bolsonarismo

Faixa pode ter sido usada por golpistas como escudo de proteção - Marcelo Camargo/Agência Brasil

PF investiga se vândalos bolsonaristas receberam treinamento antes do ataque a Brasília

Brasil de Fato*

A Polícia Federal (PF) investiga se parte dos golpistas apoiadores de Jair Bolsonaro (PL) que invadiram a Praça dos Três Poderes em Brasília no último dia 8 de janeiro recebeu algum tipo de treinamento para encarar as forças policiais. A informação foi publicada nesta quinta-feira (19) em reportagem do jornal Valor.

Segundo a apuração do jornal, uma série de evidências demonstraria que ao menos uma parte do grupo tinha sido preparada para o confronto. O uso de máscaras e luvas por muitos dos invasores seria um desses indícios. As armas brancas também não parecem ter sido escolhidas por acaso: vários usavam soco inglês e estilingue.

Objetos como cabos de bandeiras, pedaços de pau e pedras também foram usados. Além disso, até mesmo uma faixa verde e amarela de grande pode ter sido levada pelo grupo para servir como proteção contra balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo.

A reação de parte dos bolsonaristas ao gás lacrimogêneo é um dos pontos que fizeram as suspeitas avançarem, segundo o Valor. Muitos resistiram aos efeitos do gás, que, além das lágrimas, causa tosse. Mesmo após o lançamento das bombas, integrantes do grupo seguiam determinados, o que teria chamado atenção dos policiais presentes.

Outro indício, apontou a reportagem, foi a maneira como a invasão ocorreu. Enquanto um grupo partiu para o Congresso, outras duas frentes seguiram rumo ao Palácio do Planalto e à sede do Supremo Tribunal Federal (STF), em movimento aparentemente coordenado.

Após ter acesso aos dados sobre a investigação, o Valor procurou a PF para confirmar as informações, mas a corporação afirmou que não comenta investigações em andamento.

Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.


Nas entrelinhas: Zema, Leite e Tarcísio já disputam a liderança da direita

Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense*

O ex-presidente Jair Bolsonaro não morreu, mas a possibilidade de que venha a se tornar inelegível, em razão de seu envolvimento na tentativa de golpe contra a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, precipitou uma corrida entre os governadores de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo); do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB); e de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos). Cada um, ao seu estilo, busca liderança das forças conservadoras do país para a formação de uma nova direita, mais moderada e comprometida com a democracia.

Essas são as peças que estão se movendo no tabuleiro, no lusco-fusco do isolamento da extrema direita, num ambiente político em que a polarização Bolsonaro versus Lula se mantém na base do “hay gobierno, soy contra”. A expressão criada pelos anarquistas espanhóis é a tradução popular de uma filosofia que vê todas as formas de autoridade governamental como desnecessárias e indesejáveis. Uma utopia irrealizável, o anarquismo defende uma sociedade baseada em cooperação voluntária e livre associação de indivíduos e grupos. No Brasil, o bolsonarismo incorporou a violência anárquica como forma de luta.

O bolsonarismo cresceu no bojo do sentimento antigovernista das manifestações de junho de 2013, contra o governo Dilma Rousseff, que desaguaram no impeachment da presidente da República e, depois, em 2018, na eleição de Jair Bolsonaro. Existe na classe média, principalmente entre profissionais liberais e empreendedores, um sentimento do tipo “hay gobierno, soy contra”, por causa dos impostos, da má qualidade dos serviços públicos e da ojeriza à política e aos políticos por causa da corrupção. De certa forma, Bolsonaro conseguiu capturar esse sentimento, somando esses setores a uma base eleitoral reacionária, até então formada por corporações que integram o “partido da ordem”, e conservadora, alicerçada nos evangélicos e na defesa da família unicelular patriarcal.

Como Jair Bolsonaro, Romeu Zema foi catapultado ao governo de Minas pelo tsunami eleitoral de 2018. Reeleito no primeiro turno, apoiou Bolsonaro no segundo turno e, agora, está assumindo o protagonismo na oposição ao governo Lula e ao Supremo Tribunal Federal (STF), com ataques ao ministro da Justiça, Flávio Dino, que responsabiliza pelo vandalismo na Praça dos Três Poderes, acusando-o de omissão, e ao ministro Alexandre de Moraes, pelo afastamento do governador de Brasília, Ibaneis Rocha, que considera arbitrário e inconstitucional. Minas Gerais é um estado decisivo nas eleições presidenciais; no segundo mandato, é natural que Zema tenha pretensões de se tornar presidente da República. Saiu na frente na disputa pela liderança da oposição conservadora.

Polarização e terceira via

De certa forma, Lula aceitou a polarização com Zema. O ministro da Justiça, Flávio Dino, que é senador eleito e ex-governador do Maranhão, não rebateria o governador mineiro com a dureza que o fez sem autorização do presidente da República. “Me espanta que o governador Zema tente vestir a roupa do Bolsonaro. Não cabe nele… É preciso que ele tenha algum amigo sincero que diga a ele… Primeiro, porque Minas Gerais é a terra de Tiradentes, de Tancredo Neves, é a terra da democracia… Então, não é possível que um governador, de modo vil, se alinhe à extrema direita para proteger terrorista. Fica feio…”

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, também reeleito, é outro que já está se lançando ao pleito de 2026. É uma novidade na política brasileira. Defende uma agenda econômica neoliberal, mas esse conservadorismo não se traduz em pauta dos costumes, quando nada porque Leite é gay assumido, num estado de grande tradição machista. A estratégia de Leite é a formação de um grande partido de direita moderada, a partir da ampliação da federação do PSDB com o Cidadania, somando-se ao Podemos, que acaba de incorporar o PSC, na esperança de viabilizar uma nova “terceira via”.

Supostamente, isso possibilitaria tomar a bandeira da ética de Bolsonaro, para disputar a liderança moral da sociedade. Leite tem dois problemas: somente venceu as eleições com apoio do PT, que negociou sua neutralidade; e não terá amplo respaldo dos bolsonaristas. Além disso, só há um precedente de presidente gaúcho eleito pelo voto direto, Getúlio Vargas, em 1950, mesmo assim depois de ter governado o Brasil por 15 anos como ditador. Entretanto, precisa de apoio federal para fazer um bom segundo mandato.

A maior vitória de Bolsonaro em 2022 foi a eleição do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, seu ex-ministro da Infraestrutura, quebrando a longeva hegemonia tucana. O Palácio dos Bandeirantes tradicionalmente é o ponto de decolagem de candidatos a presidente da República, por ser o estado mais rico e mais populoso, com quase um terço do eleitorado. Sua candidatura atropelou o ex-governador Rodrigo Garcia (PSDB), que contava com amplo apoio político para se reeleger e operou fortemente para remover a candidatura presidencial de seu antecessor, João Doria (PSDB), e assim não confrontar o eleitorado bolsonarista.

Tarcísio é um player das eleições de 2026, mas somente será candidato à Presidência se Bolsonaro ficar inelegível e lhe apoiar, o que não é o mais provável. De todos os pretendentes, é o que mais representa os interesses do empresariado paulista, mas isso também não garante a eleição de ninguém, haja vista o fracasso eleitoral dos ex-governadores Orestes Quércia (MDB), José Serra (PSDB) e Geraldo Alckmin (então no PSDB) em disputas presidenciais. Tarcísio é o que tem a maior sombra de futuro: pode concorrer à reeleição e somente disputar a Presidência em 2030.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-zema-leite-e-tarcisio-ja-disputam-a-lideranca-da-direita/

"A extrema direita no Brasil não é só o bolsonarismo"

Guilherme Henrique | DW Brasil

A presença de grupos de extrema direita em frente a quartéis espalhados pelo Brasil e em estradas país afora é parte de uma dinâmica social que está cada vez mais independente da figura de Jair Bolsonaro (PL), derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições presidenciais deste ano.

A avaliação é de Letícia Cesarino, antropóloga, professora e pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina e autora de O Mundo do Avesso: Verdade e Política na Era Digital (Ubu Editora), publicado no fim de outubro. O livro analisa o ecossistema das redes que desde as eleições de 2018 e o surgimento de uma nova forma de organização política a partir da internet.

Em entrevista à DW Brasil, Cesarino ressaltou que o discurso que impulsionou Jair Bolsonaro ao poder se complexificou e se solidificou ao longo dos últimos quatro anos, "tornando-se cada vez mais autônomo" em relação à figura do atual presidente. "Há uma camada de influenciadores inseridos nesse ecossistema impulsionados pelos algoritmos. A extrema direita não é só o bolsonarismo."

Ela também ressalta que integrantes de grupos radicais de extrema direita, imersos em uma espiral de mentiras e informações falsas sobre a política do país, precisam ser submetidos a uma 'dieta de mídia'. "Quem está no nível seita, o mais radicalizado, só com desprogramação. É muito difícil você reverter esse quadro. Um pressuposto é que você precisa tirar a pessoa desse ambiente das redes e o acesso a esse conteúdo", ponderou.

DW Brasil: A rede de informações do bolsonarismo mudou ao longo dos últimos quatro anos ou ele se alimenta dos mesmos expedientes?

Letícia Cesarino: Ela é mais complexa e multiplataforma. Talvez o termo correto nem seja rede, mas ecossistema, a partir do volume e das várias camadas na internet. Existe a superfície, que são as redes sociais, os canais de YouTube abertos, até as camadas mais subterrâneas, dentro de aplicativos de mensagens como Whatsapp, Telegram e Kwai, e outros mais alternativos, como o Gettr. Então, se em 2018 nós tivemos algo como uma explosão de informação e de discurso político antissistema e extremista, hoje o que nós temos é uma rotinização e uma perenização desse tipo de discurso. Ele é auto-sustentável, tem seus influenciadores, canais próprios e formas de monetização. As pessoas que atuam nesse tipo de mídia não precisam mais acessar o público convencional.

Permanente no sentido de ter mais durabilidade e fortalecido?

São grupos de Whatsapp que abrem e fecham, influenciadores que crescem e depois diminuem o seu alcance. O Allan do Santos, por exemplo. Foi muito importante em um momento, mas foi investigado, o [site do blogueiro] Terça Livre acabou e outros atores assumiram esse espaço. Há uma dinâmica sistêmica e estável. Os seguidores do Jair Bolsonaro e os eleitores de extrema direita têm para onde ir. Uma dieta de mídia que é só deles e está separada do público convencional.

Como você define o termo populismo digital e como ele se insere na realidade brasileira a partir do que temos visto nesse período pós eleição?

Essa categoria do populismo é mais próxima do que aconteceu em 2018, quando se tinha esse modelo mais clássico de liderança populista que irrompe na esfera pública e galvaniza aquele sentimento de insatisfação e esperança. Nós ainda temos elementos de populismo no discurso de "nós contra eles", de uma suposta elite cultural, econômica, midiática e antissistema. Mas isso se tornou mais difuso e com uma fusão dessa dinâmica alternativa da realidade misturada às teorias da conspiração. Houve uma mudança desse populismo.

É uma parcela da população que está separada do público convencional e que recebe uma uma dieta de narrativas distintas da nossa, mas que ao mesmo tempo depende também dessa relação de oposição. É uma dependência contraditória, onde se produz uma realidade invertida. Nesses segmentos mais extremos, eles olham para o nosso público e identificam uma visão golpista contra o Bolsonaro e a implementação de um Estado autoritário. E nós olhamos essas manifestações com a lente do golpismo democrático.

Esse 'espelho invertido' está baseado no subterrâneo da internet, especialmente nos grupos Telegram. Na medida em que esse ecossistema vai se aproximando do público de superfície, o discurso mais extremista se atenua. Você não vai encontrar um posicionamento tão explícito sobre intervenção militar na Jovem Pan. O que há é uma dúvida sobre o processo eleitoral, que acaba funcionando como algo complementar e que ajuda a conturbar a situação.

A figura do Jair Bolsonaro deixou de ser fundamental para o bolsonarismo nas redes?

Acredito que menos do que antes, porque em 2018 ele teve esse papel central de agregar em um nível virtual mais amplo uma diversidade de insatisfações que estavam fragmentadas, como o lavajatismo e o movimento pró-impeachment. As pessoas não se reconheciam com conservadoras ou pertencentes a uma extrema direita nacionalista. Mas, à medida que esse discurso bolsonarista foi se rotinizadno, a identidade foi se consolidando e o ecossistema se complexificou, acredito que ele esteja se tornando cada vez mais autônomo em relação ao Bolsonaro. Há uma camada de influenciadores inseridos nesse ecossistema impulsionados pelos algoritmos. A extrema direita no Brasil não é só o bolsonarismo.

Agora, o Bolsonaro deixar o poder significa que eles perdem essa figura que faz a mediação entre o público convencional e a extrema direita mais radical. Ele conseguia pautar a imprensa, a grande mídia, e o seu público fiel ao mesmo tempo. A chegada de uma outra força ao governo muda essa dinâmica, ainda que seja difícil prever o resultado disso neste momento.

Como se explica o nível de imersão visto por alguns bolsonaristas em uma realidade totalmente paralela à que temos visto atualmente?

Acredito que o que está havendo agora, e que não acontecia antes, é que essas multidões que iam às ruas apoiar as manifestações pró-governo, como no 7 de setembro, mostravam a diversidade do público bolsonarista. A passagem da multidão online para o offline refletia o espectro mais amplo desse grupo político, com aqueles que pediam a intervenção militar e também quem defendia pautas mais moderadas. Ele teve 58 milhões de votos e nem todos são fanáticos.

O que nós temos agora são só os radicais. São sectários e conspiratórios, presos à ideia de um complô. Eles não conseguem aceitar outra definição de povo que não seja a deles. E esse ambiente foi sendo criado ao longo dos últimos anos em mídias diversas, baseados sempre nas mensagens de viés de confirmação. A ideia é sempre reforçada. São vários níveis de ficção transformados em realidade orquestradas por influenciadores que segmentam as redes e as mensagens.

"As pessoas nas manifestações ou na esfera bolsonarista não são iguais. Ele [Bolsonaro] teve 58 milhões de votos e nem todos são fanáticos", aponta a antropóloga Letícia Cesarino. Foto: reprodução| DW Brasil
"As pessoas nas manifestações ou na esfera bolsonarista não são iguais. Ele [Bolsonaro] teve 58 milhões de votos e nem todos são fanáticos", aponta a antropóloga Letícia Cesarino. Foto: reprodução| DW Brasil

Como esses influenciadores atuam e qual o tipo de segmentação?

As pessoas nas manifestações ou na esfera bolsonarista não são iguais. Há uma grande massa de usuários que recebem, recirculam e mimetizam o conteúdo. E existem os influenciadores, uma parcela menor de usuários, que propõem narrativas, fazem vídeos e distribuem nas redes. Alguns são influenciadores de plataformas abertas, em canais no Youtube e grupos do Telegram. Mas há, sobretudo no Telegram, aqueles que estão camuflados. Eles se colocam como pessoas comuns e fazem um trabalho de distribuição de conteúdo e direcionamento da narrativa. Por exemplo: depois do primeiro pronunciamento do Jair Bolsonaro após a derrota para o Lula ficou uma sensação de dubiedade sobre o que deveria ser feito. É para ir para a rua? Para o quartel? E existem essas figuras que em pouco tempo conseguem direcionar o fluxo e a ação dos usuários. Não é aleatório. São como tradutores dessa realidade paralela.

