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Cristina Serra: A ultradireita se prepara para 2022

Mudanças nas estruturas das polícias preparam terreno para radicalização em 2022

Reportagem de Felipe Frazão em "O Estado de S. Paulo" revelou que tramitam na Câmara dos Deputados projetos para diminuir o poder e o controle dos governadores dos estados e do Distrito Federal sobre as polícias civis e militares.

São várias propostas de mudança na estrutura desses aparatos policiais. Uma delas é a criação da patente de general para os policiais militares, nível hierárquico exclusivo das Forças Armadas. Hoje, os PMs chegam, no máximo, a coronel. Os comandantes-gerais também seriam nomeados a partir de uma lista tríplice formulada pelos oficiais.

Os chefes das duas polícias passariam a ter mandato de dois anos e haveria regras estritas para suas exonerações. O governador só poderia destituir o comandante da PM por motivo "relevante" e "devidamente comprovado". Já o chefe da Civil só perderá o cargo se a dispensa for aprovada pelo Legislativo estadual, "por maioria absoluta" de votos. E as polícias civis seriam ligadas a um certo Conselho Nacional da Polícia Civil, no âmbito do governo federal.

Há uma extensa e perniciosa tradição de rebeliões nas polícias, e nisso elas não diferem da atuação das Forças Armadas no Brasil. Mais recentemente, episódios corroboram a preocupação com o extremismo cada vez maior desses contigentes. Foi o que se viu, por exemplo, em 2017, no Espírito Santo, e quase um ano atrás no motim de policiais militares no Ceará, que terminou com um senador baleado.

As propostas abrem as portas, definitivamente, para a partidarização das forças de segurança e a formação de esquemas de poder paralelos que escapariam totalmente de qualquer forma de controle político-institucional. Se aprovadas, teriam o efeito de um anabolizante nas fileiras policiais, sob a égide escancarada do bolsonarismo. Os partidos progressistas têm que exigir do candidato à presidência da Câmara que apoiam o firme compromisso de conter a agenda da ultradireita. Esses projetos preparam o terreno para a radicalização em 2022.


Folha de S. Paulo: Urna eletrônica tem apoio de 3 em cada 4 brasileiros, mostra Datafolha

Apoio à volta do sistema de papel é maior entre simpatizantes de Bolsonaro, que desacredita modelo atual usado nas eleições

Joelmir Tavares, Folha de S. Paulo

Para 73% dos brasileiros, o sistema de voto em urna eletrônica deve ser mantido no país, de acordo com pesquisa Datafolha realizada de 8 a 10 de dezembro. Na opinião de 23%, o voto em papel, abandonado nos anos 1990, deveria voltar a ser usado, e 4% responderam não saber.

O questionamento a respeito da segurança das urnas se intensificou após a eleição presidencial de 2014 e ganhou maior proporção a partir do pleito de 2018. Sem apresentar provas, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) insinua haver fraudes e coloca o modelo em xeque.

Com a onda de notícias falsas e teorias da conspiração, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) tem realizado campanhas de esclarecimento e reafirmado que o formato e a tecnologia são confiáveis.

A pesquisa do Datafolha ouviu 2.016 brasileiros adultos em todas as regiões e estados do país, por telefone, com ligações para aparelhos celulares (usados por 90% da população). A margem de erro é de dois pontos percentuais.

Do total de entrevistados, 69% disseram que confiam muito ou um pouco no sistema de urnas informatizadas, que passou a ser adotado gradualmente em 1996. Outros 29% responderam que não confiam.

A desconfiança atinge percentuais superiores na faixa de pessoas de 25 a 34 anos. Dentro desse grupo, 26% afirmaram acreditar muito nas urnas (ante 33% na média geral) e 34% declararam não confiar nelas (ante 29% na média).

Essa fatia da população também é a que mais concorda com o retorno ao voto em papel, bandeira que é difundida por Bolsonaro.

A ideia alcança apoio de 26% entre cidadãos de 25 a 34 anos, enquanto a manutenção das urnas digitalizadas é defendida por 69% (os percentuais gerais são, respectivamente, 23% e 73%).

Quando os entrevistados são classificados em relação à renda, os que declaram ganhos de mais de dez salários mínimos tendem a acreditar mais na eleição informatizada, ao passo que os grupos com salários inferiores se inclinam para uma desconfiança maior.3 8

As urnas eletrônicas foram adotadas pela primeira vez em todo o país no ano 2000. O TSE considera que o modelo nacional de votação, contagem e divulgação dos dados é único no mundo.

Rumores sobre a insegurança do processo ganharam impulso na eleição municipal de 2020, com o atraso na divulgação dos resultados de algumas cidades no primeiro turno, em novembro.

A demora motivou a disseminação de mensagens em redes sociais colocando em dúvida a confiabilidade da apuração. Parte delas foi divulgada por políticos que apoiam Bolsonaro, como os deputados federais Bia Kicis (DF), Carla Zambelli (SP) e Filipe Barros (PR), todos do PSL, partido pelo qual o presidente se elegeu.

O TSE atribuiu o problema a uma dificuldade na totalização dos votos em Brasília, mas foi a público informar que a falha não afetava os dados registrados nas urnas nem os números finais.

A organização SaferNet Brasil levou à PGR (Procuradoria-Geral da República) denúncia de uma campanha de desinformação sobre o sistema eletrônico, envolvendo parlamentares e influenciadores digitais.

A PGR afirmou à Folha que o caso está sob análise na assessoria criminal do gabinete do procurador-geral Augusto Aras, mas não forneceu detalhes porque o caso tramita sob sigilo.

Além disso, tentativas de ataques hackers às plataformas do TSE, ocorridas antes do pleito, são alvo de investigação da Polícia Federal. Um suspeito de liderar a ação foi preso em novembro.

O presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, sempre negou que a ofensiva tenha representado risco para a segurança interna. A PF confirmou que o ataque não prejudicou a integridade dos resultados.

Em entrevista à Folha no início de dezembro, Barroso rebateu as suspeitas de vulnerabilidade das urnas e disse que invadi-las é impossível porque elas funcionam sem conexão a uma rede de computadores, como a internet.

"A urna brasileira não é hackeável, se revelou até aqui totalmente segura", afirmou o magistrado.

Uma cartilha produzida pelo TSE para tirar dúvidas menciona a auditoria pedida pelo PSDB após a derrota do candidato da legenda, Aécio Neves, para a presidente reeleita, Dilma Rousseff (PT), em 2014.

Após ter acesso à base de dados, "a conclusão da equipe do partido foi de que o resultado da eleição correspondia fielmente aos resultados apurados", afirma o documento.

Três dias antes do Natal, Bolsonaro voltou a defender a aprovação de uma PEC (proposta de emenda à Constituição) apresentada pela aliada Bia Kicis que prevê a impressão de uma cópia do voto registrado na urna eletrônica para eventual checagem posterior.

"Se a gente não tiver voto impresso, pode esquecer a eleição", respondeu ele a um apoiador que o questionou sobre o pleito de 2022, no qual deve disputar a reeleição.

Já na semana passada Bolsonaro deu informação falsa sobre a eleição na Câmara em nova defesa do voto impresso. Ele disse que as eleições para a presidência da Casa ocorrem no "papelzinho", quando na verdade o processo de escolha é eletrônico desde 2007.

Em vídeo recente no canal no YouTube do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o presidente afirmou que "70% ou mais da população" não confiam no sistema atual. Ele também reiterou apoio à PEC que institui a cópia impressa.

A medida chegou a ser aprovada pelo Congresso em 2015, mas foi declarada inconstitucional pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em setembro de 2020. A corte entendeu que isso colocaria em risco o sigilo e a liberdade do voto, aumentando a insegurança e favorecendo manipulações.

No dia do segundo turno das eleições municipais, de novo sem exibir evidências, Bolsonaro repetiu a afirmação de que as eleições de 2018 foram fraudadas. Ele diz também, sem apresentar nenhuma prova, que venceu aquele pleito ainda no primeiro turno.

Bolsonaro endossou as infundadas alegações de fraude feitas por Donald Trump nas eleições americanas em 2020. O presidente dos Estados Unidos foi malsucedido em ações judiciais que contestavam a vitória de seu oponente, Joe Biden.

A pesquisa do Datafolha mostrou que a descrença no sistema é maior entre aqueles que avaliam positivamente o governo federal e confiam mais no presidente.

A defesa da volta da cédula física, que na média é expressada por 23%, sobe para 32% entre os entrevistados que consideram a gestão de Bolsonaro ótima ou boa. Entre os que avaliam o governo como ruim ou péssimo, o retorno ao papel é apoiado por apenas 13%.

