bolsonarismo

RPD || Rodrigo Augusto Prando: A politização da vacina e o Bolsonarismo

Alheio às mais de 177 mil mortes por conta da pandemia e já em campo pela reeleição em 2022, Jair Bolsonaro politiza uma questão eminentemente de saúde pública em uma disputa com o Governador João Doria, seu concorrente direto

“Todavia não se pode dizer que haja virtude em exterminar concidadãos, trair os amigos, não ter fé nem piedade nem religião; pois é possível conquistar o poder por esses meios, mas não a glória”
Nicolau Maquiavel – O Príncipe

Provavelmente, o ano de 2020 seja palco não apenas de cenas dramáticas de uma pandemia que levou à enfermidade e à morte milhares de pessoas, mas, também, de uma das maiores evoluções no campo da ciência ao se permitir uma vacina em menos de um ano. Em 08/12/2020, na Inglaterra, foi iniciada a imunização de sua população. E nós, brasileiros, como estamos?

Em nosso país, houve uma conjugação de crises. Crise sanitária, advinda do coronavírus; crise econômica, consequência direta da pandemia; crise política e de liderança, cujo fulcro está nas ações e discursos de Jair Bolsonaro e dos bolsonaristas. Já sabíamos, desde os idos de 2018, que o então deputado Jair Bolsonaro trilhava o caminho sinuoso das redes sociais, especialmente, alicerçado sobre clima de ódio, medo e rejeição – todos característicos da eleição de 2018 – mas, ainda, seguia lépido e à vontade junto às fake news, negacionismos, pós-verdade e teorias da conspiração. Bolsonaro foi eleito, mas não governou nesta primeira metade do mandato.

Situação, provavelmente, inédita de um presidente que, por dois anos, confronta as instituições da democracia, os atores políticos e a própria sociedade e que, nos próximos dois anos, buscará sua reeleição. No bojo de seu presidencialismo de confrontação, Bolsonaro e os bolsonaristas foram, como todos nós, jogados numa situação pandêmica que suspendeu a normalidade de nossas vidas cotidianas. Estamos, todos (ou quase), em compasso de espera pela vacina capaz de nos imunizar, já que não há tratamento comprovadamente eficaz para os quadros mais graves da Covid-19. Desafortunadamente, a pandemia encontrou um presidente sem liderança, um governo que não governa e uma sociedade fraturada politicamente, quase em estado de anomia.  

A ciência, os especialistas, os intelectuais públicos, os jornalistas e a Política foram, nestes tempos de bolsonarismo, atacados e, inicialmente, muitos atribuíam às declarações de Bolsonaro uma perspectiva anedótica, caótica. Em Os engenheiros do caos (2019), Giuliano Da Empoli, asseverou que: “No mundo de Donald Trump, de Boris Johnson e de Jair Bolsonaro, cada novo dia nasce com uma gafe, uma polêmica, a eclosão de um escândalo. Mal se está comentando um evento, e esse já é eclipsado por outro, numa espiral infinita que catalisa a atenção e satura a cena midiática” (p.18). Segundo o autor, esse carnaval populista não é desprovido de método e tem, nos bastidores, os “engenheiros do caos”, cientistas especializados em Big Data, ideólogos e consultores políticos que sabem – e muito bem – o porquê de tensionar as regras da democracia e desacreditar a ciência e o jornalismo profissional.

O Brasil, com cerca de 177 mil mortos, como outros países, aguarda, em compasso de espera, uma vacina ou várias capazes de nos devolver à normalidade. O governo federal abençoa a parceria da Fiocruz com a Universidade de Oxford e o Laboratório AstraZeneca, mas ainda não estendeu apoio ao Estado de São Paulo, cujo Instituto Butantan vem desenvolvendo junto com laboratório chinês Sinovac a Coronavac. Uma questão eminentemente de saúde pública está sendo politizada no altar da disputa política que o Presidente Bolsonaro, já em campo pela reeleição em 2022, vem travando com o Governador João Doria, seu concorrente direto.

Doria acaba de desfechar golpe maquiavélico no Chefe de Estado. Anunciou que, a partir de 25 de janeiro próximo, São Paulo começará a vacinar profissionais da saúde, indígenas, quilombolas e todos aqueles, residentes ou não no Estado, demandaram as dezenas de postos de saúde especialmente montados para atender aos brasileiros. Quanto à autorização da Anvisa, o governador informa que, já este mês – dia 15, mencionou – passará à agência toda as informações e os protocolos necessários para assegurar que, no espaço de 40 dias, a autorização para a vacinação seja concedida, a não ser que haja obstrução política, vale dizer, do Planalto.  

 O cenário que se desenha é bem promissor para o Estado de São Paulo A vacina Fiocruz/Oxford apresentou problemas em seus testes, especificamente no que tange às doses aplicadas nos voluntários, e isto demandará mais estudos, atrasando a conclusão dos testes. Além disso, a produção desta vacina, segundo noticiado, dependerá da construção de uma fábrica, ou seja, de mais recursos financeiros do governo federal. Tal fato demonstra que os investimentos e a logística envolvidos não permitirão que vacinas estejam disponíveis em curto prazo, como a Coronavac em São Paulo. Governadores e prefeitos – há muito descrentes de qualquer liderança presidencial – já se articulam junto ao Butantan e ao Governo de São Paulo para garantir acesso à “vacina do Doria”.  

Não se descartam atos extremados, como a judicialização do tema via Supremo Tribunal Federal, com vistas a forçar o governo federal, em última instância, Bolsonaro, a adotar a Coronavac para todo o país.

O cenário em tela será, por anos, capaz de gerar estudos de caso sobre a liderança (ou falta de) na condução do combate à pandemia, estudos que, banhados em ironia, se poderão enriquecer com a leitura de Maquiavel e suas reflexões em O Príncipe.

*Professor e Pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Graduado em Ciências Sociais, Mestre e Doutor em Sociologia, pela Unesp. 


Demétrio Magnoli: 2 + 2 = 5

A polarização política saltou um degrau, convertendo-se em polarização cognitiva

A pandemia “é uma coisa política”. A Covid-19 “não é tão grave”. As UTIs “não correm risco de colapso”. As quarentenas “destinam-se a quebrar a economia”. Você, como eu, ouve teorias da conspiração desse tipo quase todos os dias. São bolsonaristas? Sim, mas não apenas. Ignorantes? Claro, mas também indivíduos com diplomas universitários — e de instituições prestigiosas. Não se (auto)engane: uma cisão cognitiva profunda atravessa a sociedade.

