caca diegues

Cacá Diegues: Vai melhorar, sim

Vamos trocar a pólvora pela saliva, o contrário do que Bolsonaro propõe. Que a saliva não acabe nunca!

Depois de quase dois anos ouvindo absurdos políticos e assistindo desorientados às trapalhadas totalitárias do presidente; depois dos cerca de nove meses de uma pandemia de muitos mortos, para os quais as autoridades federais não deram a menor bola; depois de uma recuperação significativa de nosso PIB, que fez o Brasil ter agora, contados pelo IBGE, 199 mil milionários e 52 milhões de pessoas, um quarto de sua população, vivendo abaixo da linha de pobreza; depois de tanto susto e surpresa, os brasileiros foram enfim às urnas escolher seus administradores municipais. Menos, é claro, em Macapá, capital do Amapá, o estado sem luz.

Celebremos nesta eleição o sucesso do espírito democrático, um teste de nossa capacidade de escolher quem vai mandar na nossa rua pelos próximos quatro anos. Passaremos quatro anos explicando a nossos pares o que anda acontecendo e eles ainda não entenderam; ou nos declarando traídos por um governo municipal e uma câmara de vereadores de sacripantas e enganadores. Pois é disso que trata a democracia, o regime mais parecido com o ser humano. Ou, como dizia Churchill (ou não sei quem), o pior regime que existe, excetuando todos os outros.

Passei esses dias lendo o livro de Karla Monteiro sobre Samuel Wainer, “O homem que estava lá”, uma enciclopédia do que foi a política no Brasil durante os anos de vida do biografado. Pelo que a autora conta do período que conheci e vivi, só posso acreditar piamente no resto do tempo que ela aborda. Trata-se da vida de Samuel, de tudo e de todos que circularam à sua volta, desde que sua família, fugindo do antissemitismo em voga na Europa, chegou da Bessarábia quando ele tinha 8 anos de idade, até seu falecimento, com 68 anos, vítima de uma pneumonia da qual não cuidou. No dia de sua morte, em setembro de 1980, terminávamos “Bye Bye Brasil”, o filme em que, a seu pedido, Bruno, seu filho adolescente, fora nosso estagiário, sua porta para o cinema. Samuel Wainer foi um brasileiro que tive a sorte de conhecer. E de aprender o que ele entendia e pensava do Brasil. E ainda foi um dos primeiros, no país, a acreditar e promover o Cinema Novo.

Nesta semana assistimos também ao assassinato de Cadu Barcellos, um homem brilhante, um cineasta de talento, um cidadão generoso. Cadu foi diretor de um dos episódios de “5XFavela”, a versão de 2010 realizada por moradores de favela, e, aos 34 anos, se empenhava em fazer do Complexo da Maré um centro de cultura, criação e invenção. Cadu morreu sem fazer os filmes que só ele sabia fazer. De madrugada, numa esquina solitária da Avenida Presidente Vargas, foi assaltado e esfaqueado à morte. Os ladrões levaram tudo o que ele tinha: um celular e alguns poucos reais que guardara para o ônibus.

Vamos trocar a pólvora pela saliva, o contrário do que Bolsonaro propõe. Queremos incentivar a saliva, que ela não acabe nunca, tenha sempre mais um pouco, seja como líquido que escorre natural da boca, seja como lágrimas que jorram dos olhos. Ou até mesmo na forma de um beijo.

E foi como um beijo que vimos Kamala Harris cantar e dançar com um grupo de crianças nosso baile funk de favela em português das quebradas, rebolando como se fosse uma das nossas. O sereno Joe Biden é um Tancredo, que vem na frente para sossegar o coração de quem tem medo do novo. Mas Kamala Harris é o futuro que vai ser construído sobre o terreno que Joe Biden aplaina. É ela que parece dizer aquele trecho da encíclica de Francisco, em homenagem ao santo xará: “Toda guerra deixa o mundo pior do que o encontrou (…) não nos turvará, o fato de nos tratarem como ingênuos porque escolhemos a paz”.

Segundo o IBGE, o Brasil é o nono país mais desigual do mundo, com uma distribuição de renda pior que a dos africanos mais pobres. Cada vez que melhoramos no conjunto, são só os mais ricos que ficam mais ricos. Outro dia, policiais da 31ª DP, de Ricardo de Albuquerque, na Zona Norte do Rio, prenderam um homem que estava vendendo ossos humanos, retirados de túmulos no cemitério local. O homem declarou à polícia que estava desempregado, só roubava o que lhe era encomendado e que cobrava muito pouco pelo serviço. O delegado Fábio Souza o autuou em flagrante, por “vilipêndio de cadáveres”.

A vida é mesmo meio como um jogo de perde-ganha. Quanto pior agora, melhor será daqui a pouco. Vai melhorar. Vai melhorar, sim. Tenho certeza de que vai melhorar. Acho que sim.


Cacá Diegues: A última que morre

Biden, sem consciência disso, representou, por sua serenidade diante do que lhe favoreceu, a face positiva da mudança

A democracia não é uma ciência. Muito menos exata, como a matemática. Você pode somar ou subtrair seus elementos sem provocar os mesmos resultados, dependentes de onde, quando e com quem o fizer. Isso, em qualquer lugar do mundo. Imagine então num espaço de grande mudança étnica e cultural em curso que, por sua vez, produz novos conceitos éticos, religiosos e cívicos, que mexem com a vida diária de uma população, como nos Estados Unidos da América de hoje. Hoje, a maior contribuição dos EUA ao mundo contemporâneo não são o capitalismo financeiro, as viagens ao espaço ou os craques da NBA. Mas a ideia de um país com entrada para outros povos, capaz de absorver peles de outras cores, línguas de outras origens, costumes dos outros. Um país que será sempre novo, porque tem como se renovar.

Mudanças radicais produzem sempre consequências para o bem e para o mal. Nesse caso, para o bem, acho que é sobretudo a excitação do que ainda pode nos surpreender, os rumos inéditos que a humanidade toma em qualquer canto da Terra. Para o mal, é sem dúvida o medo do que não se conhece, traduzido em providências de impedimento e rejeição, quando professamos um nacionalismo de direita oportunista, que nos diz que o que é diferente de nós não pode prestar. Nessa recente eleição americana, Joe Biden, sem consciência disso, representou, por sua serenidade diante do que lhe favoreceu, a face positiva da mudança. Quanto ao mal, ficou, mais uma vez, com Donald Trump e seu horror ao que não entende, ao diferente e ao inesperado, ao com o que não contava.

Na terceira noite de apuração, quando as coisas já iam mal para ele, Trump fez, no salão da Casa Branca, um discurso cheio de mentiras e falsidades tão revoltantes que as equipes de televisão que cobriam o evento desligaram as câmeras e se retiraram revoltadas, antes que o presidente encerrasse sua intervenção hedionda.