A manutenção do uso das urnas eletrônicas, aprovada por 73% do total de entrevistados, cai para 62% entre as pessoas que declaram sempre confiar no que Bolsonaro fala e chega a 81% entre quem diz nunca confiar nele.

O voto em papel, na avaliação de Barroso, é um anacronismo. "O tempo que tínhamos voto impresso é que tinha muita fraude", afirmou o presidente do TSE.

Já a deputada Carla Zambelli, que faz críticas ao atual sistema informatizado, disse à Folha que "há muita desinformação sobre o que é, realmente, o voto impresso".

Ela afirma que o comprovante previsto na PEC de Kicis ficaria de posse da Justiça Eleitoral para fins de auditoria. "Seria depositado em uma caixa de acrílico, sem contato manual do eleitor. É absolutamente falsa a alegação de que a pessoa poderia levar o comprovante do voto para casa", diz Zambelli.

Na visão da deputada, "implementar soluções tecnológicas para que o eleitor confie no sistema eleitoral deveria ser preocupação de todas as correntes políticas, não apenas de um só lado".

Especializada em privacidade e proteção de dados, a advogada e pesquisadora Maria Cecília Oliveira Gomes diz que a segurança do sistema brasileiro é incontestável. Ela menciona os testes públicos feitos há anos pelo TSE, com hackers convidados para tentar burlar as barreiras.

Para Maria Cecília, que é ligada à FGV e à USP, o movimento para desacreditar as urnas eletrônicas é uma das consequências da "polarização do debate público em relação a várias questões, incluindo os métodos eleitorais".

"Pode ser positivo o fato de as pessoas buscarem se inteirar, entender o mecanismo e como ele funciona. A transparência deve ser total. O problema é que muita gente questiona a confiabilidade baseada meramente em opiniões políticas, e não em fatos", afirma a especialista.

Procurado para esta reportagem, o TSE respondeu que sobre o tema "quem se manifesta é o presidente do tribunal" e lembrou a entrevista recente que ele deu ao jornal.

Questionado, o Planalto encaminhou transcrição de falas de Bolsonaro durante entrevista coletiva no Rio, em 29 de novembro.

Na ocasião, ele disse esperar que em 2022 o país tenha "um sistema seguro, que possa dar garantias ao eleitor que, em quem ele votou, o voto foi efetivamente para aquela pessoa".

Argumentou ainda que, com a alteração, "qualquer um pode pedir a recontagem naquela área. E você vai ter a comprovação do voto eletrônico com o voto no papel. É pedir muito isso?".


O Estado de S. Paulo: Leia as páginas do inquérito dos atos antidemocráticos

Fausto Macedo, Rayssa Motta, Paulo Roberto Netto e Pepita Ortega, O Estado de S. Paulo

O inquérito dos atos antidemocráticos foi aberto em abril a pedido da Procuradoria-Geral da República depois que manifestações defendendo a volta da ditadura militar, intervenção das Forças Armadas e atacando instituições democráticas marcaram as comemorações pelo Dia do Exército em diferentes cidades do País. A realização de atos simultâneos, com carros de som e peças de propaganda ‘profissionais’, nas palavras da Procuradoria, ensejaram a apuração sobre a organização, divulgação e o financiamento desses eventos.

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Além dos protestos físicos, o suposto lucro obtido por blogueiros, influenciadores e youtubers de direita com a transmissão ao vivo dos protestos chamou atenção do Ministério Público Federal (MPF). A suspeita é que parlamentares, empresários e donos de sites bolsonaristas atuem em conjunto em um ‘negócio lucrativo’ de divulgação de manifestações contra a democracia. Entre apoiadores do governo, o inquérito é visto como uma iniciativa para criminalizar a defesa ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e a valores conservadores e de direita.

Trecho do despacho assinado pelo vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, pedindo a abertura do inquérito. Foto: Reprodução

Nos últimos oito meses, os delegados federais Igor Romário de Paula, Denisse Dias Rosas Ribeiro, Fábio Alceu Mertens e Daniel Daher, designados para conduzir as investigações, intimaram mais de 40 pessoas. São empresários declaradamente bolsonaristas, deputados da base de apoio do governo, membros do partido em gestação Aliança pelo Brasil, assessores da presidência, os filhos do presidente Jair Bolsonaro, Eduardo e Carlos, e donos de páginas nas redes sociais idealizadas para defender ideais conservadores.

Os delegados federais também pediram ao senador Ângelo Coronel (PSD-BA), presidente da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News, o compartilhamento de dados sigilosos obtidos pelo grupo de trabalho no Congresso.

Ofício enviado pela delegada Denisse Dias Rosas Ribeiro ao senador Ângelo Coronel para obter documentos reunidos pela CPMI das Fake News. Foto: Reprodução

O ministro Alexandre de Moraes, relator das investigações no Supremo Tribunal Federal (STF), também autorizou a quebra de sigilo de investigados e expediu mandados de prisão temporária contra integrantes do grupo extremista ‘300 do Brasil’ e de busca e apreensão cumpridos em junho na Operação Lume.

Entre relatórios elaborados pela Polícia Federal sobre o avanço das investigações, intimações e termos de depoimentos, mandados de busca e de prisão, despachos da Procuradoria Geral da República e do Supremo Tribunal Federal, os autos da investigação já somam mais de mil páginas.

Veja como foi dividida a investigação:

1) Organizadores e movimentos: pessoas e coletivos conservadores que, segundo o Ministério Público Federal, expressaram apoio ou simpatia a manifestações contra a democracia.

2) Influenciadores e hashtags: rede supostamente articulada para propagar mensagens defendendo uma ruptura institucional, a exemplo dos hashtags #MaiaTemQueCair e #TodoPoderEmanaDoPovo ou de expressões como ‘intervenção militar com Bolsonaro no poder’ e ‘STF inimigo do Brasil’.

Trecho do despacho assinado pelo vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, pedindo a abertura do inquérito. Foto: Reprodução

3) Monetização: influenciadores digitais e donos de páginas e canais favoráveis ao governo que converteriam audiência em dinheiro. Para isso, segundo apontou o Ministério Público Federal, investem na radicalização do discurso.

“Há uma escalada em que mensagens apelativas produzem propagação e dinheiro; e a busca por dinheiro gera a necessidade de renovação de bandeiras com grande apelo e propagação. Com o objetivo de lucrar, estes canais, que alcançam um universo de milhões de pessoas, potencializam ao máximo a retórica da distinção amigo-inimigo, dando impulso, assim, a insurgências que acabam efetivamente se materializando na vida real, e alimentando novamente toda a cadeia de mensagens e obtenção de recursos financeiros”, diz um trecho do documento em que o MPF pediu quebras de sigilo de investigados.

Trecho do despacho assinado pelo vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, pedindo a abertura do inquérito. Foto: Reprodução

4) Conexão com parlamentares: políticos bolsonaristas foram chamados a prestar depoimentos por três razões principais, segundo os autos do processo: 1) manifestações nas redes sociais; 2) ligação com movimentos e influenciadores; 3) contratação de empresas de tecnologia envolvidas na investigação.

Saiba quem já foi ouvido ou intimado:

Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), vereador (leia detalhes do depoimento)

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Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), deputado federal (leia detalhes do depoimento)

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Alê Silva (PSL-MG), deputada federal (leia detalhes do depoimento)

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Aline Sleutjes (PSL-PR), deputada federal

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Alexandre Frota (PSDB-SP), deputado federal (leia detalhes do depoimento)

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Beatriz Kicis (PSL-DF), deputada federal

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Carla Zambelli (PSL-SP), deputada federal

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Caroline de Toni (PSL-SC), deputada federal

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Daniel Silveira (PSL-RJ), deputado federal

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General Girão (PSL-RN), deputado federal (leia detalhes do depoimento)

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Junio do Amaral (PSL-MG), deputado federal

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Paulo Eduardo Martins (PSC-PR), deputado federal

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Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo

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Tércio Arnaud Tomaz, assessor especial da Presidência da República (leia detalhes do depoimento)

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José Matheus Sales Gomes, assessor especial da Presidência da República

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Mauro Cesar Barbosa Cid, assessor especial da Presidência da República

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Mateus Matos Diniz, assessor especial da Presidência da República

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Carlos Eduardo Guimarães, assessor do deputado Eduardo Bolsonaro

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Evandro de Araújo Paula, assessor da deputada Bia Kicis

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Pastor Romildo Ribeiro Soares, ou RR Soares, fundador da Igreja Internacional da Graça de Deus (leia detalhes do depoimento)

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Otavio Oscar Fakhoury, financista

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Luís Felipe Belmonte dos Santos, vice-presidente do Aliança pelo Brasil (leia detalhes do depoimento)

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Luiz Renato Durski Junior, empresário dono da rede de restaurantes Madero