Há como resgatar pessoas que estão no nível mais submerso de distorção da realidade?

Quem está no nível seita, o mais radicalizado, só com desprogramação. É muito difícil você reverter esse quadro. Um pressuposto é que você precisa tirar a pessoa desse ambiente das redes e o acesso a esse conteúdo, algo como diversificar a dieta de mídia, porque em alguns casos eles recebem notícias da TV Globo, da Folha de S.Paulo, mas sempre com uma leitura oposta à realidade. Entre os radicais, não dá para ser pontual. Não adianta mostrar uma checagem, porque o olhar é de manipulação. Os radicais são sectários e precisam ser empurrados para a franja, com uma diminuição quantitativa dos atores nas redes.

Quais são os padrões de dinâmica nas redes inerentes ao Bolsonarismo que se repetem em outros países?

Há um contexto político. A infraestrutura das redes têm um papel preponderante, porque existem muitas similaridades em países completamente distintos, como Índia e Brasil, que compartilham esse fenômeno que alguns chamam de "tecnopopulista" na internet. É claro que o caso norte-americano acaba sendo mais próximo, porque há uma troca de informações entre a "Alt Right" e a extrema direita brasileira. E acredito que haverá uma perenização desse grupo similar ao que houve nos EUA, que não deixou de existir só porque o Trump perdeu a eleição.

Em todos os países há uma relação muito próxima entre um aplicativo de mensagens, geralmente o Telegram, e o YouTube, que é um repositório de informações. E o Google não faz esforço que deveria para coibir a disseminação de mentiras, também porque é fácil camuflar mentiras em um vídeo de 2h. É diferente do Twitter, onde o espaço é muito curto. Mas mesmo assim o Google precisa fazer mais.

A atuação das plataformas é problemática?

Ainda está muito aquém. Houve um pequeno avanço, que é o reconhecimento do problema. As principais plataformas têm buscado algum diálogo, mas isso só aconteceu porque essa questão ocupou os holofotes no debate público. Às vezes, fico com a sensação de que as empresas fazem o mínimo só para ter o que mostrar. E assim não fazem o que de fato precisa ser feito. Em março, o Alexandre [de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral] ameaçou com um bloqueio ao Telegram e a plataforma respondeu e depois eliminou alguns grupos. Mas a atuação ainda tem sido com base na ameaça.

Como avalia a atuação do ministro Alexandre de Moraes?

Polêmica. Ele mantém uma ancoragem na institucionalidade e não acho que seja só punitivista. Mas ele tem um braço mais incisivo que os demais juízes. E acredito que os colegas do Supremo e do TSE dão um backup nesse sentido. Importante ressaltar que nós estamos em um estado de exceção, iniciado na pandemia e que se perpetua no período eleitoral. Esse estado não é só pela forma como a direita age, mas pelo ambiente criado nas novas mídias. Existem os termos de uso, mas eles dizem pouco sobre o controle das redes.

Então, esse controle precisa vir de fora, não tem outro jeito. E nós não temos uma legislação ou uma regulação robusta. O Alexandre de Moraes tomou para si essa tentativa de controle indireto. E, às vezes, quando se é ignorado como aconteceu com o Telegram, foi necessário uma ameaça de bloqueio. E aí a plataforma responde. Ele tem combinado as duas coisas: a institucionalidade com as leis que existem e uma forma mais direta para coibir excessos. É um mal necessário, porque ele está sabendo jogar esse jogo muito mais que os outros ministros. Mas, no médio prazo, não é o ideal.

*Matéria publicada originalmente no DW Brasil


Foto : reprodução | Creative Commons

Receio de “revogaço” após posse de Lula provoca corrida armamentista

Thalys Alcântara | Metrópoles

A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições provocou apreensão em atiradores e donos de clubes de tiros, com a promessa da revogação dos decretos de Jair Bolsonaro (PL) que facilitaram a compra de armas de fogo no país.

Cotado para ser ministro da Justiça, o senador eleito Flávio Dino (PSB) disse ao Metrópoles que, além do fim dos decretos pró-armas, a eventual derrubada das normas deverá implicar a retirada de circulação dos armamentos que passarão a ser ilegais. Dino sugeriu que o novo governo pode oferecer algum “crédito tributário” para quem devolver um revólver, uma pistola ou carabina.

A reportagem conversou com integrantes do mercado de armas que relataram uma corrida por armamentos e munições, já que a nova legislação deve limitar a quantidade que cada atirador pode comprar.

Hoje em dia, por exemplo, um Colecionador, Atirador e Caçador (CAC) tem autorização para ter 60 armas, sendo 30 de calibre permitido e 30 de calibre restrito. Com a queda dos decretos, o número total seria de no máximo 16, dependendo do nível de experiência do CAC.

No governo Bolsonaro, CACs podem andar com armas de cano curto caso estejam a caminho de clubes de tiro. Com a derrubada da legislação bolsonarista, esse chamado “porte em trânsito” teria fim.

O número de brasileiros com registro de CAC aumentou 472,6% nos últimos quatro anos, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A quantidade de registros de clubes de tiros saltou de 163, em 2018, para 348, em 2021, um aumento de 113%, como mostrou a coluna do Rodrigo Rangel em reportagem de setembro.

Venda simplificada

“Virou uma corrida armamentista louca agora. O povo está estocando munição, enchendo o paiol”, relata Leder Pinheiro, dono de um estande de tiro em Goiânia (GO).

Em aplicativos de mensagem, há um fluxo de vendedores informais. A venda é feita de CAC para CAC. Nesse tipo de transação, o pagamento é realizado por Pix e a arma é transferida no prazo de 15 dias. O tempo para comprar um armamento novo é mais demorado.

“Está todo mundo correndo atrás – quem já tem CR (permissão) – para comprar arma direto de CAC. Se comprar arma do zero, eu creio que não dá mais tempo”, diz um morador do Distrito Federal ouvido pela reportagem, que tentava vender uma pistola 9 mm pelo WhatsApp.

O empresário Weber Melo, que é atirador desportivo na categoria tiro de precisão, também disse ter percebido essa corrida. “A população sentiu-se ameaçada de ter cerceado o direito à compra de uma arma de fogo”, explica.

Sergio Bitencourt, presidente da Confederação Brasileira de Tiro Defensivo e Caça (IDCS), declarou que os armamentistas estão apreensivos com a mudança de governo. “Tem gente que está comprando mais munição para ter estoque. Tem outros que falam: ‘não vou comprar nada enquanto não tiver definição’.”

Pontos mais doídos

A proibição de andar armado, o chamado “porte em trânsito”, é um dos pontos mais “doídos” para os armamentistas, segundo o youtuber pró-armas Tony Santtana explicou em um de seus vídeos.

“Dói muito, a pancada é grande.” Disse o influencer em vídeo da semana passada.

Potência

O outro ponto “doído”, segundo Santtana, é a volta da proibição de alguns tipos de armas, que têm maior poder de fogo, como pistolas e carabinas 9 mm, .40SW e .357. A compra de fuzis por CACs já havia sido suspensa por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em setembro.

“Bolsonaro aumentou a potência dessas armas permitidas em até quatro vezes”, explicou Bruno Langeani, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz e autor do livro Arma de fogo no Brasil: gatilho da violência.

Sobre o “porte em trânsito”, Langeani defendeu que isso deve afetar de forma positiva a segurança da população, com a volta da proibição clara de ter pessoas andando armadas na rua, o que afeta brigas de trânsito e entre vizinhos, por exemplo.

“Muita gente que se diz CAC, na verdade, só se colocou esse rótulo de atirador esportivo pela vontade de andar armado. Não é a pessoa que de fato quer fazer um lazer no clube de tiro e quer competir. É uma distorção do sistema”, definiu Langeani.

Negociação

O youtuber armamentista Santtana disse que está tentando se reunir com um dos deputados que participa da transição do governo. O objetivo é salvar parte dos decretos pró-armas de Bolsonaro.

Santtana defende, por exemplo, que se mantenha “pelo menos a 9 mm”. A pistola G2C da Taurus (9 mm) se espalhou pelo mercado, segundo o armamentista.

Armas continuam

Essa proibição de alguns calibres mais potentes valeria apenas para quem tem permissão de posse de arma concedida pela Polícia Federal (PF). Antes de Bolsonaro, a legislação já possibilitava que CACs adquirissem armas de calibres restritos, que têm a permissão concedida pelo Exército.

“As pessoas compravam armas antes do governo Bolsonaro existir”, lembrou Bruno Langeani. O número de registros de armas para Colecionadores, Atiradores e Caçadores, por exemplo, já vinha crescendo no governo petista e de Michel Temer.

E há mudanças que os próprios armamentistas não se preocupam tanto. Um exemplo é a quantidade total de armas que pode ser comprada por cada CAC, que, com o fim dos decretos, passaria de 60 para no máximo 16, como era a regra antes de Bolsonaro. A esmagadora maioria das pessoas que compram armas adquirem apenas uma, segundo Langeani.

“Quem está se beneficiando mais fortemente é o crime organizado. São eles que têm dinheiro para comprar todo esse limite [de armas] e depois desviar”, resumiu o gerente do Sou da Paz.

Matéria publicada originalmente no Metrópoles


Foto: reprodução El País/EFE

“O bolsanarismo é um Frankenstein. Na linguagem antiga de Mao Tse Tung, ‘um gigante com pés de barro’”

Patrícia Fachin | Edição: João Vitor Santos - Instituto Humanos Unisinos

“A eleição significou, antes de tudo, a escolha, pelo povo brasileiro, da continuidade do processo civilizatório.” É assim que o professor e sociólogo Elimar Pinheiro do Nascimento define o desfecho do pleito no Brasil este ano. Porém, como muitos, acredita que essa vitória apertada de Lula nas urnas, a congregação de forças democráticas nesse processo, é apenas o início de um processo árido.

Na análise que faz em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHUElimar Pinheiro do Nascimento aponta que é fundamental buscarmos compreender essa força do bolsonarismo que, dada a expressiva votação, segue forte na sociedade. “A base eleitoral do Bolsonaro não é formada apenas por neofascistas ou grupos evangélicos fortemente conservadores. Esses são os mais visíveis, que não devem formar sem sequer metade de seu eleitorado”, diz. E acrescenta: “é um Frankenstein. Na linguagem antiga de Mao Tse Tung, ‘um gigante com pés de barro’. Por isso mesmo, a força do bolsonarismo pós-eleição vai depender das atitudes do próximo governo, das medidas que forem tomadas, do sucesso de suas políticas públicas, bem como das novas imagens projetadas no campo da política que serão recepcionadas pelos eleitores”.

Olhando para o processo como um todo, o entrevistado indica que as eleições revelam o esfacelamento da democracia. Basta ver as campanhas paupérrimas de propostas, recheadas de acusações que incitam as massas, as quais se movem mais como torcidas do que como cidadãos. “Não é que não existiram propostas. A verdade é que elas foram esmagadas pelas montanhas de ataques pessoais ao vivo ou em vídeos de ambos os lados. Nos debates, se fôssemos fazer um mapa de palavras, com certeza o maior destaque seria mentira/mentiroso”, exemplifica.

O entrevistado compreende que são sintomas que revelam a necessária reinvenção da democracia no século XXI. Para ele, a velha ideia de democracia que carregamos se exauriu por pelo menos três fatores. O primeiro está relacionado com os processos de globalização. “Esse processo tem afastado segmentos sociais significativos do acesso às benesses da globalização, desalojados dos eixos dinâmicos da economia, remetidos ao desemprego e à pobreza. Com isso, eles mudam de postura política, desconfiando das instituições democráticas e das elites no poder”, explica. O segundo fator resulta do fim da sociedade industrial, que muda a natureza dos partidos políticos. “Os partidos políticos de massa foram substituídos por outros tipos de partidos, que não mais exprimem o interesse de um determinado grupo social, mas servem de acesso de grupos difusos a benesses do estado”, observa. Por fim, “outro fenômeno que explica a atual crise da democracia é a queda do ritmo de crescimento econômico, particularmente no Ocidente”.

Porém, novamente o sociólogo aponta que o caminho é complexo e ter a clareza desses fatores é apenas o primeiro passo. O desafio é reinventar a democracia no século XXI, superando esses fatores que a levam ao esgotamento. Para tanto, tem uma intuição: “Criar mecanismos de participação e controle da sociedade sobre a classe política é um dos caminhos dessa reinvenção”.

Elimar Pinheiro do Nascimento (Foto: Arquivo pessoal)

Elimar Pinheiro do Nascimento é sociólogo, com doutorado pela Universidade de Paris V. Também realizou pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Atua como professor dos Programas de Pós-Graduação do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília – UnB e do Programa Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas – UFAM. É pesquisador no Centro de Desenvolvimento Sustentável – CDS/UnB. Recentemente publicou, como coautor, Edgar Morin: um homem de muitos séculos. Um olhar latino-americano (São Paulo: SESC, 2022) e Temas intangibles sobre el medio ambiente en America Latina (Lima: Associacion Latinoamericanca de Sociologia, 2021. Vol. 1).

Confira a entrevista.

IHU – Qual o significado das eleições presidenciais de 2022? Que avaliação faz do resultado?

Elimar Pinheiro do Nascimento – A eleição significou, antes de tudo, a escolha, pelo povo brasileiro, da continuidade do processo civilizatório. Foi, em vista disso, uma vitória da democracia, que confrontou, cara a cara, as ameaças iliberais no decorrer de uma eleição inusitada em vários planos.

Entre essas peculiaridades, vivenciamos a disputa eleitoral com os resultados mais apertados da história recente do Brasil. Lula venceu contra a máquina estatal utilizada ao extremo e resistiu a medidas tomadas ao arrepio da lei. Além disso, o Tribunal Superior Eleitoral – TSE, garantindo eleições limpas e uma apuração rápida, foi, junto com o povo, o grande vencedor dessas eleições. Isso é motivo de orgulho para o país, pois outros países, como os Estados Unidos, não têm um sistema eleitoral confiável e ágil como o nosso.

Pela primeira vez, desde a instituição da reeleição no Brasil, um presidente foi derrotado. Isso não ocorreu com Fernando Henrique CardosoLula ou Dilma. Nenhum deles conseguiu realizar este feito. Bolsonaro perdeu por causa do seu governo desastroso e dos erros de sua assessoria e apoiadores, sobretudo na última semana da campanha.