Durante seu mandato, Trump separou filhos pequenos de seus pais imigrantes, sem nenhuma compaixão. Centenas de crianças centro-americanas estão até hoje em cárceres coletivos, sem que os pais saibam onde se encontram. O mais estranho é que Trump, nesta eleição, ganhou votos importantes em centros de imigrantes, hispânicos e negros, como a Flórida. Durante seu mandato, o presidente ainda protegeu e incentivou grupos neofascistas, como os Proud Boys e os Patriot Players, que, em suas camisetas com o slogan trumpista costurado(Make America Great Again), esfaquearam à morte dois membros do movimento Black Lives Matter em Portland. E Trump ainda assustou seus eleitores mais ingênuos, com a notícia de que, do outro lado, estava o fantasma do socialismo, como se o Muro de Berlim ainda estivesse de pé.

É claro que não é essa a nova América que surge dessa eleição e que queríamos saudar. Mas a América que sai dela gloriosa pela confirmação de uma outra nação que se constrói aos poucos, na mistura de tudo. Não é possível esquecer a gigantesca militância de Nova York ou da Califórnia, mas também não se pode desprezar a importância das minorias, protagonistas nos resultados da Geórgia ou da Pensilvânia, redutos clássicos do voto conservador.

Nosso coração ficou mais leve quando comecei a me dar conta das forças políticas que animam o novo, quando jovens americanos vibraram porque Joe Biden se referiu, em sua curta fala de menos de dois minutos, à “hora de ouvir um ao outro, de ver, respeitar e cuidar um do outro, ficar juntos como uma nação”. Conforta saber que foi esse o discurso que fez a Miragem Vermelha (os Republicanos de Trump) esbarrar na Muralha Azul (Democratas de Biden), fazendo uma diferença de cerca de 5 milhões, entre uns e outros, no voto nacional.

Ao longo de sua história, os Estados Unidos não são um país que se caracteriza por ter sofrido muito, embora tenha feito tanta guerra. Já o Brasil quase não fez guerra, mas é muito louco, como diz Nelson Motta: “De tanto sofrer, ficou pirado”. Podemos dizer que, em vez de ciência, a democracia é um desejo que cada povo alimenta como pode e quer, em nome de sua liberdade e da liberdade do outro, em benefício de um novo mundo a construir. Vivemos da esperança nesse novo mundo.


Cacá Diegues: Um novo modo de ver o mundo

As redes sociais deviam ser um instrumento de conhecimento, como a ciência

Miles Taylor, ex-chefe de Gabinete do Departamento de Segurança Interna dos EUA, acaba de se identificar como autor do artigo publicado como anônimo pelo “New York Times” há cerca de dois anos. No artigo, que o jornal informava apenas ter sido escrito por um colaborador do presidente, Taylor dizia que Trump era contraditório, mesquinho, ineficaz, amoral, um risco para as instituições democráticas do país. Na época, Trump mandou abrir investigação entre seus funcionários para descobrir o autor. Agora, Taylor pediu demissão de seu cargo, sem nunca ter sido descoberto.

Ainda no mundo do inesperado, Donald Trump, depois de empossado, demitiu de sua assessoria o famoso Steve Bannon, criador do sistema de fofocas e mentiras virtuais, as célebres fake news que, pelas redes sociais, o haviam elegido. Demitido, Bannon se mandou para a Itália, onde foi assessorar o populismo de direita que tomou o poder com o Movimento 5 Estrelas e a Liga. Reclamando do tratamento de Trump, Bannon foi consolado por fãs e discípulos de todo o mundo. Como Eduardo Bolsonaro, que o visitou e prestou homenagens ao mestre.

O reencontro de velhos inimigos jurados, assim como desavenças definitivas entre aliados de sempre, é mais ou menos uma constante na prática política de hoje em dia. Podíamos simplificar, dizendo que essa é uma das consequências do moderno embaralhamento ideológico. Ou do fim das ideologias com rigor de catecismo. Mas há outras razões, além dessas.

A BBC News revelou recentemente os termos de explosivo memorando interno da cientista de dados Sophie Zhang, ex-funcionária do Facebook. Com o título de “Tenho sangue nas mãos”, Zhang se queixava de não ter podido ou não ter tido tempo de acessar certos países, em vista de eventos antidemocráticos que neles viu acontecer. Diz ela: “Nos três anos que passei no Facebook, encontrei várias tentativas de governos nacionais de abusar da plataforma para enganar seus cidadãos e criar notícias internacionais que serviam a eles”. Aquelas famosas e genéricas fake news.

Zhang citava exemplos de manipulação política, no período em que esteve no Facebook. Como as 10,5 milhões de falsas reações de falsos seguidores, removidas de perfis de políticos de destaque no Brasil, durante a campanha presidencial e, nos EUA, durante as eleições legislativas de 2018. Além disso, o Facebook levou nove meses para agir, diante das informações sobre o uso de robôs (bots) para impulsionar o presidente de Honduras. Contas falsas e robôs também foram registrados na Bolívia e no Equador. Tudo do conhecimento do Facebook, que não fazia nada, segundo Zhang, devido à “carga excessiva de trabalho”. E Mark Zuckerberg demorou a entender a manipulação política de sua rede social.

Durante a pandemia, Zhang descobriu e removeu 672 mil contas falsas, que atuavam contra ministros da Saúde do mundo inteiro. A jornalista Carole Cadwalladr, do Reino Unido, já havia denunciado o uso manipulado de dados do Facebook pela consultoria Cambridge Analytica, pivô na eleição de Trump e na campanha do Brexit. “A velocidade e a escala de danos que o Facebook está causando às democracias em todo o mundo são verdadeiramente aterrorizantes”, escreveu. Zhang recusou perto de US$ 100 mil para não dar conhecimento público de seu memorando. Ela mesma tratou de divulgar seu conteúdo.

Quando penso na conquista do mundo pela nova cultura digital, penso logo na invenção de Gutenberg e no sucesso dela no Renascimento. As redes sociais deviam ser um instrumento de conhecimento, como a ciência e a literatura, o iluminismo e um novo humanismo, as ideias que refundaram a humanidade naquele período. Uma nova versão do mundo, pelo conhecimento e pela cultura, de como somos e de como queremos ser. Em vez disso, estamos deixando que se transformem em difusão de consumo imposto e de horror político, contra a busca da verdade e a democracia. Não podemos permitir que essa nova cultura, fruto da inteligência, da ciência e da inspiração humanas, se consolide como intervenção demoníaca em nossa civilização.