A extrema-direita não monopoliza as teorias da conspiração. O governo dos EUA sabia de antemão sobre os atentados do 11 de setembro (e talvez até tenha sido responsável por eles). Os EUA deflagraram a guerra na Síria para fortalecer Israel. Os judeus, donos do dinheiro, controlam Wall Street e dirigem a política americana no Oriente Médio. Sergio Moro perseguiu Lula, pois é agente do FBI ou do Departamento de Justiça dos EUA. 2 + 2 = 5: em certas circunstâncias, a esquerda compartilha a paixão pelo pensamento mágico.

A aprovação de Bolsonaro cresceu ao longo da pandemia — e não só entre beneficiários do auxílio emergencial. Na crise sanitária, dois Brasis separaram-se um pouco mais. Numa ponta, situa-se a população que circula na economia digitalizada e no funcionalismo público: os que conservaram seus empregos e salários durante as quarentenas. Na outra, a população presa à economia analógica ou presencial: os que enfrentam o desemprego, a perda de renda, a falência de negócios, a dissolução de patrimônios. Esqueça a conversa condescendente de que “estamos no mesmo barco”. Tente enxergar a paisagem do ângulo desses últimos.

Os “progressistas”, acampados na economia digitalizada, selecionaram seus especialistas. Os mais aclamados, arautos de uma epidemiologia fundamentalista, projetaram milhões de óbitos no Brasil, mesmo sob nossas precárias quarentenas. Nessa linha, exercitando o pensamento mágico, exigiram rígidos lockdowns de duração ilimitada. Como essa exposição do mais cru elitismo foi interpretada do lado de lá, entre trabalhadores “essenciais” de transportes e supermercados, donos de pequenos negócios comerciais, entregadores de aplicativos, ambulantes, empregadas domésticas?

A oferta de intelectuais e acadêmicos é elástica: todas as correntes políticas têm um estoque deles. Surgiram, previsivelmente, os especialistas do negacionismo. Primeiro, eles definiram a Covid como “gripezinha”. Depois, engajaram-se na “guerra da cloroquina” e na denúncia da “vacina chinesa”. No trajeto, apoiando-se nos dramáticos exageros e nas óbvias manipulações dos especialistas aclamados, engajaram-se nas suas próprias manipulações estatísticas, exibindo gráficos que comprovariam um absoluto fracasso de todas as quarentenas. A “ciência” — isto é, um discurso cifrado acompanhado por números —também pode ser posta a serviço de teorias da conspiração. Você tem uma “prova científica”? Ok, eles também: 2 + 2 = 5.

Teorias da conspiração sempre existiram, ainda que se espalhem mais rápido na era das redes virtuais. A demanda por elas vem de baixo, especialmente em tempos de crise, como resposta a difusas angústias sociais. Seu sucesso reflete a fragilidade dos laços de confiança que conectam a massa da população à “elite pensante”. A verdadeira novidade, fonte da força inédita que adquiriram, está no papel desempenhado pelas lideranças políticas da direita populista. Quando, como fazem Trump e Bolsonaro, o chefe de Estado torna-se porta-voz da irracionalidade, rompe-se a barreira psicológica da vergonha, coagulam-se crenças insanas e cada um ganha o direito de proclamá-las em público sem medo da censura alheia.

A polarização política saltou um degrau, convertendo-se em polarização cognitiva. A “elite pensante” não se interroga sobre as raízes da difusão popular de teorias da conspiração. Prefere a via fácil: dialoga exclusivamente com seus pares, repete incansavelmente suas próprias verdades e, nariz cada vez mais empinado, exibindo superioridade moral, faz troça dos “ignorantes”. Não entendeu o óbvio: rindo deles, você reforça as crenças que imagina combater. 2 + 2 = 5.


O Estado de S. Paulo: Como youtubers bolsonaristas ganham R$ 100 mil mensais com informações privilegiadas do Planalto

'Estadão' teve acesso às 1.152 páginas do sigiloso inquérito dos atos antidemocráticos do STF que investiga a organização e o financiamento das manifestações contra a democracia

Patrik Camporez, Breno Pires e Rafael Moraes Moura, O Estado de S.Paulo

Conteúdo Completo

BRASÍLIA - O sigiloso inquérito dos atos antidemocráticos aberto em abril para apurar a organização e o financiamento de manifestações contra a democracia revela que um negócio muito lucrativo estava por trás dos protestos contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso. Mas o que mais causou surpresa foi a descoberta de que informações usadas por uma rede de canais no YouTube, investigados por promover esses atos no País, saíram de dentro do Palácio do Planalto.

A conclusão consta de inquérito com 1.152 páginas, ao qual o Estadão teve acesso. Após sete meses de diligências, as apurações mostraram os elos e a convivência harmoniosa da Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) com os youtubers do “gabinete do ódio”, núcleo palaciano que adota um estilo beligerante nas redes sociais. No fim da manhã desta sexta, o governo afirmou em nota que  está prestando esclarecimentos à Justiça e chama de 'ilação' ligação com rede do ódio.

A existência desse grupo, com essa denominação, foi revelada pelo Estadão, em setembro de 2019. Trabalhando a poucos metros do gabinete do presidente Jair Bolsonaro, o assessor especial da Presidência da República Tércio Arnaud Tomaz e o Coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, ajudante de ordens, são os interlocutores do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, dono do canal Terça Livre, dentro do Planalto.

Tércio é apontado no inquérito dos atos antidemocráticos como elo entre o governo e os youtubers, que possuem acesso privilegiado a Bolsonaro e informaram faturamento de mais de R$ 100 mil por mês. Integrante do “gabinete do ódio”, Tércio repassa vídeos do presidente e participa de grupo de WhatsApp com os blogueiros para “discutir questões do governo”, segundo disse em depoimento à Polícia Federal. Cid, por sua vez, admitiu que, como “mensageiro” de Bolsonaro, leva e traz recados de Allan para ele. O blogueiro atua como uma espécie de representante das demandas dos demais canais.

A investigação feita pela Polícia Federal em inquérito conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, ainda não terminou, mas já atormenta Bolsonaro por fechar o cerco sobre a militância digital bolsonarista. Até agora, foram ouvidas mais de 30 pessoas, entre as quais o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), apontado como comandante do “gabinete do ódio”, e o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filhos do presidente.

“A propaganda de conteúdo extremista no campo digital culmina, de fato, em ações subsequentes: as manifestações reais contra o Estado Democrático de Direito, criando um ciclo que se realimenta, com a difusão das manifestações pelos canais de internet dos produtores, que, por sua vez, são alardeados e replicados em perfis pessoais de redes sociais de agentes do Estado, gerando mais visualizações (difusores)”, constatou a Polícia Federal, em relatório de 9 de julho.