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Sérgio Lima, publicitário

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Bruno Ricardo Costa Ayres, empresário

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Walter Luiz Bifulco Scigliano

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Allan dos Santos, do blog Terça Livre (leia detalhes do depoimento)

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Cleitomar Basso, funcionário do canal Foco do Brasil

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Emerson Teixeira de Andrade, do canal Emerson Teixeira

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Oswaldo Eustaquio Filho, do canal Oswaldo Eustaquio

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Sandra Mara Volf Pedro Eustáquio, mulher do blogueiro Oswaldo Eustáquio e ex-secretária nacional de Políticas de Promoção de Igualdade Racial do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos

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Ernani Fernandes Barbosa Neto, do site Folha Política 

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Thais Raposo do Amaral Pinto Chaves, do site Folha Política

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Anderson Azevedo Rossi, do canal Foco do Brasil

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Camila Abdo, do canal Direto aos Fatos e do site Crítica Nacional

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Fernando Lisboa, do Vlog do Lisboa

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Marcelo Frazão de Almeida, do canal Direita TV News

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Adilson Nelson Dini, do canal Ravox Brasil

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José Luiz Boni ou Roberto Boni, do canal Universo

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Alana de Oliveira Passos de Souza, deputada estadual no Rio

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Leonardo Rodrigues de Barros Neto, ex-assessor de Alana

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Anderson Luis de Moraes, deputado estadual no Rio

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Vanessa do Nascimento Navarro, assessora parlamentar de Anderson

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Ana Maria da Silva Glória, colaboradora do site Terça Livre

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Raul Nagel Etges, técnico de informática

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Juliana Ginger Vieira Paulo Butzke, psicóloga

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Sara Fernanda Giromini, do canal Sara Winter e do movimento ‘300 do Brasil’

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Alberto Junio da Silva, administrador do canal O Giro de Notícias

Joice Hasselmann (PSL-SP), deputada federal

José Guilherme Negrão Peixoto (PSL-SP), deputado federal

Otoni de Paula (PSC-RJ), deputado federal

Sérgio Moro, ex-ministro da Justiça e Segurança Pública

Valter César Silva Oliveira, do canal Nação Patriota


Cacá Diegues: A política de guerra

Vou tratar de virar fã de Felipe Neto

Se a esquerda faz política demais, a direita por sua vez não sabe fazer política, não faz política nenhuma. Mas se ilude quem pensa que nosso presidente de direita, Jair Bolsonaro, se elegeu sem um programa claro, por puro prazer da aventura política contra a política, a antipolítica que ele tanto anunciou. Ele e sua turma nunca se interessaram pela política como modo de levar a sociedade em direção a uma agenda que corrigisse o passado e organizasse o futuro, não se prepararam para isso. Eles se prepararam para uma guerra e só pensam nela.

Uma guerra que só ainda não foi escancarada, fazendo mais vítimas e provocando mais tiroteios aleatórios e insanos, por causa da pandemia, por causa de um pequeno animalzinho, um quase nada, o vírus assassino que não permitiu que o bando de Bolsonaro assumisse o papel central de seu tempo. A guerra que programaram e pretendiam praticar é humanamente menor do que a calamidade pública provocada pela Covid-19.

Quem não se lembra das ameaças guerreiras feitas pouco antes de se tornar trágica a presença do vírus por aqui? Um dia, na televisão, Bolsonaro nos garantiu que tinha vencido a eleição de 2018 no primeiro turno e que, portanto, tinha sido roubado. O presidente afirmou que tinha provas disso e que ia mostrá-las à nação. Faz mais de oito meses que esse show passou na televisão… e cadê as provas? Quantas vezes ouvimos dele, de seus filhos e dos ministros mais queridos e alinhados, que haveria muito em breve uma ruptura inevitável, que não dava mais para suportar as perseguições dos outros Poderes ao Executivo? Quantas vezes ouvimos, desde há bastante tempo, expressões como “agora chega” ou “acabou” ou “não dá mais” ou coisa que o valha? Faz tempo que essas expressões de radicalidade começaram a ser usadas e, até agora, a guerra não passou de fuxico.

O Brasil tem hoje perto de cem mil vítimas fatais do coronavírus e mais de dois milhões e meio de infectados lutando contra a morte, fora os que não morreram mas se tornaram de alguma forma deficientes. Vemos todo dia, nos jornais, na televisão e nas redes sociais, as famílias feridas dessas vítimas, capazes de comover o mais endurecido dos corações. Menos os da turma dos Bolsonaros. Para eles, é tudo um exagero da “extrema imprensa”, o possível quase milhão de familiares enlutados tinham mais é que se conformar, pois todo mundo um dia morre. E daí?

Enquanto as vítimas e seus familiares têm a generosidade de pedir à população que não saia de casa, para que não morram mais brasileiros inutilmente, o presidente do Brasil, o principal responsável em última instância pelos cidadãos do país, manda invadir os hospitais para fotografar leitos vazios, a fim de provar que é tudo um exagero contra não sei quem. Aí o consórcio de imprensa, montado a partir das informações das secretarias de Saúde de cada estado, com a finalidade de neutralizar as mentiras que estavam sendo supostamente armadas pelo Ministério da Saúde para subestimar os números da crise e aliviar a responsabilidade do governo, impacta a nação com os verdadeiros números da tragédia.

Enquanto as famílias e os solidários a elas choram as vítimas da Covid-19, o presidente da República sorri feliz e sem máscara, abraçado a uma aglomeração no interior da Bahia, em cima de uma mula manca, fantasiado de caubói sertanejo, com um chapéu de falso couro de jagunço, inaugurando um bebedouro ornamental e vagabundo, mandado construir por outra responsável pela miséria do Brasil, Dilma Rousseff, numa região em que o povo morre, de verdade, de fome e de sede.

No meio da representação de sua farsa, Bolsonaro se explica, como um demônio sem compaixão, dizendo que está mesmo interessado é em salvar a economia do país, que está se dedicando a isso, certamente mais importante que os mortos inevitáveis. Pois bem, segundo o próprio IBGE, já foram fechadas, vítimas da pandemia, 522 mil empresas no Brasil. O que é que o governo fez por cada uma delas?

Bolsonaro não tem tempo de cuidar da economia dessas empresas porque seu pessoal está ocupado com a guerra. A meta bélica agora é acabar, a qualquer preço, com Felipe Neto, um jovem youtuber que, talvez sem se dar conta, também se preparou para ela e aprendeu a usar as redes sociais, alcançando mais de 60 milhões de seguidores. Para o bem do governo, Felipe Neto tem que ser destruído e está sendo perseguido com clássicas fake news imorais e incômodos pessoais, como o cerco no condomínio onde mora.

As mentiras hediondas, munição de uma guerra estúpida, estão fazendo de Felipe Neto um herói da resistência aos males que já foram e ainda serão feitos ao Brasil. Nunca tive a oportunidade de ver o influencer na internet, mas vou vê-lo logo e tratar de ser seu fã.


Fernando Gabeira: Fake news, injúria e conspiração

Decretaram minha morte e reclamam por eu não ter levado a sentença a sério

Notícias falsas, injúrias, teorias da conspiração, quase todas as semanas, sobem ao topo da pauta política no Brasil.

Nas redes, muito se falou do ataque a Felipe Neto, depois de sua aparição no “New York Times” criticando o governo Bolsonaro. A velha acusação aos comunistas, comem criancinhas, ganhou uma versão atualizada contra Felipe.

No campo editorial, tive a oportunidade de ler “A máquina do ódio”, um livro de Patrícia Campos Mello sobre fake news e violência digital no mundo. Ela conta, entre outros casos, a carga injuriosa que sofreu quando denunciou manipulação digital nas eleições de 2018.

Nem sempre foi assim no Brasil. Nesses tristes momentos de tecnopopulismo, costumo dar uma olhada na bela coletânea intitulada “Duelos no serpentário”, coligida por Alexei Bueno e George Ermakoff.

Trata-se de uma antologia de polêmicas intelectuais no Brasil, de 1850 a 1950. Havia alguma ironia, insultos aqui e ali, mas eles passavam dias, noites, escrevendo suas teses, sob a luz de lamparinas. O problema era convencer com ideias.

A polêmica gramatical entre Rui Barbosa e Carneiro Ribeiro sobre o texto do Código Civil, se impressa no conjunto, daria um livro de mil páginas, capaz de entediar gerações inteiras de estudantes. Houve polêmicas para definir se o cinema falado era melhor que o cinema mudo. Vinicius de Moraes participou dela.

Em relação a esse período da história, talvez tenhamos regredido às medievais canções de maldizer e escárnio. Ou, mais que isso, entramos num campo que só o estudo da injúria pode abarcar.