Já estava fechando este artigo, quando me ocorreram os versos de Vinícius de Moraes, citados na nova encíclica do Papa Francisco, publicada no dia de outro Francisco, o santo dos pobres: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.


Cacá Diegues: O mistério do galo

Pelé era o que nós queríamos que o Brasil fosse

O brasileiro Edson Arantes do Nascimento acaba de completar 80 anos de idade, o que passaria despercebido se Edson não fosse o Pelé, como é conhecido no mundo inteiro. Nelson Rodrigues comparava o maior atleta do século XX a gênios como Homero e Leonardo. Mas, acima de tudo, Pelé era a representação de nossa alegria e graça; de nossa superioridade produzida pelo drible, o risonho engenho de dobrar o outro; pelo gol inevitável e fatal, nunca igual e nem mesmo semelhante; pela festa dos estádios celebrando o que ele fazia por nós. Pelé era o que nós queríamos que o Brasil fosse.

Como escreveu outro craque, Tostão, “a perfeição não é humana, Pelé é uma exceção”. Dessa perfeição, uma exceção, tirávamos nossa desforra de tudo o que nos maltratasse, da fome do povo à namorada que nos traía, do político mentiroso à nota baixa em filosofia, do subdesenvolvimento à praia sem sol. Pelé era o gol que nunca perdemos, mesmo que tomássemos de goleada no cotidiano. Direto de Vila Belmiro, ele nos trazia a esperança da chegada de um novo país igual a ele. Igual ou parecido, que parecido já estava muito bom.

Esse país nunca chegou e talvez nem chegue mais, pois Pelé já está fazendo 80 anos, e ninguém tem notícia de um Brasil igual ou parecido com ele: maneiro e correto, cordial e guerreiro, capaz de mudar sua própria história numa única, inventiva e solitária jogada, ou de se misturar com a equipe para reescrever a história da civilização. Não estou inventando nada, perguntem a quem jogou com ele, como Jairzinho e Tostão, como Coutinho ou Pepe. Era muito mais fácil fazer gol com Pelé no time, contando com sua íntegra solidariedade com os companheiros de valor.

Durante todo o século XX, a cultura brasileira sempre oscilou entre a procura de uma identidade nacional e o desejo de uma integração cosmopolita na ponta do mundo contemporâneo. Essa busca não foi só um empenho de poetas e artistas, de intelectuais e pensadores. Mas também de brasileiros de várias outras atividades, empenhados em nossa originalidade funcional e afetiva, capaz de nos diferenciar no mundo daquele tempo, dominado apenas por duas únicas ideias mandonas.

Nossa cultura sempre viveu dessa dualidade, entre o que somos e o que gostaríamos de ser. Orgulhosos de nossa exuberância e sensualidade, começamos por nos extasiar diante do barroco colonial. Quase nunca lembramos que essas igrejas douradas eram construídas por milhões de pretos escravizados, vítimas do mais torpe, corrupto e selvagem regime social de que se tem notícia no continente. E depois, pela cor de sua pele e por sua condição social, nem permissão tinham para entrar nos templos que haviam construído.

Foi com esse “barroco espiritual” que nascemos para o resto do mundo ocidental, com nossa fama solar às vezes contestada, mas sempre defendida por alguma versão oficial. Se Gregório de Matos e Antônio Vieira nos remetiam à miséria e à podridão, ao inferno social e moral que encontravam aqui, o padre Simão de Vasconcellos foi levado ao tribunal da inquisição por afirmar que o paraíso terrestre se encontrava no Brasil.

Talvez seja o caso de levantar a hipótese de que essa originalidade nunca tenha se manifestado pra valer em nossa história social, mas ela pode ser o mais belo, profundo e secreto projeto inconsciente do povo deste país. Um projeto de invisíveis, sempre inviabilizado pelo Brasil dos infernos, às vezes detectado por mestres mediúnicos. Como Pelé. Afinal de contas, o mistério do galo não está na ilusão de que ele seja capaz de fazer nascer o sol, mas em que seu canto anuncia a existência do sol, mesmo ainda por nascer.

Nem todos os brasileiros são ou serão Pelé. Mas basta que os tenhamos em número suficiente para evitar que nossos pobres ministros ignorantes discursem, para seus jovens diplomatas, contra João Cabral de Melo Neto, um dos maiores poetas da língua portuguesa. Que a vacina chinesa, como tudo mais inventado por lá, papel, pólvora, macarrão, bússola etc., seja condenada como imprestável por ter nascido na China. Que um manda, o outro obedece, e pronto. Para evitar, enfim, que Pelé seja apenas um retrato nostálgico na parede, mas que ele seja um exemplo poderoso do que o Brasil um dia ainda será. Love, love, love.


Cacá Diegues: O projeto das redes

A questão é revelar o lado sombrio dessa nova conquista, para que possamos tomar providências e evitá-lo

Para cinéfilos e cineastas que implicam com o streaming, como uma forma contemporânea de ver um filme, lembro que é bem possível que, não existindo essa plataforma, não tivéssemos como ver títulos que estão arrasando no gosto do pessoal durante a pandemia. Estamos vendo, no streaming, filmes realizados por diretores consagrados, como “Roma”, “Destacamento Blood” ou “O irlandês”, mas também e sobretudo filmes que, de outro modo, talvez jamais víssemos. Como “Lindinhas” ou “O dilema das redes”, alguns dos mais comentados, citados e criticados (que produzem análises) na temporada.

“Lindinhas” (Mignonnes), filme francês dirigido pela estreante Maïmouna Doucouré, trata de adolescentes, em geral de famílias imigrantes, que vivem em subúrbios parisienses, correspondentes às nossas periferias urbanas miseráveis e marginais. Como a Netflix se recusa a fornecer os números de sua programação, ficaremos sem saber quantas pessoas já viram esse filme. Mas, por sua repercussão escrita e falada, podemos considerá-lo um dos grandes sucessos do cinema francês contemporâneo. Não é de hoje que a imigração africana e árabe, na França, tem sido tema de filmes locais de grande qualidade. Agora são os próprios imigrantes, e sobretudo seus filhos, já nascidos no país, que tomam a câmera para contar suas histórias, como em “Lindinhas”.

Fico pensando em quando o cinema brasileiro de moradores de favelas estiver consolidado, quantas descobertas temáticas e de talentos terão sido feitas. Esse tipo de produção, no Brasil, não tem se desenvolvido à altura da qualidade de quem a pratica, pelo simples motivo de que faltam recursos para fazê-lo e estruturas que garantam o curso da vida dos filmes.