Bolsonaro perdeu por causa do seu governo desastroso e dos erros de sua assessoria e de apoiadores, sobretudo na última semana da campanha – Elimar Pinheiro do Nascimento Tweet

Reconhecimento envergonhado e manifestações nas estradas

Foi também inusitada a demora do presidente em reconhecer o resultado das urnasBolsonaro demorou quase 48 horas para reconhecer sua derrota e o fez de forma oblíqua, envergonhada, implícita, cedendo à pressão de sua ala política, inclusive governadores e senadores eleitos com seu apoio. Eles pressionaram para que o presidente agradecesse os mais de 58 milhões de votos que obteve. Seu silêncio ensurdecedor contribuiu para que apoiadores mais exaltados e antidemocratas iniciassem um movimento de bloqueio das estradas, atingindo mais de mil pontos no país. Essa iniciativa contou com a complacência vergonhosa da cúpula da Polícia Rodoviária Federal, que desde domingo, 30 de outubro de 2022, assumiu um lado na disputa eleitoral, realizando blitz nas estradas, com o claro intuito de prejudicar os eleitores de Lula.

O objetivo das manifestações nas estradas foi o de iniciar o estopim de uma convulsão social. Os manifestantes conclamam uma intervenção militar, inutilmente. O insólito é que essa manifestação ocorre em um momento de claro isolamento do presidente Bolsonaro. Todas as autoridades públicas do TSESupremo Tribunal Federal – STF, da Câmara dos Deputados e do Senado reconheceram a vitória de Lula. Diversos adeptos do bolsonarismo, como o governador eleito de São Paulo e mesmo o de Santa Catarina, assim como senadores e ministros de seu governo, inclusive o vice-presidente, declararam aceitar o resultado das urnas, reconhecendo a vitória do Estado democrático de direito.

O insólito é que essa manifestação ocorre em um momento de claro isolamento do presidente Bolsonaro. Todas as autoridades públicas do TSE, STF, Câmara dos Deputados e Senado reconheceram a vitória de Lula – Elimar Pinheiro do Nascimento Tweet

IHU – E esse reconhecimento da vitória de Lula veio com um apoio internacional impressionante, não?

Elimar Pinheiro do Nascimento – Sem dúvida. Todos os países, que têm alguma importância no mundo, reconheceram rapidamente o resultado do pleito. Até a Rússia e a Ucrânia, países envolvidos numa guerra, cumprimentaram o eleito.

https://www.youtube.com/watch?v=ou6givmGntU

prestígio de Lula no exterior, que um dia foi chamado elogiosamente por Barack Obama de “o cara”, ficou comprovado não apenas pela rapidez com que todos os países reconheceram a sua vitória, mas também pelo fato de ter sido convidado para integrar a equipe de representantes do Brasil para a COP27, que está reunida no Egito, entre 6 e 18 de novembro, e para a reunião do G20, entre 15 e 16 de novembro deste ano. Portanto, antes mesmo de começar seu mandato como chefe de Estado, o candidato eleito à presidência Luiz Inácio Lula da Silva já vai participar de conferências internacionais, visando pôr rapidamente no esquecimento a fama de pária que o Brasil ganhou durante o governo Bolsonaro.

Ademais, a Noruega anunciou que vai retomar os aportes ao Fundo da Amazônia, interrompidos em função do descaso do governo Bolsonaro com o desmatamento da Amazônia. A China declarou que quer um acordo estratégico com o Brasil, e o presidente dos Estados Unidos declarou que deseja visitar o país.

Antes mesmo de começar seu mandato como chefe de Estado, Lula já vai participar de conferências internacionais, visando pôr rapidamente no esquecimento a fama de pária que o Brasil ganhou durante o governo Bolsonaro – Elimar Pinheiro do Nascimento Tweet

IHU – O que mais chamou sua atenção nessas eleições presidenciais?

Elimar Pinheiro do Nascimento – Há coisas insólitas, ou paradoxais, a serem explicadas, como o fato de que o candidato progressista vencer com uma base eleitoral aparentemente adversa: a região mais atrasada econômica e tecnologicamente do país, o Nordeste; as pessoas que, normalmente, têm menos recursos e instrumentos de se informar e interpretar os eventos políticos, os pobres; finalmente, as mulheres, que a psicologia afirma serem menos afeitas a mudanças. Uma hipótese é que, para estes eleitores, Lula representava um retorno a um tempo bem conhecido, até nostálgico.

Sei que o grande tema político sobre o resultado das eleições, no momento, são as conjecturas de como será composto o próximo governo, quais os grandes desafios que enfrentará, que estratégias deverá adotar para ampliar a base parlamentar etc. Mas quero chamar atenção para outro fato que me saltou aos olhos: o estranho o fato de o presidente derrotado ter obtido 49,10% dos votos. Serão necessários muitos esforços de cientistas sociais e sociólogos para explicar como isso aconteceu com um presidente que:

  • geriu de forma estúpida a pandemia, pregando publicamente a aglomeração sem máscaras e o uso de medicamentos mundialmente reconhecidos como inócuos; 
  • flertou com manifestantes que pediam intervenção militar
  • hostilizou seguidamente o Judiciário e os membros da sua mais alta corte, com palavrões inqualificáveis; 
  • agrediu a imprensa, em particular as mulheres; 
  • andava de motocicleta pelo país, sem capacete, ao arrepio da lei, em vez de trabalhar; 
  • atraiu o ridículo internacional de discursar para as calçadas em Londres por ocasião do funeral da rainha da Inglaterra
  • desmontou todo o sistema de fiscalização da Amazônia, o que elevou os índices de desmatamento; 
  • estimulou o garimpo ilegal e a invasão de terras indígenas
  • viu, com indiferença, o país retornar ao mapa da fomecom mais de 30 milhões de pessoas em estado de insegurança alimentar
  • cortou verbas de educação, ciência e tecnologia, ao mesmo tempo que aumentava o valor das emendas parlamentares e aprovava o chamado “orçamento secreto”. 

Apesar de tudo, Bolsonaro obteve 58 milhões de votos. Como explicar? Ele recebeu mais votos do que em 2018, quando poucos conheciam a sua trajetória de deputado federal medíocre e defensor da tortura e dos torturadores.

Apesar de tudo, Bolsonaro obteve 58 milhões de votos. Como explicar isso? – Elimar Pinheiro do Nascimento Tweet

IHU – O senhor tem alguma hipótese nesse sentido?

Elimar Pinheiro do Nascimento – Para ter 49% dos votos, o presidente em exercício usou ao extremo a máquina pública e fake news, em que seus assessores são campeões. Outra explicação encontra-se na imagem complexa que ele criou ao longo da presidência, atraindo segmentos sociais díspares.

Todos sabemos que as pessoas votam em imagens que elas constroem dos candidatos que vão merecer seu voto. Bolsonaro é um mosaico, que reúne imagens distintas e contraditórias acolhidas seletivamente pelos diversos segmentos sociais que votaram nele.

Ele reúne diferentes imagens, tais como:

  • apologista do regime autoritário, da ditadura e da tortura, imagem grata ao segmento social de extrema-direita, minoritário em sua base eleitoral, mas que é muito ativo; 
  • defensor dos valores mais conservadores do ponto de vista dos costumes – a família tradicional, o papel submisso da mulher, a proibição total do aborto, a rejeição do casamento homoafetivo etc., do agrado dos evangélicos em particular; 
  • combatente intransigente da corrupção, aspecto que cativa parte dos segmentos sociais moralistas da classe média brasileira desde a época da União Democrática Nacional – UDN, nos anos 1950; 
  • líder do antipetismo, que mobiliza parte significativa dos eleitores que antes votava no PSDB
  • patrocinador de uma democracia individualista, em que a liberdade de expressão de cada indivíduo deve estar acima de qualquer outra coisa, inclusive da liberdade do amigo, do vizinho, do familiar, do colega. Nessa concepção, todos devem ter a liberdade de produzir e divulgar qualquer fake news, andar armado, dirigir na velocidade que lhe apraz, entre outros; 
  • político liberal na economia (apesar de seu passado de estatizante), que tanto agrada parte do empresariado, grande ou pequeno, agro ou urbano, e que Paulo Guedes pretende representar com sua pregação de privatização das estatais brasileiras, Petrobras e Banco do Brasil incluídos. 

Essas diferentes imagens carecem de respaldo na realidade. Mas isso não importa, o que conta é que elas são “compradas” pelos distintos grupos sociais, que se apropriam de certas imagens sem considerar as outras. E alguns destes grupos são perpassados por uma cultura fundamentalista, de caráter religioso (como determinados grupos evangélicos) ou laico (como adeptos do fascismo).

A base eleitoral de Bolsonaro não é formada apenas por neofascistas ou grupos evangélicos fortemente conservadores. Esses são os mais visíveis, que não devem formar nem sequer metade de seu eleitorado – Elimar Pinheiro do Nascimento Tweet

Elemento em comum

Diante desse quadro, cabe a pergunta: qual o elemento comum a essas imagens? Poderia ser o conservadorismo, marcado por um individualismo nascido da ansiedade e insegurança, que se recusa a ver de frente o futuro em constante mudança. Porém, não é evidente. O fenômeno parece ser mais complexo e merece ser compreendido devidamente, por meio de estudos minuciosos. Algo essencial para nos afastarmos de novos riscos fascistas.

De toda forma, a base eleitoral do Bolsonaro não é formada apenas por neofascistas ou grupos evangélicos fortemente conservadores. Esses são os mais visíveis, que não devem formar nem sequer metade de seu eleitorado. Eles não explicam suficientemente os 58 milhões de votos. Sua base é formada por grupos heterogêneos de fundamento ideológico, uns, ou pragmático, outros. Conservadores e liberaismodernos e tradicionais, ao mesmo tempo. É um Frankenstein. Na linguagem antiga de Mao Tse Tung, “um gigante com pés de barro”. Por isso mesmo, a força do bolsonarismo pós-eleição vai depender das atitudes do próximo governo, das medidas que forem tomadas, do sucesso de suas políticas públicas, bem como das novas imagens projetadas no campo da política que serão recepcionadas pelos eleitores.

O que menos escutamos foram propostas para quaisquer dos problemas nacionais prementes. Não é que não existiram propostas. A verdade é que elas foram esmagadas pelas montanhas de ataques pessoais – Elimar Pinheiro do Nascimento Tweet

IHU – Em sua avaliação, como a pauta socioambiental foi tratada neste pleito?

Elimar Pinheiro do Nascimento – Este pleito, como diz a cientista política Maria Hermínia Tavares, foi absolutamente despolitizado. O que menos escutamos foram propostas para quaisquer dos problemas nacionais prementes. Não é que não existiram propostas, mas foram esmagadas pelas montanhas de ataques pessoais ao vivo ou em vídeos de ambos os lados. Nos debates, se fôssemos fazer um mapa de palavras, com certeza o maior destaque seria mentira/mentiroso. A carta ao Brasil, do Lula, já no final da campanha, amplamente demonstrada, não passou de uma carta de intenção. É um documento superficial, embora importante, pois tentava delimitar, em linguagem simples e de forma genérica, uma visão de sociedade que se opunha à do seu adversário.

Em resumo, a pauta socioambiental não existiu nas eleições. Salvo marginalmente como a carta de Lula ao Brasil, o último debate, quando Bolsonaro se referiu errônea e maliciosamente, ao desmatamento da Amazônia e en passant numa outra entrevista, mas sempre superficialmente.

IHU – O senhor aponta a necessidade de reinvenção da democracia. Em que consiste essa sua proposta?

Elimar Pinheiro do Nascimento – A democracia vive neste século XXI a sua maior crise. Não é a primeira. Conhecemos as suas derrotas nos anos 1920-1940 com o fascismo, o nazismo e o stalinismo. No entanto, ela vinha em ascensão desde o fim da Segunda Guerra, quando se propagou na Europa Ocidental. Nas décadas de 1970 e 1980, feneceram as ditaduras do sul da Europa (Grécia, Espanha e Portugal) e da América Latina (Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, Bolívia e Peru). Graças às novas primaveras, a democracia voltou a se expandir com a queda do muro de Berlim e o fim da URSS.

Porém, desde o início do século XXI seu avanço parou e ela começou a declinar. Movimentos populistas de extrema-direita emergiram e se difundiram pela EuropaAmérica e Ásia. Tomaram o poder na PolôniaHungriaTurquiaÍndia e Filipinas, criando regimes autoritários. Esse movimento de extrema-direita chegou a ascender ao poder em outros países europeus, como SuíçaÁustriaNoruegaSuécia, Holanda e, mais recentemente, na Itália, entre outros. Cresceu eleitoralmente em países como InglaterraEspanha e França. Em movimento sanfona, cresce e decresce, como nos Estados Unidos e no Brasil.

As derrotas da democracia devem-se, em grande parte, a três fenômenos distintos, mas que se remetem um ao outro. O primeiro é o processo de globalização, com a constituição de um mercado global, alimentado por um processo acelerado de inovações tecnológicas e mudanças sociais e culturais. Esse processo tem afastado segmentos sociais significativos do acesso às benesses da globalização, desalojados dos eixos dinâmicos da economia, remetidos ao desemprego e à pobreza. Com isso, eles mudam de postura política, desconfiando das instituições democráticas e das elites no poder. Veja o exemplo da classe operária francesa que, nas décadas de 1950-1980, apoiava os partidos comunistas e socialistas e, hoje, constituem uma das bases do partido da extrema-direitaFront National.

segundo fenômeno que explica a presente crise da democracia é a mudança da natureza e do papel dos partidos políticos, resultado do fim da sociedade industrial, que nada tem a ver com o fim das indústrias. Os partidos políticos de massa foram substituídos por outros tipos de partidos, que não mais exprimem o interesse de um determinado grupo social, mas servem de acesso de grupos difusos a benesses do Estado, resultado do declínio da sociedade industrial, sociedade de classes. Esse distanciamento entre representantes e representados é alimentado pelo crescimento extraordinário da desigualdade social e regional, que atinge atualmente patamares absurdos.

Finalmente, outro fenômeno que explica a atual crise da democracia é a queda do ritmo de crescimento econômico, em particular no Ocidente. Isso tem repercussão sobre o principal ator da criação da democracia no século XX, as classes médias. Esses segmentos saíram perdendo com a queda da dinâmica do crescimento e, por isso, tendem a ter uma renda per capita em declínio.

Em toda parte, grupos sociais significativos se sentem ameaçados, inseguros, ansiosos e buscam refúgio em movimentos que lhes prometem o retorno ao passado ou o engessamento das mudanças. Dessa forma, a democracia não tem como sobreviver. O seu fenecimento é uma questão de tempo, salvo se ela for capaz de se reinventar. Esta é a conclusão de meu livro, intitulado Um mundo de riscos e desafios: construir a sustentabilidade, reinventar a democracia e eliminar a nova exclusão social (Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2020).

Na obra, publicada em 2020, o professor reflete sobre a reinvenção da democracia 

Imagem: divulgação

Novas formação de participação social

Criar mecanismos de participação e controle da sociedade sobre a classe política é um dos caminhos dessa reinvenção. Para isso, precisamos fazer dois movimentos aparentemente antagônicos, um em direção ao passado e o outro, rumo ao futuro:

(I) buscar as fontes da democracia, quando os gregos em Atenas a inventaram no século IV a.C;

(II) utilizar os novos meios digitais e eletrônicos, inclusive a inteligência artificial, para criar mecanismos rápidos e eficientes de controle das ações governamentais por parte da sociedade.