Não passou despercebido dos investigadores que, no período dos protestos antidemocráticos, alguns com a presença de Bolsonaro, vídeos com títulos apelativos pipocaram nas redes sociais. Nessa lista estavam “Bolsonaro rebate conspiradores”, “Bolsonaro dá ultimato para sabotadores e intromissões”, “Bolsonaro invade STF”, “A Força de Bolsonaro é maior que Congresso e STF”, “Bolsonaro e Forças Armadas fechados em um acordo para o Brasil” e “STF decidiu eliminar Bolsonaro”, como registrou a Procuradoria-Geral da República (PGR).

“Com o objetivo de lucrar, estes canais, que alcançam um universo de milhões de pessoas, potencializam ao máximo a retórica da distinção amigo-inimigo, dando impulso, assim, a insurgências que acabam efetivamente se materializando na vida real, e alimentando novamente toda a cadeia de mensagens e obtenção de recursos financeiros”, disse o vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques, em manifestação ao STF.

Com atos contra democracia, canais bolsonaristas aumentaram inscritos e lucros

Levantamento do Estadão identificou que o número de inscritos de onze canais sob investigação aumentou 27% no total, de 6,7 milhões para 8,5 milhões, entre 1º de março e 30 de junho. O período coincide com o das manifestações antidemocráticas. De julho até o fim do mês passado, quando já não havia mais protestos, os canais cresceram apenas 6%.

Nos interrogatórios, a PF tem questionado se os donos de canais são “laranjas” de terceiros. Foi o que ocorreu no depoimento prestado por Anderson Azevedo Rossi. O criador do canal Foco do Brasil respondeu que não repassa dinheiro recebido de monetização do YouTube a outros. Rossi afirmou, porém, que recebe ajuda de Tércio Tomaz para abastecer a sua página.

Por meio do WhatsApp, disse ele, o assessor repassa vídeos de Bolsonaro. Tércio está sempre ao lado do presidente. Filma suas conversas de forma imperceptível e procura flagrar situações que possam constranger quem o incomoda.

Com 2,3 milhões de seguidores no YouTube, Rossi teve uma guinada na carreira desde a ascensão de Bolsonaro. Recebia um salário de R$ 3,5 mil como técnico de informática em sua cidade, Canela, no Rio Grande do Sul. Agora, com os recursos da monetização – a remuneração que o YouTube paga por anúncios publicitários nos canais – faturou com o Foco do Brasil US$ 330.887,08 entre março de 2019 e maio de 2020, o equivalente a R$ 1,7 milhão na cotação atual de câmbio. É um valor aproximadamente 33 vezes maior do que ganhava na função anterior. Rossi chegou a instalar uma sala física do canal em Brasília.

Em depoimento à PF, Tércio negou dar tratamento diferenciado aos donos de canais no YouTube que orbitam em torno de Bolsonaro. Admitiu, porém, ter participado de um grupo de WhatsApp com Allan dos Santos para discutir questões do governo federal. Allan, por sua vez, disse que recebe R$ 12 mil por mês, na condição de “sócio” do Terça Livre, também obtidos por meio de monetização, segundo depoimento prestado à PF. 

Já Fernando Lisboa, do Vlog do Lisboa, fatura de R$ 20 mil a 30 mil por mês. Emerson Teixeira, do canal “Professor Opressor”, informou que tem rendimento mensal de R$ 11 mil. Foco do Brasil, Terça Livre e Vlog do Lisboa veicularam propaganda da reforma da Previdência, paga pela Secretaria de Comunicação (Secom). Exibiram, respectivamente, 57.044, 1.447 e 2.081 inserções publicitárias no YouTube, de acordo com informações enviadas pela Secom à CPMI das Fake News no Congresso, no período de 6 de junho a 13 de julho de 2019.

A lista de canais que difunde o discurso do “gabinete do ódio” inclui ainda a Folha Política, de Ernani Fernandes Barbosa e Thaís Raposo, que informaram rendimento no YouTube de R$ 50 mil a 100 mil por mês. Ao todo, 11 canais, incluindo também o Direto aos Fatos, de Camila Abdo, e o TV Direita News, de Marcelo Frazão, continuam sendo investigados por disseminação de conteúdo contra as instituições. Um deles, da  extremista Sara Giromini, foi excluído do YouTube por ferir normas. Outro, do jornalista Oswaldo Eustáquio, não está mais disponível para acessos no Brasil. Os números de inscritos dos canais que seguem ativos, somados, atingem 9,1 milhões.

Desde a última sexta-feira (27) o Estadão tem pedido uma manifestação da Secom. A reportagem perguntou também se os assessores Tercio Arnaud Tomaz, José Matheus Sales Gomes, Mauro Cesar Barbosa Cid e  Mateus Diniz gostariam de se manifestar, já que são citados no inquérito do STF. Três e-mails foram enviados à Secom, mas não houve resposta.


Maria Hermínia Tavares: Bolsonaro não acabou

Seria um equívoco ler seu destino nas cartas distribuídas nas eleições municipais

As eleições municipais confirmaram o que se viu em 2018: o Brasil dobrou à direita –muito embora os partidos que se beneficiaram dessa virada sejam muitos e diferentes em tamanho e relações com o governo.

De seu lado, mesmo derrotadas, as esquerdas se revelaram competidoras aguerridas em capitais e cidades maiores. Ganhando ou perdendo, mobilizaram os jovens e estão levando pautas progressistas às Câmaras Municipais.

Com razão, comentaristas tem destacado que vitoriosos foram os partidos de oposição a Bolsonaro situados no centro-direita e na direita. PSDB, MDB e DEM governarão o maior número de brasileiros, mesmo tendo perdido Prefeituras. Também é verdade que os candidatos abertamente apoiados pelo presidente foram derrotados; a maioria, já no primeiro turno.

Não está claro, porém, o que isso diz da força política do chefe do governo. E seria um equívoco ler seu destino nas cartas distribuídas nas eleições municipais. Primeiro, porque, salvo o PTB, todas as siglas ajuntadas no centrão, que o sustentam no Congresso, cresceram de forma muito significativa.

Depois, porque, amargando embora a derrota de seus candidatos, o presidente sem partido tem ainda o apoio de 37% dos brasileiros, segundo a pesquisa XP-IPESP, feita após o primeiro turno. Uma porcentagem muito próxima à do primeiro mês de seu mandato (40%), em franca recuperação do seu pior momento, em maio deste ano (25%).

Especialistas no estudo da opinião pública costumam estimar que algo em torno de 15% do eleitorado forma o núcleo duro dos adeptos de Bolsonaro. De fato, a pesquisa “Impactos Políticos da Pandemia”, coordenada pelo cientista político Carlos Pereira, da Fundação Getúlio Vargas, encontrou, em duas rodadas, respectivamente 15,2% e 18,5% dos entrevistados que se dizem dispostos a votar de novo nele em 2022.