Jorge Luis Borges escreveu a bela “História universal da infâmia”. Nas suas obras completas é possível encontrar também algumas notas sobre a injúria, uma categoria específica de agressão.

É um texto curto, intitulado “Arte da injúria”. Segundo Borges, o agressor deverá saber, conforme advertem os policiais da Scotland Yard, que qualquer palavra que diga pode ser voltada contra ele.

O sonho dele, portanto, é ser invulnerável. Isso foi escrito na década dos 30, muito antes da internet, que trouxe o conforto do anonimato.

O roteiro da injúria em Borges passa pelas ruas de Buenos Aires. O agressor sempre adivinha a profissão da mãe dos outros e quer que mudem para um certo lugar que pode ter diferentes nomes. Em português, é possível conciliar os dois tipos de injúria enviando a pessoa para um lugar que, em linguagem amenizada, é a ponte que partiu.

Ao longo de sua análise, Borges descobre que, nas “Mil e uma noites”, célebre texto árabe, há um xingamento que se tornou popular: cão.

E chega aos que parecem mais sofisticados e certeiros como este: “Sua esposa, cavalheiro, sob o pretexto de trabalhar num prostíbulo, vende artigos de contrabando”.

Borges destaca também a injúria mais esplêndida feita por alguém que não tinha contato com a literatura. Ele descreve um homem chamado Santos Chocano, dessa maneira: “Os deuses não consentiram que Santos Chocano desonrasse o patíbulo, nele morrendo. Aí está vivo, depois de ter fatigado a infâmia”. O personagem me lembra um pouco velhos políticos que ganham uma espécie de pele de elefante depois de tantas pancadas pela vida afora. Cansam até o xingamento.

Mas os insultos contra as pessoas que têm outra atividade costumam ser devastadores para suas relações familiares, de amizade e a própria autoestima. Sou solidário com elas e desejaria ver algo na lei que acabasse com a invulnerabilidade do agressor.

Pessoalmente, não guardo ressentimentos, sobretudo agora nessa idade. Não me ameaçam de morte, simplesmente afirmam que já morri e não me dei conta. Decretaram minha morte em algum momento do passado e reclamam por não ter levado a sentença a sério.

A idade também protege um pouco contra a repetição do mantra “viado e maconheiro". A maconha restou com alguma vitalidade. Sempre que escrevo algo que lhes desagrada ou parece estapafúrdio, dizem que fumei maconha estragada.

Ainda bem que sou de paz. Poderia acusá-los de apologia às drogas. Se as ideias estapafúrdias e equivocadas são fruto de maconha estragada, isso significa que a de boa qualidade traz limpidez e justiça ao pensamento.

Não se discute mais como antigamente. E eles estão com um enorme estoque de cloroquina para se preocupar com outra droga.

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Merval Pereira: Mau sinal

Nunca a liberdade de expressão foi tão discutida entre nós como nos últimos dias, o que é um mau sinal. Sempre que se tem que reafirmar uma das pedras fundamentais da democracia, significa que ela está em perigo. São muitas as razões para que o tema atual seja esse, e o santo nome da liberdade de expressão é usado em vão com frequência jamais vista. Começando pelo desenrolar do caso das contas que disseminavam notícias fraudulentas bloqueadas por determinação do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

O caso acabou destacando uma das muitas possibilidades tecnológicas dos novos meios que podem ser usadas para o bem e para o mal. As contas bloqueadas no Brasil foram transferidas para o exterior para continuar a atacar a democracia e suas instituições, mas o Facebook recusa-se a bloqueá-las novamente, alegando que a legislação brasileira não abrange outros países, e diz que assim está ajudando a manter a liberdade de expressão.

Essa é uma escusa marota, pois caso um pedófilo use o mesmo estratagema para se esconder atrás de um IP estrangeiro para continuar agindo no Brasil, certamente nenhum novo meio digital desses se recusará a auxiliar a Polícia para prendê-lo. Ou se alguém, para superar a legislação de direitos autorais, se registrar no exterior para ver uma série ainda não liberada no Brasil, poderá ser punido. Caso usasse o seu IP do Brasil, seria logo avisado que o vídeo não está disponível naquela região.

Da mesma maneira, se o Supremo Tribunal Federal (STF) considera que essas contas são utilizadas para cometerem crimes no Brasil, não cabe ao Facebook confrontar a decisão, mas impedir que elas sejam divulgadas aqui. Soa como uma censura, mas o ministro Alexandre de Moraes explica que não se trata de determinar que qualquer outro país cumpra uma decisão da Justiça brasileira, mas sim que o Facebook não permita que do Brasil se possa visualizar os perfis bloqueados, mesmo que, fraudulentamente, tenham mudado o IP para os EUA.

O ministro também explica em sua nova decisão que não há censura prévia, mas de fatos pretéritos. Os bloqueados poderão abrir novas contas, aqui mesmo no Brasil, não havendo nenhuma proibição para que continuem a se manifestar em novas contas e em entrevistas.Se praticarem crimes de novo, serão responsabilizados.

A liberdade de expressão também esteve sob ataque com algumas decisões recentes do governo. Um relatório sigiloso produzido pelo ministério da Justiça cita mais de 570 servidores públicos, muitos ligados à área de segurança, identificados como membros de movimentos antifascismo.

O governo alega não se tratar de investigação, mas admite que monitorou servidores contrários ao governo. O Ministério Público Federal (MPF) deu dez dias à Justiça para explicar a medida, que não se baseia em inquérito ou decisão do Judiciário.

Esta é uma diferença básica entre essa ação, que mais parece uma atividade de polícia política, e a do Supremo, que deriva de um inquérito que, se na sua origem foi questionado e usado abusivamente como no caso de censura à revista eletrônica Crusoé, hoje, depois de correções, está avalizada pelo plenário do STF e pela opinião pública, e se demonstrou um instrumento eficiente para conter essa avalanche de fake news organizada com objetivos claramente políticos ilegais.

Outra norma, esta editada pela Controladoria-Geral da União (CGU), defende punição a servidor público que critique o governo nas redes sociais. De acordo com a nota técnica, o funcionário público pode ser enquadrado por “descumprimento do dever de lealdade” se as mensagens divulgadas produzirem ‘repercussão negativa à imagem e credibilidade’ da instituição que integra. Um exemplo claro: se um funcionário de órgão da Saúde se manifestar contra a adoção de cloroquina no combate à Covid-19, poderá ser punido.


Merval Pereira: Farsa tupiniquim

O procurador-geral da República, Augusto Aras, escancarou nos últimos dias sua intenção de controlar a Lava-Jato

O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, quer que “o natural, bom e antigo” combate à corrupção substitua o que chama de “lavajatismo”, um neologismo muito usado pelos bolsonaristas quando querem menosprezar alguma atividade de que não gostam, como “mundialismo”, em vez de globalização.

Isso não quer dizer que o que Aras está fazendo com a Lava-Jato corresponda a uma ação direta de conluio político com o presidente que o escolheu por fora da disputa interna no Ministério Público. Mas que, tentando desmoralizar a Lava-Jato, está ajudando Bolsonaro a manter o Centrão protegido, isso está.

Defendendo a tese de que a Polícia Federal não pode fazer busca e apreensão em gabinetes de parlamentares, Augusto Aras também faz com que o “antigo” jeito de combater a corrupção no Brasil volte a prevalecer, o que sempre levou a que autoridades, empresários e políticos não caiam nas malhas da Justiça.

Isso não é novidade nos países em que a corrupção avassaladora foi combatida por uma nova geração de juízes e promotores que não se deixaram amarrar por uma burocracia que sempre beneficia os infratores. Na Itália foi assim com a Operação Mãos-Limpas. Com apoio popular grande durante os primeiros anos, a Operação acabou atingida por diversas denúncias que, mesmo não tendo sido comprovadas, corroeram a confiança popular.

Os juízes Di Pietro – que mais tarde entraria na política - e Davigo foram convidados para serem ministros no Governo Berlusconi, resultante do movimento contra a Mãos Limpas, mas recusaram diante da evidência de que o que Berlusconi queria mesmo era desmobilizar a Operação.

Entre nós, algo parecido aconteceu. O então juiz Sérgio Moro, e boa parte do eleitorado, foram seduzidos pela falsa promessa de Bolsonaro de que combateria a corrupção com base na Lava-Jato, e entrou no governo. Bastou que investigações chegassem perto da família presidencial, todos ligados a Fabricio Queiroz, para que Bolsonaro quisesse controlar a Polícia Federal, especialmente a seção do Rio, local de atuação de Queiroz e dos Bolsonaro.