Criar mecanismos de participação e controle da sociedade sobre a classe política é um dos caminhos dessa reinvenção – Elimar Pinheiro do Nascimento Tweet

No primeiro movimento, alguns países como BélgicaHolanda e Suíça estão retornando o princípio democrático maior dos gregos antigos: o sorteio. Quando os atenienses criaram a democracia em rebelião contra os ricos donos de terras, adotaram dois procedimentos para escolher seus representantes. O procedimento democrático era o sorteio, no qual todos os humanos tinham a mesma oportunidade de ser escolhidos, embora no caso grego em questão a comunidade política era formada apenas por homens livres, atenienses, adultos. O procedimento aristocrático era a eleição, na qual se escolhiam os mais habilidosos.

Ora, fundadores da democracia moderna, franceses, mas, sobretudo norte-americanos, abandonaram o princípio do sorteio, que algumas poucas cidades italianas da Idade Média utilizavam para reduzir seus conflitos e assegurar a coesão social. Em grande parte, isso ocorreu porque norte-americanos e franceses não estavam criando democracias, e sim repúblicas. República é o regime que se opõe à monarquia, que eles queriam derrubar.

https://www.youtube.com/watch?v=TeTWXPus50k

democracia, na verdade, nasceu da luta das classes operárias inicialmente e, em seguida, das classes médias, ao longo de mais de dois séculos. O sorteio, que está sendo retomado, tem desempenhado um papel de renovar o debate público e a proposição de políticas públicas mais vinculadas aos interesses majoritários da sociedade. Um papel complementar, mas arejador.

uso de tecnologias digitais tende a criar mecanismos de controle social mais abrangentes do que os que conhecemos e, talvez, venha a revitalizar a aproximação entre representantes e representados. De toda forma, é preciso buscar e ensaiar novas formas de participação e controle social, como um dos caminhos para reinventar a democracia.

O sorteio tem desempenhado um papel de renovar o debate público e a proposição de políticas públicas mais vinculadas aos interesses majoritários da sociedade. Um papel complementar, mas arejador – Elimar Pinheiro do Nascimento Tweet

IHU – Como o senhor tem refletido sobre um desenvolvimento adequado para a Amazônia, considerando os avanços científicos, mas também o conhecimento dos povos tradicionais?

Elimar Pinheiro do Nascimento – A Amazônia, ao contrário do que sugerem muitas pesquisas de opinião, em geral não interessa aos brasileiros de outras regiões. Além disso, a floresta amazônica interessa muito pouco aos habitantes das cidades amazônicas, particularmente Manaus e Belém. Para parte significativa dessa população, a floresta é sinônimo de atraso. Asfalto e cimento são sinais de progresso.

Infelizmente, a Amazônia, como tantos outros temas candentes, não foi, mais uma vez, devidamente focada durante as campanhas eleitorais. Em sua carta ao Brasil e no discurso depois que o resultado das eleições foi proclamado, Lula tocou no tema. Logo após, como efeito imediato, a Noruega declarou que voltará a contribuir para o Fundo Amazônia, congelado no governo Bolsonaro, que nunca teve interesse em desestimular o desmatamento.

A Amazônia, ao contrário do que sugerem muitas pesquisas de opinião, não interessa aos brasileiros de outras regiões – Elimar Pinheiro do Nascimento Tweet

Amazônia é um capital extraordinário que o Brasil detém, e cada vez mais valioso, na medida em que os humanos avançam no processo de destruição da biodiversidade em escala global. Há vários planos de uso das riquezas da Amazônia para os povos locais e o povo brasileiro em geral. O melhor, de forma global, ainda é o plano que Marina Silva propôs quando estava à frente do Ministério do Meio Ambiente, chamado Plano Amazônia Sustentável – PAS, de 2008.

Nas diversas abordagens, como o Plano de Desenvolvimento Sustentável do Amapá – PDSA, ou os estudos de Armando MendesBertha BeckerIgnacy SachsJoão Paulo CapobiancoCarlos Nobre e os pesquisadores e institutos de pesquisa na Amazônia (Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia – INPAMuseu Emílio Goeldi, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos – NAEA/UFPA, Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais e Sustentabilidade da Amazônia da Universidade Federal do Amazonas – PPGCASA/UFAM, Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia – IPAM), entre outros, domina a ideia, cada vez mais consensual, de que o melhor para a Amazônia é a economia da “floresta em pé”. Isso implica em:

(i) estimular a agricultura e a criação de gado em regimes intensivos, para que não haja mais desmatamentos;

(ii) adotar um vasto programa de reflorestamento para recuperar as áreas degradadas;

(iii) estímulos ao cultivo híbrido de floresta, agricultura, criação de pequenos animais, inclusive peixes, turismo e artesanato. É preciso dar múltiplas funções à pequena agricultura, adotando o princípio da economia circular, em que o dejeto de uma criação (galinhas) vira o adubo de outra criação (hortas).

A Amazônia é um capital extraordinário que o Brasil detém, e cada vez mais valioso, na medida em que os humanos avançam no processo de destruição da biodiversidade em escala global – Elimar Pinheiro do Nascimento Tweet

Bioeconomia

Entre as propostas mais recentes para explorar os recursos naturais da Amazônia com a floresta em pé, destaca-se a bioeconomia, ou seja, investir em tecnologias para aproveitar melhor suas riquezas biológicas (castanhas, óleos, cosméticos, madeiras, produtos fármacos, alimentos vegetais e animais). A isso podemos acrescentar o ingresso no mercado de carbono.

Porém, é preciso que a sociedade brasileira (cientistas, políticos, governantes) tenha melhor conhecimento das riquezas da floresta. Isso exige investir em educação, ciência e tecnologia nos centros educacionais e de pesquisa da Amazônia para gerar políticas e programas robustos, de forma contínua. São políticas e programas que devem nascer do diálogo entre os povos tradicionais, cientistas, empreendedores locais e nacionais e os órgãos públicos e semiestatais, envolvendo também universidades, institutos de pesquisa e institutos federais.

O mais importante, no entanto, é que estes programas e políticas tenham continuidade, articulem iniciativas complementares e estejam conectados a um sistema de avaliação e informação contínuas, com uma governança que fique acima das idiossincrasias da descontinuidade política.

IHU – Uma das questões importantes hoje, em face do agravamento das mudanças climáticas, e que não foi abordada nas eleições é a transição energética. Como o senhor a entende?

Elimar Pinheiro do Nascimento – A transição energética é um problema mais complexo do que normalmente se pensa. As fontes limpas de energia que conhecemos e dominamos, como hídrica, eólica, solar, geotérmica, marítima etc., ainda estão muito longe de poder substituir as fontes fósseis (carvão, petróleo e gás). Por isso mesmo, o prestígio da energia nuclear vem sendo ressuscitado. É possível que ela venha a se expandir de novo, aumentando os riscos de desastres como Chernobyl ou da produção de bombas nucleares por grupos terroristas. Mas o fato é que as fontes limpas que conhecemos, com a tecnologia que temos, não servem para mudar a matriz energética, por mais que cresçam. Elas não têm a capacidade de produzir energia suficiente para substituir plenamente as fontes fósseis.

Isso não significa que não devemos investir nas fontes de energia supracitadas e outras. Elas desempenham o belo papel de reduzir as emissões de gases do efeito estufa provenientes do uso de combustíveis fósseis, embora de forma eficiente. Se quisermos mudar a matriz energética que temos, deveremos tomar pelo menos duas decisões dificílimas: a primeira é a de estimular de forma mais ativa as fontes limpas que conhecemos e que sozinhas não serão capazes de produzir a mudança. Por essa razão, necessitamos da segunda decisão. Entretanto, essa ainda é mais difícil: reduzir o uso de energia de fontes fósseis, redirecionando o crescimento da produção e do consumo (particularmente dos grupos bem aquinhoados) de forma a alcançarmos uma redução radical da emissão de gases de efeito estufa.

É importante compreender que, se continuarmos a nos mover pelo princípio da reprodução ampliada da economia de mercado, não teremos qualquer redução da emissão de gases do efeito estufa, visto que o que ganharmos com fontes limpas perderemos com o consumo ampliado das fontes fósseis.

O fato é que as fontes limpas que conhecemos, com a tecnologia que temos, não servem para mudar a matriz energética, por mais que cresçam – Elimar Pinheiro do Nascimento Tweet

Ações do pós-desenvolvimentismo

Os movimentos pós-desenvolvimentistas como decrescimentobem viverprosperidade sem crescimento, entre muitos outros, propugnam que eliminemos a produção e o consumo de produtos e serviços supérfluos como armas, drogas, propaganda, entre outros; que reduzamos a produção e o consumo de produtos como automóveis, moda, carnes etc.; que tributemos ou proibamos formas de produção nocivas à natureza; que estimulemos a economia criativa e a desmaterialização da economia, entre outros. Ou seja, que trilhemos caminhos que nos levem à sustentabilidade.

No caso do Brasil, estamos na contramão da sustentabilidade. A economia distributiva, em que cada imóvel poderia gerar sua própria energia, com placas fotovoltaicas, por exemplo, foi desestimulada com uma lei que entra em vigor no próximo ano, resultado do lobby de empresas de geração e distribuição de energia hídrica ou fóssil.

*Entrevista publicada originalmente no portal do Instituto Humanos Unisinos. Título editado.


Com adesivo no peito, proprietária da rádio JM online se encontrou com a primeira dam Michelle Bolsonaro e postou registro nas redes sociais | Imagem: reprodução/instagram

Diretora de rádio que se "autodenunciou" ao TSE faz campanha para Bolsonaro

Paulo Motoryn e Felipe Mendes*, Brasil de Fato

Citada pelo servidor do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Alexandre Gomes Machado em depoimento à Polícia Federal (PF) em uma suposta "autodenúncia" sobre não publicação de inserções de rádio da campanha de Jair Bolsonaro (PL), a rádio JM Online, de Uberaba (MG), está diretamente ligada ao bolsonarismo. A diretora da rádio, Lídia Prata, deixou clara a preferência política ao postar no Instagram fotos com a primeira-dama Michelle Bolsonaro.

Machado, que foi exonerado do cargo de assessor de gabinete da Secretaria Judiciária do TSE, disse, em depoimento à PF, que "na condição de Coordenador do Pool de Emissoras do TSE, recebeu um e-mail emitido pela emissora de rádio JM ON LINE no qual a rádio admitiu que dos dias 07 a 10 de outubro havia deixado de repassar em sua programação 100 inserções da Coligação Pelo Bem do Brasil", de Jair Bolsonaro (PL).

Porém, em entrevista à CNN, o próprio servidor disse que "estão tentando criar uma cortina de fumaça sobre a exoneração", e afirmou: "em tese, eu não tenho nada a ver com a fiscalização. O meu trabalho é fazer com que as rádios tenham o conteúdo. Eu tinha feito todo o meu trabalho e achei que estava tudo tranquilo".

O próprio TSE, em seu site oficial, explica que não é função do Tribunal distribuir o material a ser veiculado no horário gratuito. As emissoras de rádio e televisão devem se organizar para ter acesso às mídias e divulgá-las, de acordo com as regras vigentes.

Para garantir que as propagandas cheguem aos veículos, foi montado um pool de emissoras que recebe o material encaminhado pelos partidos em formato digital e faz a geração do sinal dos programas. Esse pool está instalado na sede do TSE, mas é formado por representantes de canais de comunicação.

Cabe aos partidos encaminhar o conteúdo e às emissoras buscá-lo junto ao pool. Assim, não faria qualquer sentido a alegação de que algumas emissoras teriam deixado de exibir as inserções da campanha bolsonarista, enquanto outras tiveram acesso ao material. 

Rádio JM Online

Citada nominalmente pelo servidor em seu depoimento à PF, a JM Online é um veículo do grupo Jornal da Manhã, fundado em Uberaba pelo pai de Lídia Prata, Edson Prata, depois da aquisição do jornal Correio Católico na década de 1970. Lídia assumiu o controle da empresa nos anos 80, junto da mãe e do marido. A empresária foi responsável por ampliar o trabalho do grupo, criando duas revistas e a rádio, que foi inaugurada em 2009. 

Além da foto com Michelle Bolsonaro, publicada no último dia 23, Lídia não esconde a preferência pelos políticos de extrema-direita. Em outra postagem no Instagram, ela fez questão de compartilhar imagem em que aparece ao lado do ex-jogador de vôlei e deputado federal eleito Maurício Souza (PL), uma das figuras mais alinhadas a Jair Bolsonaro no esporte.


Deputado eleito bolsonarista Maurício Souza e a empresária Lídia Prata / Reprodução/Instagram

Brasil de Fato entrou em contato com o grupo JM por e-mail, mas não recebeu retorno. O espaço segue aberto para manifestações.

*Texto publicado originalmente no site Brasil de Fato


Foto: reprodução/ Metrópoles

O falso atentado a Tarcísio de Freitas ainda é uma história inacabada

Ricardo Noblat | Metrópoles

Armação, não foi. Mas um tiroteio entre bandidos, por pouco, não ficou como se tivesse sido um atentado contra o candidato bolsonarista ao governo de São Paulo, Tarcísio de Freitas (PL).

Na manhã do último dia 17, em Paraisópolis, Tarcísio visitava a sede de um projeto social quando estourou um tiroteio do lado de fora, que resultou na morte de um homem e na fuga de outro.

Quem fazia a segurança do candidato? Segundo ele, a Polícia Militar paulista. Segundo a Polícia Militar paulista, ela mesma. Mas apareceram indícios de que gente estranha também fazia.

A Jovem Pan deu primeiro na edição do seu “Jornal da Manhã”: “Informação de última hora: Tarcísio é alvo de atentado em Paraisópolis”. No Twitter, Tarcísio escreveu:

“Em primeiro lugar, estamos todos bem. Durante visita ao Polo Universitário de Paraisópolis, fomos atacados por criminosos. Nossa equipe de segurança foi reforçada rapidamente com atuação brilhante da PM de SP. Um bandido foi baleado. Estamos apurando detalhes sobre a situação”.

Às 11h49m, no Twittwer, Mário Frias, bolsonarista de raiz e ex-secretário de Cultura do governo Bolsonaro, postou:

“URGENTE! Tarcisio de Freitas acaba de sofrer um atentado em Paraisópolis. Uma equipe da Jovem Pan estava próxima. As informações preliminares são de que o candidato estava em uma van blindada e todos estão bem.”

Seis minutos depois, ainda no Twitter, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) registrou:

“Acabei de falar com nosso candidato ao Governo de São Paulo e ele está bem. Graças a Deus o atentado em Paraisópolis/SP não fez vítimas fatais.”

A mensagem de Flávio foi ilustrada com uma foto onde aparece uma chamada do programa “Morning Show”, da Jovem Pan, e o título: “Urgente: Tarcísio de Freitas sofre um atentado em Paraisópolis”.