É claro que, nesse caso, o principal responsável por tais recursos e estruturas deve ser o Estado. Mas nosso governo não está nem um pouco interessado em ajudar a alavancar o cinema brasileiro já consagrado, imagine aquele que tem que ser descoberto e revelado. Dez anos atrás, num esforço de caráter privado, realizadores que hoje trabalham regularmente em cinema e televisão, como Luciano Vidigal, Fernando Barcellos, Luciana Bezerra, Gustavo Melo, Rodrigo Felha, Manaira Carneiro, Cadu Barcelos e outros foram revelados por “5XFavela, agora por nós mesmos”, projeto construído pelos próprios cineastas moradores de favelas. É inacreditável que nunca mais a experiência tenha se repetido.

Outro filme bombando no streaming é “O dilema das redes” (“The social dilemma”), documentário americano de Jeff Orlowski, lançado pela Netflix no início de setembro e até hoje batendo recordes de acesso e visibilidade. Fruto do esforço de jovens gênios e gênias da cultura digital, dando entrevistas e palpites sobre o tema e o sentido do filme, esse documentário nos põe diante da maravilha tecnológica das redes sociais e dos danos que elas têm causado à sociedade, seja no controle do consumo, seja na condução de políticas nacionais.

A mais espantosa constatação de “O dilema das redes” é que o bem-sucedido apelo obsessivo de uma rede social não é nunca um efeito colateral, mas o próprio projeto e propósito de sua criação. Não é à toa, lembra um dos técnicos no filme, que “as duas únicas indústrias que chamam seus clientes de usuários (users) são a de drogas e a de software”. Entrevistando ex-funcionários do Facebook, Google, Twitter e Instagram, Orlowski nos faz imaginar, pelo que dizem os que estão arrependidos do inferno que criaram, o que devem estar pensando e planejando os que persistem na invasão de nossas mentes, produzida por pequenas e grandes redes sociais.

Não se trata de combater a importância das redes, seu potencial papel de encontro solidário de informação e conhecimento entre seres humanos, de um modo rápido e imediato, um modo mais eficiente. Trata-se de revelar o lado sombrio dessa nova conquista, para que possamos tomar providências e evitá-lo. “O dilema das redes” me faz pensar também no incrível documento de denúncia, escrito por Sophie Zhang, ex-funcionária do Facebook, que ela chamou de “Tenho sangue em minhas mãos”. Mas essa já é outra história.


Cacá Diegues: Compromissos fraternos

Governo precisa criar programas para que a população tenha empregos para sair da invisibilidade

Meu bom e velho amigo Joca nos convidou para passar um fim de semana em sua casa, no meio do mato. Como eu e Renata somos agora só nós dois, e o netinho lindo, de 1 ano e meio, que podia nos ocupar um pouco, mal vemos (a mãe tem um medo que se pela do coronavírus), foi fácil aceitar o convite do Joca.

Joca mora numa borda da Mata Atlântica, de onde se podem ver tucanos, estranhas borboletas, maracanãs e maritacas, pequenas fauna e flora que parecem estar sempre renascendo. Podem-se observar macaquinhos, parece que pregos, bravos remanescentes da Mata Atlântica, planejando invadir a casa, em busca de alimento mais fácil. Aposto que, se os outros animais do planeta tivessem as mesmas virtudes de organização que temos, praticariam sem dúvida a mesma política de extermínio que praticamos, eliminando o que incomoda e atrapalha nossos planos materiais. Escrevemos lindos poemas diante do vasto oceano, mas não abrimos mão da peixada com frutos do mar, no almoço do Joca.

O melhor amigo da onça não pode ser um leão. O jacaré pode até se aproximar do papagaio, mas será sempre por disfarçado projeto de devorá-lo. Que eu saiba, nenhum animal possui animal de estimação, como temos cães ou gatos que criamos e cuidamos. Podemos ter, mesmo preso na gaiola, um rouxinol de estimação. Mas, se um gato tentar experiência parecida, terminará comendo o passarinho. Os bichos andam sempre em grupos homogêneos, sem a participação indesejável dos diferentes em seus passeios e programas.

Foi o ser humano que inventou a solidariedade, como reconhecimento e proteção do outro. Em certos casos, até já avançamos moralmente mais um pouco, reinventando o elogio da mistura, como consciência de que somos um só em nossas diferenças.

Inventamos a solidariedade e somente nós a praticamos sobre a face da Terra. Se não a praticássemos, a natureza se reduziria a uma constante guerra entre todos, pelo melhor abrigo e alimento, pela melhor companhia. E Joca completou, de passagem por ali: “Estaríamos condenados à guerra sem fim, à qual direita e esquerda convencionais já nos querem condenar como inevitável”. Por que temos que nos submeter ao mal natural, se podemos inventar outro mundo, a partir de um pensamento solidário?

O governo criou auxílio emergencial para as verdadeiras vítimas da crise sanitária. Uma colaboração sem princípios, mas bem-vinda, para milhões de “invisíveis” que perderam ou já não tinham renda, que sempre morrem de fome independentemente do momento social que o país vive. “Invisíveis” são os brasileiros que andam em desespero por periferias e favelas, mas nem tomamos conhecimento de que existem. Não saberemos nunca quantos são; mas, apesar de sua distribuição imperfeita, o auxílio emergencial os alcançou, e mais de 15 milhões deixaram a linha de pobreza e fizeram a classe C, a classe média baixa, chegar a 63% da população brasileira. Com R$ 600 por pessoa, o governo conseguiu um feito que melhorou a imagem do presidente e sua expectativa para as eleições de 2022. Saiu até barato.

Não sabemos, e o governo ainda não nos contou, o que acontecerá em seguida. Ninguém pode ser contra atitudes assistencialistas necessárias, como a Renda Cidadã deste governo e o Bolsa Família, criado e alimentado por governos do PT. São um socorro a quem precisa e não tem de onde tirar. Mas o governo, qualquer governo, precisa criar programas para que a população tenha uma oferta de empregos para sair da invisibilidade e não precisar mais se angustiar com esmolas de emergência.

Isso pode ser conseguido por meio de estímulos a investimentos privados, que gerarão mais progresso e mais empregos. Ou do próprio Estado, na criação de novas empresas públicas, conforme as necessidades do país. Diante da segunda hipótese, Joca, que era um craque “científico” na época da faculdade, riu de mim e me chamou de “keynesiano tardio”, tenho a impressão que uma forma elegante de considerar abjeta essa hipótese. Não acho, mas deixa pra lá.

Como diz a nova e bela encíclica do Papa Francisco, “sejamos capazes de reagir com um novo compromisso de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras”. Sobretudo porque precisamos estar bem vivos e cada vez mais juntos, para ajudar na eleição de nossos sonhos, em 2022. A do youtuber Felipe Neto.