No poder, o ex-capitão deu cara e alcance nacional à minoria extrema que já existia no país, mas não tinha um líder com o qual pudesse identificar-se na grosseria da fala, no primarismo da visão de mundo e no medievalismo em matéria de valores e condutas. Essa extrema direita não se esfumará.

Antes, continuará a mostrar presença no dia a dia e na arena eleitoral. Sua relação com os outros tons da direita dependerá de muitas coisas: por exemplo, do que o governo fará ou deixará de fazer diante do repique da pandemia, com as vacinas, com a economia. Mas também das estratégias das direitas ­—das mais próximas ao governo às mais centristas— e, em menor medida, do que façam as esquerdas daqui até 2022. Bolsonaro não acabou e dificilmente acabará tão cedo.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Bernardo Mello Franco: O PT diante da derrota

Foi um tombo histórico. Pela primeira vez, o PT não conquistou a prefeitura de nenhuma capital. Um desempenho ainda pior que o de quatro anos atrás, quando só venceu em Rio Branco.

Em 2016, o desastre era inevitável. O partido havia acabado de enfrentar o impeachment de Dilma Rousseff e as prisões espetaculares da Lava-Jato. Agora não há como culpar os outros. O petismo sucumbiu aos próprios erros — e parte da sua cúpula ainda está em negação.

A presidente Gleisi Hoffmann tentou dourar a pílula. Exaltou a vitória em quatro cidades no segundo turno, embora a sigla tenha perdido em nove. Ela classificou o fiasco como uma prova de que a esquerda “sabe lutar”.

“Não se pode converter derrota em vitória. Derrota é derrota”, reagiu Alberto Cantalice, do diretório nacional do PT. Ele disse em público o que outros dirigentes repetem em privado: sem uma renovação radical, o partido arrisca perder de vez a ligação com o eleitor.

“O antipetismo ficou maior do que o petismo”, desabafa um ex-ministro. Ele considera que houve um “erro grave de leitura” em 2020. O PT apostou tudo na imagem desgastada de Lula, subestimando sua rejeição nos grandes centros. Além disso, recusou-se a apoiar outras siglas para lançar candidatos pouco competitivos.

Em São Paulo, a tática deu errado. Jilmar Tatto ficou em sexto lugar, com menos de metade dos votos do PSOL. Em Belo Horizonte, Nilmário Miranda também acabou em sexto, com 1% dos votos. No Rio, Benedita da Silva amargou a quarta colocação.

“Nós envelhecemos”, admite outro ex-ministro que participou da fundação do PT. Ele ressalta que as novas caras da esquerda emergiram fora da legenda: Guilherme Boulos, do PSOL, e Manuela D’Ávila, do PCdoB. A exceção foi Marília Arraes, derrotada no Recife.

O veterano diz que o PT precisa se reciclar e entender as mudanças da sociedade. As fábricas se esvaziaram, os sindicatos perderam força e os trabalhadores foram empurrados para a informalidade. Um dos públicos a conquistar agora seriam os entregadores de aplicativos. “Nosso drama não é só eleitoral. Para sair do fundo do poço, temos que nos reconectar com o povo”, resume. 


Vinicius Torres Freire: Meteoros vermelhos caem, esquerda se renova e centrão domina

Eleição municipal foi uma onda cinza, dominada pelo crescimento do PSD e pelo ressurgimento do DEM

Os meteoros vermelhos que brilharam nesta eleição caíram. Os candidatos mais jovens da esquerda perderam, por diferença de votos maior do que as das projeções de véspera das pesquisas. O PT não venceu nenhuma capital. O PSOL conquistou Belém, com Edmilson Rodrigues, prefeito agora pela terceira vez, com um vice do PT, batendo o candidato bolsonarista.

De destaque, foi tudo. A eleição foi uma onda cinza, dominada pelas sub-legendas do centrão, pelo crescimento do PSD e pelo ressurgimento do DEM, onda confirmada neste segundo turno.

Guilherme Boulos (PSOL) perdeu para o PSDB em São Paulo, Marília Arraes (PT) perdeu para a “esquerda de centro” do PSB em Recife, Manuela D’Ávila (PC do B) perdeu para a velha política do MDB em Porto Alegre.

Sob certo aspecto, ainda assim essas derrotas têm um quê de ressurreição no fundo do poço. Nessas cidades muito grandes, simbólicas e importantes, candidatos de cara nova mostraram que a esquerda tem um grande potencial de votos. Deve haver mais gente no restante do país disposta a ouvir candidatos esquerdistas. Talvez seja necessário mudar a conversa.

As derrotas do PT e a passagem dos meteoros vermelhos indicam que o eleitorado desse campo do território político procura alternativas ou pode prestar atenção nelas. As lideranças nacionais da esquerda, ao menos em poder de voto, estão agora divididas em vários partidos, das velhas às novas, de Ciro a Boulos. O PT aparece no retrato, mas num canto.

Das legendas contadas como “esquerda” na geografia do Congresso, apenas o PDT de Ciro Gomes teve resultados razoáveis, em termos de números. Quase manteve o número de prefeituras conquistadas pelo país na eleição passada. Ganhou em duas capitais, Aracaju e Fortaleza.

O PT levou apenas 4 das suas 15 disputas de segundo turno, em redutos tradicionais em Minas Gerais, com duas prefeitas eleitas (Contagem e Juiz de Fora), e na região metropolitana de São Paulo (Mauá e Diadema).

Foi o partido com mais candidatos na disputa final deste domingo (em 2016, disputou apenas 7 rodadas finais). Mas esse desempenho não apaga nem traços do desastre na cidade de São Paulo e da derrota da renovação que seria Marília Arraes, novidade sabotada pelo PT local até quase as vésperas da campanha eleitoral.

Um problema do partido, notável neste século, pode explicar parte de suas dificuldades: o centralismo, o culto da personalidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o escanteamento das novas lideranças, o abafamento de quem ponha a cabeça para a fora, a desconexão crescente com os novos movimentos sociais. Tudo isso dificulta a renovação de quadros e ideias do PT.

Em parte, o PSOL, em especial o paulista, cresceu neste vácuo, mostrando caras novas e levando coletivos e movimentos sociais novos da periferia para o Legislativo.


Hélio Schwartsman: O encolhimento do PT

Partido precisa apresentar lideranças renovadas

O PT é um dos partidos que saem derrotados destas eleições. Pela primeira vez em 35 anos, não comandará nenhuma capital do país.