Ao mesmo tempo, a tentativa petista de desmoralizar as condenações do ex-presidente Lula levou a um vazamento de conversas dos procuradores da Lava Jato em Curitiba, entre si e com o então juiz Sérgio Moro. Durante meses o site The Intercept-Brasil publicou essas conversas, geradas pela ação de um grupo de hackers que está na cadeia, e não revelou nenhuma ação que distorcesse a investigação, que forjasse provas inexistentes, que indicasse conluio contra qualquer investigado da Operação Lava Jato, muito menos o ex-presidente Lula, o objetivo evidente da operação de invasão de celulares.

Na Itália, tomou corpo, depois de anos de apoio da opinião pública, uma campanha de difamação contra as principais figuras da Operação Mãos Limpas, em especial o Juiz Di Pietro, e acusações de abuso de poder nas investigações. O mesmo vem acontecendo com o ex-juiz Sérgio Moro, os Procuradores do Ministério Público Federal e membros da Polícia Federal que fazem parte da Força-Tarefa da Operação Lava-Jato.

O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, escancarou nos últimos dias sua intenção, latente desde que foi escolhido por Bolsonaro, de controlar a operação. Uma das alegações mais risíveis é a comparação de quantos terabytes (unidade de medida utilizada para armazenamento de dados na informática) de informações a força-tarefa de Curitiba tem em relação ao Ministério Público.

Como são dez vezes mais, isso significa para Aras não indicação de produtividade, mas sinal de que alguma coisa secreta está acontecendo por lá. Em vez de aprovarem reformas que evitariam a corrupção, na Itália houve uma reação do sistema político, dos próprios investigados, pessoas poderosas e influentes, e foram aprovadas leis para garantir a impunidade.

Aqui está acontecendo a mesma coisa, com a mutilação de medidas propostas por Moro para combate à corrupção e decisões judiciais, até mesmo do Supremo Tribunal Federal, que dificultam o combate à corrupção. O fim da prisão em segunda instância e dificuldades para as delações premiadas são apenas exemplos mais recentes. A historia se repete como farsa tupiniquim.


Mariliz Pereira Jorge: É muito difícil ser bolsonarista

Pense no susto se bolsonaristas descobrirem que o establishment são eles

Inegáveis a devoção, a energia e a habilidade que os apoiadores do governo demonstram. A capacidade infinita de enxergar seus ídolos com filtros coloridos não é estranha a nenhum militante, mas a vida do bolsonarista é um malabarismo permanente.

A começar pela exaltação da cloroquina. Todos virados em direção ao Palácio da Alvorada, a meca dos "patriotas", para louvar um remédio que inúmeras pesquisas apontam como ineficaz contra o coronavírus.

Rejeitar a ciência, porém, é nada perto do contorcionismo para apoiar Madonna, que, de feminista de carteirinha e defensora do aborto legal, e portanto inimiga, passou a correligionária após defender o uso do medicamento.

E o que dizer dessa massa que passou a eleição falando em combate à corrupção e à velha política, fim de privilégios e bandido morto e hoje aplaude Bolsonaro de mãos dadas com o centrão, exalta o ex-presidiário Roberto Jefferson, defende o foro privilegiado de Flávio Bolsonaro e a prisão domiciliar de Queiroz?

Um dia o bolsonarista pede a volta da ditadura, desconjura militar frouxo, diz que a mídia mente. No outro, reclama que vive sob uma ditadura, clama pelo direito de ir e vir e de desrespeitar medidas sanitárias de combate à pandemia, defende fake news e liberdade de expressão (a deles).

Eles ainda encontram tempo para, entre uma novela e outra da Globo, seguir os perfis da "extrema imprensa" só para poder cravar seus slogans, #globolixo, #folhalixo, #acabouamamata. Menos, claro, a mamata oficial. O interino da Saúde nomeou uma amiga, sem experiência, para chefiar o ministério em Pernambuco. E daí? O que pega mesmo os bolsonaristas é a propaganda de Dia dos Pais com o transexual Thammy Gretchen.

Sem falar nas reclamações rotineiras contra o establishment, que partem inclusive de integrantes do governo e de filhos do presidente. O contorcionismo é admirável. Pense no susto se descobrirem que o establishment são eles.


Valor: O que pensam os bolsonaristas

Grande parte dos eleitores do presidente apoia intervenção do Estado na economia e descarta golpe militar, mostra pesquisa

Por Carlos Rydlewski | Valor Econômico

SÃO PAULO - O que pensam os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), um grupo estável de seguidores, que corresponde a cerca de 25% a 30% do eleitorado? Boa parte da resposta a essa questão está presente em uma pesquisa realizada pelo Instituto Travessia, de São Paulo, com exclusividade para o Valor. Inédito, o levantamento promove um mergulho na mente do chamado “bolsonarista raiz”.

Esse grupo é bem menos liberal e antidemocrático do que se supunha até aqui. Consultados se são a favor da intervenção do Estado na economia, por exemplo, 45% deles responderam “sim” e 42%, “não”. A turma que apoia um maior peso estatal na vida econômica do país é formada, majoritariamente, por mulheres, moradores do Nordeste, jovens entre 16 e 24 anos e pessoas com renda média na base da pirâmide social (até dois salários mínimos mensais). Em termos de poder aquisitivo, eles compõem os estratos mais pobres da sociedade.

Com um placar apertado, a maioria endossa políticas de transferência de renda dos cofres públicos para os bolsos da população. Do total entrevistado, 42% são a favor e 38% contra esse tipo de benefício estatal. Os maiores entusiastas dessas medidas residem no Nordeste, o grande reduto do Bolsa Família, e aufere renda de dois mínimos por mês. “O bolsonarista que encontramos não é o estereótipo, o agitador radical de redes sociais”, diz o analista Renato Dorgan Filho, sócio do Instituto Travessia. “Ele é um eleitor fiel, conservador, mas que vive os problemas do dia a dia. Em muitos sentidos, principalmente entre os mais pobres, é mais prático do que ideológico.”

De acordo com a pesquisa, o retrato do bolsonarista padrão é o seguinte (veja quadros nesta edição): homem, morador do Sudeste, com idade a partir de 45 anos, renda acima de dez salários mínimos (a maior faixa definida pelo IBGE) e evangélico. Mas as diferenças entre alguns desses segmentos é pequena. No caso do gênero, por exemplo, 55% são homens e 45%, mulheres. Na divisão por idades, à exceção dos jovens entre 16 e 24 anos (10% do total), todas as outras faixas apresentam percentuais muito próximos. Para Dorgan Filho, o aspecto religioso é o que mais se destaca. “São 54% de evangélicos”, aponta. “É uma concentração muito alta. Em segundo lugar, bem atrás, vêm os católicos, com 24% do total.”

Para identificar os bolsonaristas, foram feitos contatos por telefone, entre os dias 9 e 10 de julho, em todo o país. Os entrevistados responderam em qual candidato votariam, caso a eleição presidencial ocorresse hoje. Para obter as respostas, não foi apresentado nenhum estímulo, como o nome de possíveis concorrentes à disputa. “A escolha foi espontânea, o que representa um voto muito mais fidelizada”, observa o analista do Travessia. “Depois disso, o questionário foi aplicado somente àqueles que optaram pelo nome de Jair Bolsonaro. Com isso, selecionamos quem de fato o apoia e já tem o nome do presidente na cabeça para as eleições de 2022.”

A enquete mostrou ainda que o ideário político da média dos bolsonaristas está longe de ser tão pontiagudo como se poderia crer. A maioria (62%), por exemplo, disse ser contrária às manifestações de apoio a golpes militares no Brasil. Isso ainda que uma parcela de 33% tenha afiançado a grita pró-autoritarismo. Nessa mesma linha, 83% defenderam a realização de protestos a favor da democracia no país.

Existe um espaço de diálogo com os eleitores de Bolsonaro, que pode aproximá-los de um campo mais progressista, segundo José Álvaro Moisés
Em contrapartida, a sondagem traz dados que soam contra instituições cruciais para o funcionamento da democracia. E eles expressam uma quase unanimidade entre os eleitores do presidente. Por exemplo: 95% não aprovam a atuação do Congresso Nacional. Em outra questão, 90% criticam o Supremo Tribunal Federal (STF).

Essa aparente contradição da maioria bolsonarista, entre uma visão com tintas mais democráticas e outra que tende ao autoritarismo, representa um dos aspectos mais interessantes da pesquisa, para José Álvaro Moisés, professor de ciência política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). “Ela mostra que existe uma brecha, um espaço de diálogo com os eleitores do presidente Bolsonaro, que eventualmente pode aproximá-los de um campo mais progressista”, diz Moisés. “Na prática, ela revela que há diversidade entre os eleitores do presidente, e isso não estava tão claro.”