Cacá Diegues: Um bom candidato

Tomara que Felipe Neto consiga influenciar os brasileiros

A revista “Time” elegeu Felipe Neto como uma das cem pessoas mais influentes do mundo. Tomara que eles tenham razão. Tomara que o jovem youtuber, com seus quase 40 milhões de seguidores, consiga influenciar os brasileiros com suas críticas ao populismo de direita no poder e à oposição em que “há somente o interesse pelo protagonismo”. Exemplos históricos nos mostram que só se vence um regime autoritário popular com sensata, tolerante e ampla frente política. Uma frente difícil de montar entre nós, graças ao estrelismo de líderes da oposição, que ainda vivem sob preconceitos, com a cabeça noutros tempos.

Fiel leitor das seções de cartas nos jornais que leio, encontrei outro dia essa preciosa mensagem de Nila Maria do Carmo Siqueira, no GLOBO: “Caetano Veloso só queria liberdade para cantar. Gerson King Combo, cantor de soul e funk, só queria liberdade para dançar. E por isso foram alvos da ditadura militar. Em pleno século XXI, só queremos liberdade para pensar. Quem nos perseguirá?”.

Como Nila, Carol Solberg, craque do nosso vôlei, bicampeã mundial, campeã brasileira de 2018 e eleita a melhor jogadora daquela temporada, resolveu desabafar publicamente e, em Saquarema, durante etapa do circuito, gritou o que pensava: “Fora Bolsonaro!”. Foi, por isso, denunciada ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva, pelo puxa-saquismo da Confederação Brasileira de Voleibol, que não se importou quando os jogadores Wallace e Maurício, às vésperas da eleição de 2018, apoiaram Bolsonaro em pleno Campeonato Mundial. E era mesmo um direito deles, não sei onde está escrito que esportista não se manifesta.

A sinceridade de Carol está sendo castigada por ameaça de suspensão e multa de R$ 100 mil, sob o pretexto de que seu grito em quadra pôs em risco o patrocínio do Banco do Brasil ao vôlei. Com que percentagem desse patrocínio os cartolas que se irritaram com Carol se remuneram? Que tal se esses senhores assistissem na televisão a um jogo da NBA, quando os jogadores americanos de basquete se ajoelham na quadra, em protesto contra o racismo, muitas vezes estimulado por seus próprios dirigentes? E não se trata apenas de uma voz corajosa e solitária como a de Carol, mas de uma multidão de vozes de profissionais de uma atividade. Não sei se nossos esportistas chegarão, um dia, a esse nível de solidariedade. Mas é talvez por isso que, na ausência dela, o populismo de direita ganha eleição democrática.

Por isso e porque sabe mentir. Como mente comumente, graças à internet sem lei, às redes sociais em que faz propaganda política e eleitoral sem escrúpulos e sem respeito à verdade. No redemoinho de ódios que se tornou a sociedade brasileira, as redes sociais são o lodo em que ele se forma com violência e sem medidas.

Foi num desses fenômenos arbitrários de opinião que anônimos fizeram recentemente uma celebração inquisitorial, queimando livros de Paulo Coelho. Uma celebração tão ignorante que o “sacerdote” do ritual maldizia Paulo Freire como autor, enquanto queimava “O Alquimista”. Sou leitor de Paulo Coelho, acho que li todos os livros dele. Mas, mesmo que não o admirasse, como se pode curtir, admitir ou participar de uma missa negra como essa, uma celebração da burrice e da ignorância, adesão explícita ao autoritarismo cultural. Uma violência aos costumes de um país que se deseja democrático.

Quando uma pessoa esbarra com um momento difícil em sua vida, é natural que procure novas explicações para eventos novos. Ela pode procurá-las com um analista profissional, que vai fazê-la entender o que se passa. Ou pode cair de boca nos acontecimentos, triturá-los em nome da felicidade perdida. Na política não pode ser assim. Não podemos entregar a esperança da democracia nas mãos de um “analista profissional”, um ditador de hábitos e costumes; como também não temos por que nos oferecer, em sacrifício suicida, ao destempero da sociedade em que vivemos. O mais saudável é ouvirmos quem sofre como nós sofremos e pensa como nós pensamos, mas não está prejudicado por velhos métodos e astúcias manjadas. Alguém que será capaz de agir como agiríamos, se ainda tivéssemos o mesmo entusiasmo.

Um cara como Felipe Neto, um bom candidato para 2022.


Cacá Diegues: Vamos cantar até o fim

Outros horizontes surgem diante de nós, com conceitos menos culpados de liberdade

A visão e revisão, na televisão, do espetáculo dirigido por Bárbara Paz, com Lirinha, músico e poeta pernambucano, me levou, por oposição, a algumas ideias sobre a cultura popular cultivada no Brasil, em meados do século passado. Não vou voltar ao rico espetáculo, sobre o qual escrevi na semana passada. Mas ele representou, para mim, alguma coisa que, partindo daquela tradição de mais de 60 anos, nos envia a novos horizontes de uma cultura nacional.

Para os que não sabem ou não se lembram, a cultura popular da segunda metade do século XX se tornou um estilo de criação, como tinha sido o Modernismo, anos antes. Mais que isso, ela foi tratada, por nossos mais finos intelectuais, como instrumento de conhecimento e transformação do país, nos revelando o que não sabíamos sobre nosso povo e servindo de rumo para o que seríamos com o fim à vista do subdesenvolvimento social e econômico. Inventores da poesia neoconcreta se tornavam cordelistas, músicos de vanguarda compunham hinos de mobilização política, gênios do teatro de costumes se dedicavam a esquetes de shows sindicais.

A cultura popular foi, no Brasil daquela geração, o que seria a contracultura nos países do Primeiro Mundo, uma revolução cultural sincronizada ao que acontecia em nossa política partidária e ideológica. Uma troca de Marcuse por Gramsci. O que chamávamos de cultura popular adquiriu tal força de expressão entre nós que se tornou a representação mais generosa do que era e do que pretendia ser o país. Ela não só representava com pertinência o que se passava, como ainda se tornava fundadora de novos costumes capazes de nos organizar como nação.

É claro que, do bolero ao forró, da bossa nova ao tropicalismo, a canção popular exerceu um papel de destaque e, às vezes, de liderança no desenrolar dessa história. Mas a chama da cultura popular pegou fogo nos mais variados formatos e plataformas, das artes plásticas ao cinema, da arquitetura ao teatro, da ficção à poesia. Passando sobretudo pela recuperação de tradições esquecidas, do folhetim e do rádio, das caravanas circenses e do teatro de revista, das quais nós não nos lembrávamos que amávamos tanto e que foram reordenadas pela então recente televisão. Mesmo que houvesse eventuais conflitos entre essas manifestações, cada uma delas se julgava o cerne fértil da sociedade brasileira daquele momento, a origem de uma nova nação.
De tal modo essa ideia de cultura popular radical e construtiva se instalou entre nós, que os sucessivos fracassos políticos, econômicos e sociais de nossos governos passaram quase despercebidos, voluntária ou magicamente disfarçados pelo que era, para os criadores e seu público, o Brasil de verdade. Só recentemente nos demos conta da mediocridade do conjunto de homens públicos, de direita ou de esquerda, que temos merecido, dos enganos a que eles nos levaram em nome de ideias que não se traduziram, na prática, em bem-estar, justiça e progresso permanentes para todos.