Àquela altura, no Palácio da Alvorada, Bolsonaro, o pai, já fora informado a respeito. Dali partiu a ordem para que seu programa de propaganda eleitoral daquele dia explorasse o episódio.

A pressa foi tal que, sob um fundo preto, sem locução, foi aplicado apenas um letreiro que dizia:

“O candidato a governador de São Paulo Tarcísio de Freitas e sua equipe foram atacados por criminosos em Paraisópolis”.

Foi pela Jovem Pan que Bolsonaro soube? Segundo um assessor dele, não. Foi pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Pelo menos dois dos seus agentes faziam a segurança de Tarcísio.

A Abin não pode fazer segurança de candidatos. Ela é apenas um órgão de inteligência do governo federal. Mas, vê-se que vai além dos seus chinelos sempre que o presidente autoriza.

No fim da tarde daquele dia, depois que a Secretaria de Segurança Pública concluíra que não fora um atentado, Tarcísio, em entrevista coletiva à imprensa, reconheceu:

“Não foi um atentado contra a minha vida, não foi um atentado político, não tinha cunho político-partidário. Foi um ataque no sentido de que, se você intimida uma pessoa que está lá fazendo uma visita, isso é um ataque.”

“Foi um ato de intimidação. Foi um recado claro do crime organizado que diz: ‘Vocês não são bem-vindos aqui. A gente não quer vocês aqui dentro’. Para mim é uma questão territorial. Não tem nada a ver com uma questão política.”

Áudio obtido pela Folha de S. Paulo aponta que um integrante da campanha de Tarcísio mandou um cinegrafista da Jovem Pan apagar imagens do tiroteio. O cinegrafista filmou parte da ação.

Um dos encarregados da segurança do candidato, que portava um crachá, interrogou o cinegrafista:

“Você filmou os policiais atirando?” – ele perguntou.

“Não, trocando tiro efetivamente, não. Tenho tiro da PM pra cima dos caras”, respondeu o cinegrafista.

O segurança perguntou se ele havia filmado as pessoas que estavam no local onde tudo aconteceu, e o cinegrafista disse que não. Por fim, o segurança mandou:

“Você tem que apagar”.

Em nota, a Jovem Pan diz que “exibiu todas as imagens feitas durante o tiroteio”, e que “o trabalho do cinegrafista permitiu que a emissora fosse a primeira a noticiar o ocorrido.”

Acrescenta a nota:

“Não houve contato da campanha do candidato Tarcísio com a direção da emissora com o intuito de restringir a exibição das imagens e, por consequência, o trabalho jornalístico.”

A polícia paulista vai requisitar as imagens à emissora. O homem que morreu não foi identificado. O que fugiu, também não. O inquérito aberto pela polícia corre em segredo.

Matéria publicada no originalmente no portal Metrópoles


Bolsonaro nomeará 75 desembargadores na maior canetada da história recente

Nova lei amplia número de juízes de tribunais regionais federais e causa temor de aparelhamento da cúpula do Judiciário pelo bolsonarismo

Monica Bergamo / Folha de S. Paulo

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) vai dar a maior canetada da história recente do Judiciário brasileiro. No próximo ano, ele nomeará 75 desembargadores nos seis tribunais regionais federais do país.

TREM DO BOLSONARO
A avalanche bolsonarista nas cortes será possível graças ao aumento de quase 50% das vagas em cinco tribunais aprovado pela Câmara no dia 8 de novembro (serão 57 novos cargos). E também à criação de uma nova corte, o Tribunal Regional Federal da 6ª Região, em Minas Gerais, aprovada anteriormente, em outubro. O TRF-6 terá 18 novos juízes.

TREM 3 
De um total de 139 desembargadores federais, portanto, o Brasil passará a ter 214. A lei que cria os novos cargos já está na mesa de Bolsonaro para ser sancionada.

TREM 4 
A nomeação de um número tão grande de magistrados em tribunais estratégicos preocupa setores do meio jurídico, que já temem o aparelhamento da cúpula do Judiciário pelo bolsonarismo. Acima dos TRFs estão apenas o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF).

MEMÓRIA 
Para citar apenas um exemplo de enorme impacto político, o ex-presidente Lula foi julgado e preso por determinação do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que confirmou sentença do ex-juiz Sergio Moro contra ele. Toda a Operação Lava Jato, em todos os estados, passou pelos TRFs.

TODO PODER
Os tribunais regionais federais julgam também crimes tributários e ambientais.

ROMARIA
O presidente da República nomeia os desembargadores dos TRFs a partir de lista tríplice apresentada a ele pelos próprios tribunais. Nas vagas reservadas à magistratura, os candidatos da lista são escolhidos entre os juízes federais que se inscrevem para concorrer ao cargo.

ROMARIA 2 
Outra parte das vagas é reservada a indicações do Ministério Público e da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), que formam listas submetidas aos tribunais e depois enviadas ao presidente da República.

CANETA 
Caberá a Bolsonaro sempre, no entanto, a última palavra_ o que dá ao governo enorme poder de negociação e influência na elaboração das listas.

CANETA 2
O senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, é considerado peça-chave para a negociação das listas com nomes de candidatos que os tribunais apresentarão ao presidente.

CANETA 3
O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Nunes Marques, que já integrou o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), vem sendo apontado como um dos interlocutores preferenciais de Bolsonaro para o preenchimento das vagas. Seu gabinete já estaria recebendo romaria de futuros candidatos.

CAIXA 
A questão financeira também preocupa: as vagas de desembargadores serão abertas com o fechamento de cargos vagos de juízes federais. A estrutura para atender os magistrados dos tribunais, no entanto, é bem mais dispendiosa.

CAIXA 2 
De acordo com um magistrado de tribunal superior, "é um trem da alegria monstro, com dinheiro do contribuinte".

CAIXA 3 
O Tribunal Federal da 1ª Região passará de 27 para 43 desembargadores; o da 2ª Região, de 27 para 35; o da 3ª Região, de 43 para 55; o da 4ª Região, de 27 para 39; o da 5ª Região, de 15 para 24. E o de Minas Gerais terá nomeados novos 18 desembargadores.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2021/11/bolsonaro-nomeara-75-desembargadores-na-maior-canetada-da-historia-recente.shtml


Extrema-direita no Brasil já não precisa de Bolsonaro para se mobilizar, revela pesquisa

Estudo mostra o legado radical de 18 meses de manifestações de rua pelo País

Marcelo Godoy / O Estado de S.Paulo

Os atos e manifestações do bolsonarismo não precisam mais da presença de Jair Bolsonaro para acontecer. Dezoito meses de mobilização das ruas deixaram como herança uma extrema-direita rapidamente mobilizada em torno de pautas que vão do combate às medidas de isolamento social à defesa do voto impresso e à guerra contra instituições.

É o que mostra pesquisa inédita coordenada pela antropóloga Isabela KalilDemocracia Sitiada e Extremismo no Brasil: 18 meses de manifestações bolsonaristas, do Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (NEU-FESPSP). Ao todo foram mapeadas 45 manifestações entre março de 2020 e setembro deste ano, em que o bolsonarismo atuou por meio do que os pesquisadores classificaram como “extremismo estratégico”.

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Mas o que seria esse extremismo e por que essa história não acaba com a declaração à nação feita por Bolsonaro para recuar dos ataques aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) na manifestação de 7 de Setembro? Para Kalil, apesar de ser impossível saber se o presidente continuará a participar desses eventos após o recuo, é certo que os atos não precisam mais de Bolsonaro para ocorrer. “Há vários exemplos na pesquisa. Bolsonaro pode moderar o tom e mudar a performance sem que os atos sejam desmobilizados.”

Como exemplo, a antropóloga citou as ações recentes de caminhoneiros e grupos como o 300 do Brasil. “Nas manifestações, sua base cobra mais radicalismo e diz: ‘eu autorizo o que for necessário’. Mas institucionalmente não aconteceu nada.” Ao não poder entregar o radicalismo esperado pelos extremistas, Bolsonaro “entrega a performance”. É assim, segundo ela, que se explica o desfile de carros de combate da Marinha em Brasília, no dia da votação da PEC do voto impresso, rejeitada pelo Congresso.

Para o cientista político José Álvaro Moisés, a história das manifestações é marcada pelo crescimento do que chamou de “expressões mais radicais do bolsonarismo”. O professor da USP alerta, no entanto, que os fracassos do governo desativaram a força do bolsonarismo radical para se impor ao País. “A declaração à nação de Bolsonaro foi um recuo tático. É preciso ainda entender seu impacto sobre o movimento.”


07/09/2021 Comemorações pelo dia da Independência
07/09/2021 Comemorações pelo dia da Independência
07/09/2021 Comemorações pelo dia da Independência
07/09/2021 Comemorações pelo dia da Independência
07/09/2021 Comemorações pelo dia da Independência
O presidente Jair Bolsonaro participa de cerimônia comemorativa do 7 de Setembro, no Palácio da Alvorada.
O presidente Jair Bolsonaro e ministros participam de cerimônia comemorativa do 7 de Setembro, no Palácio da Alvorada.
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07/09/2021 Comemorações pelo dia da Independência
07/09/2021 Comemorações pelo dia da Independência
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07/09/2021 Comemorações pelo dia da Independência
O presidente Jair Bolsonaro participa de cerimônia comemorativa do 7 de Setembro, no Palácio da Alvorada.
O presidente Jair Bolsonaro e ministros participam de cerimônia comemorativa do 7 de Setembro, no Palácio da Alvorada.
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A resposta para isso tem relação com as táticas e a estratégia do movimento até as eleições de 2022. Moisés acredita que Bolsonaro deve adotar a visão escatológica, da luta final contra o petismo e o comunismo, como forma de mobilizar sua base, ainda mais do que o discurso antissistema que alimentou o extremismo estratégico nos 18 meses de atos de rua.

A pesquisa do NEU-FESPSP mostra que a formação desse extremismo é indissociável da covid-19. De acordo com ela, a pandemia se transformou em uma oportunidade para mobilizar os apoiadores do presidente. A maioria dos atos em 2020 trazia como pauta a defesa do tratamento precoce e o ataque a governadores e prefeitos que defendiam medidas de isolamento social, como o fechamento do comércio.

A pesquisa também detectou uma mudança da retórica bolsonarista. Antes da pandemia, os alvos prioritários eram os políticos e partidos tradicionais. Depois, passaram a ser instituições, como o Congresso e o STF. O deslocamento das pautas dos protestos é acompanhado pelo aumento do radicalismo, incluindo “atos de insurgência”. Um exemplo foi a tentativa de invasão do Congresso, em 13 de junho de 2020, quando o grupo 300 do Brasil subiu na cúpula do prédio após ter seu acampamento desmontado em Brasília.

Os pesquisadores identificaram ainda a presença cada vez maior de símbolos militares e de novos tipos de protestos, como os encontros de motociclistas – as motociatas –, que predominaram nos atos em 2021. Onze delas contaram com a participação presidencial – Bolsonaro esteve presente em 25 dos 45 eventos estudados.

Trump

As motociatas, segundo a pesquisa, atraem pessoas que se comunicam por grupos fechados, no Instagram e no Telegram. “Elas parecem se dar de forma espontânea, mas não são. Uma motociata anuncia a data da outra. Algumas são anunciadas na live do presidente”, diz Kalil.

Foi só no 22.º evento analisado que nasceu esse tipo de ato. A data que marca o começo foi 7 de maio deste ano, quando o empresário Luciano Hang andou na garupa de Bolsonaro durante a inauguração de uma ponte em Rondônia. Dias depois, ocorreria a primeira motociata oficial, em Brasília.

Esse tipo de evento seria inspirado no tradicional encontro de motocicletas de Sturgis, na Dakota do Sul, que atrai um público antissistema. “(Donald) Trump foi muito hábil para falar com esse público e associar sua imagem ao Rally de Sturgis, um encontro que aconteceu mesmo durante a pandemia”, afirma Kalil. Como em outras áreas, aqui também a inspiração do bolsonarismo seria a extrema-direita americana, ancorada no trumpismo.

Repetidas 19 vezes em 2021, as motociatas foram interiorizadas e viraram um modelo bem-sucedido de mobilização. “É importante notar que Eduardo Bolsonaro participou de uma motociata, em Miami, depois de se reunir com Steve Bannon (ex-estrategista de Trump), na Dakota do Sul.” O evento na Flórida aconteceu dias depois do encontro de Sturgis.

Escalada

Os passeios de motocicleta compuseram a escalada até o ato de 7 de Setembro, visto pelos pesquisadores como “parte de uma ação de insurgência”, que se desenvolveu de forma “gradativa, com planejamento, tática e objetivos definidos”. Essa estratégia recorreu a determinados temas, pautas e agendas, que formaram o chamado “extremismo estratégico”. Em dez eventos, a pauta principal foi a defesa do voto impresso. Em cinco deles, foi a “intervenção militar”.

Mas nem só o público radical compareceu aos atos. As maiores manifestações incluíram um público mais amplo, envolvendo conservadores e suas famílias que dão apoio ao presidente e às pautas ligadas aos costumes. “Há duas manifestações que aconteceram dessa forma: a do 1.º de maio e a do 7 de Setembro”, conta Kalil.

Para a pesquisa, durante os atos, os manifestantes comuns foram estimulados a experimentar tipos de conduta extrema. Líderes do movimento, como o caminhoneiro Marcos Antônio Pereira Gomes, o Zé Trovão, geraram situações em que foram investigados e presos e, assim, se transformaram em “vítimas do sistema”, levando a apoiadores o sentimento de que a democracia e as liberdades foram vilipendiadas.

“Esses acontecimentos servem de argumento para os apoiadores de que a insurgência é a única alternativa possível para a política.” Assim era até o 7 de Setembro. Os pesquisadores vão continuar o trabalho até janeiro de 2023. Querem verificar a futura estratégia do bolsonarismo e por quanto tempo e locais as táticas e dispositivos serão empregados e o que será bem-sucedido. O desafio é compreender os caminhos do movimento que cresceu além de seu líder e transformou as ruas em laboratório de ações em meio ao avanço global do extremismo contra a democracia.

Isabela Kalil
Para Isabela Kalil, que coordena o trabalho, Bolsonaro pode moderar a performance e o tom sem que os atos sejam desmobilizados. Foto: Tiago Queiroz/Estadão - 15/10/2021

Militantes veem defesa de valores e patriotismo sem radicalização

A transformação da identidade do bolsonarista, deixando a ênfase no “cidadão de bem” para explorar a imagem do “patriota”, foi uma das constatações da pesquisa do Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

Esse itinerário se reflete no momento de maior abalo do movimento: a demissão do então ministro da Justiça Sérgio Moro. “Quando Moro saiu, a gente pensou que ia desmoronar”, disse o advogado Luciano dos Santos, de 59 anos. Ele foi às ruas de Salvador apoiar o presidente. “Bolsonaro quis demonstrar que o povo dá autoridade e autonomia à gestão”. 