No cômputo geral, viu o total de prefeituras conquistadas reduzir-se de 254 em 2016 para 183 agora, com o incômodo detalhe de que as eleições municipais anteriores já haviam sido catastróficas para a legenda, que despencara de seu recorde de 630 prefeituras em 2012.

E não é só. Em duas das capitais mais dinâmicas, São Paulo e Porto Alegre, nas quais o PT tinha quase que cadeira cativa no segundo turno, os candidatos de esquerda que chegaram à disputa final eram de outros partidos, PSOL e PCdoB.

Esses são fatos objetivos que só um Trump ou um Bolsonaro ousaria negar. Apesar disso, eles não pintam um quadro muito completo da realidade. Se escarafuncharmos bem os dados, encontraremos pelo menos uma boa notícia para a sigla.

Embora tenha vencido em apenas quatro, o PT chegou ao segundo turno em 15 cidades (o maior número de participações entre todas as legendas). Em 2016, haviam sido apenas sete, dos quais saiu derrotado de todos. Acho que dá para afirmar que o eleitor dos maiores centros urbanos recolocou o partido na condição de ator importante, ainda que não o tenha contemplado com tantas vitórias.

Não há nada de muito surpreendente aí. Tirando momentos de recessão democrática como o atual, o embate mais natural de uma democracia é entre forças de centro-esquerda e de centro-direita. O PT havia sido, nas últimas quatro décadas, a sigla que melhor representava a centro-esquerda.

Poderá continuar a exercer esse papel, desde que interprete corretamente os recados dos eleitores e responda a eles. O mais eloquente é que o PT precisa apresentar lideranças renovadas. Não dá para as três prioridades do partido continuarem sendo o salvamento da biografia de Lula, e a quarta, a defesa de regimes como o venezuelano e o cubano.


Cristina Serra: A difícil travessia de 2021

Foi um alívio assistir à confirmação do fracasso de Bolsonaro como cabo eleitoral

As eleições municipais de 2020 desenham alguns contornos importantes sobre o realinhamento de forças conservadoras e progressistas no Brasil. Desde a ruptura institucional de 2016, que deve ser chamada pelo nome de fato, ou seja, golpe, essas forças vêm passando por uma reacomodação.

No pleito de agora, foi um alívio assistir à confirmação do fracasso de Bolsonaro como cabo eleitoral, sobretudo com a derrota esmagadora de seu aliado no Rio de Janeiro, o inqualificável bispo Crivella. Até aí, estamos falando da extrema direita. Já no campo da direita mais tradicional, é preciso, antes de tudo, apontar uma falácia. Partidos de direita fazem um tremendo esforço para vender a imagem de centristas. Mas é preciso não perder de vista o DNA dessas legendas. PP e DEM, por exemplo, têm sua origem no PDS, partido de sustentação da ditadura. Haja marketing para tirar esse bolor.

Também é difícil reconhecer no PSDB comandado por Bolsodória o perfil de centro (alguns diriam centro-esquerda) do partido criado em 1988 por FHC, Mário Covas e Franco Montoro. Como já era esperado, no dia seguinte às eleições, Doria voltou a adotar medidas impopulares de restrição, em São Paulo, para tentar conter a pandemia. Qual o custo humano de esperar o fechamento das urnas para anunciar essa decisão? Feitas essas considerações, é forçoso reconhecer que as legendas de direita —e não o centro— saíram fortalecidas em 2020.

Entre os progressistas, há um vácuo de estratégia. O PT perdeu preponderância, e partidos que disputam o mesmo campo não conseguem envergadura nacional. É de se notar, porém, uma bem-vinda renovação geracional na figura de Guilherme Boulos. Como esses eixos políticos se alinharão para 2022 depende menos desta eleição e muito mais da travessia que faremos em 2021. Bolsonaro e sua irresponsabilidade criminosa continuam. A pandemia também, com todos seus efeitos: morte, desemprego e fome. Com o agravante de que estamos todos exaustos.


El País: PT não conquista nenhuma capital pela primeira vez desde 1985 e volta ao tamanho ‘pré-Lula’

Com estratégia focada em chapas próprias e enfrentando a força do antipetismo, partido segue o encolhimento que já protagonizava desde 2016 e deverá enfrentar debate sobre futuro da sigla

Beatriz Jucá e Joana Oliveira, El País

Partido dos Trabalhadores (PT) não elegeu nenhum candidato próprio nas capitais brasileiras nestas eleições até agora ― está ainda na disputa em Macapá, onde as eleições foram adiadas. É a primeira vez que isso acontece desde a redemocratização do país, em 1985. Em todo o Brasil, o partido conquistou apenas 183 prefeituras, enquanto outras siglas tiveram resultados muito superiores, como MDB e PP, que superaram as 600 prefeituras cada uma. Seguiu o encolhimento que já protagonizava desde 2016, quando fez 254 prefeitos e voltou, neste ano, a um tamanho semelhante ao que tinha antes dos Governos de Luiz Inácio Lula da Silva, iniciados em 2003 - cerca de 200 cidades com comando do partido.

Por um lado, é uma amostra que o antipetismo segue como uma força política significativa. De outro, trata-se do resultado de uma estratégia que optou por, quase sempre, lançar chapas próprias em detrimento de alianças com outras siglas de esquerda. É o caso de São Paulo, onde o candidato Jilmar Tatto amargou menos de 10% dos votos no primeiro turno, assistindo à ida de Guilherme Boulos, do PSOL, à segunda rodada eleitoral. O resultado foi a fragmentação dos votos e a consolidação de partidos como o PDT e o próprio PSOL como novas opções ao eleitorado de esquerda.

Apesar do resultado das urnas, analistas políticos afirmam, no entanto, que é prematuro falar em uma derrocada política completa. O PT ainda demonstra alguma força. Foi novamente às urnas em 20 das 57 cidades que tiveram segundo turno ― todas elas com colégios eleitorais significativos. E venceu em quatro delas: Contagem, Juiz de Fora, Diadema e Mauá.

Na maioria das cidades, o PT apostou em candidaturas de ex-prefeitos que contavam com a marca da experiência. O objetivo do partido era retomar espaço dentre os 96 maiores colégios eleitorais brasileiros, grupo que inclui as 26 capitais de estados e 70 cidades de interior com mais de 200 mil eleitores, um contingente em que, há quatro anos, o partido venceu apenas em Rio Branco (AC). A maior cidade que será governada por um petista a partir do ano que vem é Contagem, a terceira maior de Minas Gerais, onde a ex-prefeita Marília Campos venceu o advogado Felipe Saliba (DEM) por margem estreita (51,35% dos votos).