A cultura popular acabava sendo o lugar de nossas queixas pelo fracasso de nossos projetos. Navegantes embarcados em canoas sem rumo, alimentando a pretensão de uma relevância que não tínhamos, não percebíamos a distância entre povo e nação. Do horror da ditadura militar, passamos a uma democratização de circunstâncias e compromissos, até chegar à tragédia que vivemos hoje. A tragédia de um país sendo destruído pelo fascismo, para o qual a cultura é inimiga prioritária, porque ela é movimento e aponta direções.

Não digo que isso esteja mudando ou que vá necessariamente mudar, que encontramos enfim o caminho que a bússola política descompensada do passado não nos permitia encontrar. Mas outros horizontes surgem diante de nós, com conceitos menos culpados de liberdade, uma fé maior em nossas ilusões pessoais, a certeza de que somos responsáveis por todos mas não necessariamente por ninguém, que, parodiando Baudrillard, somos produto do desejo e da necessidade. A diferença é que, no passado do século passado, queríamos, sem saber que queríamos, que o conjunto de nossas obras substituísse a nação. E hoje sabemos que cada um de nós é uma nação.


Cacá Diegues: Afinação de novas liras

Não se pode ignorar o espetáculo na TV de Lirinha, músico pernambucano, filmado pela atriz Bárbara Paz

Houve um momento, na segunda metade do século passado, em que a cultura popular brasileira adquiriu tal força de expressão que se tornou a representação mais generosa do que era e do que podia ser o país. Ela não só representava com brilho e pertinência o que aqui se passava, como também se tornou fundadora de novos costumes capazes de nos organizar como nação. A chama incendiou os mais variados formatos de criação, da música ao cinema, das artes plásticas ao teatro, da poesia à ficção, passando pela recuperação de tradições esquecidas que foram reordenadas pela televisão com enorme sucesso. Cada uma dessas manifestações se julgava, naquele momento, o útero de uma nova nação.

De tal modo essa ideia se instalou vitoriosa entre nós, que os sucessivos fracassos políticos, econômicos e sociais dos governos de direita ou de esquerda passavam despercebidos, encobertos pelo que era, para intelectuais e artistas criadores, o “verdadeiro Brasil”. Só muito recentemente nos demos conta dos enganos que os políticos nos fizeram abraçar, em nome de conceitos que não se traduziam, na prática, em bem-estar, justiça e progresso para todos. Éramos prisioneiros da distância ilusionista entre povo e nação.

Não digo que isso esteja mudando. Digo apenas que outro horizonte se forma aos poucos diante de nós, apesar da oposição do governo às manifestações de uma oposição ao governo.
Não se pode ignorar o recente espetáculo na televisão de Lirinha, músico pernambucano, filmado pela atriz e realizadora paulistana Bárbara Paz, na Casa de Francisca, em São Paulo, idealizada por Rubens Amatto, também criador do projeto de “cine lives” (cinema ao vivo, segundo Amatto). O espetáculo contou ainda com a curadoria cinematográfica de Laís Bodanzky e a direção de fotografia de Thais Taverna.

Com o título de “Até o fim, cantar”, Lirinha montou um dos mais belos e intensos espetáculos que se viram ultimamente por aqui. “Perseguido” pela câmera orgânica de Bárbara Paz, vestido numa batina que lhe sobra no corpo, como se um santo e folgado cardeal passeasse pelo carnaval, Lirinha mistura canções, textos e gestos teatrais para nos falar do que sente e pressente, sabendo o que aquilo tudo tem a ver conosco, os que assistimos ao show.

Conheci Lirinha quando ele ainda era a voz do Cordel do Fogo Encantado, banda de Arcoverde, portal do sertão pernambucano. Criei uma cena para eles e chamei-os para uma participação especial em “Deus é brasileiro”, filme que eu então rodava no Nordeste. Lirinha musicou um monólogo de Antonio Fagundes, de modo tão belo, preciso e sucinto que, durante a edição do filme, pensei várias vezes em cortar fora a maravilhosa atuação de Fagundes. Só não o fiz porque Deus ficaria sem voz na cena.

Agora, reencontro Lirinha em forma, maduro e consequente, um sorriso no canto dos lábios quando nos diz, logo de cara: “A nossa sorte é ter coragem”. E ir em frente, acompanhado por pequena banda que vai de pífano nordestino a programação eletrônica. É emocionante vê-lo, no meio desse aparato tão simples e sofisticado, dizer que o lugar onde nasceu é “um rasgo na paisagem”. Tudo isso no ritmo do Brasil de hoje, um país dividido em tanta desigualdade, de todo gênero e natureza. A diferença é que, no passado do século passado, nós queríamos, sem saber que queríamos, que o conjunto de nossas obras substituísse a nação. Hoje, é apenas o mais profundo de um ser humano que nos revela, com tanta densidade, o que vê diante e dentro dele.

Mesmo sentimento que nos provoca um filme como “Breve miragem de sol”, realizado por Eryk Rocha, um de nossos mais brilhantes novos cineastas. Este é um filme sobre dois personagens, bem integrados: um motorista de táxi (empenhado em encontrar o filho pequeno de quem vive separado) e a cidade (por onde ele roda, como quase todos nós, sem destino próprio). Duas imensas e permanentes solidões, uma delas genialmente interpretada por Fabricio Boliveira. Eryk Rocha, surpreendido pela pandemia, não vacilou em perceber o que mudara e, em vez de chorar no vazio e reclamar de sombras, lançou seu filme em nova plataforma, abrindo mão de esperar o convencional garantido. “Breve miragem de sol” estreou há poucos dias no streaming da Globoplay e faz ali um grande e merecido sucesso. Alguma coisa acontece.


Cacá Diegues: Depois da pandemia

Com as novas, claras e imensas telas de TV, teremos menos vontade de sair de casa para ver um filme

A cada dia, recebemos melhores notícias sobre a queda no número de vítimas da Covid-19. Mesmo que a vacina ainda demore, estamos aprendendo a lidar com os meios de controle parcial da pandemia. Com algum sucesso, tentamos descobrir modos de sobreviver ao vírus, sem nos deixarmos imobilizar pelo terror que sua existência nos provoca. As conversas privadas e os debates públicos sobre como seremos, nós e o mundo, depois da pandemia se multiplicam e são um sinal saudável de que o pânico passou, com o pessimismo que poderia nos paralisar. Agora sabemos que o mundo não vai acabar, embora se torne outra coisa. E discutimos planos para seu futuro, em cada uma de nossas atividades.