Quantitativa, a sondagem do Instituto Travessia não explica o porquê dessas posições, mas existem estudos qualitativos (com entrevistas com pequenos grupos de eleitores) que trazem algumas pistas a esse respeito. Uma análise desse tipo foi concluída em junho pelas pesquisadoras Camila Rocha, cientista política ligada ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), e Esther Solano, socióloga e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Elas ouviram 27 pessoas, das faixas C e D, residentes na Região Metropolitana de São Paulo. Nas conversas, identificaram três grupos de bolsonaristas: os “fiéis”, os “apoiadores críticos” e os “arrependidos” por terem votado no presidente. “Percebemos que muitas dessas pessoas, mesmo as que defendem medidas radicais como o fechamento do Congresso ou do STF, não se consideram antidemocráticas”, diz Camila Rocha. “Elas não querem necessariamente o fim dessas instituições. Desejam que elas passem por uma renovação profunda, uma espécie de ‘reset’ institucional.”

No levantamento do Instituto Travessia, a abordagem do tema da corrupção também traz à luz elementos até aqui pouco nítidos. A quase totalidade dos entrevistados (91% deles), por exemplo, diz acreditar que o governo Bolsonaro de fato combate a roubalheira. No entanto, quando a pergunta inclui os parentes do chefe do Executivo (“Você acha que o presidente Bolsonaro ou integrantes de sua família se envolveram em casos de corrupção?”), a assertividade diminui. Nesse caso, 57% dizem que “não”, que os Bolsonaro não estão envolvidos em falcatruas, o que representa a maioria, mas 24% afirmam que “sim” e 19% não sabem o que responder.

Sobre a pauta de costumes, a enquete do Travessia traz outras surpresas: 60% disseram que a religião não deve orientar as ações do governo. As manifestações contra o racismo, que pipocaram mundo afora desde o assassinato do afro-americano George Floyd, em maio, contam com apoio de 63% dos entrevistados.

Por outro lado, a maioria dos bolsonaristas repudia os protestos que partem de movimentos que defendem direitos de outras minorias. Nesse caso, 53% desaprovam as manifestações em prol de grupos LGBTQIA+. A maioria dos críticos dessas iniciativas é formada por homens, por pessoas que residem na região Sul do país, pelo segmento com mais de 60 anos e, maciçamente, por evangélicos.

Como observa José Álvaro Moisés, da USP, a pesquisa capta ainda mais um ruído entre a imagem radical que paira sobre a massa dos bolsonaristas e as opiniões expressas na enquete. É o que acontece em torno da visão sobre a Amazônia. Isso porque 55% dizem que são favoráveis a uma maior flexibilização da política de preservação da floresta, sendo que 45% são contrários. “Ou seja, temos aqui quase um empate”, aponta Moisés.

O ministro Paulo Guedes não parece ter grande importância para a base dos eleitores do presidente, afirma Carlos Melo
Entretanto, 55% não aprovam a redução das reservas indígenas. “Isso mostra a existência de um núcleo que manifesta uma posição menos conservadora na defesa do meio ambiente”, comenta Moisés. “E o tema das reservas indígenas representa algo importante para a política de Bolsonaro.” Para os bolsonaristas, acrescente-se, as ONGs (25%) e os países estrangeiros (21%), “que querem dominar a região”, estão entre as grandes ameaças à sobrevivência da floresta. Outros 41%, porém, indicam que a maior inimiga da mata é a atividade ilegal de madeireiros, agricultores e pecuaristas.

O levantamento mostra ainda que a maioria dos que reelegeriam o presidente Jair Bolsonaro hoje considera que a vida era mais fácil em períodos pregressos. Isso vale para a vigência do Plano Real (26%), na década de 1990, ou durante o governo militar (22%), entre os anos 1960 e 1970, ou ainda, antes do Plano Real (14%). Somente 12% cravam que a situação econômica de suas famílias era mais favorável no governo Lula, eleito pela primeira vez em 2002. “Esses dados mostram um certo saudosismo e reforçam uma demonstração de repúdio ao PT, no caso, ao período Lula”, diz Dorgan Filho. “E esse é um sentimento típico entre os bolsonaristas, principalmente entre os de classe A e B.”

Embora muitos pontos expostos até aqui indiquem a existência de um “bolsonarismo paz e amor”, o radicalismo também marca território em uma série de temas, como as questões que envolvem segurança e armas.

Corroborando teses típicas da direita, 98%, ou seja, a quase totalidade dos eleitores do presidente, acreditam que a polícia deve atuar com maior rigor contra os criminosos. Além disso, 75% apoiam a liberação do uso de armas. Desse grupo, 90% são homens, a maior parte tem entre 45 e 49 anos e renda acima de dez salários mínimos. “Os mais radicais representam cerca de um terço desse eleitor. E segurança também é um tema muito forte para toda a sociedade”, frisa Dorgan Filho. “Aqui, é ainda mais realçado.”

No geral, as opiniões em torno da pandemia seguem a linha adotada pelo presidente. A pesquisa mostra, por exemplo, que 90% dos entrevistados são favoráveis à redução das medidas de isolamento social no combate à covid-19. Outra enquete do mesmo instituto, publicada com exclusividade pelo Valor em 26 de junho, já indicara uma queda na adesão do distanciamento por parte dos eleitores em geral. Mesmo assim, ele contava com o apoio de 45% dos brasileiros com mais de 16 anos. Outros 43% defendiam um isolamento parcial. Ou seja, para a sociedade como um todo, havia um empate técnico em relação ao assunto.

Entre os eleitores do presidente, 79% aprovam a maneira como ele conduz a crise do novo coronavírus. No levantamento de 26 de junho, mais abrangente e para além dos apoiadores de Bolsonaro, somente 35% tinham a mesma opinião. Além do mais, na atual enquete, 52% não acham que o chefe de Estado se expôs demais à doença, apesar de sua recorrente participação em manifestações políticas e das andanças frequentes por áreas comerciais de Brasília. A maior parte (58%), entretanto, não aprova o recente decreto presidencial que desobriga o uso de máscaras em igrejas, no comércio e em escolas.

José Álvaro Moisés observa que a pesquisa sugere a existência de um desafio para a cúpula do bolsonarismo. Ele está contido na relação do presidente com os políticos do Centrão, o bloco informal da Câmara dos Deputados, que reúne cerca de 200 parlamentares do chamado “baixo clero”. No levantamento, 58% dos entrevistados posicionaram-se contra a aproximação do presidente com esse núcleo de parlamentares. “Esse é um resultado importante, que pode trazer desgaste para o presidente”, diz o acadêmico. “Afinal, a construção desse relacionamento faz parte estratégia de consolidar uma base no Congresso, até evitar o avanço de um eventual pedido de impeachment.”

Se essas relações podem ser perigosas, a enquete também mostra um dado que, sob o ponto de vista do eleitorado do presidente, observam analistas, pode ser considerado favorável. Trata-se do pequeno impacto na base bolsonarista da demissão do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro, no fim de abril. No total, 62% dos consultados aprovaram a saída do ex-juiz do governo, ante 28% que consideraram a queda negativa. “Na verdade, a pesquisa mostra que o apoio ao presidente reside na crítica à política, ao Congresso, ao STF e à imprensa, e no endurecimento do aparato repressivo, além do combate à corrupção”, diz o cientista político Carlos Melo, professor do Insper, em São Paulo.

Por outro lado, acrescenta o acadêmico, o bolsonarista típico parece discordar - ou não concordar totalmente - em relação a temas como costumes e a volta do regime militar, assim como em relação à política ambiental. “Moro também não é relevante”, diz Melo. Para ele, a baixa adesão a uma agenda liberal também aponta que o ministro da Economia, Paulo Guedes, não está em situação diferente do ex-titular da Justiça. Diz o professor do Insper: “Nesse contexto, o Guedes também não parece ter grande importância para a base dos eleitores do presidente”.

Aproximação com o “baixo clero” é reprovada por 58% dos entrevistados, indicando uma possibilidade de desgaste de Bolsonaro
Desta vez, como somente ouviu adeptos de Bolsonaro, a enquete do Travessia não definiu quanto eles representam em relação ao todo dos eleitores.

Entretanto, no levantamento anterior do mesmo instituto, de 26 de junho, 25% das pessoas consultadas afirmaram que votariam no atual presidente da República. “Em geral, todas as pesquisas que avaliam o apoio, o prestígio ou a intenção de voto em Bolsonaro indicam que ele conta com uma parcela de 25% a 30% do eleitorado”, diz Moisés, da USP. “Já as análises que verificam a dimensão do grupo de bolsonaristas pesados, chamados de ‘raiz’, apontam para percentuais entre 12% e 15%, chegando às vezes a 20%.”

Para o acadêmico, tal cota não representa uma novidade. Moisés coordena pesquisas sobre cultura política, baseadas em levantamentos de opinião pública, desde meados dos anos 1980. Nesses trabalhos, ele observa, o grupo que se identifica com uma posição radical de direita sempre girou em torno de 15%.