“Não posso cravar uma derrocada do PT, mesmo porque esteve em 15 das 57 grandes cidades que tiveram segundo turno. Não é porque perdeu em 11 que vou desconsiderar esta força e dizer que vão esquecer o partido”, declara o cientista político Rudá Ricci. Feita esta ponderação, Ricci avalia que o partido sai diferente destas eleições e prevê que deverá enfrentar um embate interno pela mudança de perfil de seus filiados com mandato. Isso porque candidaturas que tiveram êxito nas urnas, como por exemplo em Contagem e Juiz de Fora, não representam a ala majoritária do PT, ligada ao ex-presidente Lula. “Acho que vai ter um embate interno muito importante porque a corrente majoritária saiu derrotada. Mudou a conjuntura política de quem tem mandato no PT. E não dá pra fazer mais a narrativa que coloca a culpa nos outros”, analisa Ricci.

Já Wilson Gomes, filósofo, professor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital, diz que “o PT estancou a sangria de 2016, mas teve uma grande perda nos dez maiores colégios eleitorais do país [São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte, Fortaleza, Curitiba, Manaus, Recife, Porto Alegre e Belém]”, explica

A presidente nacional do partido, Gleisi Hoffmann, tentou defender os resultados alcançados. Destacou que o PT venceu em quatro das 15 cidades que disputava neste domingo e que teve mais de 40% dos votos em nove delas. “Vencemos com o PSOL em Belém, lutamos ao lado de Boulos e Manuela. E o Brasil viu o q fizeram p/ barrar Marília em Recife. O PT segue junto com o povo”, acrescentou. E arrematou dizendo que o “segundo turno mostrou que a esquerda sabe lutar”.

Mudança de perfil

Neste ano, o eleitor que votou nas candidaturas de centro-esquerda não mais associou este campo diretamente ao PT, pontua Ricci. Este eleitorado votou de forma mais plural, em candidatos do PSOL e do PDT, por exemplo. “O PT vinha crescendo desde os anos 1980 e fez quatro vezes a presidência, então ofuscava estes partidos, que agora cresceram”, avalia. O cientista político vê uma transição se formando no campo de centro-esquerda brasileiro, cujas inovações estariam sendo protagonizadas especialmente por mulheres e suas candidaturas coletivas às câmaras municipais. O campo começa, ainda, a apresentar uma pluralidade de lideranças. Ele cita como exemplo nomes como Manuela D’Ávila (PCdoB)Guilherme Boulos (PSOL) e Marília Arraes (PT). Embora nenhum deles tenha vencido no segundo turno, ganharam destaque e foram competitivos. Seria, portanto, uma pluralidade de lideranças que o cientista político não vê no campo de centro-direita.

O Partido dos Trabalhadores começou a crescer nos anos 1980, mas a partir do final dos anos 1990 afastou-se do “modo petista de governar” no âmbito local, representado, por exemplo, pela ideia de um orçamento participativo, conselhos e inversão de prioridades. Com a chegada de Lula ao poder, em 2002, o partido montou um modelo de coalizão ampla que o aproximou do modelo de centro-direita que tradicionalmente domina as prefeituras brasileiras. Nunca chegou a ser um partido majoritário nas municipais, mas ganhou fôlego. Em 2008, fez 557 prefeitos e se tornou a terceira força política do país. Em 2012, chegou a 632 prefeituras. No âmbito nacional, se afastou das bases e dos movimentos sociais e foi se parlamentarizando, com deputados em postos de liderança interna. A partir de 2016, voltou a encolher nos municípios. “Lula não mudou essa lógica do centro-direita da política brasileira. Ele a reforçou. É como se tivéssemos uma cabeça de esquerda e o corpo todo de centro-direita”, compara Ricci. Esta trajetória, para o cientista político, soma uma sucessão de erros estratégicos.

Para Wilson Gomes, um dos maiores equívocos é a resistência a olhar o espelho. “O PT está muito envelhecido, sua cúpula está envelhecida, mas o partido não faz nenhuma mudança em sua autoimagem, nenhuma autocrítica, nada”, diz.

“O PT se tornou um partido com a lógica tradicional, mas que tinha relações com a base marginalizada. É um partido funcional do sistema, mas a base não romperia com este sistema porque tinha o PT e as instituições como canal. Chegou um momento que este canal ficou interditado”, aponta Ricci.Gomes, que considera que o “antipetismo foi o maior eleitor em 2016 e em 2018″, avalia que esse sentimento demonstrou ter ainda grande poder eleitoral em 2020.“Vimos, por exemplo, até um vídeo de Silas Malafaia apoiando João Campos, um candidato supostamente progressista, só para fazer oposição ao PT de Marília Arraes, mesmo em um estado em que ele não tem interesses diretos”.

Mas os resultados deste ano pouco apontam para a discuta de 2022, considera Ricci. “O eleitor está procurando outros caminhos”, analisa. Após uma decepção com o bolsonarismo, o eleitor médio voltou à moderação e ao conhecido e fez dos partidos de centro-direita os grandes vitoriosos desta eleição. “Ele está em transição, abandonando a extrema direita e o totalmente novo de 2016 e de 2018. Ao mesmo tempo, o campo do centro-esquerda também está tendo uma transição importante”, diz.

O antibolsonarismo cresceu e tornou-se uma força política. Prova disso é que 11 dos 13 candidatos apoiados pelo presidente da República não foram eleitos. “Mas isso não significa que o antipetismo diminuiu”, pondera Gomes. “A questão é que o que demorou 13 anos para chegar para o PT chegou em apenas dois para Bolsonaro. Não sei se o que mais prejudicou ele foram as eleições nos Estados Unidos ou as municipais brasileiras”, acrescenta.


El País: Eleições municipais 2020 trazem vitória de pauta social e derrota do programa bolsonarista

Candidatos à direita e à esquerda que se preocuparam com aflições concretas do eleitor como saúde, educação e emprego foram eleitos ou tiveram bons resultados, mostram urnas e analistas

Aiuri Rebello, El País

Apurados os votos do segundo turno das eleições municipais e definidas as posições dos jogadores nessa rodada do xadrez político, uma coisa ficou clara: o grande vencedor foi a pauta social. Em meio a uma crise econômica que já dura seis anos com poucos refrescos e a maior pandemia em mais de um século com a covid-19, sem nenhuma solução concreta à vista para os dois problemas e seus desdobramentos, o eleitor brasileiro depositou seu voto naqueles que conseguiram sinalizar saídas ou mostrar realizações em áreas como saúde, educação e emprego. Candidatos à esquerda e à direita que deixaram essa temática evidente durante o processo eleitoral foram eleitos ou obtiveram resultados politicamente importantes, apesar da derrota.