Embora novinho, inventado há apenas 125 anos, o cinema é o velho patriarca, o avozinho da família do audiovisual que inaugurou no final do século XIX. O mundo virtual, assim como qualquer outra novidade no gênero, tem sido um resultado do que ele começou em dezembro de 1895. Do som à cor, da televisão ao streaming, tudo o que, nesse universo, apareceu depois da invenção do cinema foi gerado por ele ou é uma consequência do que ele foi.

Não compreendo as críticas radicais, quase histéricas, de gente como Martin Scorsese ao streaming. Não compreendo por que um grande cineasta, com quem tantos jovens aprenderam tanto, se posiciona contra o desenvolvimento de sua atividade. Lembra os intelectuais reacionários que, em 1927, se negaram a assistir a “O cantor de jazz”, como uma manifestação contra o som no cinema.

A mesma tradição que lamentou a cor (um disfarce da realidade, criado para nos esconder o mundo real) e amaldiçoou a tela larga (os mais espirituosos diziam que o Cinemascope só servia para filmar procissão religiosa e desfile militar). O streaming é uma multiplicação de resultados obtidos pelo cinema, seja na criação, seja na difusão, num formato doméstico que pode vir a ser o destino social do ser humano. O que ficou claro durante a crise mundial provocada pela pandemia.

O coronavírus jogou o ser humano nos braços de dois estados de espírito morais que andavam esquecidos ou abandonados: a solidão e a solidariedade. É possível que nunca mais voltemos a ser a humanidade tensa destes últimos tempos, em busca de resultados imediatos por meio de disputas acirradas, sem ordem de sentimentos ou princípios comuns. Uma humanidade que nunca esteve satisfeita porque, por falta de consistência e significância, nada lhe era suficiente. A pandemia nos revelou um mundo em que somos obrigados a nos organizar sozinhos, sabendo entretanto que, sem o outro, nunca seremos nada. Solidão e solidariedade são, por acaso, as circunstâncias humanas originais do espectador de cinema.

Não sei prever se a sala de cinema vai desaparecer, em razão do crescimento do streaming ou do que for. Mas é claro que, com as novas, claras e imensas telas de nossos receptores de TV, teremos menos vontade de sair de casa para ver um filme na rua cheia de atropelos. Imagino, mas não sei dizer com total clareza, como essa economia se organizaria, porque é sempre muito difícil prever tendências que não são exatas. Ainda não sabemos nem como a pandemia há de terminar, com que costumes novos, quais e quantos serão os mortos e suas qualidades. Ninguém é capaz de controlar tais cifras.

Sempre pensei o cinema como a mais clara e bela expressão de uma cultura, de um povo, de um país. Por intermédio dele, descobrimos o que somos e o que queremos ser. Mas o cinema não é uma necessidade primária, sem a qual não se pode viver. Ele se estrutura a partir de circunstâncias aleatórias, em que o fator principal será sempre o gosto de seus frequentadores. Entendendo por gosto a soma de elementos que vão da emoção ao conhecimento, do saber ao sentir etc. Não ouso prever esse gosto, nem mesmo no curtíssimo prazo.

Quando o cinema surgiu como espetáculo popular, se pensou que os teatros fechariam. E, quando a televisão tomou conta de nosso tempo de lazer, se dizia que o cinema tinha acabado. Não aconteceu nem uma coisa, nem outra. O novo não é necessariamente o fim do que havia antes; ele pode ser também uma consequência ou uma recuperação do que precisava mudar no que havia antes.


Cacá Diegues: A política de guerra

Vou tratar de virar fã de Felipe Neto

Se a esquerda faz política demais, a direita por sua vez não sabe fazer política, não faz política nenhuma. Mas se ilude quem pensa que nosso presidente de direita, Jair Bolsonaro, se elegeu sem um programa claro, por puro prazer da aventura política contra a política, a antipolítica que ele tanto anunciou. Ele e sua turma nunca se interessaram pela política como modo de levar a sociedade em direção a uma agenda que corrigisse o passado e organizasse o futuro, não se prepararam para isso. Eles se prepararam para uma guerra e só pensam nela.

Uma guerra que só ainda não foi escancarada, fazendo mais vítimas e provocando mais tiroteios aleatórios e insanos, por causa da pandemia, por causa de um pequeno animalzinho, um quase nada, o vírus assassino que não permitiu que o bando de Bolsonaro assumisse o papel central de seu tempo. A guerra que programaram e pretendiam praticar é humanamente menor do que a calamidade pública provocada pela Covid-19.

Quem não se lembra das ameaças guerreiras feitas pouco antes de se tornar trágica a presença do vírus por aqui? Um dia, na televisão, Bolsonaro nos garantiu que tinha vencido a eleição de 2018 no primeiro turno e que, portanto, tinha sido roubado. O presidente afirmou que tinha provas disso e que ia mostrá-las à nação. Faz mais de oito meses que esse show passou na televisão… e cadê as provas? Quantas vezes ouvimos dele, de seus filhos e dos ministros mais queridos e alinhados, que haveria muito em breve uma ruptura inevitável, que não dava mais para suportar as perseguições dos outros Poderes ao Executivo? Quantas vezes ouvimos, desde há bastante tempo, expressões como “agora chega” ou “acabou” ou “não dá mais” ou coisa que o valha? Faz tempo que essas expressões de radicalidade começaram a ser usadas e, até agora, a guerra não passou de fuxico.

O Brasil tem hoje perto de cem mil vítimas fatais do coronavírus e mais de dois milhões e meio de infectados lutando contra a morte, fora os que não morreram mas se tornaram de alguma forma deficientes. Vemos todo dia, nos jornais, na televisão e nas redes sociais, as famílias feridas dessas vítimas, capazes de comover o mais endurecido dos corações. Menos os da turma dos Bolsonaros. Para eles, é tudo um exagero da “extrema imprensa”, o possível quase milhão de familiares enlutados tinham mais é que se conformar, pois todo mundo um dia morre. E daí?

Enquanto as vítimas e seus familiares têm a generosidade de pedir à população que não saia de casa, para que não morram mais brasileiros inutilmente, o presidente do Brasil, o principal responsável em última instância pelos cidadãos do país, manda invadir os hospitais para fotografar leitos vazios, a fim de provar que é tudo um exagero contra não sei quem. Aí o consórcio de imprensa, montado a partir das informações das secretarias de Saúde de cada estado, com a finalidade de neutralizar as mentiras que estavam sendo supostamente armadas pelo Ministério da Saúde para subestimar os números da crise e aliviar a responsabilidade do governo, impacta a nação com os verdadeiros números da tragédia.