Luciano conheceu Bolsonaro pelas redes sociais e participou dos atos da campanha, em 2018. Para ele, o candidato representava o nome ideal contra o PT. “Se tiver que chamar as Forças Armadas para pôr ordem na casa, ele tem todo apoio.”

Ele destaca que a diversidade das pessoas foi o que mais chamou sua atenção no 7 de Setembro: manifestantes de diversas idades, evangélicos e pessoas de verde e amarelo. Em 2022, assegura que votará em Bolsonaro. E afirma que irá a um outro ato caso seja convocado.

Mobilização para novas manifestações não deve faltar. É o que diz o empresário Beto Okazaki, de 44 anos, de Ponta Grossa (PR). Além de organizar dois protestos na cidade a favor do “tratamento precoce” contra a covid-19 e do voto impresso, ele compareceu ao 7 de Setembro em Brasília. “Foram dois ônibus para Brasília e três para a Paulista.”

Okazaki disse respeitar as instituições que sustentam a democracia, mas critica a atuação do STF quando ele passa “dos seus limites”. “A gente vê um cerceamento da liberdade de expressão.” Para o empresário, “um cidadão de bem, geralmente, vai ser patriota”. “E geralmente um patriota é um cidadão de bem.”

O discurso é próximo daquele do general Roberto Peternelli, deputado federal pelo PSL. Peternelli esteve no ato do 7 de Setembro. “Foi uma manifestação da família por valores, pela Constituição e pela legalidade.” Para ele, as manifestações devem continuar. “Elas serão democráticas. Sem espaço para extremismos, conforme a carta que o presidente escreveu.” / LEVY TELES, CÁSSIA MIRANDA e MARCELO GODOY

Bolsonaro e Hang
Dois dias antes da primeira motociata, Bolsonaro passeou de moto com Luciano Hang em Porto Velho, marcando o início do uso de motocicletas em atos governistas. Foto: Anderson Riedel/PR - 7/5/2021

Cronologia: conheça os principais atos dos 45 monitorados 

  • 15 de março de 2020: Primeira manifestação combinando política e pandemia. Inclui 6 capitais. Bolsonaro participa em Brasília. Início do “ciclo de atos antidemocráticos”; 
  • 19 de abril de 2020: Após a saída de Mandetta do Ministério da Saúde, protestos contra o isolamento social ocorrem em 4 capitais. Bolsonaro participa em Brasília;
  • 31 de maio de 2020: Manifestações em SP e no DF atacam o STF e pedem intervenção militar. Bolsonaro faz sobrevoo no DF e depois vai ao ato a cavalo;
  • 14 de junho de 2020: Atos defendem invasão do Congresso no DF, SP e RJ. No dia anterior, o grupo “300 do Brasil” tentou invadir o Parlamento;
  • 22 de novembro de 2020: Primeira manifestação organizada em defesa do voto impresso ocorre em Brasília;
  • 31 de março 2021: “Agora é guerra”; atos convocados em frente aos quartéis, contra o Congresso e o STF e em defesa da ditadura. Ocorrem em algumas cidades sem grande adesão. Os comandantes das Forças Armadas haviam acabado de renunciar;
  • 9 de maio de 2021: Primeira motociata. Ocorre em Brasília, no dia das mães, com Bolsonaro. Dois dias antes, ele passeara de moto com Luciano Hang em Porto Velho, marcando o início do uso de motocicletas em atos governistas;
  • 7 de setembro de 2021: Principal ato em apoio a Bolsonaro. Reuniu milhares de pessoas em diversas cidades do País. Auge da narrativa antidemocrática obriga o presidente a divulgar carta de recuo no dia seguinte a ataque ao STF.

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Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,extrema-direita-no-brasil-ja-nao-precisa-de-bolsonaro-para-se-mobilizar-revela-pesquisa,70003871541


Eliane Brum: O rompimento do mundo dos humanos

Como a apreensão religiosa da realidade destrói a linguagem e ameaça o enfrentamento de nossa própria extinção

Eliane Brum / El País

No princípio era o verbo. A frase que abre o primeiro capítulo do Evangelho de João e remete à criação do mundo, assim como também faz o Gênesis, é a mais famosa da Bíblia. A ideia de que o mundo é criado pela palavra, porém, é tão estruturante que está presente em outras religiões, para muito além das fundadas no cristianismo. Como humanos, a linguagem é o mundo que habitamos. Basta tentar imaginar um mundo em que não podemos usar palavras para dizer de nós e dos outros para compreender o que isso significa. Ou um mundo em que aquilo que você diz não é entendido pelo outro, e o que o outro diz não é entendido por você, para alcançar o que é ser reduzido a sons porque as palavras perderam seu significado e, portanto, se tornaram fantasmagorias. Quando uso a palavra “dizer” não significa apenas falar, porque a gente se diz com palavras, de várias maneiras para além da fala. Mais ainda do que o mundo que habitamos, a palavra é o que nos tece. Aquilo que chamamos mundo é uma trama de palavras.

O que acontece então quando a palavra é destruída e, com ela, a linguagem?

Essa é a experiência do bolsonarismo, nome dado no Brasil a um fenômeno que se dissemina no planeta, ganhando em outros países nomes de outros déspotas. Os personagens que emprestam nomes locais ao fenômeno são importantes e, em cada país, há particularidades. Mas o fenômeno precede aqueles que o encarnam e, infelizmente, irá além deles. É neste contexto que busco interpretar o Nobel da Paz dado a dois jornalistas que lutam pela busca da verdade contra ditadores eleitos que têm na destruição da palavra seu principal meio para alcançar e se perpetuar no poder.

Eliane Brum: Como funciona o golpe de Bolsonaro

A filipina Maria Ressa está proibida de sair de seu país, já foi presa duas vezes e pagou fiança outras sete por combater com jornalismo o governo de Rodrigo Duterte. Ela é editora do site de reportagem investigativa Rappler. O russo Dmitri Muratov dirige o jornal Novaia Gazeta, que ousa confrontar com fatos o regime de Vladimir Putin. Desde 2001, seis repórteres do jornal foram assassinados. A escolha de dar o Nobel a esses dois jornalistas que são símbolos da resistência contra a opressão em seus países é uma declaração da importância da imprensa para a democracia. O Nobel, prêmio que destaca aqueles que colaboraram para o bem comum, representa o conceito de humanidade consolidado ao longo do século 20. Como bem comum e democracia se tornaram uma espécie de irmãos siameses no mundo do pós-guerra, um prêmio a jornalistas no Nobel da Paz faz todo sentido. Mas em que momento chega esse prêmio à imprensa, na conturbada terceira década do século 21?

A justiça da premiação a esses dois jornalistas é inegável. A escolha de valorizar a imprensa como pilar da democracia e, assim, valorizar a busca das verdades, assim mesmo no plural, e a importância dos fatos, num momento em que um e outro estão corroídos, também. A questão é: quem escuta?

Se jornalistas são atacados e desqualificados, se outros são presos e outros ainda executados é porque a imprensa ainda tem impacto sobre a sociedade. Suspeito, porém, que estamos chegando, pelo menos no Brasil, a um momento ainda mais grave. Para uma parte da população, a imprensa já não importa em nada. Todas as iniciativas de expor a mentira das chamadas fake news, entre elas as agências de checagem, são muito importantes. Mas são muito importantes apenas —ou pelo menos principalmente— para aqueles que respeitam os fatos e já sabem que aquelas notícias são falsas. Para todos os outros, já houve uma decisão prévia de que tudo o que a imprensa publica é falso. Esta é a razão pela qual em golpes como o de Jair Bolsonaro não é necessário censura, como aconteceu em ditaduras passadas, já que para essa parcela da população nada que seja estampado nas manchetes dos jornais vai colar.

Isso não significa que os jornalistas deixarão de correr riscos. Como o governo Bolsonaro mostrou, os ataques são necessários para manter o apartheid político ativo. Se forem contra jornalistas mulheres, melhor ainda, na medida em que a misoginia e o machismo rendem votos para Bolsonaro. É importante que a base de seguidores seja mantida em estado de ódio constante e seja lembrada, também de forma constante, que a imprensa “só diz mentiras”. A estratégia torna mais fácil fabricar “fatos alternativos” como se verdade fossem. “Fatos alternativos” são impossibilidades lógicas. São também mentiras facilmente desmontáveis, como as agências de checagem demonstram toda vez. Mas, se uma parte da população não lê nem vê nem escuta, de que adianta?

O que está em jogo é algo mais profundo: uma mudança na forma de apreensão da realidade, que confronta os pilares que forjaram a imprensa e o funcionamento da sociedade moderna. Por uma série de razões, o verbo que progressivamente passou a mediar uma parcela significativa das pessoas na sua relação com a realidade é “acreditar”. Não mais os verbos iluministas do duvidar, investigar, testar, confrontar, comparar etc. Mas acreditar. É uma mediação religiosa da realidade, determinada pela . A crença se antecipa aos fatos, e assim os fatos já não importam. É como se as pessoas passassem a ler a realidade da mesma forma que leem a Bíblia. Esta é a razão que determina a crise da imprensa, da ciência e de outros fundamentos que constituíram a modernidade, baseados na investigação e no questionamento constante, para os quais a dúvida é que move o processo de apreensão da realidade e de construção do conhecimento sobre o mundo.

É claro que essa mudança tem relação com o crescimento de um determinado tipo de religião, no Brasil marcadamente a expansão do neopentecostalismo de mercado, através de denominações religiosas produzidas por essa fase ainda mais predatória do capitalismo. Na minha interpretação, porém, a mediação da realidade pela fé é (não só, mas) principalmente sintoma da transfiguração do planeta pela crise climática. Ainda que a maioria das pessoas não seja capaz de nomear os impactos dessa monumental mudança em suas vidas, todos estão sentindo que o mundo que conhecem se desfaz debaixo dos pés. Mesmo para aqueles que a vida cotidiana sempre foi muito dura, a dureza desconhecida é ainda mais brutal do que a conhecida. No desamparo, em que também as instituições se desfazem, resta crer. E resta crer mesmo para aqueles não religiosos, no sentido estrito. E resta crer não apenas numa religião, mas em uma realidade que, se não é real no sentido de corresponder aos fatos, se torna real para quem nela acredita. Nesta proposição, a mediação da realidade pela crença seria uma adaptação à emergência climática que, em vez de enfrentá-la, a agrava.

Como já escrevi mais de uma vez, os ditadores eleitos que alcançaram o poder pelo voto a partir da segunda década do século são vendedores de passados que nunca existiram porque não têm futuro para oferecer, já que as forças que representam são as principais responsáveis pela alteração do clima e da morfologia do planeta. No caso de Jair Bolsonaro, principalmente os setores do agronegócio predatório e da mineração. A aliança alcançada no bolsonarismo entre agronegócio, mineração, corporações transnacionais de agrotóxicos e produtos ultraprocessados e grandes pastores do neopentecostalismo de mercado não é um acaso. Em comum, essas forças buscam seguir avançando sobre a natureza e lucrando num momento em que são confrontadas pela corrosão do planeta. No Brasil, especialmente pela destruição da Amazônia, que pode chegar ao ponto de não retorno nos próximos anos. Mas também a destruição persistente de outros biomas e de seus povos, como o Cerrado e o Pantanal.

Só a mediação da realidade pela crença pode garantir a continuidade da exploração e do lucro pelas grandes corporações capitalistas num momento em que o planeta superaquece devido a suas ações. É por isso que parte dos executivos de corporações transnacionais toleram a companhia pouco refinada dos pastores de mercado e principalmente de uma criatura tosca como Jair Messias Bolsonaro, que tem levado a crença como ativo político ao paroxismo. A palavra “seguidores”, tomada emprestada das seitas e religiões pelas redes sociais, tornou-se sinalizadora de um fenômeno na política em que mesmo os ateus se comportam como crentes. Pela tomada da política pela mediação religiosa, ironicamente a mais famosa frase bíblica foi traída. No princípio era o verbo. Mas então o verbo passa a ser sistematicamente destruído como projeto de poder.

Nessa fase, portanto, ainda é necessário bater na imprensa e trabalhar para a desqualificação de jornalistas. Talvez numa segunda fase já não será mais preciso, na medida em que a imprensa poderá seguir importante, mas apenas para uma bolha, e com dificuldades cada vez maiores para penetrar em universos além dela. Este é hoje o grande desafio do jornalismo e do mundo que produziu a imprensa como a conhecemos.

As próximas eleições quase certamente ampliarão o fosso no mundo dos humanos. A ótima reportagem sobre o avanço do Telegram entre a extrema direita global, publicada no jornal O Globo, aponta a estratégia em acelerada execução. Sem representação legal no país nem moderação de conteúdo, o Telegram não respondeu às tentativas de contato da Justiça brasileira. Com grupos para até 200 mil pessoas e canais com capacidade ilimitada de inscritos, o Telegram é o mundo perfeito para a propaganda em massa sem a necessidade de atender à legislação dos países. Subverte, em nome da “liberdade de expressão”, o próprio conceito de liberdade de expressão, em que limites precisam ser respeitados para que o crime não se imponha. No Telegram, por exemplo, circulam livremente vídeos com pornografia infantil, assim como armas são comercializadas sem nenhuma normatização e fiscalização.

A partir das denúncias do uso ilegal do WhatsApp na campanha de Bolsonaro, em 2018, o aplicativo de mensagens de Mark Zuckerberg tomou algumas medidas para impedir ou pelo menos controlar minimamente a disseminação de fake news para uso eleitoral. Como alternativa para a eleição de 2022, Bolsonaro passou a apostar então no Telegram: na semana passada, seu canal no aplicativo bateu a marca de 1 milhão de seguidores. Fundado em 2013 na Rússia pelos irmão Nikolai e Pavel Durov, com sede em Dubai, nos últimos anos o Telegram teria mudado de jurisdição várias vezes para escapar de qualquer regulação. Os auxiliares de Bolsonaro hoje trabalham arduamente para construir na plataforma uma base de crentes políticos capazes de levá-lo à reeleição. Donald Trump, por sua vez, depois da criminosa invasão do Capitólio, foi banido das redes sociais Twitter e Facebook, por meio das quais propagava suas mentiras e insuflava seus seguidores. Seu ex-conselheiro, Jason Miller, lançou então neste ano uma nova rede social, a Gettr. Em setembro, Miller foi recebido por Bolsonaro no Palácio do Alvorada.

É na internet que está sendo forjada uma realidade sem lastro nos fatos. Neste ato em processo, os pilares do mundo que conhecíamos são corroídos. Entre eles, a imprensa, a ciência e a democracia. É importante fazer a ressalva de que obviamente não vivíamos num mundo maravilhoso que foi corrompido por homens do mal. A democracia nunca chegou para todos. É notório que grande parte da população brasileira viveu na arbitrariedade das forças policiais mesmo após a redemocratização do país e também sem acesso a direitos básicos. O mesmo vale para outros países, inclusive para as parcelas pobres de países considerados ricos, como o brutalmente desigual Estados Unidos.