Na contramão, os que ignoraram esses assuntos e tentaram fazer neste ano uma reedição de 2018 —surfando no apoio do presidente Jair Bolsonaro e focados em questões de costumes e segurança pública— encontraram problemas para se eleger e foram derrotados na maioria dos casos e nas principais cidades do país. É o que mostram os resultados das urnas e a análise de especialistas ouvidos pelo EL PAÍS.

Reeleito em São Paulo com 59% dos votos válidos, Bruno Covas mostrou-se sintonizado com o humor do eleitorado e buscou afastar a imagem de direita deixada pela administração que herdou do governador João Doria em 2018. Para isso, contou com as ações de combate à pandemia como a criação de hospitais de campanha que funcionaram, e escondeu o padrinho durante toda a campanha, focando seu discurso em questões sociais. “Vamos construir o consenso, é momento de diálogo e união”, declarou Covas após a vitória. “Temos que combater as desigualdades, temos que combater o coronavírus, investir em saúde e educação, e fazer da nossa gestão um mantra na busca de emprego e oportunidades”, completou.

As eleições, de um modo geral, mostraram que a expectativa do eleitor mudou. “É muito diferente do humor eleitoral que a gente tinha em 2018, muito diferente, que por sua vez já estava colocado nas eleições municipais de 2016”, afirma o cientista político Fernando Abrucio, professor da Fundação Getulio Vargas. “Em 2018 não se discutiram questões sociais no país. E não é só uma questão da esquerda. Se você pegar a campanha do Boulos e do Covas, são muito parecidas nesse sentido”, diz. Abrucio fez uma análise da campanha de Covas, e diz que mais de 80% do tempo de TV foi dedicado a questões sociais. “Na campanha de 2016, o Doria falou menos da metade em questões sociais. Era o gerente, antipetismo e isso aí”, afirma.

O filósofo e analista político Roberto Romano, professor aposentado da Unicamp, concorda. “Me parece que levou vantagem neste ano aqueles que mostraram mais preocupação com os fatos da vida cotidiana das pessoas”, diz ele, que vê também um reequilíbrio das forças políticas em uma configuração mais estável do que a vista em 2018. “Foi uma reconfiguração do sistema político pós Operação Lava Jato”, afirma o cientista político Vinícius do Valle. “A direita teve de se reposicionar mais ao centro e se afastar do extremo. Essa centro-direta ganhou espaço e vai disputar votos com uma esquerda que passa por um processo de renovação e está mais plural.”

Derrotado na capital paulista, Guilherme Boulos, do PSOLconseguiu mais de 2 milhões de votos e sair maior do que entrou dessa eleição. Desponta como uma das novas lideranças da esquerda brasileira e um nome importante para a composição de forças para as eleições de 2022. “Não foi dessa vez, mas a gente vai vencer”, disse o candidato oriundo do MTST, movimento social de luta por moradia. Por outro lado, o candidato que apostou no apoio do presidente Jair Bolsonaro como grande diferencial de sua campanha naufragou já no primeiro turno. Celso Russomanno, do Republicanos, obteve 10% dos votos.

Dentre as maiores capitais do país, os candidatos bolsonaristas não conquistaram nenhuma vitória. Vencedor no segundo turno do Rio de Janeiro com 64% dos votos válidos contra o candidato do presidente Bolsonaro e prefeito em busca de reeleição Marcelo Crivella (Republicanos), Eduardo Paes, do DEM, foi quem deu o tom e largada para a disputa de 2022. “Esse governo que acaba foi ruim na gestão, piorou a vida das pessoas e fez mal a tanta gente”, afirmou ao lado do correligionário e presidente da Câmara, Rodrigo Maia. “Esse clima de raiva, de muito ódio não fez bem ao Brasil e nem aos cariocas, vamos mudar isso daqui pra frente.”

“Não só no segundo turno, mas nas principais cidades do país o que vemos é uma derrota muito forte do bolsonarismo”, avalia Abrucio. “Ele teve derrotas muito claras em campanhas nas quais se envolveu, mas não é só isso. O discurso dos vencedores anuncia já um clima de opinião muito diferente do clima de 2018. A eleição municipal é importante não para dizer quem vai ganhar a eleição presidencial, mas para vermos o humor, os assuntos, o clima de opinião”, diz.

O cientista político observa que em Fortaleza o candidato do bolsonarismo até tentou mudar o discurso, chegou a melhorar a performance, mas não foi bem-sucedido. “Ele veio na vaga da segurança pública e tal, tentou mudar a lógica do discurso e começou a falar que o grande problema de segurança era uma questão social e não de polícia tentando desgrudar sua imagem da do presidente de qualquer forma”, diz Abrucio. A estratégia não funcionou e Sarto Nogueira, candidato do PDT e de Ciro Gomes, venceu Capitão Wagner, do PROS, com 51% dos votos válidos.

Abrucio aponta que em Goiânia o senador Vanderlan Cardoso, do PSD, começou a apresentar queda acentuada nas pesquisas de intenções de voto conforme abraçou a pauta bolsonarista e passou a defender na campanha o presidente e seu Governo. Mesmo intubado na UTI com covid-19, Maguito Vilela, do MDB, ganhou no segundo turno com 52% dos votos válidos.

Em Belém, Edmilson Rodrigues (PSOL) venceu o segundo turno com 51,76% dos votos válidos. O candidato do PSOL venceu Everaldo Eguchi (Patriota), um ex-delegado da PF que faz discurso anti-corrupção na capital do Pará, seguindo a fórmula lavajatista que funcionou em 2018, mas perdeu o brilho em 2020. A disputa foi acirrada, mas pesquisas recentes já mostravam Edmilson Rodrigues à frente.

Já em Porto Alegre, Sebastião Melo, do MDB, venceu Manuela D’Ávila (PCdoB) com 54% dos votos válidos e, também, um discurso de foco na saúde, emprego e educação. Na capital gaúcha, porém, a vinculação, errônea, de Manuela à extrema esquerda teve algum peso na reta final, o que mostra ainda um recall dos últimos pleitos. Para o cientista político Rudá Ricci, trata-se de uma eleição “de transição”, escreveu ele no Twitter. “A marola do antissistema de extrema direita e apolítico acabou. O eleitor cravou no conhecido e tradicional. Nessa, o centro-direita levou a melhor”, concluiu.

Do Valle faz a mesma leitura. “A centro-direita é a principal vencedora porque conseguiu se descolar da imagem do Bolsonaro e se colocar como uma força política em si, apesar de ainda não ter um nome muito forte ou definido. Virou um desafio para o presidente”, diz do Valle. “O bolsonarismo vai ter que buscar uma forma de juntar forças e agora enfrentar esses dois polos. A centro-direita e essa esquerda que renasce das cinzas ainda de uma forma bem plural e comanda capitais importantes fora da sombra do PT.”