“O fato é que existe na sociedade brasileira um núcleo de extrema-direita que tem esse tamanho, sendo que muitos dos seus integrantes nem sequer consideram que houve um período de ditadura no Brasil”, diz o professor. “Esse é um resíduo autoritário que perdura ao longo do tempo e não muda.” A singularidade, contudo, é que esse discurso, antes “residual”, tornou-se oficial por meio de eleições diretas no país. Em períodos recentes, ele sobreviveu, mas com menor poder de difusão nacional, sob bandeiras como a do malufismo.

Moisés pontua que a resiliência desse núcleo é um fato relevante para a política nacional. “Ela mostra que, apesar de 35 anos de democracia, o período mais longevo de liberdades democráticas que já tivemos, esse grupo de extrema-direita não foi demovido”, diz o acadêmico. “Isso revela que as políticas de construção do desenvolvimento econômico e as ações pela defesa dos direitos humanos não foram suficientes para convencer essas pessoas de que a democracia é melhor do que outros regimes. Esse é um tema sobre o qual os democratas devem refletir, tanto os partidos como suas lideranças.”

Em suma, isso quer dizer que os 30% de fidelíssimos bolsonaristas, na verdade, podem não ser 30% (ou 25%). Além do mais, esse grupo parece não ser estanque como muitos acreditam. Há quase uma década, a antropóloga Isabela Kalil, professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fesp-SP), analisa os movimentos conservadores no Brasil. Em geral, faz isso por meio de estudos etnográficos, com trabalhos realizados em campo, durante manifestações de rua. Os dados que recolhe são qualitativos, ou seja, obtidos por meio de entrevistas com pequenos grupos de pessoas.

Isabela diz acreditar que existem alterações recorrentes nos chamados 30% de bolsonaristas. Essas mudanças não afetam o número absoluto, mas a sua composição interna. Pesquisas recentes sugerem, por exemplo, que a base do presidente se transformou. Por um lado, teriam ingressado eleitores de baixa renda, atraídos por benefícios como o auxílio emergencial de R$ 600,00 dado durante a pandemia.

Por outra porta, no entanto, teriam saído integrantes da classe média, entre eles os “lava-jatistas”, decepcionados com a debandada de ministros como Sergio Moro. “Existem, sim, alterações significativas dentro do bloco de eleitores do presidente Bolsonaro, há uma dinâmica nesse grupo”, diz Isabela. “Mas as conclusões sobre o que realmente está acontecendo ainda soam precipitadas.”

A pesquisadora observa que as dúvidas pairam nas duas portas do bloco bolsonarista - tanto a de entrada como a de saída. “Não sabemos, por exemplo, se a classe média deixou esse grupo ou se sua renda diminuiu nos últimos meses a ponto de permanecer na base, ainda que empobrecida”, afirma a antropóloga. “Da mesma maneira, não temos certeza se o ingresso se limitou a pessoas de baixa renda. Medidas do governo, como a ajuda de R$ 600,00, podem favorecer outros grupos, e não só aqueles que se beneficiam diretamente com os recursos.”

Por fim, alguns dados da pesquisa do Instituto Travessia mostram o impacto potencial que alguns temas constantemente abordados pelo presidente têm em sua base de eleitores, como as críticas ao Congresso e à imprensa (cujos ataques de Bolsonaro são aprovados por 84% dos seus eleitores). Isso, porém, não é novidade para Manoel Fernandes, diretor da Bites. A empresa acompanha, em tempo real, o que os políticos postam nas quatro grandes redes sociais - Twitter, Facebook, Instagram e YouTube.

Daí, nascem análises usando variáveis que incluem o número de seguidores adicionados por meio de posts e a capacidade dessas ações de gerar engajamento nos espaços virtuais. “Toda vez que Bolsonaro energiza sua base, em atos ou declarações contra seus ‘inimigos’, aumenta o número de seguidores e a dispersão do discurso nas redes”, diz Fernandes. “E isso inclui a participação em eventos antidemocráticos ou declarações muito fortes em relação ao senso comum.”

E Bolsonaro tem grande repercussão no mundo de bytes e bits, ainda que mantenha uma distância considerável do político que está no topo de todos os pódios do mundo digital. Desde março, no auge da pandemia na Europa, até 9 de julho, o presidente americano Donald Trump fez 5.328 posts nas redes. Eles conseguiram 528 milhões de interações (“curtir”, compartilhar, comentar e retuitar, por exemplo). Bolsonaro não atingiu metade desse volume. Postou 2.325, com 282 milhões de interações. Isso não é pouco. Considere o presidente francês, Emmanuel Macron. Ele registrou 585 posts, com 10 milhões de interações. “O presidente do Brasil chamou mais atenção em uma proporção quase 30 vezes maior do que o francês”, nota Fernandes. Lula, só para dar um exemplo local, postou 1.099 vezes, com 21 milhões de interações.

A questão é o quanto disso tudo é obra de robôs? “Com essa tecnologia, tudo é possível”, pondera Manoel Fernandes. “Mas, se não houvesse adesão orgânica à mensagem, não haveria tanta interação. Tem robô, sim, mas isso não explica tudo.” Seja como for, como observaram analistas, a pesquisa do Instituto Travessia indica que não só de estridências e polarizações se forma a mente bolsonarista. Ela é bem mais diversa do que se imaginava até aqui.


Marcelo Godoy: Moro ataca bolsonarismo ao criticar 'intervenção militar'

Em um País em que oficiais se fizeram intérpretes da Constituição, ex-magistrado tenta decifrar os militares e desagrada generais

Se Jair Bolsonaro decidiu que os militares podem dirigir quase tudo no governo - da construção de pontes à entrega de cartas, do combate à covid-19 às negociações com o Centrão –, os militares também terão de se acostumar com um novo fenômeno: nunca tantos civis interpretaram seus atos, gestos e silêncios. Mesmo o que é óbvio se torna polêmico. Quis o comandante do Exército, Edson Pujol, chamar a atenção do presidente ao lhe oferecer o cotovelo em vez da mão em um comprimento público? Qual a razão de o bolsonarismo pagar penduricalhos ao militares em meio à crise fiscal

Bolsonaro
O presidente Jair Bolsonaro na Academia Militar das Agulhas Negras Foto: Marcos Corrêa/PR

A outra face desse fenômeno, com suas implicações institucionais, envolve a confusão entre Exército e Nação e o ressurgimento de um certo bacharelismo entre os militares. Ele tem como alvo o artigo 142 da Constituição Federal e os limites da ação de cada Poder. Muitos falam, mas poucos sabem do que se trata; e a velha confusão entre doxa e episteme, tão antiga quanto o Partenon, reaparece. Só o Comando até agora não falou. "Por dever de ofício", disse um general. Nas últimas semanas, o Exército se sentiu como um paciente em coma, ouvindo vozes ao redor. Em torno da cama, muitos passavam e se perguntavam se ele os poderia ouvir. O paciente se fingiria de morto, enquanto os doutores falavam...

Alguns vozes não passaram despercebidas. Uma delas foi a do ex-ministro da Justiça Sérgio Moro. Ele escreveu um artigo na revista Crusoé com o título Honra e Fuzis. Se tantos militares se puseram a interpretar a Constituição, Moro se achou no direito de interpretar os militares. O ex-juiz começou confessando o desconforto com os grupos que usavam a Lava Jato para pregar um golpe de Estado em 2016, ano do impeachment de Dilma Rousseff. Revela que, discretamente, pediu, por meio de um bilhete, a manifestantes que carregavam uma faixa com os dizeres "intervenção militar constitucional" que a recolhessem para evitar a confusão entre a luta contra a corrupção e a pregação liberticida. Os turiferários atenderam ao magistrado.

 O ex-ministro diz que tinha receio de que a Lava Jato fosse identificada com a pauta antidemocrática, que seu objetivo não era criminalizar a política, mas a "punição de políticos corruptos". O homem, que foi o mais popular ministro de Bolsonaro entre os militares, concluiu:  "Democracia é o temos como melhor forma de governo e a única medida a fazer é melhorá-la, não acabar com ela." Em vez de se juntar aos amalucados, como fez Bolsonaro em frente ao quartel do Exército, em Brasília, o ex-magistrado quis mostrar juízo e responsabilidade, qualidades de quem sabe que não se defende a democracia em manifestação que busca matá-la.

Moro quis mais: desejou exibir conhecimento da liturgia que acompanha as autoridades que não se deixam levar por uma ralé composta por oportunistas rancorosos e extremistas ressentidos, todos incompetentes para obter reconhecimento social por seus próprios méritos, o que caracteriza os setores radicais do bolsonarismo. O ex-juiz procura distância de um governo que, até 15 dias atrás, flertava com o caos de uma ruptura institucional nas palavras do presidente ou nas notas oficiais dos generais-ministros. "Intervenção militar constitucional era algo totalmente estranho à Lava Jato. Nenhum dos agentes de lei envolvidos tratou desse tema ou defendeu medida dessa espécie."

Pode-se questionar o magistrado: se nenhum dos agentes da lei flertavam com grupos autoritários, por que não os desautorizou publicamente em vez de usar bilhetinhos? Por fim, Moro escreveu: "Não há lugar, porém, para uma inusitada 'intervenção militar constitucional' para resolução de conflito entre Poderes". Ou mesmo invocar uma tutela do Exército sobre a República. E conclui: "Os militares precisam ser honrados. A história mostra que fizeram jus à confiança neles depositada nas batalhas mais difíceis. (...) Na presente crise política, sanitária e econômica, precisamos dos militares, mas não dos seus fuzis e sim de exemplos costumeiros de honra e disciplina."

Moro precisa explicar para que, afinal, precisa de militares, mas não de seus fuzis, se é justamente a posse das armas que os caracteriza. O ex-ministro – como notou um general – parece incensar o soldado cidadão e a visão positivista de Benjamin Constant, tantas vezes presente em rebeliões e intervenções na República, causando instabilidade política e indisciplina na tropa. "Ele quer o soldado cidadão para impedir uma intervenção do soldado cidadão", disse um general. Não se vislumbra o ideal do soldado profissional e apartidário bem como a defesa da neutralidade de seus atos. Talvez o ex-magistrado conheça tanto os dilemas das relações entre o Poder Civil e o Militar quanto o general-ministro Heleno é um bom intérprete da Constituição.

O militar não deve servir de instrumento às conspirações do Planalto e às da Planície. Saiu-se, no Brasil, de um desconhecimento das questões ligadas à defesa nacional e aos militares para uma "verborragia sem fundamento", imprudente. Enquanto isso, "os profetas do artigo 142 ganham holofotes e produzem mais confusão".  O silêncio das últimas semanas recorda, para uns, a drôle de guerre, o período de relativa calma que antecedeu a grande ofensiva alemã de 1940. Para outros, ela seria uma détente?  Constatação de que a guerra entre os atores seria catastrófica, daí a necessidade de reduzir tensões e buscar a convivência entre os Poderes, como em uma Guerra Fria?

O general e deputado federal Roberto Peternelli (PSL-SP), expoente da bancada militar no Congresso, está otimista. Acredita que a tempestade passou, os gafanhotos não vieram e agronegócio vai redimir o País. A queda do ministro Abraham Weintraub é uma das razões de seu otimismo. Acredita que agora seja possível desembaraçar as ações de um ministério estratégico, como a Educação. Peternelli sempre foi assim: acreditava que tudo se resolveria. Mas, de fato, livrar-se de um ministro que mal sabia dançar ou escrever, mas se expunha ao ridículo por vaidade, em vez de lealdade ao chefe, foi um feito para este governo.

Bolsonaro sentou-se na cadeira presidencial como se fosse um tenente. Fez o memento de patrulha, o documento em que devem constar as informações necessárias à missão. O valentão escreveu ali que só precisava de faca e cantil como "meios disponíveis" para governar sem coalizão. E foi o que recebeu. Sem mapa, bússola, relógio, comida ou fuzil saiu com seus homens. Esgotada, a tropa quer voltar à base e se reforçar com o Centrão. Se ele e os que o acompanhavam confundiram o governo com uma aventura na selva, as instituições e a sociedade mostraram ao presidente que não se governa com uma lâmina e um pouco de água. E o pior: não há nada que garanta que, ao fim de tudo isso, haverá mais compreensão entre militares e civis.

*Marcelo Godoy é repórter especial. Jornalista formado em 1991, está no Estadão desde 1998. As relações entre o poder Civil e o poder Militar estão na ordem do dia desse repórter, desde que escreveu o livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015).


José Álvaro Moisés: Em defesa da democracia representativa

Democratas têm de dizer sem subterfúgios que não concordam com as iniciativas bolsonaristas

Eleito com grande maioria de votos, o presidente Jair Bolsonaro tem a responsabilidade de pacificar a Nação, apesar de seus arroubos autoritários, pois, desde o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, o Brasil está completamente dividido e polarizado política e ideologicamente, o que afeta as relações do governo com a sociedade. A legitimidade eleitoral conquistada nas eleições, porém, não o autoriza a abandonar a obrigação de governar para todos os brasileiros, e não apenas para os seus apoiadores. O próprio presidente assegurou ao País que faria isso ao jurar respeito à Constituição da República.

Em seu primeiro ano de mandato, no entanto, Bolsonaro alimentou muitas dúvidas sobre a racionalidade de suas ações e o compromisso de cumprir a Constituição. Recusando-se a formar uma maioria governativa no Congresso Nacional, como requerido pelo sistema político, não assumiu a liderança do partido que o elegeu nem coordenou as forças que o apoiam. Diante de novo protagonismo do Congresso, optou pela ausência de diálogo com as forças políticas e envolveu-se em seguidos conflitos com o Poder Legislativo, que, não obstante, tem aprovado suas propostas, a exemplo da reforma da Previdência e, agora, o seu veto no caso do orçamento impositivo. Quanto às questões tributária e administrativa, o governo hesita e não define os seus projetos.

Durante 2019, o presidente sustentou uma retórica de confronto com seus críticos e adversários, grosseira em muitos episódios, e ofensiva ao decoro do cargo pelo grau de desrespeito a importantes segmentos da sociedade, como as mulheres, os negros e os indígenas, cujos direitos ameaçou ou tentou retirar em alguns casos. Quis ainda controlar a liberdade de ação da sociedade civil e, adotando uma política ambientalista desastrosa, voltada para desconstruir o que havia sido feito em governos anteriores, atritou-se com chefes de Estado estrangeiros focados na preservação da Amazônia, esvaziando o papel do Brasil nessa área.

A estratégia do presidente se choca com a estabilidade institucional requerida pela doutrina da separação de Poderes e busca o tempo todo desviar a atenção da estagnação econômica, que permanece, apesar de uns poucos sinais de recuperação, e de suas supostas ligações com milicianos. Ademais, hostilizou governadores de oposição com acusações descabidas e desafiou a maioria deles a diminuir impostos sem, contudo, dialogar ou apresentar propostas consistentes a esse respeito. Nem a gravíssima crise de segurança do Ceará fez o presidente desautorizar o desrespeito às leis por policiais militares revoltosos.

Mas mais grave é o seu indisfarçável apoio à manifestação convocada por bolsonaristas contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Agredindo jornalistas como Vera Magalhães pelo desmentido disso, como tinha feito com Patrícia Campos Mello, Jair Bolsonaro tenta se livrar da responsabilidade por ações que juristas e políticos consideram que tipificam crime de responsabilidade, mas sabe perfeitamente que manifestações pedindo o fechamento do Parlamento e da Corte Suprema atentam contra a democracia - e, como cumpridor da Constituição, Bolsonaro deveria desautorizá-las.

Trata-se de uma sinalização perigosa de descompromisso com a democracia, que precisa ter resposta firme da sociedade brasileira. A situação abre uma extraordinária janela de oportunidade para que os defensores da democracia representativa mobilizem as suas bases, por meio de seus partidos, associações, sindicatos e grupos religiosos, para reafirmar os valores fundamentais da democracia - a liberdade, a igualdade política e o império da lei -, mas também para debater as distorções das instituições de representação, que causam desconfiança e rejeição popular, especialmente os partidos e o Parlamento.

Nesse sentido, a inconsistência programática dos partidos, a sua falta de democracia interna, o abuso no uso de recursos para campanhas eleitorais, a desconexão entre representados e representantes e, principalmente, o sentimentos de muitos eleitores de não serem relevantes para instituições como o Congresso precisam ser enfrentados, não podem ser deixados apenas como argumentos dos inimigos da democracia.

O desafio é claro. Empresários, formadores de opinião, dirigentes partidários, chefes religiosos, sindicalistas, intelectuais - e, especialmente, os que querem assumir o papel de líderes da Nação - têm de dizer sem subterfúgios que não concordam com as iniciativas dos bolsonaristas, apoiadas pelo governo, contra a democracia representativa e a liberdade. A melhor defesa do regime é enfrentar suas crises para aperfeiçoá-lo, mobilizar a população e pôr as propostas necessárias de reforma em debate. Os democratas precisam fazer isso antes que seja tarde demais.

*Professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), é autor do livro ‘Crises da Democracia - o papel do Congresso, dos Deputados e dos Partidos’ (2019)