No Brasil, a imprensa —branca, majoritariamente liberal, liderada preferencialmente por homens e com posições ocupadas pelos filhos da classe média que puderam chegar à universidade e, mais recentemente, aos MBAs nos Estados Unidos e na Europa— nunca representou a diversidade da sociedade brasileira, deixando largas camadas fora dela e dando diferentes valores à vida humana. Basta ver o espaço dado à morte dos ricos (e brancos) e à dos pobres (e pretos), à vida dos ricos (e brancos) e à dos pobres (e pretos). Só recentemente, por pressão externa, a imprensa tem aberto espaço aos negros, maioria da população, e começado a se abrir para a diversidade de gênero. Vale dizer ainda que, disposta a defender seus lucros e interesses, no Brasil as principais famílias que dominam a mídia impediram o avanço do debate da regulamentação da imprensa como se fosse um atentado à liberdade de expressão e, assim, uma grande parte das concessões públicas de TV é usada (e abusada) pela mais nefasta doutrinação religiosa disseminadora de teorias conspiratórias e anticientíficas.

A ciência tampouco escapa de um olhar crítico. É responsável direta pela emergência climática, processo de alteração do clima e da morfologia do planeta iniciado na Revolução Industrial e acelerado no século 20. Sem contar que fez muitas promessas que não foi capaz de cumprir —e ainda faz. Em países como o Brasil, em que a educação é uma tragédia jamais enfrentada com o investimento necessário, a maior parte da população não é capaz de compreender a ciência que impacta a sua vida e jamais houve preocupação suficiente de seus agentes para mudar esse estado geral de ignorância por falta de acesso à informação científica inteligível.

Isso não significa, porém, que a democracia, a imprensa e a ciência sejam menos do que essenciais para a criação de um futuro em que possamos viver. Com todas as suas falhas, omissões e exclusões, esses três pilares conectados são parte do melhor que a humanidade produziu. É (também) com muita ciência, obrigatoriamente contando com o conhecimento ancestral de povos-natureza, como os indígenas, que temos alguma chance de enfrentar o superaquecimento global e a monumental perda de biodiversidade. É também dentro da própria imprensa que têm surgido as melhores críticas à imprensa. A melhor forma de enfrentar os problemas da imprensa é com jornalismo da melhor qualidade, feito com rigor e honestidade. Ampliar a democracia é também o melhor caminho disponível para enfrentar sua crise. E, num momento de ecocídios em curso, é preciso ampliá-la também para outras espécies.

Durante séculos, em diferentes sociedades e línguas, é importante lembrar, a linguagem serviu —e ainda serve— para manter privilégios de grupos de poder e deixar todos os outros de fora. Quem entende linguagem de advogados, juízes e promotores, linguagem de médicos, linguagem de burocratas, linguagem de cientistas? A maior parte da população foi submetida à violência de propositalmente ser impedida de compreender a linguagem daqueles que determinam seus destinos. E então surgem criaturas como Jair Bolsonaro e outros que falam na língua que são capazes de entender. E mentem na língua que entendem. E dizem que é ótimo não entender nada sobre quase tudo. Parte da população decide, como reação, dar a pior resposta à sua exclusão fazendo e exercendo a exaltação da ignorância. Criam sua própria bolha de linguagem e passam a excluir todos os outros. É estúpido, mas é uma reação. Afinal, por séculos poucos se importaram que grandes parcelas das populações do planeta ficassem de fora da linguagem em que suas vidas eram decididas.

Ressalvas feitas, o momento é brutal. É na brutalidade do que vivemos que o Nobel da Paz dado a dois jornalistas pode ser interpretado como o grito desesperado de quem assiste a pilares como a imprensa desabarem. Não porque a imprensa deixará de existir, mas porque poderá ter impacto apenas sobre uma parte da população —o que é diferente do passado recente, em que também era feita e controlada por uma minoria, mas tinha impacto sobre o conjunto da sociedade. Trata-se em parte de uma reorganização dos espaços de poder, mas feita da pior maneira possível e, em grande medida, falsa, já que corrói a possibilidade de qualquer transformação real. Ao final, os principais beneficiados são minoritários e os mesmos de sempre, razão pela qual Bolsonaro continua no poder apesar de todos os seus crimes. Em um mundo em transtorno climático, as grandes corporações decidiram sacrificar parte de seus aliados históricos para manter um sistema que colocou a espécie diante da possibilidade de extinção.

Esse é o abismo do qual nos aproximamos. Estamos à beira de algo com a magnitude do rompimento da linguagem que une os humanos, para além das diferenças de língua: uma parcela da população global aderindo a uma realidade falsificada, mas que, pela adesão, passa a se tornar real. Tudo indica que as eleições de 2022, no Brasil, serão o laboratório de ensaio dessa nova fase da crise da palavra, para muito além do que se entende por polarização. Ao romper a linguagem com a qual é possível se encontrar, aquela que compartilha de uma base de significados de consenso baseado em evidências, sejam elas objetivas ou subjetivas, estamos diante de um fenômeno inédito. Num planeta em colapso climático, em que mais do que nunca é necessária uma linguagem comum para determinar o comum pelo qual lutar, a humanidade parece se dividir em duas gigantescas bolhas impermeáveis uma a outra.

Lutar pelo futuro é lutar no presente para que as palavras voltem a encarnar, permitindo uma linguagem comum. Não como antes, mas uma em que realmente caibam todas as gentes e suas diferenças, tornando o debate das ideias possível para a criação de conhecimento e de ação baseada em conhecimento. O que tínhamos não era justo e nos trouxe até esse momento limite. Para seguirmos existindo, teremos que ser melhores do que fomos e criar uma sociedade capaz de viver em paz com todas as forças de vida do planeta. Se o princípio é o verbo, o fim pode ser o silenciamento. Mesmo que ele seja cheio de gritos entre aqueles que já não têm linguagem comum para compreender uns aos outros.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de oito livros, entre eles Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago) e Banzeiro òkòtó, Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo (Companhia das Letras). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-10-14/o-rompimento-do-mundo-dos-humanos.html


Artigos: FAP defende fortalecimento da democracia contra bolsonarismo

Reunião colegiada avançou na discussão sobre necessidade de criação de ampla frente democrática no país

Cleomar Almeida, da equipe FAP

Integrantes de vários segmentos da sociedade - como movimento negro, mulheres e academia -, conselheiros da Fundação Astrojildo Pereira (FAP) concordam que o bolsonarismo é um movimento que deve permanecer no Brasil por muito tempo, embora entendam que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) não deva ter sucesso nas eleições de 2022. Em reunião online na manhã deste sábado (25/9), eles destacaram que o fortalecimento da democracia exige responsabilidade, envolvimento e renúncia de exigências meramente partidárias para criar uma ampla frente democrática.

Na reunião, diretores e conselheiros a FAP discutiram, entre outros pontos, como Bolsonaro expressa o populismo, que, no mundo, envolve correntes de esquerda e de direita, em que os governantes se sentem como "o povo" ou como titular da "voz do povo".  "Hoje temos muitos populismos", disse o sociólogo e professor da Universidade de Brasília (UnB) Elimar Pinheiro do Nascimento, em encontro virtual coordenado pelo diretor-geral da fundação, Caetano Araújo.

GOVERNO DA CRISE


Foto: Tânia Rego/Agência Brasil
Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas
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Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação
Foto: Roque de Sá/Agência Senado
Foto: Sipa/USA
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Foto: Guilherme Gandolfi/Fotos Públicas
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O populismo, de acordo com Nascimento, é a expressão latente do conflito entre concepções diferentes de democracia. "O populismo não nasce fora da democracia. Nasce no âmbito da democracia e implode essa democracia para criar outra. Ele se propõe a refundar a democracia que o desvio das representações comprometeu", explicou, ressaltando que essa "ideologia crescente" é vista em diferentes perfis de políticos pelo mundo, no governo ou na oposição.

"Toda nossa preocupação hoje, e ela em razão muito forte, é tirar Bolsonaro do cenário [político], mas, ao fazermos isso, não tiraremos o populismo. O populismo veio para ficar, independente dessa conjuntura e desse personagem desprezível", disse Nascimento. Segundo ele, o presidente se aproveita da polarização entre "nós e eles" ou "bandeira nacional", que passou a ser usada como expressão do bolsonarismo, e "bandeira vermelha", em alusão à cor oficial do PT e que é associada ao comunismo.

Durante a reunião, o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e sociólogo Paulo Baía analisou o comportamento dos três Poderes e afirmou que o Supremo Tribunal Federal (STF) não está à toa sendo identificado como "legislador", o que, no país, é apontado por adeptos do populismo de direita e de esquerda em crítica a uma eventual "jusditadura", ou "governo dos juízes".

Na avaliação de Baía, o ativismo judicial é reflexo do cenário político. "Isso é resultado da ação dos próprios partidos políticos. Nos últimos 30 anos, o STF tem sido estimulado a se posicionar sobre quase tudo", afirmou. Além disso, ele observou que o  Senado tem sido mais prático e rápido na defesa da democracia e, sobre o Executivo, apontou forças de Bolsonaro: a área de infraestrutura e suas linhas de financiamento direto para governos estaduais e prefeituras.

Conselheiros da FAP defendem fortalecimento da democracia



Preocupação
Apesar dos retrocessos comandados por Bolsonaro nas políticas de diversas áreas no país, os conselheiros destacaram preocupação com o fato de a avaliação do governo dele não estar abaixo de 20%. Por isso, eles reforçaram a necessidade de se criar uma ampla frente democrática para lançar um nome alternativo ao do presidente para as eleições de 2022, inclusive sem descartar a possibilidade de aliança com o PT.

Primeira cidadã nascida no Brasil a tornar-se deputada no parlamento italiano, Renata Bueno observou que, em meio ao caos do atual governo, a população brasileira é ainda mais castigada por problemas como a falta de água e de energia, assim como a alta no preço dos alimentos e dos combustíveis. "O governo está totalmente ausente [nas questões políticas] e polêmico nas redes sociais. Isso não é positivo", criticou. Segundo ela, reconstruir o país será uma tarefa difícil e, por isso, é urgente que o país pense em alternativas ao nome do atual presidente.

O ex-senador Cristovam Buarque sugeriu um esforço para que a ampla frente saia no primeiro turno com apenas uma candidatura de presidente e vice, que, segundo ele, combine a esquerda nostálgica e os indecisos. "Como não sou negacionista e reconheço a força do PT e do próprio Lula, prefiro dizer que deveríamos caminhar para aliança com o PT e, se preciso, com o PT na cabeça da chapa para barrar e impedir a eleição de Bolsonaro", disse.

O economista Sérgio Cavalcanti Buarque demonstrou preocupação de que Lula encabece uma chapa que,  eventualmente, seja eleita no primeiro turno, já que, conforme acrescentou, é necessária abertura para negociação em possível segundo turno que tenha o petista como nome da oposição. "É ruim para o país e para a democracia se Lula ganhar no primeiro turno porque, aí, sim, o populismo, que é prática recorrente do lulismo, entraria com força esmagadora", acentuou.

CONFIRA A REUNIÃO DA FAP



Integrante do movimento negro, Babalawo Ivanir Alves dos Santos disse que a alternativa de nomes de presidenciáveis deve considerar realidades além da perspectiva meramente econômica ou do ponto de vista acadêmico. "Acredito que tem que ser pensada a representação que não seja só do agronegócio, do agroindustrial", afirmou, ressaltando que, no caso do Brasil, onde mais da metade da população é negra, a questão racial "ainda tem dificuldade de ser compreendida". "É preciso furar as bolhas e incluir outros segmentos, em diálogo aberto", sugeriu.

"Agendas regressivas"
O jornalista Luiz Carlo Azedo analisou que Bolsonaro e Lula representam  "duas agendas regressivas".  "Não é só a agenda de Bolsonaro que é regressiva e reacionária, que se inspira no regime militar que só existe na cabeça dele e não corresponde à realidade. O projeto eleitoral de Lula também é uma agenda regressiva", afirmou. 

"O Brasil vive uma situação dramática por não conseguir colocar nada no lugar do nacional-desenvolvimentismo. A cada dia que se passa, nossa complexidade industrial diminui. O agronegócio se torna hegemônico do ponto de vista da economia, e não conseguimos colocar nada no lugar porque não temos força política com visão globalista e, ao mesmo tempo, projeto nacional. Essa síntese precisa ser produzida com  musculatura política", disse.

DEMOCRACIA X BOLSONARO


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O diretor-geral da FAP reforçou a necessidade de criação de ampla frente democrática, apesar de concordar que os reflexos do movimento que elegeu o presidente devem perdurar ao longo dos anos. "Bolsonaro pode sair, mas o bolsonarismo vai continuar entre nós por muito tempo, por várias razões", observou Araújo. Por isso, segundo ele, há urgência de excluir qualquer hipótese de Bolsonaro permanecer no poder por mais quatro anos. "Esse deve ser o nosso objetivo número um hoje", asseverou.

Na avaliação do diretor-geral, a democracia brasileira demonstrou fragilidades que deverão ser enfrentadas se houver interesse de fortalecê-la, afastando qualquer risco de "retrocesso autoritário". "A questão da frente não é pacífica, não está resolvida, mas, se não fizermos isso, não há como argumentar para os eleitores a busca por convergência nem no primeiro turno nem no segundo turno", explicou. Ele também observou que os partidos políticos ainda não conciliaram as suas próprias demandas com as da frente democrática, o que, conforme acrescentou, é um desafio para possibilitar a convergência.


BOLSONARISMO X FUTURO DO PAÍS

Artigos destacam temas importantes para o país e que serão definidos pelo governo Bolsonaro

As cidades e a tecnologia 5G - Um novo modo de vida vai se impor.
Mas, qual? O que os municípios podem negociar ou impor?

André Gomyde

A quinta geração de internet móvel, a 5G, está chegando. O leilão para a abertura das propostas das operadoras foi marcado para o dia 04 de novembro. A partir de janeiro de 2022 começará a se tornar realidade em nosso país. A 5G transformará nossas vidas de uma forma que ainda não podemos imaginar. Ela utiliza melhor o espectro das ondas de rádio e permite que mais dispositivos acessem a internet móvel ao mesmo tempo, com um aumento substancial de velocidade em relação à atual 4G.

Nem conseguimos ainda imaginar como nossos smartphones ficarão mais velozes para fazer downloads e uploads. Poderemos assistir filmes em excelente qualidade, levando apenas pouquíssimos segundos para baixá-los em nossos equipamentos. Nós também podemos imaginar que não teremos mais problemas de falta de sinal e que nossos telefonemas não cairão mais no meio da conversa.

Mas será que nós conseguiríamos imaginar um médico fazendo uma cirurgia em uma pessoa que está em Brasília, enquanto ele está fisicamente em Berlim? E nosso céu cheio de drones fazendo entregas de comidas e remédios? Hoje, já vemos nossas casas cheias de equipamentos que ligam e desligam sozinhos, tudo isso conectado com nossos aparelhos celulares e a gente coordenando as atividades residenciais diretamente do nosso local de trabalho. A 5G proporciona tudo isso.

Tudo vai ficar mais fácil, mais rápido e… mais interessante? Interessante, não sabemos. Aparecerão coisas que hoje não temos nem como pensar. Certamente, um novo modo de vida vai se impor - e teremos que nos adaptar. No entanto, a 5G, por trabalhar com comprimentos de ondas mais curtos, tem um alcance menor e, portanto, é mais facilmente bloqueada por objetos físicos. Isso exige uma quantidade muito maior de antenas de transmissão do que temos hoje. A questão das antenas é o ponto que começa a complicar toda a história. Muito já se discutiu sobre uma quantidade enorme de antenas espalhadas por toda as cidades - que ficarão feias. Quanto a isso, a tecnologia vem dando um jeito. As antenas evoluíram tecnologicamente e hoje têm um tamanho bastante reduzido e um formato bastante amigável.

André Gomyde: "Não se pode ter uma legislação nacional que obrigue os municípios a permitir que as antenas 5G sejam ali instaladas". Foto: Luiz Prado/Agência LUZ/Agência Sebrae

Outra discussão menos tranquila de resolver é: essa quantidade enorme de antenas em todos os lugares, emitindo radiação, prejudica ou não a saúde humana? As operadoras e empresas de tecnologia envolvidas dizem que não prejudica e apresentam seus estudos. Por outro lado, outros mostram o contrário. O fato é que não há ainda nada conclusivo sobre isso e em alguns países (lembro-me de Colômbia e Peru) essa discussão tem sido feita de forma bastante aprofundada pelos pesquisadores desses países.

Outra questão interessante é que a União não pode legislar sobre o território das cidades. Quem legisla sobre isso são as câmaras de vereadores. Portanto, não se pode ter uma legislação nacional que obrigue os municípios a permitir que as antenas sejam ali instaladas. Cada município terá que fazer sua própria legislação. Um prefeito que tenha compromisso com sua população e com o desenvolvimento de sua cidade não permitirá a instalação de antenas sem uma contrapartida das operadoras. Muito e muito dinheiro se ganhará com a 5G; o que ficará para a sociedade, em troca?

Já se sabe que o problema da conectividade tem aumentado de forma acelerada a desigualdade social. Com a 5G isso vai se potencializar. E se não cabe às operadoras cuidar da questão social, cabe aos prefeitos. Os prefeitos precisam se aprofundar na questão e encontrar os caminhos para que as antenas possam ser instaladas, mas, também, que a contrapartida ao município e à sociedade seja dada. A legislação federal já definiu que os municípios não podem cobrar direito de passagem das operadoras. Isso pode e deve ser revisto.

Mas há algumas outras coisas que podem ser também negociadas. Cada município saberá o que deve negociar. Uma dessas coisas que considero a mais importante: compartilhamento de dados e informações, que não sejam privados, com a prefeitura. Dados e informações são a base do conhecimento - que, por sua vez, é o grande capital do século XXI. Nossos dados e informações não podem, definitivamente, ser de exclusividade das operadoras e empresas de tecnologia. A Lei Geral de Proteção de Dados, infelizmente, não esgotou esse problema. Precisará ser aprimorada, para ajudar os prefeitos a não ter que travar a instalação de antenas nas cidades, sob pena de condenar sua população a ficar nas mãos de interesses que desconhecemos e que nunca conheceremos a fundo.

*André Gomyde é presidente do Instituto Brasileiro de Cidades Humanas, Inteligentes, Criativas e Sustentáveis e membro do júri do World e-Government Awards, da Coreia do Sul.


Tela de Miguel Alandia Pantoja/artista boliviano

O populismo veio para ficar?

Elimar Pinheiro do Nascimento

Apesar da derrota de Donald Trump nos Estados Unidos, o populismo continua forte em vários países como Polônia, Hungria e Turquia etc. Para nós, latino-americanos, ele não é novo, porém hoje é distinto. O populismo que conhecemos nos anos 1940/1960 era uma expressão política de países periféricos. Hoje, criou raízes no centro do mundo ocidental. O populismo “tradicional” atribuído sempre a políticos de direita, e com sentido pejorativo está presente agora na esquerda e na direita. Ele reúne políticos no governo de Nicolás Maduro (Venezuela), de Andrés Manuel López Obrador (México), Viktor Orbán (Hungria) e Jair Bolsonaro, e políticos de oposição como Jean Luc Mélenchon, à esquerda, e Le Pen, à direita, na França. O populismo de esquerda já tem teóricos como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe.

O fato de o populismo atrair da extrema direita à esquerda não deveria ser estranho, pois se trata de uma ideologia vaga e contraditória. Por isso, os líderes populistas reúnem traços ambíguos, como Juan Perón e Getulio Vargas ou Beppe Grillo e Pedro Castillo. Ambiguidade e fluidez dificultam a sua compreensão. Assim, ele está em toda parte, mas a teoria que o explica não está em canto algum.

Um erro analítico frequente, motivado pela força atual da extrema direita no espaço populista, é considerar simploriamente que o populismo é uma negação da democracia. Longe disso -  o populismo contemporâneo expressa o conflito entre duas concepções de democracia. Ele é, simultaneamente, uma crítica ácida à democracia liberal e uma proposta de uma outra democracia, centrada na expressão da vontade popular. Trata-se de uma democracia direta, polarizada.

A forma que o populismo está assumindo varia, mas existem alguns elementos estruturantes. Vejamos alguns.

Como o populismo pretende refundar a democracia, e o povo é o seu centro, a eleição torna-se o instrumento mais legítimo, avalia Elimar. Foto: Reprodução/UnB

A afirmação do povo como um todo homogêneo é um desses traços comuns. O populismo nega – e se incomoda com - a heterogeneidade das sociedades modernas. Para criar uma homogeneidade, inexistente sociologicamente, os populistas promovem um conflito sobredeterminante, entre “nós e eles”. Se em cada local o “nós” é sempre o mesmo, o povo uno, o “eles” varia segundo as especificidades locais. Nos países de governos populistas na Europa, o “eles” são os imigrantes; nos Estados Unidos de Trump era a China; no Brasil de Bolsonaro são os comunistas. Frequentemente o “eles” são as elites, que mudam de camisa em cada local. É uma definição vaga o bastante para lhe dar força.

O líder exerce um papel importante na constituição do povo uno, pois ele é quem define quais são os interesses do povo e quem é o seu inimigo (o “eles”). O líder é aquele chamado a refundar a democracia, dando ao povo a sua centralidade. A vontade do povo é expressa por ele, que se identifica com o povo. A propaganda do populismo de direita na França é “Le Pen, o povo”. Trump, declarava: “Eu sou a voz de vocês”.

Como o populismo pretende refundar a democracia, e o povo é o seu centro, a eleição torna-se o instrumento mais legítimo. Por isso, o referendo ocupa um espaço privilegiado, pois é por ele que o povo pode clamar sua vontade. Para os populistas, o referendo elimina os partidos políticos como organizadores da vontade popular e considera a mídia como deturpadora da expressão popular. A democracia direta e polarizada, sem poderes intermediários para criar dificuldades ao governo executivo, e o sonho populista. Por isso, o poder judiciário, porque não eleito, deve ser subalterno.

Finalmente, os populistas fundam regimes políticos regidos pelas emoções. O excesso de informações disponíveis no mundo moderno torna esse mundo mais opaco. A velocidade das mudanças torna-o mais inseguro. O populismo adota uma forma simples e confortável de explicação do complexo: o conspiracionismo. Dizem os populistas: se você não entendeu a linguagem, é porque os inimigos não querem que você compreenda o que se passa, estão conspirando contra você. As teorias de complô exercem múltiplas funções: política, cognitiva e psicológica. O populismo capta as emoções primárias das pessoas mais simples (do ponto de vista cognitivo e não econômico): a raiva e o ressentimento. Oferece aos mais angustiados um real vivido, e não aquele refletido nas estatísticas e análises. Se o governo de Beppe Grillo é formado por pessoas ignorantes da gestão pública é porque eles não são da elite, não são corruptos - o que poderia ser defeito transforma-se em virtude. O presidente que come pizza em pé na calçada em New York não é algo do qual se deva sentir vergonha, como dizem os jornais do mundo inteiro - deve ser motivo de orgulho, pois mostra que ele é do povo.

Assim, o populismo que nasce e alimenta o negacionismo e o conspiracionismo é o grande desafio da democracia liberal. Terá ela instrumentos eficientes para vencê-lo?

*Elimar Pinheiro do Nascimento é sociólogo, professor da pós-graduação no CDS/UnB, membro do Conselho consultivo da Fundação Astrojildo Pereira.


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Ampla frente democrática será discutida pela FAP como alternativa a Bolsonaro


Maria Cristina Fernandes: Luciano Hang lidera bolsonarismo contra o Leviatã

Enquanto Hang explora revolta contra poder do Estado na pandemia, Bolsonaro mantém espetáculo com carimbo sobre wi-fi e microcrédito

Maria Cristina Fernandes / Valor Econômico

O depoimento do dono das lojas Havan à CPI da Covid no Senado mostrou que a oposição ainda está despreparada para enfrentar o bolsonarismo na sucessão presidencial de 2022. Levou quatro horas para Luciano Hang começar a falar o que, de fato, importava para sua vinculação com o gabinete paralelo da pandemia e o financiamento das “fake news”.

Até lá, Hang teve palco para se apresentar como representante daquela fatia do eleitorado que está mais fechada com o presidente Jair Bolsonaro. Até vídeo-propaganda de sua empresa teve oportunidade de exibir. O Datafolha chama de empresários e o Atlas de empreendedores, mas os dois institutos convergem na constatação de que este é o segmento em que o presidente colhe seu melhor desempenho, com 48% de aprovação.

Entre eles não se incluem grandes empresários e banqueiros que se mobilizam por uma terceira via, mas donos de restaurantes e botecos, feirantes, cabeleireiras e empreendedores de toda ordem que se multiplicaram com a epidemia do desemprego. Eles se identificam com Bolsonaro porque seu negócio faliu ou foi severamente afetado pelas medidas de restrição adotadas por governadores e prefeitos.

Não são adoradores do presidente, mas é ele quem encarna hoje a rejeição ao Estado interventor, esse Leviatã que trancou as pessoas em casa, obrigou o uso de máscaras e multou estabelecimentos que desafiassem horários restritos de funcionamento. Esta mentalidade que remete ao monstro bíblico ao qual foi equiparado o Estado absolutista, foi vitaminada pela pandemia. Não se trata de um fenômeno tupiniquim. Acomete negacionistas no mundo inteiro e tem, no Brasil, um lídimo representante em Luciano Hang.

Até a CPI entrar no que realmente importa para vinculá-lo aos crimes da pandemia, o dono da Havan teve a oportunidade de buscar empatia com a plateia ao longo da sessão da CPI. Filho de operários, teve dislexia na infância e vendia biscoitos na escola. Foi operário até se arriscar como comerciante com uma pequena loja de tecidos.

Nega ser empresário, como o faria qualquer dono de bodega. Fala de si como comerciante, apesar de ter um conglomerado de 164 lojas em 20 Estados. Para todo pecado levantado pela CPI, apresentava uma história capaz de comover seus pares. Contas bancárias e offshores no exterior? Claro, como poderia importar sem uma empresa lá fora para amortizar a flutuação do câmbio? Empréstimos de R$ 27 milhões no BNDES? Sim, mas não porque precisasse. Fatura mais do que isso por dia. Passou a vender cestas básicas para se enquadrar no critério de atividade essencial? Sim, mas se pode vender chocolate por que não feijão e arroz?

É claro que foi contraditado pelos senadores. O presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), lembrou que enquanto dona Maria não consegue R$ 1 mil de crédito para comprar uma máquina de costura, o empresário que se veste de verde-amarelo para se fingir de patriota pegou dinheiro que não precisa. O relator, Renan Calheiros (MDB-AL) tirou dele que os sites para onde destina R$ 150 milhões por ano em publicidade são escolhidos a dedo e mostrou vídeo em que Hang, ao contrário do que dissera, coagiu funcionários a votar em Bolsonaro em 2018.

Hang quis desenhar para os senadores a diferença entre tratamento preventivo e inicial com o kit covid quando, na verdade, nenhum dos dois funciona. Preparou, como clímax do depoimento, a imagem de filho zeloso que ganhara dinheiro para que os pais tivessem a vida digna que foi negada aos avós. Por isso, autorizou até kit-covid para salvar a mãe, mas foi obrigado a reconhecer a omissão da causa de sua morte no atestado de óbito.

Os senadores da oposição concluíram sua intervenção constatando a utilidade do depoimento. Será? O que o empresário disse naquela comissão que já não fosse do conhecimento do inquérito das “fake news” no Supremo Tribunal Federal ou da própria CPI? Há informações que ajudarão a compor o relatório, como o do encontro entre Hang e o líder do governo, Ricardo Barros (PP-PR), horas antes da sessão. A dúvida que se coloca é a do custo-benefício do depoimento.

Os próprios senadores alertaram que uma rede de robôs havia entrado em ação para atacar seus perfis sociais durante a sessão. O filho do presidente, senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), que estava sumido da CPI, reapareceu com o claro intuito de provocar os colegas. Foi, em parte, bem sucedido, como mostraram as mãos trêmulas do senador Rogério Carvalho (PT-SE) quando exigiu que o advogado do depoente deixasse a sala por desacato.

As imagens do depoimento já foram devidamente editadas e caíram na rede para mostrar uma goleada de Hang, a começar pela transmissão ao vivo em rede social dos próprios deputados da tropa de choque bolsonarista, como Daniel Freitas (PSL-SC) e Bia Kicis (PSL-DF), lá presentes.

Não importa que esta goleada-fake se destine a convertidos como aqueles que lotaram a avenida Paulista no 7 de setembro. O presidente está dedicado à outra ponta do eleitorado. Não apenas com um auxílio emergencial vitaminado mas também com o carimbo que busca imprimir ao programa “Wi-fi para todos”, versão bolsonarista do petista “Luz para todos”, e, mais recentemente, com a investida para tomar o controle do Centrão sobre o microcrédito do Banco do Nordeste do Brasil.

Enquanto Hang mantém o picadeiro do circo armado, Bolsonaro cuida de garantir o sucesso de atrações como a da oposição ao seu próprio governo. Deixou isso claro no dueto com o presidente da Petrobras, Joaquim Luna e Silva, em torno do preço dos combustíveis. Um finge que bate enquanto o outro se mantém irredutível contra o intrépido presidente em sua luta contra a carestia.

Os espetáculos se sucedem enquanto Bolsonaro cuida, na coxia, de esticar a corda com o Centrão, como no BNB, certo de que três datas ainda terão que ser vencidas para que algum desembarque se concretize: a votação do Orçamento de 2022 até 31 de dezembro, o empenho das emendas parlamentares, em 2 de abril, e o encerramento de sua execução financeira, em 2 de julho. É este o prazo que a oposição tem para aprender a enfrentar o bolsonarismo sem dar palco para maluco.

Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/hang-lidera-bolsonarismo-contra-o-leviata.ghtml