul-coreana “Parasita”, Oscar de melhor filme no ano passado, foi o primeiro clímax de um processo de internacionalização, democratização e atenção à qualidade pelo qual esse troféu está passando. Criado em 1927, simultâneo à fundação da própria Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (AMPAS, na sigla em inglês), o Oscar foi uma ideia de Louis B. Mayer e uma obra de Cedric Gibbons, diretor de arte nos estúdios da Metro-Goldwyn-Mayer. Mas só em maio de 1929 ocorreu a primeira entrega do prêmio aos melhores desempenhos nos filmes americanos dos dois anos anteriores.

Naquele ano inaugural, votavam apenas os 36 membros da Academia, que premiaram naturalmente os filmes e os protagonistas com que o público americano mais havia se identificado em seu lançamento, aqueles que colaboraram com o crescimento dessa indústria em 1927 e 28. Hoje são 5.835 membros eleitores da AMPAS, número que, de 2012 para cá, cresce regularmente com os novos convites de adesão feitos a cineastas, intérpretes e técnicos de cinema de todo o mundo. Com uma atenção muito especial a não caucasianos (segundo uma apuração feita pelo “Los Angeles Times”, os brancos até recentemente eram 94% dos membros da Academia), dando preferência ao gênero feminino (77% eram homens) e aos abaixo de 60 anos de idade (54%, até aqui, eram sexagenários).

A Academia estendeu a participação dessas pessoas por meio de convites feitos diretamente a gente do cinema de todo o mundo. Só no Brasil, esses novos membros já são mais de três dezenas. A partir do ano passado, a Academia também eliminou o Oscar para melhor filme estrangeiro, transformando-o em “filme internacional”. Não se trata mais de premiar um “filme de fora”, mas de reconhecer o valor e a qualidade de um filme que não foi feito em Hollywood. Podemos dizer que, hoje, o Oscar não é mais uma festa de blockbusters, da qual só temos como participar sentados numa poltrona, diante da televisão. Se a Academia seguir nesse rumo em que foi colocada por novos e jovens dirigentes, diretores de fotografia e espertos editores, seus prêmios anuais serão, cada vez mais, um estímulo à celebração do cinema como um elemento decisivo do entendimento universal.

Para isso, a Academia tomou a iniciativa de tornar oficial a política, que já praticava, de considerar os cineastas de todo o mundo seus parceiros na premiação do Oscar, eliminando a intermediação de governos de qualquer natureza. Em cada país, são os profissionais do cinema local que escolherão os filmes que os representarão, bem como serão eles que apontarão também os novos membros. Para isso, a AMPAS confirmou oficialmente a Academia Brasileira de Cinema (ABC) como responsável pela escolha do candidato brasileiro ao próximo Oscar, como de resto já vem acontecendo há alguns anos. Por sua vez, a ABC criou uma comissão de seleção, que acaba de concluir seu trabalho escolhendo nosso filme para o Oscar de 2021.

O que mais deve ter atrapalhado a vida dos membros dessa comissão é a diversidade com qualidade dos filmes que foram submetidos à seleção. Acho que não vi nem metade deles; mas o que vi, e adivinho no que não vi, só pode nos encher de muito orgulho. O filme finalmente escolhido foi “Babenco: alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou”, um documentário sobre o amor ao cinema, o amor ao próximo, o amor ao amor, dirigido por Bárbara Paz.

A primeira entrega de prêmios pela AMPAS se deu em maio de 1929, no Hotel Roosevelt, bem pertinho de onde hoje se entregam os Oscars. Dizem, aliás, que a estatueta ganhou esse nome de guerra porque, quando Cedric Gibbons mostrou a primeira prova ao pessoal da Academia, uma secretária achou-a muito parecida com seu tio Oscar. Como a estatueta não tinha mesmo nome algum, todo mundo começou a chamá-la assim desse jeito. Com a nova política da Academia, uma política modernizadora e democratizante, reconhecendo que o cinema não é um fenômeno estritamente hollywoodiano, já podemos torcer, sem culpa, para que Bárbara Paz traga para cá essa reprodução do tio da secretária. E que o grande Hector Babenco, um dos maiores cineastas brasileiros (sim, brasileiro, que foi o que ele sempre quis ser) de sua geração e de sempre, ajude Bárbara de onde estiver.