Enquanto as famílias e os solidários a elas choram as vítimas da Covid-19, o presidente da República sorri feliz e sem máscara, abraçado a uma aglomeração no interior da Bahia, em cima de uma mula manca, fantasiado de caubói sertanejo, com um chapéu de falso couro de jagunço, inaugurando um bebedouro ornamental e vagabundo, mandado construir por outra responsável pela miséria do Brasil, Dilma Rousseff, numa região em que o povo morre, de verdade, de fome e de sede.

No meio da representação de sua farsa, Bolsonaro se explica, como um demônio sem compaixão, dizendo que está mesmo interessado é em salvar a economia do país, que está se dedicando a isso, certamente mais importante que os mortos inevitáveis. Pois bem, segundo o próprio IBGE, já foram fechadas, vítimas da pandemia, 522 mil empresas no Brasil. O que é que o governo fez por cada uma delas?

Bolsonaro não tem tempo de cuidar da economia dessas empresas porque seu pessoal está ocupado com a guerra. A meta bélica agora é acabar, a qualquer preço, com Felipe Neto, um jovem youtuber que, talvez sem se dar conta, também se preparou para ela e aprendeu a usar as redes sociais, alcançando mais de 60 milhões de seguidores. Para o bem do governo, Felipe Neto tem que ser destruído e está sendo perseguido com clássicas fake news imorais e incômodos pessoais, como o cerco no condomínio onde mora.

As mentiras hediondas, munição de uma guerra estúpida, estão fazendo de Felipe Neto um herói da resistência aos males que já foram e ainda serão feitos ao Brasil. Nunca tive a oportunidade de ver o influencer na internet, mas vou vê-lo logo e tratar de ser seu fã.


Cacá Diegues: Pensar com liberdade

Radicalização serve às ações que populistas autoritários desejam consagrar

Desde junho de 2016, encontra-se paralisado, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, um projeto de lei, do já então deputado Eduardo Bolsonaro, que pretende tornar crime o elogio, a pregação, a apologia das ideias do comunismo e do regime delas decorrente. A pena prevista pode chegar a 30 anos de prisão, conforme a gravidade do delito.

No documento que justifica o projeto, o deputado tenta justificar também os crimes de tortura praticados durante a ditadura no Brasil, de 1964 a 1985, considerando que o terrorismo político havia antecedido à tortura, como se esta fosse uma justa e bastante resposta àquele. “O Estado brasileiro teve de usar seus recursos para fazer frente a grupos que não admitiam a ordem vigente”, diz o documento.

Além das ideias comunistas, o projeto também considera crime “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que usem a foice e o martelo ou quaisquer outros meios para fins de divulgação favorável ao comunismo”. Num esforço de isenção, o documento considera igualmente criminosas as ideias e a propaganda nazistas.

Não sei dizer se o projeto de Eduardo é anterior ou posterior àquele da “pílula do câncer”, o projeto de seu pai, então também deputado, pedindo o reconhecimento dos milagrosos efeitos do tal comprimido contra a doença fatal. Este foi um dos três únicos projetos de lei apresentados por Jair Messias, durante seus 28 anos de estrela do chamado baixo clero, titulares muito especiais de nossa Câmara Federal. Mas sendo ou não simultâneos, os dois formam uma indiscutível dupla do barulho legislativa.

São projetos que bem podiam ter sido pensados e promovidos pelo líder deles todos, o presidente americano Donald Trump, incentivador e avalista dos passos mais significativos do populismo autoritário que o mundo vem desenvolvendo nesses últimos tempos, na diluição das democracias convertidas em espetáculos grotescos de piadas e notícias falsas, em redes sociais. É preciso criminalizar as iniciativas ideológicas que se opõem ao sistema, não deixar que elas se manifestem à vontade, com normalidade.

Esse momento de radicalização das ideologias serve às ações que esses populistas autoritários desejam consagrar. Não se trata apenas de uma estratégia simplista de cobrar a radicalização das ideias; mas, disfarçado por trás dessa máscara, do esforço de evitar todo o debate de referência política, ética e cultural, um modo de evitar o confronto de ideias proibindo-as simplesmente.

Acusar todo progressista de comunista ou todo conservador de fascista, atirar todo discurso de esquerda nos braços do projeto comunista ou todo discurso de direita nos do fascista é eliminar as possibilidades que se encontram ao longo da distância entre um e outro. A humanidade levou séculos pensando alternativas a modos de viver, rompendo com as hierarquias produzidas, ao longo desse tempo, em ações e ideias que a faziam progredir apesar de tudo. Não é possível, nem seria justo, eliminarmos tudo o que se encontra entre os dois extremos, eliminarmos as nuances, as combinações, os erros que teremos que cometer para o nosso bem. E, talvez, para o bem de todos.

Se o fascismo é um exercício de poder discricionário sobre o outro, não vi recentemente nada mais fascista, em nosso ambiente social, do que aquilo que o desembargador Eduardo de Siqueira fez com Cícero Hilário, o corretíssimo guarda municipal de Santos. As consequências são menos graves do que as do Holocausto ou as das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki. Mas a democracia abriu um espaço para tornar mais grave, para nós, aquilo que nos acontece num momento especial. Tornou-se talvez impossível evitar um sentimento de prioridade ao que nos sucede.

Há cerca de um mês, Ascânio Seleme nos contou uma história sobre Muhammad Ali que eu, seu velho fã, não conhecia. Em junho de 1967, quando Ali, convocado para lutar no Vietnã, recusou-se a integrar as Forças Armadas americanas, 11 dos mais renomados desportistas negros dos EUA se reuniram com ele para demovê-lo dessa decisão. O chamado “Ali Summit” durou quatro horas e, ao seu final, os 11 atletas saíram apoiando o boxeador. Quem estava com a verdade? Ou: como estabelecer a verdade?

Durante a nossa ditadura, como escreveu José Casado, o governo militar “ajustava o câmbio, arrochava salários, reprimia protestos e as empresas lucravam”. Se havia ganhos concretos, acionistas e dirigentes multinacionais estavam pouco se importando com o que acontecia no Brasil, não era da conta deles. Nos EUA, uma lei, no fim dos anos 1980, ressarciu moradores japoneses, vítimas de discriminação civil durante a Segunda Guerra Mundial. Mas os ex-escravizados, em muito maior número, sofrendo durante muito mais tempo, nunca foram recompensados com nada. Os diversos julgamentos serão sempre relativos e nunca decisivos. Se os aprisionarmos em correntes de qualquer espécie, nos enganaremos sempre.