O resultado das eleições já apontam as diretrizes para a eleição presidencial dentro de dois anos. “O grande tema para 2022 é a questão social no país. E isso é o contrário do bolsonarismo”, afirma Abrucio. “E ainda tem a mudança de humor no cenário externo, com a eleição de Joe Biden e que ainda não foi sentida por aqui”, diz ele. “A União Europeia agora vai atacar fortemente isso e a China e os EUA também. Vai juntar os três para pressionar o Brasil. A gente começa a perceber que existe uma mudança externa, a pandemia, o resultado das eleições municipais… isso tudo indica que aquela agenda e clima polarizado de opinião que imperou em 2018 acabou, já era”, afirma. Para Roberto Romano, o bolsonarismo sai menor, sem dúvida. “Ele vai chegar em 2022 em uma situação difícil, e até lá vamos sofrer muito com ele.”

Se o bolsonarismo perdeu espaço nestes eleições, a situação não ficou melhor para o PT. O partido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não ganhou em nenhuma capital. Foi o pior resultado na história da sigla desde 1985. No segundo turno em Vitória e no Recife, era em Pernambuco que a sigla tinha mais chance de manter pelo menos um bastião entre as capitais brasileiras, mas não deu. João Campos, do PSB, bateu Marília Arraes com 56% dos votos válidos.


Bruno Boghossian: Ministros já consideram 'inevitável' tentativa de Bolsonaro de contestar eleição se perder em 2022

Autoridades trabalham para desmontar teorias e veem orquestração para desacreditar processo de votação

Autoridades responsáveis pelo planejamento das próximas eleições já consideram inevitável uma investida do grupo político de Jair Bolsonaro contra o processo de votação em 2022. Ministros de tribunais superiores começaram a trabalhar para conter a tentativa crescente de desacreditar esse sistema.

A contestação sem provas da estrutura de votação no primeiro turno das eleições municipais foi o sinal de que a orquestração começou. Ainda no domingo (15), informações falsas sobre a segurança das urnas nasceram no submundo das redes e foram abraçadas por políticos da base radical do presidente.

A semana terminou com um dos ataques mais intensos e infundados do próprio Bolsonaro contra as eleições. "Fui roubado demais", disse o presidente a apoiadores, na sexta (20), sobre a disputa que ele mesmo venceu em 2018. "Ninguém acredita nesse voto eletrônico", declarou.

Bolsonaro trabalha numa enganação preventiva. Sem nenhum elemento além de textos conspiratórios e imagens falsas, os aliados do presidente preparam terreno para contestar uma eventual derrota em sua corrida pela reeleição.

O roteiro ficou claro para os ministros que vão organizar a disputa de 2022. Não é coincidência que o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, tenha citado a participação de "milícias digitais" com "motivação política" nos ataques feitos ao tribunal na semana passada.

A ação desse ano abriu uma brecha para a busca de um antídoto contra potenciais tentativas de subverter o resultado da próxima eleição. Investigadores vão buscar vínculos entre personagens da órbita de Bolsonaro e a construção de um mecanismo para difundir o discurso falso de fraude eleitoral.

Ministros acreditam que essa é a única maneira de travar o processo artificial de erosão da confiança na votação. Sem isso, eles dizem que os ataques sem provas vão continuar. Se Bolsonaro for derrotado, a ação de radicais bolsonaristas pode terminar nos tribunais.


Alon Feuerwerker: As dúvidas sobre o frentismo em 2022

Confirmou-se que o primeiro turno das eleições municipais trouxe a capilarização dos partidos da base do governo, e que por isso tinham, e aproveitaram melhor, o acesso ao orçamento federal. Viu-se também um certo movimento de continuidade, natural e esperado em meio a uma pandemia. Notou-se ainda a resiliência da esquerda, fenômeno facilmente detectável na manutenção dos votos para vereador e na votação significativa nos grandes centros.

O debate agora é sobre o que o resultado de 2020 projeta para 2022. Com os necessários cuidados, pois não há transposições mecânicas. E falta muito tempo político. Feitas as ressalvas, a dúvida que fica é sobre os possíveis blocos e alinhamentos. E para esse debate é útil a observação do que vai se dar no segundo turno, daqui a uma semana. Pois ficará claro o estágio atual da disposição dos diversos atores para alianças e formação de coalizões. Informação essencial para definir a tática.

Já está explícito, por exemplo, que mesmo as frações mais resistentes a alianças e frentismos na esquerda estão dispostas a votar em qualquer candidato não bolsonarista para derrotar o bolsonarismo. A opção do presidente da República por manter o discurso e a prática alinhados ao que podemos chamar de núcleo ideológico facilita um agrupamento quase automático de forças contrárias quando só há duas opções.

Mas, atenção, desde que o adversário seja palatável aos que em 2018 votaram Bolsonaro ou se abstiveram, e agora procuram outro caminho.

E se em 2022 o presidente for ao segundo turno contra alguém da esquerda? Neste momento, não é excessivo supor que ele deverá arrastar de volta pelo menos uma parte dos arrependidos. Ou será que não? Duas das disputas neste segundo turno são um termômetro para tirar a dúvida. Vitória (ES), onde a o PT está no segundo turno, e Belém, onde o adversário do candidato bolsonarista é do PSOL.

Em Fortaleza, o cirismo parece ter formado com facilidade a frente antibolsonarista. Veremos o resultado na urna. Mas, e em Vitória e Belém, o autonomeado centrismo ficará de que lado?

De todo modo, 2022 projeta forte pulverização de candidaturas majoritárias, pelos menos das forças com pouco acesso a orçamentos públicos. Porque o voto majoritário é uma ferramenta preciosa para puxar o voto proporcional, e não custa lembrar sempre que daqui a dois anos a cláusula de desempenho na votação para a Câmara dos Deputados estará colocada alguns centímetros acima do que em 2018.

E a votação para deputado federal, além de definir se o partido fica na Série A ou cai para a B, acaba também definindo quanto a legenda terá de espaço no horário eleitoral e verba do fundo eleitoral em 2024 e 2026. Não é pouca coisa em jogo.

Portanto, é ilusão imaginar alianças muito amplas na largada. Cada um precisará caminhar com suas próprias pernas. Talvez haja alguma convergência entre MDB, PSDB e Democratas, notam-se ensaios. E entre as legendas do chamado centrão, estrito senso, e talvez em torno do presidente da República. O que dependerá, obviamente, da popularidade de Jair Bolsonaro quando chegar a hora de tomar as decisões.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação